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Ideias de Natureza Raymond Williams Tradução de Luiz Menna-Barreto e Rogério Monteiro de Siqueira, professores do Programa de Pós Graduação em Estudos Culturais da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo. Tradução realizada em janeiro-fevereiro de 2011, a partir do ensaio original “Ideas of Nature”, extraído do livro “Culture and materialism”, Ed. Verso, Londres 2005, pp. 67-85. Este ensaio foi publicado originalmente em 1972, baseado em conferência proferida por Raymond Williams em Londres em 1971. Um toque da natureza pode tornar o mundo familiar, mas, geralmente, quando mencionamos a natureza, nós nos incluímos nela? Sei que alguns diriam que o outro tipo de natureza – as árvores, colinas, riachos, e animais – tem um efeito tranquilizador. Entretanto, tenho percebido que eles frequentemente a contrapõe com o mundo dos homens e de suas relações. Começo neste problema simples de significado e referência porque pretendo que esta investigação seja ativa, e também porque quero enfatizar o fato, com frequência despercebido, de que a ideia de natureza contém uma quantidade extraordinária de história humana. Tal como algumas outras ideias fundamentais que expressam a visão da espécie humana sobre si mesma e de seu lugar no mundo, “natureza” tem uma continuidade nominal ao longo de muitos séculos, porém pode ser vista, analiticamente, como algo complicado e mutável, como outras ideias e experiências mudam. Eu já tentei anteriormente analisar algumas ideias comparáveis, critica e historicamente. Entre essas ideias estavam cultura, sociedade, indivíduo, classe, arte, tragédia. Porém devo dizer logo de início, que apesar de difíceis, essas ideias parecem simples se comparadas com a ideia da natureza. Ela tem sido central, ao longo de muito tempo, em muitos tipos de pensamento. Além disso, há algumas dificuldades fundamentais nos primeiros estágios de sua expressão: dificuldades que parecem persistir. Alguns, quando veem uma palavra, pensam que a primeira coisa a fazer é defini-la. Os dicionários são produzidos e, com uma demonstração de autoridade que não ignora as limitações de local e data, aquilo que é chamado de definição adequada acaba sendo incorporado. Embora seja possível, de maneira mais ou menos satisfatória, agir assim em relação a simples nomes de coisas e de efeitos, não só é impossível como também é irrelevante no caso de idéias mais complicadas. O que importa nesses casos não é o significado adequado mas sim a história e a complexidade dos significados: as mudanças conscientes, ou, os usos conscientemente diferentes – e bem frequentemente aquelas mudanças e diferenças mascaradas pela continuidade nominal- expressam mudanças radicalmente distintas nas experiências e na história que, às vezes, de início passam desapercebidas. Devo logo dizer então que qualquer análise razoavelmente completa das mudanças na ideia de natureza estaria muito além dos objetivos de uma conferência, porém tentarei sugerir alguns pontos principais, os contornos gerais, de tal análise, e ver que efeitos terão sobre alguns dos debates e preocupações atuais. O ponto central da análise pode ser expresso imediatamente na formação singular da palavra. Para mim, estamos diante de um caso no qual uma definição de qualidade se torna, através do uso real e apoiada em alguns pressupostos, em uma descrição do mundo. Parte da história da linguística primitiva é de difícil interpretação, porém encontramos, nos usos mais antigos, dois significados diferentes. Posso talvez ilustrar isso usando uma passagem bem conhecida de Burke1: 1 NT: Williams cita um trecho de um dos discursos do escritor e político inglês Edmund Burke (1729-1797). O trecho pode ser encontrado na página 103 da obra “An appeal from the new to the old Whigs, in consequence of some late discussions in Parliament, relative to the Reflections on the French Revolution. ”, publicado em Londres, a pedido de J. Dosley, em 1791. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. “Em um estado de natureza bruta não existe essa coisa chamada povo... A ideia de povo é a ideia de uma corporação. É uma ideia inteiramente artificial; feita, como outras ficções,a partir de acordos. A natureza singular do acordo é obtida a partir da forma como aquela sociedade particular foi formada.” Talvez bruta, aqui, faça uma diferença pequena, porém o que é mais contundente é a coexistência da ideia comum, um estado de natureza, com o uso quase imperceptível, por ser bastante habitual, da palavra natureza para indicar a qualidade do acordo. O sentido do uso da palavra natureza para indicar a qualidade essencial e inerente de qualquer coisa é mais do que simplesmente acidental. De fato, há evidências de que esse é o uso historicamente mais antigo. Em latim diríamos natura rerum, guardando a natureza como qualidade essencial e acrescentando a definição das coisas. Porém, ainda no latim, natura passou depois a ser usada isoladamente para expressar o mesmo significado geral: a constituição essencial do mundo. Muitas das mais antigas especulações sobre natureza foram nesse sentido físico, mas com o pressuposto de que ao longo da investigação física as leis essenciais, inerentes e de fato imutáveis, seriam descobertas. A associação e depois a fusão de um nome para a qualidade com um nome para as coisas observadas tem uma história precisa. Trata-se de uma formação central do pensamento idealista. O que se procurava na natureza era um princípio essencial. A multiplicidade das coisas e dos organismos vivos pode ser então mentalmente organizado em torno de uma única essência ou princípio: a natureza. Não pretendo negar, mas sim enfatizar o fato que essa abstração singular representou um importante avanço na consciência. Entretanto creio que acabamos nos acostumando a uma continuidade nominal por mais de dois milênios de forma que nem sempre nos damos conta de todas suas implicações. Um único nome para a multiplicidade real das coisas e organismos pode ser entendido, com algum esforço, como neutro, porém estou convencido de que ele oferece, desde logo, um tipo dominante de interpretação: idealista, metafísica ou religiosa. Penso também que isso é especialmente visível quando olhamos sua história subsequente. Temos registros em culturas bem antigas daquilo que hoje chamaríamos de espíritos ou deuses da natureza – seres considerados como corporificações ou condutores do vento, do mar, da floresta ou da lua. Sob o peso da interpretação cristã nos acostumamos a chamar de pagãos esses deuses ou espíritos – manifestações variáveis e diversas que antecederam a revelação do Deus único. Entretanto, assim como na religião o momento do monoteísmo representa um desenvolvimento crítico, também constitui-se desta maneira o surgimento da natureza singular como resposta humana ao mundo físico. Singular, abstrata e personificada Quando a própria natureza, como o povo aprendeu a dizer, tornou-se uma deusa, uma Mãe divina, era algo diferente dos espíritos do vento, do mar, da floresta e da lua. É ainda mais surpreendente que esse princípio singular, abstrato e personificado, baseado nas respostas ao mundo físico, tenha claramente (se me permitem a expressão) um competidor, no ser singular, abstrato e personificado – o Deus do monoteísmo. A história dessa interação é abundante. No mundo medieval ortodoxo havia uma fórmula que preservava a singularidade de ambos: Deus tem a primazia absoluta, mas a Natureza é sua ministra e representante. Tal como em muitos outros acordos, essa relação continuou controvertida. Houve uma longa discussão, precedendo a volta da investigação física sistemática – daquilo que hoje chamaríamos de ciência –, sobre a pertinência e, em seguida, sobre o forma de inquerir tal ministra, associadoà óbvia questão de se sua soberania estaria sendo infringida ou não recebendo o devido respeito. Trata-se, hoje, de um velho debate, mas é interessante notar que em sua volta no século dezenove, nas discussões sobre evolução, mesmo os homens que estavam prontos para dispensar um princípio original singular – dispensar a ideia de Deus – geralmente retinham e enfatizavam um outro princípio de mesma estatura: a Natureza singular e abstrata, e de fato personificada de maneira frequente e original. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. Talvez isso não intrigue tanto os outros como intriga a mim. Porém mencionarei neste ponto um de seus efeitos práticos evidentes. Em um debate sério, mas mais ainda em controvérsias populares e em muitos momentos de retórica contemporânea, frequentemente encontramos proposições no formato “a Natureza é...”, ou “a Natureza mostra...”, ou “a Natureza ensina...”. O que geralmente transparece do que é dito em seguida, é que o sentido é seletivo (restrito), de acordo com o objetivo geral do conferencista. “a Natureza é...” o que? Vermelha nos dentes e garras; uma competição sem fronteiras pela sobrevivência; um sistema articulado extraordinário de vantagens mútuas; um paradigma de independência e cooperação. A “Natureza é” qualquer uma dessas coisas dependendo do processo que escolhemos: a cadeia alimentar, dramatizada por tubarões e tigres; a selva de plantas competindo por luz e ar; a polinização com abelhas e borboletas; ou ainda a simbiose hospedeiro-parasita; até mesmo as espécies que se alimentam de carniça, como controladores de populações, reguladores das fontes alimentares. Naquilo que é visto tão frequentemente como a crise do nosso mundo físico, muitos de nós acompanham, com extrema atenção, os mais recentes trabalhos daqueles que observam e são qualificados para observar esses processos e efeitos, essas criaturas, coisas, atos e consequências. E eu tendo a acreditar que uma ou outra dessas generalizações pode ser mais verdadeira do que as outras, pode ser uma visão melhor dos processos nos quais estamos envolvidos e dos quais pode-se dizer que dependemos. Entretanto devo dizer que eu me sentiria muito mais próximo da situação real se essas observações, feitas com grande competência e precisão, não fossem tão rapidamente transcritas – refiro-me é claro ao nível das necessárias generalizações – em declarações singulares a respeito de características inerentes e imutáveis, em princípios de uma simples natureza. Não tenho competência para falar especificamente sobre qualquer um desses processos, porém no nível da experiência cotidiana, quando escuto que a natureza é uma competição cruel, lembro-me das borboletas; quando me dizem que se trata de um sistema de vantagens mútuas, lembro-me de furacões. Exércitos intelectuais podem atacar uns aos outros com este ou aquele exemplo, mas minha inclinação é avaliar a ideia que compartilham – aquela ideia de uma natureza simples e essencial, com leis consistentes e harmônicas. Na verdade encontro-me refletindo sobre o sentido mais profundo daquilo que dizia no início – a de que a ideia de natureza contém uma quantidade extraordinária de história humana. Parece-me que o que tem sido frequentemente debatido na ideia de natureza é a ideia de homem, e isto não apenas como generalidade, ou de maneira definitiva, mas também a ideia do homem na sociedade, na verdade as ideias de sociedade. O fato da natureza ter sido concebida de forma singular e abstrata, e isso ter sido personificado, tem pelo menos uma conseqüência conveniente: permite-nos perceber, com rara clareza, algumas interpretações bastante fundamentais de toda nossa experiência. A natureza pode ser de fato uma coisa, uma força ou um princípio únicos, mas aí o que constitui essa coisa, força ou princípio, passa a ter uma história real. Já mencionei a natureza como ministra de Deus. Conhecer a natureza era então conhecer Deus, embora houvesse uma diferença radical a respeito das formas desse conhecimento, se através da fé, da especulação, pela razão ou pela investigação e experimentação física. Porém a natureza como ministra ou representante foi precedida e tem sido amplamente sucedida pela natureza como rainha absoluta. Isto é característico de certas fases de fatalismo, em muitas culturas e períodos. Não se trata de considerar impossível conhecer a Natureza – como súditos conhecemos nossa rainha. Entretanto seus poderes são tão grandes e são exercidos de formas tão aparentemente caprichosas, que não podemos tentar controlá-la. Pelo contrário, limitamo-nos a vários formatos de petição ou pacificação – as preces contra tormentas ou pedindo chuva, a abstenção supersticiosa de manipular ou não este ou aquele objeto, o sacrifício para assegurar fertilidade ou o plantio de salsa na Sexta-Feira Santa. E, muito frequentemente, existe uma área indeterminada entre essa rainha absoluta e a noção mais controlável de ministra de Deus. Incerteza de propósitos é evidente tanto na personificação da Natureza como na de Deus – ele é providente ou indiferente, determinado ou caprichoso? Todos dizem que no mundo medieval havia um conceito de ordem que abrangia todas as partes do universo, da mais elevada à mais Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. inferior – uma ordem divina, das quais as leis da natureza eram a expressão prática. Certamente, essa foi uma crença corrente e, talvez, ensinada ainda mais frequentemente. Na peça de teatro “Natureza” de Henry Medwall ou ainda nos “Quatro elementos” de Rastell, a Natureza instrui o homem de seus deveres sob os olhos de Deus; assim ele consegue descobrir sua própria natureza e lugar a partir dessas instruções. Porém na praga e na escassez de comida, naquilo que não pode ser considerado lei natural mas sim catástrofe natural, figurações muito distintas da soberania absoluta podem aparecer, e o formato de uma luta entre um Deus invejoso e outro justo, evoca a luta na mente humana de experiências reais de uma “natureza” providente e destrutiva. Muitos acadêmicos acreditam que essa concepção de uma ordem natural perdurou e dominou o mundo elisabetano e jacobino, porém o que é surpreendente no Lear de Shakespeare, por exemplo, é a incerteza sobre o significado de “natureza”: Se concedermos à natureza humana (nature) apenas o que lhe é essencial, a vida do homem vale tão pouco quanto a do animal... ...uma filha, que redime a humanidade (nature) da maldição universal que as outras duas fizeram cair sobre ela. um ser (That nature) que despreza a própria origem não pode ser contido em nenhum limite... ...trovão que abala o universo... Quebra os moldes da natureza e destrói de uma vez por todas as sementes que geram a humanidade ingrata... ...Escuta, natureza, escuta! Querida deusa, escuta2... Nesses poucos exemplos encontramos um amplo espectro de significados – desde aquela natureza como condição primitiva que precedeu a sociedade humana; passando pela noção da inocência original com a queda e a maldição associadas, que requer redenção; passando pelo significado especial de qualidade de berço, como na raiz latina; passando ainda pelo significado das formas e modelos da natureza, que podem, paradoxalmente, ser destruídos pela força natural do trovão; até chegar na forma simples e persistente da deusa personificada, a própria Natureza. A análise feita por John Danby contém uma variedade ainda maior dos significados de “natureza” em Lear3. Aquilo que na história do pensamento pode ser visto como uma confusão ou sobreposição é frequentemente o momento preciso do impulso dramático. O modo dramático é maispoderoso, e inclui mais, do que qualquer narrativa ou relato,porque os significados e experiências são incertos e complexos: não a ordem abstrata, embora suas formas persistam, mas simultaneamente a ordem, os significados conhecidos, e aquela experiência de ordem e significados que se encontram no limite da inteligência e dos sentidos, uma interação complexa que se constitui em forma nova e dramática. A natureza é subitamente inocente, é não providente, é segura, é insegura, é produtiva, é destrutiva, é força pura, é maculada e é amaldiçoada. Não consigo pensar em melhor contraste com o modelo de significado único, que se constitui na mais acessível história da ideia. 2NT: A tradução é de Millôr Fernandes, L&PM, 1994. Como se pode perceber, Millôr escolheu verter o verbete “nature” valendo-se mais de seu significado e não de sua tradução mais usual “natureza”. A ariedade na tradução de Millor vai ao encontro do comentário de Williams sobre o sentido incerto de “nature”, empregado por Shakespeare. 3Shakespeare's Doctrine of Nature, London, 1949. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. Ainda assim, as ideias simplificadoras continuam a emergir. Os representantes de Deus, ou do soberano absoluto (e esses soberanos foram também, pelo menos em imagem, representantes de Deus), foram sucedidos por aquela Natureza, a qual, pelo menos no mundo letrado, dominaram o pensamento europeu entre os séculos dezessete e dezenove. A figura é menor, menos imponente, na verdade um advogado constitucional. Embora ainda algum crédito aparente seja dado ao criador original das leis (em alguns casos, não é preciso duvidar, ele foi mais do que aparente), toda atenção prática é focada nos detalhes das leis – a serem classificadas e interpretadas, permitindo previsões a partir de ocorrências precedentes, descobrindo ou reativando estatutos esquecidos, e então, mais criticamente, forjando novas leis a partir de novos fatos: as leis da natureza, neste significado constitucional completamente novo, seriam mais acumulação e classificação de casos do que a formatação de ideias essenciais. A nova ideia de evolução O poder dessa nova ênfase precisa ser fortemente ressaltado. Suas aplicações práticas e seus detalhes tiveram efeitos totalmente transformadores no mundo. Em sua crescente secularização, na verdade, naturalização, algumas vezes a natureza conseguiu fugir da personificação singular, e, embora frequentemente ainda singular, tornou-se um objeto, e em algumas vezes uma máquina. Em seus tempos mais remotos, as ciências com essa ênfase eram aquelas predominantemente físicas: tal conjunto formado pela matemática, física e astronomia era chamado de filosofia natural. As observações clássicas ocorriam sobre estados fixos ou estados em movimento que obedeciam leis fixas. As leis da natureza eram de fato constitucionais, porém, ao contrário da maioria das constituições reais, elas não tinham história efetiva. Nas ciências da vida a ênfase era nas propriedades constitutivas, e, mais fortemente, nas classificações das ordens. O que mudou essa ênfase foi, é claro, a evidência e a ideia de evolução; formas naturais não tinham apenas uma constituição mas também uma história. Desde o final do século 18, e muito claramente ao longo do século 19, a personificação da natureza mudou. A partir da noção de advogado constitucional, os homens escolheram uma nova figura: Natureza, a procriadora seletiva. De fato, o hábito da personificação, talvez exceto em alguns usos formais, que vinha se enfraquecendo visivelmente, foi fortemente reativado por esse novo conceito de uma força ativamente formadora, até interventora. A seleção natural podia ser interpretada de dois modos: como uma descrição natural e simples de um processo, ou como na atribuição de uma força específica que podia exercer atividade tanto consciente quanto seletiva. Existem outras razões, como veremos, para o vigor das personificações ao final do século dezoito e ao longo do dezenove, porém essa nova ênfase, de que a natureza tinha uma história própria, podendo assim ser vista como uma força histórica, se constituiu em um momento relevante no desenvolvimento das ideias. Fica assim evidente, se olharmos para algumas das grandespersonificações ou quase- personificações, que o que compreende oconceito natureza, e o que é feito para compreender, é crítico. Podem ocorrer mudanças de interesse entre os mundos físico e orgânico e, de fato, a distinção entre esses mundos está na maneira de construir a investigação. Mas a questão mais crítica, em termos de abrangência, diz respeito ao homem ser incluído ou não na natureza. Esse foi, afinal, o fator importante na controvérsia sobre a evolução, se o homem poderia ser adequadamente visto nos termos de um processo estritamente natural, se ele poderia ser descrito, por exemplo, nos mesmos termos empregados para descrever animais. Embora essa questão hoje assuma formas diferentes, creio que continua crítica, e isso se constitui assim devido a razões desvendáveis ao longo da história da ideia. No conceito medieval ortodoxo de natureza, o homem certamente estava incluído. A ordem da natureza, expressão da criação divina, incluía como elemento central a noção de hierarquia – o homem tinha um lugar preciso na ordem da criação, mesmo tendo sido constituído a partir dos elementos universais que compunham a natureza como um todo. Além disso, essa inclusão não era Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. meramente passiva. A noção de um lugar na ordem pressupunha um destino. A constituição da natureza declarava seu propósito. Ao conhecer o mundo inteiro, começando pelos quatro elementos, o homem acabaria conhecendo seu lugar importante no mundo, e a definição dessa importância consistia na descoberta de sua relação com Deus. Entretanto, há uma enorme diferença entre uma noção idealista de uma natureza fixa, corporificando leis permanentes, e a mesma noção incluindo uma ideia de futuro, um destino como lei mais importante. Essa última, em poucas palavras, não tem como como prioridade a investigação física, pois a finalidade das leis e, portanto, sua natureza, já é conhecida, ou melhor, assumida. Não é nenhuma surpresa que o anjo mau é quem diz, em Marlowe4: Vá em frente, Faustus, na famosa arte Na qual todo o tesouro da natureza está contido. O que era preocupante, obviamente, era o risco do homem, ao tratar com a natureza, considerar-se como Senhor e Comandante desses elementos. Essa era uma dificuldade real e duradoura: A natureza nos fez de quatro elementos Guerreando dentro de nossos peitos por ordem Nos ensina a ter mentes que ambicionam Embora isso pudesse ser assim, tal ambição era ambígua: seja ambição de conhecer a ordem da natureza ou a ambição de saber como intervir nessa ordem, tornando-se seu comandante. Dito de outra forma, ou trata-se de conhecer seu importante lugar na ordem da natureza ou trata-se de conhecer como ultrapassá-lo. Esse debate pode parecer irreal. Há milênios o homem tem intervindo, tem aprendido a controlar. Desde os primórdios da agricultura e da domesticação dos animais, essa intervenção tem sido realizada conscientemente, bem longe das várias consequências secundárias tanto daquilo que os homens imaginaram quanto das suas atividades corriqueiras. A abstração do homem Atualmente, sabemos muito bem que, como espécie, nos tornamos mais confiantes em nossos desejos e em nossa capacidade de intervenção. Porém não podemos entender esse processo, nem mesmo descrevê-lo, enquanto não decidirmos o que está incluído na ideia de natureza, principalmente, se nós estamos incluídos nesse conceito. Ao dizermos que o homem “intervém” em processos naturais,estamos supondo que ele pode achar possível não fazer isso, ou, decidir não fazê-lo. Ou seja, a natureza tem que ser concebida como algo separado do homem antes que qualquer questão sobre intervenção ou comando, método e ética, possa ser formulada. E então, é claro, isso é o que podemos ver acontecendo no desenvolvimento da ideia. Pode parecer paradoxal num primeiro momento, porém o que hoje consideramos as mais seculares e racionais ideias de natureza, dependem de uma nova e singular abstração – a abstração do homem. Não se trata tanto de uma mudança de uma visão metafísica para uma visão naturalística, embora essa distinção seja relevante, mas mais de uma mudança de uma noção abstrata para outra, muito semelhante em sua forma. 4NT: Christopher Marlowe (1564-1593), poeta e dramaturgo inglês, escreveu Doutor Fausto, do qual Raymond Williams extraiu os trechos citados. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. É evidente que tem havido um longo debate sobre as relações entre a natureza e o homem social. No pensamento grego mais antigo trata-se do debate sobre natureza e convenção – em certo sentido um contraste histórico entre o estado de natureza e o estado formado pelo homem com suas leis e convenções. Uma grande parte de toda a teoria sobre leis e política tem sido baseada de alguma forma em uma noção a respeito dessa relação. Entretanto é óbvio que o estado de natureza, condição do homem natural, tem sido interpretado de modo muito diferente. Seneca via o estado de natureza como idade dourada, na qual os homens eram felizes, inocentes e simples. Esse mito poderoso coincidiu muitas vezes como o mito do paraíso, o mito do homem antes da queda. Mas algumas vezes não coincidiu, o fim da inocência podia ser visto como uma queda na natureza – o animal sem graça ou o animal carecendo de graça. Um ser natural podia então significar condições opostas: o homem inocente ou a besta. Na teoria política ambas imagens foram usadas. Hobbes via o estado do homem na natureza como inferior, a vida do homem pré-social como “solitária, pobre, indecorosa, abrutalhada e curta”. Simultaneamente, a razão correta era uma lei da natureza, num sentido constitutivo bastante distinto. Locke, em oposição a Hobbes, via o estado de natureza como “paz, boa-vontade, assistência mútua e cooperação”. Uma sociedade justa organizaria essas qualidades naturais, enquanto que, para Hobbes, uma sociedade efetiva teria superado essas desvantagens naturais. Rousseau via o homem natural como instintivo, inarticulado, sem propriedades, contrastando essas características com a sociedade egoísta e competitiva da sua época. O tema da propriedade tem uma longa história. A propriedade coletiva era considerada na idade média como mais natural do que a propriedade privada, que aparecia como “queda em desgraça”; e sempre havia os radicais, como Diggers e Marx, que se apoiaram de algum modo nessa noção como um programa ou como uma crítica. E de fato é nesse problema da propriedade que foram colocadas muitas das questões cruciais sobre o homem e a natureza, muitas vezes quase inconscientemente. Locke produziu uma defesa da propriedade privada baseando-se em um direito natural do homem e, adicionando a isso, seu trabalho; e milhares de pessoas acreditaram e repetiram isso, num tempo em que deveria ser óbvio para todos que aqueles que mais aplicavam seu trabalho eram justamente aqueles sem propriedade, e que as marcas e manchas desses trabalhos se constituíam na própria definição de despossuídos. O debate pode tomar qualquer rumo, conservador ou radical. Porém, assim que falamos do homem aplicando seu trabalho na terra, entramos em um mundo de novas relações entre o homem e a natureza, e a separação entre a história natural e a história social torna-se extremamente problemática. Penso que a natureza era vista separadamente do homem para atender a vários propósitos. Talvez a primeira forma dessa separação era a distinção prática entre a natureza e deus, distinção que eventualmente tornou possível a descrição de processos naturais em seus próprios termos, que permitiu examiná-los sem pressupostos de finalidade ou desígnio, como simples processos, ou, para usar a expressão mais antiga, como máquinas. Poderíamos descobrir como a natureza “trabalhava”, o que a fazia funcionar como um relógio (como se Paley5 ainda estivesse entre nós). Poderíamos entender melhor o funcionamento da natureza alterando ou isolando certas condições, em experimentos ou intervenções. Uma parte dessa descoberta foi concebida passivamente, uma mente separada observando uma matéria separada, o homem olhando a natureza. Entretanto a maior parte dessa descoberta foi ativa, não apenas observação mas também experimento e, claro, não apenas ciência, o puro conhecimento da natureza, mas ciência aplicada, a intervenção consciente para atender propósitos humanos. Melhorias na agricultura e a revolução industrial claramente se constituíram a partir dessa nova ênfase, e muitos dos efeitos práticos dependeram dessa visão clara e fria da natureza como conjunto de objetos sobre os quais o homem podia operar. Evidentemente, ainda temos que nos recordar das consequências desse modo de ver 5 NT: William Paley (1743-1805) é autor de Teologia Natural. Nesta obra, ele utiliza o relógio e seus mecanismos como metáfora da natureza e seu funcionamento. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. as coisas. O isolamento dos objetos levava e ainda leva a consequências imprevistas e indesejáveis.Também conduziu, é claro, a desenvolvimentos importantes da capacidade humana, incluindo a capacidade de sustentar e cuidar da vida de modos bastante inéditos. Entretanto na própria ideia de natureza ocorria um resultado bastante curioso. Os cientistas físicos e os reformadores, embora de modos distintos, não tinham dúvidas sobre estarem trabalhando com a natureza,e seria mesmo difícil negar isso, partindo de qualquer um dos significados da natureza. Todavia, justamente no primeiro pico desse tipo de atividade, emergiu um novo e hoje bastante popular conceito de natureza. A natureza, segundo esse novo conceito, era em um sentido novo e diferente, tudo aquilo que não era homem – tudo que não havia sido tocado pelo homem, estragado pelo homem, natureza como lugar isolado, selvagem. O natural e o convencional Quero descrever esse desenvolvimento com algum detalhe porque estamos ainda bastante influenciados por ele. É preciso, de início, chamar a atenção para o caráter convencional dessa natureza intocada, na verdade para os termos usados convencionalmente para separá-la. Existem áreas verdadeiramente selvagens, essencialmente intactas. Na verdade (e claro, por definição) poucas pessoas que vão para a “natureza” vão para essas áreas. Porém neste ponto alguns dos significados antigos de “natureza” e “natural” ressurgem de maneira duvidosa. Essa natureza selvagem é essencialmente pacífica e quieta, como costuma-se dizer. Além disso, ela é inocente; ela contrasta com o homem, talvez excetuando aquele que a está olhando. Ela está inexplorada mas também imóvel, uma espécie de imobilidade primordial. E na verdade há lugares assim. Entretanto também é surpreendente que a mesma coisa seja dita sobre lugares claramente fabricados pelo homem. Lembro alguém dizendo que era antinatural, uma espécie de loucura científica, aparar cercas vivas; na verdade concordei que elas não deveriam ser aparadas. Mas o que foi interessante é que as cercas vivas foram vistas como naturais, parte da natureza, embora eu possa supor que todos saibam que elas foram plantadas e cuidadas, e não seriam cercas vivas se os homens não as tivessem feito assim. Uma parte considerável daquilo que chamamos paisagem naturaltem o mesmo tipo de história. É produto do desígnio e trabalho humanos, e ao admirá-la como natural importa muito se, ao fazer isso, reconhecemos ou não o fato do trabalho humano. Algumas formas dessa ideia popular moderna me parecem depender da supressão da história do trabalho humano, e, o fato de estarem em contradição com o que é tido como exploração ou destruição da natureza, pode ser finalmente menos importante do que o fato não menos certo de que essas ideias nos causam confusão a respeito do que são e poderiam ser a natureza e o natural. É fácil comparar aqueles assim chamados de reformadores com os admiradores da natureza. No século dezoito, quando essa comparação começou a ser feita, havia ampla evidência dos dois tipos de atitude. Creio que, embora no limite essas atitudes possam ser diferenciadas, e assim devem sê-las, existem outras relações entre elas, bastante interessantes. Temos que lembrar inicialmente que no século dezoito a ideia de natureza tornou-se, essencialmente, um princípio filosófico, um princípio de ordem e de razão correta. O relato de Basil Willey sobre os aspectos fundamentais da ideia, e os efeitos e mudanças em Wordsworth, penso que não podem ser melhorados6. Entretanto não são as ideias que tem história, mas sim as sociedades. E o que parece frequentemente se tratar de oposição de ideias pode ao final ser visto como partes de um único processo social. Há esse problema familiar a respeito do século dezoito, dele ser visto como período de ordem, porque se falava muito de ordem, e em estreita relação com a ordem da natureza. Entretanto, as coisas não se deram assim seja qual for o nível da realidade, ao contrário, o século dezoito foi notavelmente desorganizado e corrupto. E tanto foi assim que, a partir desta desordem, ele gerou algumas das mais profundas mudanças humanas. O uso da Nature- 6The Eighteenth Century Background, London 1940. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. za, em seu sentido físico, foi marcadamente expandido e, temos que lembrar – o que nem sempre fazemos porque uma imagem de sucesso nos foi imposta – que surgiu a primeira classe de capitalistas realmente cruéis, que consideravam homens e coisas dentro do mesmo espírito, impondo simultaneamente ordem e pobreza, aqueles agricultores do século dezoito autodenominados aristocracia que lançaram as verdadeiras fundações, no espírito e na prática (e é claro com a própria participação), para os capitalistas industriais que os sucederiam. Um estado de natureza poderia ser uma ideia reacionária, contra a mudança, ou uma ideia reformadora, contra o que era visto como decadência. Porém no lugar onde essas novas ideias estavam sendo forjadas havia uma perspectiva bem diferente. É significativo que o bem sucedido ataque contra a velha ideia da ordem natural tenha sido montado justamente nesse momento. Não que essa velha ideia não merecesse ter sido atacada, na prática, ela era frequentemente mistificada. Porém os utilitaristas, que a atacaram, estavam fabricando uma ferramenta nova e muito mais afiada, o que ao final implicou no desaparecimento de qualquer conceito positivo de sociedade justa, e na sua substituição por conceitos novos e ratificadores de um mecanismo e de um mercado. O fato de que esses conceitos tenham sido deduzidos das leis da natureza se constitui em uma das ironias que constantemente encontramos na história das ideias. As novas leis naturais da economia, a liberdade natural do empreendedor prosseguir sem nenhuma interferência, tinham, em sua projeção do mercado como regulador natural, um remanescente – que não é necessariamente uma distorção – das ideias mais abstratas de harmonia social, nas quais o interesse individual e o coletivo podem idealmente coincidir. Entretanto o que gradualmente tem sido deixado para trás, entre os utilitaristas, é qualquer sombra de um princípio pelo qual uma justiça superior – para a qual se apelaria contra qualquer iniciativa ou consequência – poderia ser efetivamente imaginada. E assim nós temos essa situação dos grandes interferidores, alguns dos mais efetivos interferidores de todos os tempos, proclamando a necessidade da não interferência, uma contradição que, na medida em que foi sendo construída, provocou efeitos assustadores em pensadores que prosseguiram na mesma tradição, desde John Stuart Mill até o fabianos. A favor e contra o desenvolvimento É, portanto, exatamente neste período, e primeiramente na filosofia dos reformadores, que a Natureza é decididamente vista em separado dos homens. A maioria das antigas ideias sobre natureza incluíam, de maneira completa, ideias da natureza humana. No entanto, a natureza estava cada vez mais “lá fora”, e foi natural reformulá-la considerando uma necessidade dominante, sem levar em conta o que esta reformulação poderia fazer aos homens. As pessoas falam da ordem na qual aquelas propriedades de campo e aqueles parques paisagísticos estavam assentados, mas o que estava sendo movido e rearranjado não eram somente a terra e a água mas o homem. É preciso dizer, evidentemente, que isto não implica qualquer estágio anterior de inocência social. Os homens foram cruelmente explorados nas grandes eras da lei natural e, nelas, submetidos a ordem universal; mas não completamente, porque isto dependia de novos meios e forças físicas. Evidentemente este processo foi denunciado como não natural: desde Goldsmith a Blake, de Cobbett a Ruskin e Dickens, este tipo de ataque a nova civilização não natural foi fortemente utilizado. O negativo era bastante claro, mas o positivo era sempre duvidoso. Os conceitos de ordem natural e harmonia foram sendo repetidos contra a crescente e evidente desordem da sociedade. Outros apelos foram tentados: à irmandade cristã e à cultura – aquela nova ideia de desenvolvimento humano, baseada em uma analogia natural. Opondo-os às ideias práticas dos reformadores, estes apelos eram sempre insuficientes. A operação da natureza estava produzindo riqueza, e objeções às suas implicações poderiam ser repudiadas como sentimentais. De fato, as objeções normalmente eram, e ainda são, sentimentais. O fato dos verdadeiros erros e suas reais consequências serem descritos primeiramente em termos marginais é um indicativo do sucesso da nova ideia de natureza – da natureza separada do homem. Qualquer outro sentido de natureza avesso ao dos reformadores, de Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. fato, foi conduzido à marginalidade: ao remoto, ao inacessível, às terras quase estéreis. A natureza estava onde a indústria não estava, e neste sentido real mas limitado de natureza havia pouco a dizer sobre as operações que estavam ocorrendo nos outros lugares. Muito pouco a dizer. Por outro lado, houve muito por falar. São novos ares: uma nova e muito particular poesia da natureza; a visão verde de Constable; a linguagem verde de Wordsworth e Clare. Thomson em The Seasons, tal qual Cobbett em seus passeios rurais, viram beleza em terras cultivadas. Porém, já emThompson, e, a seguir, mais fortemente emWordsworth e em outros escritores, aparece o sentido de natureza como um refúgio, um refúgio do homem; um lugar de cura, um consolo, um retiro. Clare7 ruiu em face da pressão, ele estava em grande desvantagem; ele não poderia viver dentro do processo e ao mesmo tempo livrar-se das suas consequências, como outros estavam fazendo e, de fato, como tornou-se um estilo de vida – esta é uma ironia das mais amargas – entre alguns dos exploradores da natureza de maior sucesso. Como a exploração continuou em grande escala, especialmente com os novos processos industriais e de mineração, as pessoas que mais lucraram com isso voltaram-se para onde poderiam encontrar ( e elas foram bastante habilidosas nisso)a natureza em um estado não explorado, voltaram-se para propriedades compradas e retiros no campo. E desde aquele tempo sempre existiu esta ambiguidade na defesa do que se chama natureza, e nas ideias associadas de conservação, em um sentido fraco, e nas reservas naturais. Nesta defesa, estão aquelas pessoas que melhor entendem a natureza e que insistem em estabelecer com ela relações e conexões completas. Mas uma quantidade significativa do restante das pessoas é composta de hipócritas, no sentido pleno da palavra. Ocupando lugares poderosos noprocesso que cria a desordem, eles “mudam suas roupas aos finais de semana”, quando descem para o campo; aderem a apelos e campanhas para manter o último reduto da Inglaterra que está verde e não explorado; e depois voltam, com a alma leve, a investir na fumaça e nos entulhos. Eles não seriam capazes de passar despercebidos tanto tempo se a ideia que eles usam e abusam não estivesse, em si mesma, tão inadequada. Quando a natureza é separada das atividades humanas, ela cessa de ser natureza em qualquer sentido completo e efetivo. Os homens se aproximam da natureza para projetar suas próprias atividades de lazer e seus efeitos. Mais precisamente, a natureza é repartida em partes desconexas: a produção de carvão da produção de flores do campo; a favor do vento e contra o vento. A real separação, talvez, esteja nos próprios homens: os homens olham, olhando para eles, como produtores e consumidores. O consumidor quer somente o produto procurado; todos os outros produtos e subprodutos ele quer jogar fora, se ele puder. Mas jogar fora – isto realmente não pode ser negligenciado – para tratar a natureza que sobrou da mesma maneira: para ser consumida como cenário, paisagem, imagem, ar fresco. Há mais similaridades entre o investidor industrial e o jardineiro de uma paisagem que nós usualmente percebemos, cada um alterando a natureza para transformá-la em uma forma passível de consumo: assim o cliente ou beneficiário do paisagista, que por sua vez tem uma paisagem ou um prospecto para utilizar, normalmente está no final felizde um processo comum, capaz de consumir porque outros produziram, em um lazer que decorre de um trabalho bastante preciso. Os homens, como disse, projetam suas atividades de lazer e consequências. Em uma natureza verde e calma projetamos, sem dúvida, muitos dos nossos mais profundos sentimentos, nossos sentidos de desenvolvimento, perspectiva e beleza. Então seria um acidente que uma versão oposta da natureza venha se impor ? Nada é mais impressionante quanto a versão totalmente oposta da natureza, na segunda metade do século XIX, que se apresenta cruel e selvagem. Como Tennyson assinala: Um monstro então, um sonho, uma discórdia. Dragões esguios que se rasgam no meio na lama. 7NT: Segundo o dicionário Oxford, John Clare (1793-1864) foi um trabalhador rural que escreveu poesias tomando por tema principal a vida no campo. Ao final da vida, ele foi internado por conta de problemas mentais. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. Estas imagens de violência e alimentação da selvageria natural vêm para dominar muito do sentimento moderno. Disney, em muitos dos seus filmes sobre natureza, as seleciona com, o que parece, uma precisão obsessiva. A natureza verde se dá em lugares afortunados, mas dentro e nas imediações dela está a rivalidade e a violência, uma competição implacável pelo direito de viver, a sobrevivência do mais apto. É bastante interessante ver como a noção de seleção natural de Darwin entra no imaginário popular – e por popular entendo o pensamento e o sentimento ordinário do homem educado. “O mais apto”, significando aqueles que melhor se adaptaram a um determinado ambiente variado, tornou-se “mais forte”, “mais implacável”. A selva social, a corrida de ratos, os guardiões do território, os macacos nus: assim, aos poucos, foi como se deu a reentrada da ideia de homem na ideia de natureza. A experiência real da sociedade foi projetada, por meio de uma seleção de exemplos, em uma natureza novamente alienada. Sob o verniz da civilização estava esta selvageria natural: isto pode ser percebido de Wells a Golding, de maneiras cada vez mais banais. O que foi certa feita uma ratificação, uma espécie de perdão natural, de um egoísmo econômico implacável – a real ideologia do capitalismo antigo e do imperialismo – tornou-se, nos dias de hoje, também uma falta de esperança, um desespero, um fim do esforço social expressivo; se isto é o que a vida parece ser, e parece de maneira natural, qualquer ideia de irmandade é fútil. Portanto, construa outro refúgio, limpe outra praia. Não mantenha tão longe o tubarão e tigre (quando necessário) quanto os homens, aquele unha-de-fome, predador, egoísta, relaxado, e ordinário. Vamos retirar a população da região de Wales e então chamá-la de área selvagem: uma região selvagem para ir quando saímos da selva das cidades. Ideias de natureza, mas ideias que são projetadas pelos homens. Penso que nada mais pode ser feito, nada mais pode ser dito, até que sejamos capazes de ver as causas dessa alienação da natureza, essa separação entre natureza e as atividades humanas que estou tentando descrever. No entanto, estas causas não podem ser encontradas, de maneira prática, retornando a qualquer estágio antigo da ideia. Como reação contrária a situação em curso, vários escritores têm criado uma ideia de passado rural: inocente talvez, como na primeira mitologia da Era de Ouro; mesmo nos casos mais orgânicos, com o homem não separado da natureza. A tentativa é compreensível, mas bem longe de seus elementos de fantasia – sua presença no período pode ser considerada intermitente e pequena - ela é uma séria subestimação da complexidade do problema. Uma separação entre os homens e a natureza não é simplesmente o produto de uma indústria ou urbanismo moderno; ela é uma característica de muitos tipos antigos de trabalho organizado, incluindo o trabalho rural. Nem podemos considerar vantajosas outras formas de reação, que, identificam corretamente uma parte do problema considerando a ideia da natureza como um mecanismo - estaríamos retornando a uma teleologia tradicional – em que a unidade dos homens com a natureza é estabelecida por meio de suas relações com um criador. Este sentido de um fim e de uma finalidade está em um caminho ainda mais alienado do que aquele do mundo frio do mecanismo. De fato, a singular abstração que ele implica tem muito em comum com um tipo de materialismo abstrato. Ele direciona nossa atenção para longe das relações reais e variáveis, e, pode-se dizer, ratifica a separação tornando permanente uma de suas formas e fixada a sua finalidade. O ponto que realmente deve ser percebido é que a separação, tão característica de tantas ideias modernas, entre os homens e a natureza, embora seja difícil de expressar, é uma resultado de uma interação cada vez mais real. É fácil perceber uma união limitada na base das relações limitadas, seja no animismo, no monoteísmo, ou nas formas modernas de panteísmo. É somente quando as relações reais sãoextremamente ativas, diversas, autoconscientes, e em movimento contínuo – como nossas relações com o mundo físico podem parecer em nossos dias- que a separação da natureza humana da natureza torna-se realmente problemática. Eu gostaria de ilustrar isto de duas maneiras. Em nossas complexas trocas com o mundo físico, achamos muito difícil reconhecer todos os produtos de nossas atividades. Reconhecemos alguns deles, e chamamos outros de subprodutos; mas uma pilha de restos de mineração é tão real como produto quanto o carvão, da mesma maneira Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. que um rio fedorento com esgoto e detergente é produto tanto quantoum reservatório de água. A terra cercada e fértil é nosso produto, assim também são os vastos campos sem cultivo de onde o pobre agricultor foi retirado, para deixar, o que se pode considerar, uma natureza vazia. Além disso, nós somos em certo sentido produtos: a poluição da sociedade industrial é encontrada não somente na água e no ar mas em áreas pobres, nos engarrafamentos, considerando esses espaços não somente como objetos físicos mas nos colocando dentro deles e em relação com eles. Neste mundo atual não adianta muito se contrapor ou reafirmar as grandes abstrações sobre os homens e a natureza. Nós misturamos nosso trabalho com a terra e nossas forças com as suas muito fortemente para conseguir retirar-nos, separar-nos ou sairmos. Uma separação possível somente se ela for mental, se continuamos com abstrações simplificadas, se nos pouparmos de olhar, de maneira ativa, o complexo todo das relações naturais e sociais que é ao mesmo tempo nosso produto e nossa atividade. O processo, é preciso dizer, tem que ser visto como um todo, não de maneira abstrata ou simplificada. Temos que olhar para todos nossos produtos e atividades, bons ou maus, e perceberque as relações entre elas são nossas relações reais. Marx indicou isto de maneira mais clara que qualquer outro, embora ainda em termos de forças bastante simples. Penso que temos que desenvolver essas indicações. Na indústria, por exemplo, não podemos continuar dizendo que um carro é um produto mas a sucata é um subproduto, não podemos considerar a fumaça da pintura e do petróleo, os congestionamentos, a mobilidade, a autoestrada, o centro da cidade dilacerada, a linha de montagem, o estudo de eficiência de uma empresa, os sindicatos, as greves, mais como subprodutos do que produtos verdadeiros. Evidentemente devemos não somente expressar isto de uma maneira mais sofisticada, mas de modo radicalmente mais honesto do que nós fazemos hoje. Será irônico se uma das últimas formas de separação entre os homens abstratos e a natureza abstrata for uma separação intelectual entre economia e ecologia. Será um sinal de que estamos começando a pensar em algum caminho adequado quando pudermos concebê-las, como elas devem se tornar, uma única disciplina. Mas isto seria ainda mais difícil: se somente dissermos que misturamos nosso trabalho com a terra, nossas forças com as forças dela, nós estaríamos chegando na verdade de que nós construímos esta desigualdade: que para o mineiro e o escritor a mistura é diferente, embora seja real nos dois casos; e vale o mesmo para o trabalhador e o homem que administra seu trabalho, o produtor e o que cuida de seus produtos, a diferença é grande novamente. Fora desses caminhos onde temos interagido com o mundo físico, construímos não só a natureza humana e a ordem natural alterada; temos criado também sociedades. É sintomático que a maior parte dos termos que nós utilizamos nessa relação – a conquista da natureza, a dominação da natureza, a exploração da natureza – tem origem nas práticas humanas reais: nas relações entre homens e homens. Mesmo a ideia de equilíbrio da natureza tem suas implicações sociais. Se falamos somente do homem singular ou de uma natureza singular, podemos compor uma história geral, mas correndo o risco de excluir o real e alterar as relações sociais. O capitalismo, evidentemente, tem utilizado a dominação e a exploração; o imperialismo em sua conquista tem, da mesma maneira, visto o homem e os produtos físicos como matéria-prima. O fato de que os socialistas ainda falem da conquista da natureza, que na verdade sempre incluirá a conquista, a dominação e a exploração de alguns homens por outros, é um indicativo do quão longe temos que ir. Se alienamos os processos vivos dos quais fazemos parte, terminamos, embora desigualmente, nos alienando. Necessitamos de diferentes ideias porque necessitamos de diferentes relações. A natureza e as leis da natureza desapareceram na noite. Então disse Deus, haja Newton, e tudo se fez luz.8 8 Alexander Pope, Tentativa de epitáfio para Sir Isaac Newton. Tradução dos tradutores. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. Neste instante, sobre meio mundo, a natureza parece morte9 Entre a confiança inquestionável e a reflexão triste dessas linhas recordadas, sentimos que nossas almas balançam. Nós necessitamos e, talvez, estejamos começando a encontrar, ideias diferentes, sentimentos diferentes, na medida em que conhecemos a natureza de maneira tão diversificada e variável quanto mudam as condições do mundo humano. 9 Macbeth, Segundo ato, Cena I. Tradução de Beatriz Viégas-Faria, L&PM Pocket, 2003. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
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