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EDIÇÃO 23 Out / Nov de 2015 Fechamento autorizado Pode ser aberto pela ECT Esta edição aborda alguns dos temas mais marcantes da décima edição do Congresso Brasileiro de Direito de Família FAMÍLIAS NOSSAS DE CADA DIA ENTREVISTA Ministro Edson Fachin (STF) comenta como as mudanças na família afetam o Judiciário pág. 5 NOTÍCIAS Veja o que foi destaque nos dois dias do evento pág. 7 Confira todos os Enunciados do IBDFAMpág. 19 Há 18 anos construindo uma nova história para as famílias brasileiras. Acompanhe no Facebook os depoimentos de quem faz parte dessa transformação. www.facebook.com/ibdfam 3 EXPEDIENTE Durante dois dias, mais de mil congressistas assistiram a 60 palestras distribuídas em 24 painéis, no X Congresso Brasileiro de Direito de Família, em Belo Horizonte (MG). Foram cerca de mil e quinhentos minutos de palestras, um número grande para representar um grande evento, já consolidado como o maior da área na América Latina. Um momento único, que transcendeu todas as expectativas do público presente e da organização. Além do debate doutrinário e da intensa troca de saberes e de experiências, o evento foi marcado pela indignação coletiva diante do retrocesso legislativo que se avizinha no Congresso Nacional, pautado por uma agenda conservadora e retrógrada, que usa a religião como subterfúgio para empurrar goela abaixo da sociedade projetos de lei que excluem direitos já reconhecidos. O Sistema ONU no Brasil acompanha com preocupação a tramitação da Proposição Legislativa que institui o Estatuto da Família (PL 6583/2013), especialmente quanto ao restritivo, discriminatório e excludente conceito de família e seus impactos para o exercício dos direitos humanos. Em nota, a ONU diz que “é importante assegurar que outros arranjos familiares, além do formado por casal heteroafetivo, também sejam igualmente protegidos (unipessoal, casal com filhos, casal sem filhos, mulher/homem sem cônjuge e com filhos, casais homoafetivos com ou sem filhos, dentre outros), como parte dos esforços para eliminar a discriminação. Negar a existência destas composições familiares diversas, para além de violar os tratados internacionais, representa uma involução legislativa”. Enquanto isso, o Estatuto das Famílias - no plural- (PLS 470/2013) de autoria do IBDFAM, continua tramitando com o objetivo de atualizar a legislação brasileira sobre Direito das Famílias. A proposta compreende todas as reais formas de composição familiar e suas implicações. O IBDFAM comemora este ano a sua maioridade e junto com seus membros está cada vez mais comprometido na atuação contra este e todos os demais projetos que tentam impedir o progresso legislativo. Reiterando nosso objetivo estatutário em favor da garantia dos direitos das famílias – nossas de cada dia. EDITORIAL TODOS JUNTOS SOMOS FORTES DIRETORIA EXECUTIVA Presidente: Rodrigo da Cunha Pereira (MG) Vice-Presidente: Maria Berenice Dias (RS) Primeiro-Secretário: Rolf Madaleno (RS) Segundo-Secretário: Rodrigo Azevedo Toscano de Brito (PB) Primeiro-Tesoureiro: Antônio Marcos Nohmi (MG) Segundo-Tesoureriro: Jose Roberto Moreira Filho (MG) Diretor do Conselho Consultivo: Jose Fernando Simão (SP) Diretor de Relações Internacionais: Paulo Malta Lins e Silva (RJ); 1º Vice: Cássio Sabbagh Namur (SP), 2ª Vice: Adriana Antunes Maciel Aranha Hapner (PR); Secretária: Marianna de Almeida Chaves Pereira Lima (PB) Diretora de Relações Interdisciplinares: Giselle Groeninga / SP Superintendente: Maurício Santos CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO Diretor Norte: Zeno Veloso (PA); Diretor Nordeste: Paulo Luiz Netto Lôbo (AL) Diretora Centro-Oeste: Eliene Ferreira Bastos (DF) Diretora Sul: Ana Carla Harmatiuk (PR) Diretora Sudeste: Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka (SP) COMISSÕES Científica: Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka (SP); Vice: João Batista de Oliveira Cândido (MG); Direito das Sucessões: Zeno Veloso (PA); 1ª vice: Tatiana de Almeida Rego Saboya (RJ); 2º Vice: Flavio Murilo Tartuce Silva (SP); Mediação: Suzana Borges Viegas de Lima (DF); Vice: Ana Gerbase (RJ); Infância e Juventude: Melissa Telles Barufi (RS); Vice: Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade Maciel (RJ); Idoso: Tânia da Silva Pereira (RJ); Jurisprudência: Viviane Girardi (SP); Assuntos Legislativos: Mário Luiz Delgado Regis (SP); 1º Vice: Érika de Barros Lima (PE); 2º Vice: Ricardo Lucas Calderón (PR); Gênero e Violência Doméstica: Adélia Moreira Pessoa (SE); Vice: Ana Florinda (AL); Notários e Registradores: Priscila de Castro Teixeira Pinto Lopes Agapito (SP); Vice: Karin Regina Rick Rosa (RS); Estudos Constitucionais da Família: Gustavo José Mendes Tepedino (RJ); Vice: Ana Luiza Maia Nevares; Ensino Jurídico de Família: Waldyr Grisard Filho (PR); 1º vice: Fabiola Albuquerque Lôbo (PE); 2º Vice: Marcos Alves da Silva (PR); Relações Acadêmicas: Marcelo Luiz Francisco Bürger (PR); 1º Vice: Ulisses Lacerda Moraes (MT); 2º Vice: Luiz Geraldo do Carmo (PR); Direito Homoafetivo: Patrícia Cristina Vasques de Souza Gorisch (SP); Vice: Vladimir Fernandes Mendonça Costa (SP); Adoção: Silvana do Monte Moreira (RJ); Advogados de Família: Marcelo Truzzi Otero (SP); Vice: Aldo de Medeiros Lima Filho (RN); 2º Vice: Daniel Blikstein (SP); Magistrados de Família: Jones Figueiredo Alves (PE); Vice: Andréa Maciel Pachá (RJ); Promotores de Família: Cristiano Chaves de Farias (BA); Defensores Públicos da Família: Karinne Matos (CE); Direito Previdenciário: Melissa Folmann (PR); Direito de Família e Arte: Ana Maria Gonçalves Louzada (DF); Vice: Fernanda Leão Barreto (BA); Comissão da Pessoa com Deficiência: Cláudia Grabois Dischon (RJ); Vice: Katya Maria de Paula Menezes Monnerat (RJ). DIRETORIAS ESTADUAIS REGIÃO NORTE: ACRE - Presidente: Eronilço Maia Chaves; AMAPÁ - Presidente: Nicolau Eládio Bassalo Crispino; AMAZONAS -Presidente: Gildo Alves de Carvalho Filho; PARÁ -Presidente: Maria Célia Nena Sales Pinheiro; RONDÔNIA -Presidente: Raduan Miguel Filho; RORAIMA - Presidente: Neusa Silva Oliveira; TOCANTINS - Alessandra Aparecida Muniz; REGIÃO NORDESTE: ALAGOAS - Presidente: Ana Florinda Mendonça da Silva Dantas; BAHIA - Presidente: Alberto Raimundo Gomes dos Santos; CEARÁ - Presidente: Angela Maria Sobreira Dantas Tavares; MARANHÃO - Presidente: Bruna Barbieri Waquim; PARAÍBA - Presidente: Dimitre Braga Soares de Carvalho; PERNAMBUCO - Presidente: Luciana da Fonseca Lima Brasileiro; PIAUÍ - Presidente: Isabella Nogueira Paranaguá de Carvalho Drumond; RIO GRANDE DO NORTE - Presidente: Suetônio Luiz de Lira; SERGIPE - Presidente: João Alberto Santos de Oliveira; REGIÃO CENTRO- OESTE: DISTRITO FEDERAL -Presidente: Ana Maria Gonçalves Louzada; GOIÁS - Presidente: Maria Luiza Póvoa Cruz ; MATO GROSSO - Presidente: Angela Regina Gama da Silveira Gutierres Gimenez; MATO GROSSO DO SUL - Presidente: Paula Guitti Leite; REGIÃO SUDESTE: ESPÍRITO SANTO - Presidente: Thiago Felipe Vargas Simões; MINAS GERAIS - Presidente: Silvio Augusto Tarabal Coutinho; RIO DE JANEIRO- Presidente: Luiz Cláudio de Lima Guimarães Coelho; SÃO PAULO - Presidente: Sérgio Marques da Cruz Filho; REGIÃO SUL: PARANÁ - Presidente: Adriana Antunes Maciel Aranha Hapner; RIO GRANDE DO SUL - Presidente: Conrado Paulino da Rosa; SANTA CATARINA - Presidente: Mara Rúbia Cattoni Poffo. REVISTA IBDFAM A Revista IBDFAM é publicada pela Assessoria de Comunicação Social do Instituto Brasileiro de Direito de Família Redação: Luana Edwiges (Estagiária), Maran Oliveira e Thaís Pontes Editora: Maran Oliveira Gerente de Marketing e Comunicação: Silvana Terenzi Neuenschwander Capa e Diagramação: Bruno Santos e Francisco Couret (Estagiário) Revisão: Pedro Vianna Projeto gráfico: Agência Reciclo Assessoria Jurídica: Ronner Botelho, Luma Francielle (Estagiária) e Thaís Souto (Estagiária) Tiragem: 6000 exemplares Periodicidade:Bimestral Distribuição: gratuita, aos sócios do IBDFAM. Os artigos assinados são de responsabilidade de seus autores Atendimento ao associado: (31) 3324-9280 Para anunciar: (31) 3324-9280 4 CREDITOS CRISTIANO CHAVES DE FARIAS: “Nunca se discutiu e se debateu tanto um ramo da ciência jurídica como o Direito de Família. Nenhum outro ramo do Direito, em tão pouco tempo, conseguiu evolução ta- manha. Nenhum outro ramo conseguiu implementar tantas mudanças legislativas e ju- risprudenciais e doutrinárias como o Direito de Família. Toda essa ebulição se dá por conta do pioneirismo, do compromisso institucional que o IBDFAM tem com a melho- ria da sociedade brasileira, com a melhoria da situação familiar de todos nós neste país” MIN. JOÃO OTÁVIO DE NORONHA: “O IBDFAM trouxe um grande desenvolvimento ao Direito de Família no Brasil. As pesquisas, os debates, influenciaram muito os tribunais, eu sou testemunha disso. Para- benizo o IBDFAM, a diretoria e os membros, e que continuem por muitos e muitos anos a influenciar positivamente a jurisprudência dos nossos tribunais”. ROLF MADALENO: “Eu me sinto como se eu fosse também um pai desta criança. Desta criança que hoje tem uma multiparentalidade. É um filho de todos nós que no dia em que, há 18 anos, foi criado e nasceu o IBDFAM. Acho que todos hoje nos sentimos realizados e extrema- mente felizes. Porque o nosso filho criou maturidade, personalidade e se tornou isso que ele hoje é. Uma instituição de reconhecido valor, de prestígio e, sobretudo, que presta um trabalho, um serviço à sociedade, aos tabelistas e a todo mundo que vive esta paixão que é o Direito de Família e o Direito das Sucessões”.. ZENO VELOSO: “Esse congresso do IBDFAM é o congresso mais importante de Direito que se realiza no Brasil e um dos maiores do mundo, apesar de eu não gostar muito dessa história de ‘maior do mundo’, mas onde eu ando, no mundo inteiro - e eu ando o mundo - não exis- te um congresso dessa envergadura”. O QUE ELES DISSERAM... Entrevista ............................ pág. 05 Notícias............................... pág. 07 Enunciados ......................... pág. 19 EDIÇÃO ESPECIAL A imagem de capa desta edição é do artista mineiro Sérgio Lima, que foi responsável pelo trabalho de identidade visual do evento. As peças foram criadas com o intuito de rememorar a importância de pensar o novo levando em consideração o tempo passado. 5 Em junho deste ano, o então advogado Luiz Edson Fachin foi empossado como novo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Fachin teve seu nome aprovado pelo Senado após enfrentar a mais longa sabatina da his- tória - mais de 12 horas. Advogado de carrei- ra, ele conquistou notoriedade e respeito nos círculos jurídicos por meio de seu trabalho nas áreas de Direito Civil e de Família. Há 18 anos, em uma “comunhão de almas”, como se refere aos colegas do IBDFAM, ajudou a fun- dar o maior instituto de Direito de Família do mundo. O ministro discursou na conferência de encerramento do X Congresso Brasileiro de Direito de Família, onde com bom humor e tranquilidade falou por mais de uma hora so- bre “As Famílias Nossas de Cada Dia”. A FAMÍLIA ESTÁ EM CONSTANTE MUTAÇÃO E ES- TAS MUDANÇAS TRAZEM UMA SÉRIE DE REALIDA- DES COMPLEXAS QUE, COMO O SENHOR COLOCOU DURANTE A PALESTRA, A PRINCÍPIO NÃO ESTÃO PREVISTAS NA LEGISLAÇÃO, NO ORDENAMENTO JURÍDICO OU NA DOUTRINA. DIANTE DE UM CE- NÁRIO DE TANTAS INCERTEZAS, COMO FAZER JUS- TIÇA, COMO TOMAR DECISÕES, COMO MANTER A SEGURANÇA JURÍDICA E O BEM-ESTAR SOCIAL? Em momentos em que eventualmente o vento sopra mais forte, é fundamental que se navegue com serenidade, para que o Poder Judiciário cum- pra as suas duas funções fundamentais. A primei- ra, na presença de leis que causam alguma dúvi- da ou algum tipo de problematização, fazer uma interpretação conforme a Constituição e pacificar os entendimentos para que as diretrizes constitu- cionais prevaleçam, porque é a Constituição mes- ma o elemento fundamental a partir do qual todos os juízes, que são, a rigor, juízes da Constituição, devem agir. Portanto, esta é a sua primeira dimen- são. A segunda, na ausência de legislação, even- tualmente na ausência de regra, quando os fatos sociais desafiam a compreensão do magistrado, o Poder Judiciário, na dimensão da unidade do ordenamento jurídico que a Constituição repre- senta, pelas suas regras e pelos seus princípios, que são normas vinculantes, o magistrado pode comatar essa lacuna, que é uma lacuna da regra, mas nunca será uma lacuna do ordenamento por- que, havendo princípios constitucionais, por meio deles as questões atinentes aos litígios de família ou eventualmente as controversas interprivadas, de um modo geral, podem ser solvidas. Assim, a família, como disse ao final deste importante con- gresso do Instituto Brasileiro de Direito de Famí- lia, realiza também a sua dupla dimensão de ser um direito, na dimensão de que cada um de nós, cada criança, cada adolescente, tem direito a ter uma família, tem direito a realizar-se como pessoa dentro de uma ambiência de família, e ao mesmo tempo que todos nós, especialmente os adultos, mas também os jovens, temos deveres, dentre eles de cuidado, de zelo, a desempenhar dentro da fa- mília. A família, que é no seu microcosmo uma re- presentação da sociedade, que é o seu macrocos- mo, convive com essa dualidade: os direitos pres- supõem deveres que, a seu turno, pressupõem o exercício da cidadania. É nessa ambiência que a família tem o papel fundamental de dar estabilida- de, dar formação, de abrir possibilidades para que as pessoas se realizem como sujeitos e, ao mesmo tempo, de colocar limites. Porque onde há limite, há liberdade e há também responsabilidade. QUAL SERIA O MELHOR CAMINHO PARA APROXI- MAR A JUSTIÇA DA REALIDADE? Há dois caminhos a serem trilhados: um diz respeito às formas da prestação jurisdicional, e é neste sentido que os juízes de primeiro grau, no caso de família, os juízes de família ou em algu- mas comarcas juízes da infância e da juventude, enfim, todos aqueles que têm seus afazeres mais diretamente ligados à família, a atividade desses magistrados deve ser sobremaneira valorizada porque eles estão rente à vida, rente aos fatos, são deles o primeiro olhar e a primeira escuta deste tipo de litígio e de conflito. Portanto, esse é um primeiro horizonte que reputo fundamental no Brasil, sem embargo da relevância que têm as Cortes superiores, para realizarmos na prestação jurisdicional uma chancela da importância dos magistrados que estão rente aos fatos, valorizar as soluções e, à medida do possível, sem que se quebre nenhuma garantia constitucional, estabele- cer um maior número de filtros recursais para que estas decisões sejam efetivamente valorizadas. E, de outra parte, é claro que o juiz de hoje não é apenas o juiz que encontra todas as soluções dos fatos apenas num conjunto de regras já pre- viamente estabelecidas. As regras previamente es- tabelecidas são muito importantes. O juiz é, sem dúvida nenhuma, um aplicador da lei. Ele deve seguir os preceitos na medida em que deve ofere- cer estabilidade, previsibiliade, mas também deve estar apto a trabalhar com a incerteza e a imprevi- sibilidade. O que nós chamamos, por exemplo, de filiação hoje, não chamávamos há 10 ou 20 anos atrás. A definição que se tem hoje de parentesco não é aquela que se tinha antes da Constituição de 88. E a obra desta nova compreensão não se deu apenas no plano legislativo. Se deu também no plano da jurisprudência. E aqui a jurisprudência cumpre um papel central de responder de maneira viva esses fatos. Portanto, muito antes de criticar ENTREVISTA LUIZ EDSON FACHIN 6 a jurisprudência, nós podemos nos orgulhar da prestação jurisdicional que nós temos no Brasilporque é uma prestação jurisdicional que respon- de aos fatos. E como os fatos obviamente são de- safiadores, às vezes há oscilações, há ambivalên- cias, mas o Brasil é um país que no concerto das nações modernas desse e do outro lado do Oceano Atlântico, pode se orgulhar de ter magistrados que não abdicam de suas funções e que enfrentam es- ses problemas, procurando, na medida do possí- vel, dar uma solução justa e adequada aos casos concretos. PARA O SENHOR, O QUE SIGNIFICA TER PARTICIPADO DA FUNDAÇÃO DO IBDFAM? Participar da fundação do IBDFAM foi, antes de tudo, um ato de comunhão de almas. Nós nos reunimos porque havia entre nós um conjunto de propósitos em comum, que era discutir uma das instituições fundamentais da sociedade. O IBDFAM é em tudo e antes de tudo um instituto de defesa da família. A família na base da sociedade, como aliás proclama a Constituição, e foi isso que em meu modo de ver o IBDFAM fez nesses 18 anos. Um trabalho de discussão e reflexão, pondo em primeiro plano no cenário jurídico brasileiro os desafios sobre a compreensão e as transformações pelas quais a família passou. O Brasil mudou, as relações familiares mudaram e o IBDFAM trouxe uma contribuição muito grande. Então, estar junto nesses 18 anos desde o início do Instituto e até agora, embora eu tenha alterado um pouco as minhas funções, mas estou aqui nesse congresso, é a rigor uma emoção. QUAL A IMPORTÂNCIA DA EMENDA CONSTITUCIONAL 66/2010, PROPOSTA PELO IBDFAM, QUE SEPULTOU A SEPARAÇÃO JUDICIAL E SIMPLIFICOU O DIVÓRCIO NO BRASIL? Na verdade, a mudança constitucional que se operou pelo poder constituinte derivado, no âmbito portanto do poder reformador, procurou dar um sentido ao fim da união conjugal. A ideia da separação judicial era, a rigor, um elemento presente na Lei do Divórcio e derivou certamente da conjuntura existente naquele momento que dizia respeito a um procedimento intermediário entre o casamento e o divórcio. Até a lei, designava-se de desquite, e que poderia possibilitar ou a terminação ou a reconciliação. O que se entendeu na vida contemporânea, com esta legislação, pela compreensão de que entre o casamento e o divórcio essa etapa já poderia não mais fazer sentido. E é assim que tem sido interpretada, sem embargo de controvérsia e divergência, esta emenda constitucional. O LEGISLADOR, COM O CPC 2015, DISTORCEU A FINALIDADE DA EC 66/2010, RESSUSCITANDO A SEPARAÇÃO JUDICIAL. NA VISÃO DO SENHOR O CPC JÁ NASCE INCONSTITUCIONAL NESSE PONTO? Na verdade, estamos na vacatio legis. É preciso verificar se o texto final que se está sancionando será mesmo aquele que entrará em vigor, porque há na Câmara dos Deputados um conjunto de projetos que alteram. Por exemplo: nesta semana, foi aprovado um projeto que altera o filtro de admissibilidade do recurso extraordinário. Então, é preciso antes que se cumpra a vacatio legis, e com uma disposição dessa natureza, que na legislação infraconstitucional restaura a separação judicial, parece-me crível que haverá uma arguição de constitucionalidade e aí o STF irá examinar se é coerente com a Constituição emendada, da EC 66/2010, ou se o CPC na verdade vai de encontro à orientação que o poder reformador deu. No momento oportuno, o Supremo Tribunal Federal vai se manifestar. O IBDFAM TEM PARTICIPADO NO STF COMO AMICUS CURIAE EM IMPORTANTES DECISÕES. COMO O SENHOR VÊ ESSA PARTICIPAÇÃO? Na condição de juiz da Suprema Corte, tenho visto e deferido um olhar muito especial e compreensivo para a presença dos chamado amicus curiae. O amigo da Corte, na verdade, desempenha um papel importantíssimo no Estado Democrático de Direito naquilo que nós podemos chamar de legitimação do procedimento porque, na medida em que são ampliados os atores que participam do desate de uma determinada questão constitucional, a decisão certamente se legitima por esse diálogo. Além dos amicus curiae, há também as audiências públicas, que são outros desses procedimentos e que têm da minha parte imenso acolhimento. Logo, não só ao nosso IBDFAM, mas também aos outros institutos, entidades e associações, eu vejo de uma relevância ímpar a participação em litígios na Suprema Corte. ENTREVISTA 7 “A arte existe porque a vida não basta”, diz o escritor Ferreira Gullar. Assim, o poeta reconhece que existem situações que transcendem a nosssa vivência e que não podem ser explicadas ou sentidas de maneira literal. Com esse espírito, seguiram as palestras do painel “Direito de Família, práticas inovadoras e suas conexões com arte e literatura”, no dia 22, durante o X Congresso Brasileiro de Direito de Família, que reuniu os integrantes da diretoria da Comissão de Direito e Arte e entusiastas do tema. O coro de vozes entoando “Olhos nos Olhos” marcou a palestra “A mulher na obra de Chico Buarque”, da juíza Ana Maria Louzada, presidente da Comissão e presidente do IBDFAM/DF. A magistrada abordou a evolução do direito da mulher no cenário nacional e as diversas formas de como isso se traduz na música. “Desde a mulher considerada infiel, a prostituta, a do lar, a que trabalha fora e sustenta os filhos, etc”. “Bárbara”, “Ana de Amsterdam” e “Rita” estavam presentes nas canções e nas reflexões acerca das conexões com o Direito de Família, notadamente o direito da mulher. Ana Maria Louzada afirma que esta abordagem é um desafio, ao passo que faz repensar o Direito como uma ciência aberta, de onde se entrelaçam as mais diversas situações cotidianas, que muitas vezes podem ser melhor compreendidas pela arte do que pelo próprio Direito. “Penso que no Direito de Família é preciso sensibilidade para que se possa aceitar a realidade do outro. E a música do Chico nos mostra isso”, diz. Para a vice-presidente da Comissão, Fernanda Barretto (BA), que coordenou o painel, o Direito das Famílias e das Sucessões tem muito a ganhar com “possíveis mergulhos no universo plural, pulsante, crítico e criativo, que é o artístico”. Ela explica que a Comissão pretende “buscar uma aproximação com artistas cujo trabalho nos ajude a compreender, em um nível complementar e mais profundo, temas do nosso universo jurídico, como, exemplificativamente, a alienação parental, o abandono afetivo, a poliafetividade e a violência doméstica”. Segundo ela, é importante construir essa correlação, uma vez que “a Arte tem o poder de nos sensibilizar, de capturar nossa atenção e de abrir as portas da nossa percepção de um modo intenso e único, e isso pode ser muito útil e enriquecedor no que tange à investigação dos fenômenos jurídicos”, diz. Fernanda ressalta que embora essa aproximação possa parecer “exótica”, nota- se, na cena jurídica nacional, um despertar paulatino para essa possibilidade. COM DIREITO A MUITA ARTE, PAINEL INTERDISCIPLINAR MARCA PRIMEIRO DIA DE EVENTO 8 Essa é a questão que está na ordem do dia, segundo o professor Gustavo Tepedino, presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da Família do IBDFAM, que discursou na conferência de abertura do X Congresso Brasileiro de Direito de Família- Famílias Nossas de Cada Dia. “Hoje não devemos ter limites rígidos. O Código Civil e a própria Constituição oferecem alguns modelos que são: as uniões estáveis, o casamento e a família monoparental. As demais entidades que vão surgindo hoje, como as uniões livres, as famílias simultâneas, vão sendo analisadas pelo Judiciário caso a caso”, diz. O professor considera o Direito de Família brasileiro um dos mais avançados do mundo, apesar da influência conservadora que “sempre presidiu essa matéria. Hoje, inclusive, graças ao trabalho do IBDFAM, nós conseguimos avançar muito e o Judiciário brasileiro, especialmente o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunalde Justiça, têm se mostrado bastante progressistas”, diz. A conferência teve como mote os “Dilemas do Afeto”. Para Tepedino, a prioridade alcançada no âmbito do Direito das Famílias, pelo valor substancial dos sentimentos em detrimento das formalidades dos vínculos, constitui conquista extraordinária, que enaltece a importância do afeto, tornando muito mais “humanas” e “pulsantes” as relações jurídicas de famílias. “A conhecida expressão da dramaturgia de Nelson Rodrigues – a vida como ela é – parece encontrar-se fielmente apreendida pelo Direito, após longo e resistente percurso. As instituições e as solenidades cedem lugar aos caprichosos desígnios da realidade, mais criativos que a mais ousada das narrativas ficcionais, a fotografarem as relações de família tais como são”, diz. Segundo ele, nas últimas décadas, a jurisprudência brasileira, de forma “corajosa”, passou a admitir, em nome da igualdade e da liberdade, novas entidades familiares. No entanto, essa liberdade crescente, admitida pelo Jusdiciário, para a constituição de modalidades de convivência, nem sempre encontra os instrumentos jurídicos aptos à sua normatização. “Somente o tempo saberá dar conta dessa acomodação da autonomia privada à frenética realidade social em constante transformação”, diz. Por fim, o professor destaca que o Judiciário é quem “valora” e “define” padrões de moralidade que escapam à previsão do legislador num processo de judicialização de padrões morais de comportamento. “O Judiciário afere a compatibilidade da pluraridade de modelos de famílias e princípios constitucionais, decidindo o merecimento de tutela de tais condutas”. HÁ LIMITE PARA OS MODELOS DE FAMÍLIA? 9 A evolução da medicina reprodutiva re- flete diretamente no Direito das Famílias. Termos como “útero de substituição”, “repro- dução heteróloga” e outros, ultrapassaram as fronteiras da medicina e hoje estão presentes na doutrina e na jurisprudência. As famílias ectogenéticas, aquelas com fi- lhos oriundos das técnicas de procriação me- dicamente assistida, foram objeto de estudo no X Congresso de Direito de Família, em pa- lestra da advogada Marianna Chaves, diretora nacional do IBDFAM. Segundo a advogada, em um passado não muito distante, as pessoas ou casais inférteis ou com grandes dificuldades para procriar, estavam condenados a não terem filhos com os quais fossem geneticamente ligados ou simplesmente a não terem prole alguma. No entanto, no mundo contemporâneo, esse ce- nário mudou com o auxílio da tecnologia re- produtiva, que expandiu substancialmente o leque de possibilidades para procriação de ca- sais ou indivíduos inférteis ou pares que pela sua natureza não podem se reproduzir como casal, como os pares homoafetivos. LEGISLAÇÃO LETÁRGICA Para Marianna Chaves, os regulamentos e legislações relativos à procriação são sus- ceptíveis de ter implicações constitucionais significativas, de modo que os esforços para regulamentação devem lidar com a natureza do direito em jogo. “A Constituição do Brasil indica que o planejamento familiar deverá basear-se na dignidade da pessoa humana e na paterni- dade responsável, sendo vedado ao Estado qualquer tipo de controle ou interferência no exercício desse direito. Daí se pode extrair o entendimento de um direito fundamental à reprodução e consequente constituição de fa- mília. Qualquer território que negue o direito à parentalidade a uma parte dos indivíduos, obstando a realização pessoal dos mesmos, viola seus direitos fundamentais à igualdade e à não-discriminação, obstrui o exercício da cidadania e coloca em xeque a própria de- mocracia e dignidade das pessoas, ao deixar de promover positiva e igualitariamente as liberdades fundamentais de todos os seus ci- dadãos”, afirma. De acordo com a advogada, o Brasil, en- tretanto, vem deixando a regulação da ma- téria da procriação medicamente assistida a cargo da deontologia médica. Mesmo quan- do as Resoluções 1.957/2010, 2.013/2013 e 2.121/2015 do Conselho Federal de Medici- na, em suas exposições de motivos indicam – expressamente – a necessidade de edição de uma legislação específica. “É preciso que o Brasil avance e legisle nesse âmbito. Certamente, levando em consi- deração – ou fazendo uma remissão a – todas as normas presentes e amplamente aceitas na Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) e tutelando questões que não foram previstas, reguladas de forma inconsistente ou incompleta na Resolução ou na legislação vi- gente”, diz. Conforme Marianna Chaves, a Procriação Medicamente Assistida (PMA) acarreta em novas dimensões de conceitos básicos como os da maternidade e da paternidade, da dignidade da pessoa humana, da monogamia, da integridade moral das pessoas, além de suscitar novas interpretações das regras jurídicas clássicas ou impor novas regras. “Portanto, não é matéria que se deixe pura e simplesmente à deontologia dos profissionais da medicina ou a quaisquer outras disciplinas intermédias, à livre consciência das pessoas e da família ou ao cuidado de comitês de reflexão”. O momento, segundo Marianna, é opor- tuno para reconsiderar o direito a procriar e a reprodução assistida em um contexto do século 21. “Todo e qualquer estudo nessa matéria deve levar em conta as mudanças tec- nológicas, sociais e acadêmicas nas últimas décadas, uma vez que a reprodução assistida tornou-se uma forma amplamente aceita de procriação e muitos tribunais e legislaturas – como é o caso do Brasil – têm continuado a fugir da consideração explícita da natureza do direito de procriar com recurso às técnicas de PMA”, completa. A advogada ressaltou a necessidade “ur- gente” da edição de uma legislação específi- ca, assim como a inevitabilidade da adapta- ção e harmonização de normas já existentes no sistema jurídico com as realidades criadas pela PMA. ADVOGADA DEFENDE A NECESSIDADE DE LEGISLAÇÃO ESPECÍFICA PARA FAMÍLIAS COM FILHOS FRUTOS DE REPRODUÇÃO ASSISTIDA 10 “Falar de Direito de Família não é uma coisa simples. Sobretudo nos dias de hoje, onde há uma pluraridade maior, várias possi- bilidades de família”. Foi assim que o padre Alex Barbosa de Brito iniciou sua exposição sobre “Direito de Família e Religiões: Coli- são de Princípios Jurídicos e Princípios Re- ligiosos”, em um dos debates mais esperados pelo público, no X Congresso Brasileiro de Direito de Família. Para o clérigo, a Constituição e o Código Civil não são mais capazes de conter a rea- lidade de fato das “multiformas” de realida- des familiares existentes. “Autores modernos chegam à conclusão, a partir de uma análise sociológica, de que a conceituação de famí- lia é polêmica, especialmente em tempos nos quais para alguns não há mais a vinculação entre a finalidade unitiva e a procriativa, entre casamento e procriação”, diz. Após tecer considerações sobre como o matrimônio se apresenta em diversas religi- ões, bem como o divórcio, o padre concluiu que o matrimônio é uma realidade complexa, que pode ser abordada do ponto de vista an- tropológico, sociológico, político, jurídico, psicológico e religioso e que, portanto, “des- de que sejam respeitadas as legítimas autono- mias das esferas, não há razão para colisão ou conflitos. O perigo está quando o homem ou as instituições resolvem se fazer como me- dida de todas as coisas, estabelecendo aquilo que se pode chamar de ditadura do relativis- mo”, diz. “Sendo esse o Instituto de Direito da Fa- mília de maior relevância no Estado brasi- leiro, composto por juristas e formadores de opinião, é mister fazerem valer o estado de direito e a primazia das liberdades garantidas pelas leis, o respeito à dignidade humana, além do diálogo e da mútua relação e coope- ração sadias que devemexistir entre a socie- dade e a religião, uma vez que o homem é a encruzilhada das esferas civil e religiosa: é homem cidadão e homem religioso, ainda que seja ateu”, destaca. REFELEXOS DO USO DO AFETO E DA FÉ NA CONTEMPORANEIDADE Foi com a experiência de 20 anos como juíza de família e com a sensibilidade de po- eta que a juíza Andréa Pachá, vice-presidente da Comissão dos Magistrados de Família do IBDFAM, conduziu suas reflexões sobre “Li- berdade, fé e a primazia do afeto”. À Revista IBDFAM ela declarou que não adianta tratar desses assuntos – Direito e Religião - como se eles fossem excludentes. “Como se fosse possível desenhar um Estado sem a interferência da religião que impregna nossa cultura. Então, essa conversa é funda- mental para a gente consolidar os avanços que nós tivemos no Direito e para afirmar o nosso desejo cada vez maior de respeito por uma ética da alteridade, por uma ética que re- conheça o outro como sujeito, por uma ética que inclua, que brigue contra o preconceito, que não tolere as injustiças”. Para ela, a agenda conservadora que pauta o Congresso Nacional atualmente tem fun- cionado porque as esferas naturais do debate têm sido omissas na hora de conduzir deter- minados temas. “Se a gente está vivendo um momento de crise política, um momento de crise de representação, um momento em que as pessoas que teriam algo a contribuir com a vida pública têm escolhido o silêncio e a omissão, é natural que o conservadorismo avance. Quando o IBDFAM propõe um con- gresso dessa natureza e traz as pessoas aqui e traz os temas a serem debatidos, é um avanço para a democracia. Na minha opinião, exis- tem questões que devem ser enfrentadas repu- blicanamente”. Segundo Andréa, Direito e Religiosidade não são conceitos antagônicos em grande par- te das vezes. “Sem a religião não se elabora a cultura do mundo”. Ela explica que na origem histórica do Direito não se diferenciava a mo- ral da religião e da família. “A preocupação com a individualização desses saberes remon- ta ao século XIX”, diz. “Durante muito tempo os fatores sociais e religiosos dominaram e se confundiram com o ordenamento jurídico. Na Roma antiga, a família patriarcal prevalecia no Direito. Na idade média, a Igreja fabricava e executava as normas. A Religião como fonte valorativa PECADO É UMA VIDA SEM FÉ E SEM AMOR 11 de princípios sempre limitou as condutas para que o objetivo final, o bem maior fosse alcan- çado, e mesmo a ruptura com a visão teocên- trica, mesmo depois do antropocentrismo e da edição da teoria pura do Direito, de Kelsen, o fenômeno religioso continua impregnando a cultura e a rede normativa. Direito, religião e família (sempre considerando a civilização Ocidental) com maior ou menor grau de in- terferência e interseção continuam existindo como mecanismos de controle social, impon- do condutas e valores e, em tese, objetivando o bem supremo”, reflete. Para ela, o sentimento religioso é um dos mais complexos sentimentos que fundamen- tam a essência do ser humano, e porque é na- tural e independe da razão e da inteligência, ele adquire diversas formas. “Há um momen- to em que a razão não alcança, há ausências que a razão não explica. Como manter a con- vicção materialista diante da dor das perdas, por exemplo? Como experimentar a morte de um filho explicando o fenômeno como célu- las e atómos e moléculas que nunca mais se recomporão?”, questiona. Nesse contexto, segundo a magistrada, as pessoas que têm o privilégio da fé encontram o sentido para tudo na religião. “Encontrar na fé o conforto e o consolo para nossa precária e provisória condição humana é um sentimen- to que alivia e cria uma rede de proteção ao nosso desamparo. A experiência da fé pura nos transcende e nos emblema”, diz. Andréa considera que as religiões se or- ganizaram ao longo da história como orga- nismos institucionalizadores de crenças e responsáveis também pelo processo de socia- lização e contenção dos indivíduos. “Como catalisadores da fé, mas também como ins- tituições reguladoras da vida em grupo, as igrejas impõem, ao longo da história, o poder pelo medo: pelo medo do inferno, pelo medo da morte, pelo medo do padecimento, pelo medo do sofrimento que os mandamentos religiosos são construídos. O Direito, como expressão da vontade de um grupo social e atuando como limitador dos desejos e impul- sos individuais, repete esse modelo religioso substitutindo o fogo do inferno pelo inferno das celas e dos presídios. Nós temos herdado das religiões mecanismos muito importantes da vida em grupo, mas temos herdado, tam- bém, grandes arbitrariedades e violências co- metidas em nome das religiões. Eu não falo aqui dos grandes conflitos ideológicos que assombram o Oriente Médio e a Europa e transformam a fé em instrumento de funda- mentalismo e de terror. Refiro-me ao amor e à liberdade, sentimentos tão constitutivos da nossa humanidade quanto a fé. Em nome de algumas crenças esses sentimentos têm sido profundamente vilipendiados”, diz. O Estatuto da Família, aprovado na Comi- são de Constituição e Justiça da Câmara é, se- gundo Andréa, um triste exemplo daquilo que não pode ser tolerado em nome da fé. “Um Estado Laico não é aquele que se contrapõe às religiões, mas aquele que discute e que de- bate com a sociedade sobre os temas que di- zem respeito à cidadania e aos direitos, apesar dos credos de cada um, individualmente. Da mesma forma que não pretendemos adaptar os dogmas religiosos às transformações terre- nas, não podemos admitir que as normas reli- giosas pautem as relações”, diz. Isto porque, aderir ou se submeter ao comando religioso é, segundo a juíza, um ato de vontade. E inte- grar um Estado e ser cidadão não é uma op- ção, a pessoa não existe sem cidadania. “Não é possivel que em nome da fé se desconsidere o afeto como direito constitutivo das relações familiares. Não é razoável que a pretexto de fortalecer as crenças religiosas se impeça a sociedade de discutir as novas famílias, a de- mocratização dos afetos, a igualdade dos gê- neros, a multiparentalidade, o aborto”, diz. Andréa Pachá explica que a democracia moderna é “inteira” dos ideais judaico- cristãos. “São eles que nos fazem repelir a corrupção, a violência, o uso mercantil do outro, a crueldade, o preconceito”, e que diante do conflito entre princípios legais e princípios religiosos a Justiça é chamada a decidir em cada caso concreto sopesando os valores constitucionais que cada processo encerra e reconhecendo a laicidade do estado. “Somos seres de espírito, da fé e das re- ligiões, mas também somos seres errantes do amor, do desejo e das fantasias. É pela liber- dade que conseguiremos construir pontes e afirmar tanto na fé quanto no afeto o nosso compromisso de construir um mundo mais humano para todos”. O título da matéria é uma alusão ao texto “SAGRADO É UM SAMBA DE AMOR” do livro A VIDA NÁO É JUSTA - AGIR/2012; ANDRÉA PACHÁ. 12 A advogada e professora universitária Ana Luiza Nevares, diretora acadêmica do IBDFAM-RJ discutiu as inovações do Código de Processo Civil de 2015 (CPC) em Direito das Sucessões. Em março de 2016 entrará em vigor novo diploma processual civil, estabelecido pela Lei 13.105, de 16 de março de 2015. Segundo Ne- vares, um dos motivos expostos pela Comissão de Juristas encarregada da elaboração do novo Código de Processo Civil, seria a preocupação com a real efetividade do processo, ou seja, com o fato de o processo ser um instrumento eficiente para a concretização do direito ma- terial. “Nessa direção, os processualistas bus- caram alcançar os seguintes objetivos: 1) har- monizar a lei ordinária processual aos valores e princípios da Constituição Federal, em claro e evidente respeitoà hierarquia das fontes; 2) possibilitar que o processo alcance resultados consonantes à realidade fática em que esteja inserido, enfatizando a atuação das partes na solução dos conflitos, a partir da mediação e da conciliação, bem como a partir dos instru- mentos que permitem uma contratualização do processo; 3) simplificar o processo, identifican- do pontos complexos que mereciam redução de atos e formalidades; 4) propiciar que cada processo tenha maior rendimento possível, possibilitando, por exemplo, que as partes, até a sentença, modifiquem o pedido e a causa de pedir, desde que não haja ofensa ao contradi- tório, extraindo-se do processo o maior apro- veitamento possível e 5) obter maior coesão do sistema, a partir da organicidade das regras do processo civil”, explica. Ana Luiza Nevares procurou abordar as inovações do Código de Processo Civil no Direito das Sucessões, refletindo sobre o atual momento vivenciado pelo Direito Sucessório, tendo em vista que a efetividade do processo civil, como afirmado, pressupõe a concreta re- alização do Direito Material que lhe seja sub- jacente. “O Direito das Sucessões é o ramo do Direito Civil destinado a regular a transmissão dos bens de uma pessoa em virtude de sua morte. Está disciplinado no Código Civil, Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, no Livro V do aludido diploma legal, que é subdividido em títulos destinados à sucessão em geral, à su- cessão legítima, à sucessão testamentária e ao inventário e à partilha. O conjunto das relações patrimoniais de uma pessoa falecida denomi- na-se herança, sendo certo que o direito de he- rança está consagrado no inciso 30, do artigo 5º, da Constituição da República Federativa do Brasil, consistindo a sucessão privada, assim, em uma garantia fundamental do cidadão bra- sileiro. A herança só será considerada vaga e destinada ao Estado na ausência de sucessores legais ou testamentários”, afirma. Conforme a advogada, os pilares do Direito das Sucessões são a propriedade e a família, e com efeito o Direito das Sucessões disciplina transmissão da propriedade de uma pessoa fa- lecida, estabelecendo uma ordem de vocação hereditária fundada na família, uma vez que, por ser a formação social na qual mais genui- namente se exerce a solidariedade, é a família a fonte inspiradora para o legislador determi- nar a quem devem ser destinadas as situações jurídicas patrimoniais transmissíveis de uma pessoa após o seu falecimento. “Exatamente por se fundar na propriedade, o Direito das Su- cessões destina um espaço de autonomia para a pessoa, facultando-lhe regulamentar a desti- nação de seus bens após a sua morte, através de negócio jurídico denominado testamento, valendo destacar que o testamento tem eficá- cia múltipla (Código Civil, art. 1.857), uma vez que não serve apenas para disposições de cunho material, mas também a outros objetivos do testador, em especial aqueles relativos às suas situações jurídicas existenciais. Tal espaço de autonomia será mais ou menos amplo con- forme as exigências sociais relativas à proteção da família. Atualmente, o Brasil tutela a família nuclear garantindo metade da herança (Código Civil, artigo 1.789) aos herdeiros necessários, constituídos pelos descendentes, ascendentes, cônjuge e companheiro (Código Civil, artigos 1.845 e 1.850). Muito se discute sobre a perti- nência de o ordenamento jurídico garantir para certos parentes parte da herança de forma obri- gatória, limitando a liberdade de testar. Sobre a questão, importante registrar que o Código Civil hoje em vigor é fruto de um projeto de lei concebido em 1975, sendo evidente que de lá para cá muitas transformações ocorreram na família, tendo algumas sido incorporadas no atual Código Civil e outras não”, disse. Segundo a advogada, ao observar os alvo- roços jurisprudenciais que se travam a respei- to da normativa sucessória atual, em especial aquela relativa ao cônjuge e ao companheiro, bem como diante dos recentes diplomas legais que versam sobre a família de forma específica ou tangencial (Estatuto do Idoso, Guarda Com- partilha, Alienação Parental, Lei Maria da Pe- nha e Estatuto do Deficiente), pode-se concluir que o Direito das Sucessões precisa se encaixar na configuração da família atual, que é plural, igualitária e democrática, com atenção vol- tada aos vulneráveis, em especial às crianças, aos demais incapazes e aos idosos. “De fato, uma das críticas que é direcionada ao Direito “ “ Os pilares do Direito das Sucessões são a propriedade e a família CPC E GUARDA COMPARTILHADA: PAINÉIS NO SEGUNDO DIA ABORDAM TEMAS DE GRANDE REPERCUSSÃO EM 2015 13 Sucessório é a sua neutralidade, já que, no Bra- sil, raras vezes a lei estabelece a divisão da he- rança com base em critérios concretos de pro- teção da pessoa de cada um dos que integram a família, como ocorreu com a lei 10.050/2000, que previu o direito real de habitação em re- lação ao único imóvel residencial do monte para o filho órfão portador de deficiência que o impossibilitasse para o trabalho, incluindo o inciso 3º ao art. 1.611 do Código Civil de 1916. Argumenta-se que a aludida neutralidade é fru- to do princípio da unidade da sucessão, consa- grado no Direito Francês Revolucionário, que tinha por objetivo aniquilar todos os privilégios da nobreza, sendo certo que o fracionamento da propriedade, a partir da divisão hereditária, configurava um importante mecanismo para tal intento”, elucida. Ana Luiza Nevares esclarece que, desse modo, se estabeleceu que a sucessão hereditá- ria não deveria considerar a natureza dos bens transmitidos, nem a qualidade dos sucessores, de forma a eliminar privilégios como o da pri- mogenitura ou o da masculinidade na trans- missão causa mortis, estando o pressuposto da sucessão concentrado apenas no fato de aquele sucessor pertencer à família do autor da heran- ça, sem outras considerações. “Com a queda do liberalismo burguês e a consagração do sujeito de direito não mais como uma categoria neutra e abstrata, mas sim como o sujeito histórico- -real, considerado não só na multiplicidade de suas explicações e manifestações ativas, como também em suas variadas e diversas necessida- des, interesses, exigências, qualidades indivi- duais, condições econômicas, posições sociais e, como tal, devendo ser considerado como portador de valores essenciais (dignidade, se- gurança, igualdade, liberdade) e de fundamen- tais espaços de promoção e desenvolvimento da pessoa (saúde, trabalho, educação), sem- pre considerado em sociedade, não podendo prescindir das relações que estabelece com os demais, a disciplina das relações jurídicas pri- vadas passou a atentar para as pessoas que as integram, ao modo pelo qual interagem naque- las relações, bem como à repercussão de seus efeitos nas esferas de terceiros. Desse modo, no âmbito do Direito das Sucessões, passou-se a repensar o princípio da unidade da sucessão e, assim, tanto na legislação francesa, como em outras que se inspiraram no Código Napoleô- nico, consagraram-se previsões específicas de sucessões consideradas especiais, exatamente porque se afastam do regramento geral, para atender a interesses específicos relacionados aos bens transmitidos e aos sucessores legais”, comenta. A advogada ainda afirma que nessa pers- pectiva, a legislação sucessória deveria prever uma especial atenção aos herdeiros incapazes e idosos e, também, aos cônjuges e compa- nheiros quanto a aspectos nos quais realmente dependiam do autor da herança, privilegiando, ainda, vínculos específicos dos herdeiros quan- to aos bens do acervo hereditário, qualificados por moradia ou exercício profissional. “Bus- car-se-ia, assim, concretizar na transmissão da herança um espaço de promoção da pessoa, atendendoàs singularidades dos herdeiros, em especial diante de sua capacidade e de seus vínculos com os bens que compõem a heran- ça, e, ainda, atendendo à liberdade do testador quando não se vislumbrasse na família aqueles que necessitam de uma proteção patrimonial diante da morte de um familiar. Como se verá ao longo do presente estudo, o Código de Pro- cesso Civil de 2015, embora tenha reproduzido no geral o sistema processual previsto no Códi- go de Processo Civil de 1973 quanto ao inven- tário e à partilha, trouxe inovações importantes em relação à matéria, sendo certo que algumas delas se alinham aos atuais reclames da legisla- ção sucessória”, completa. A GUARDA COMPARTILHADA E O FIM DO GENITOR VISITANTE A guarda compartilhada foi objeto de estu- do no X Congresso Brasileiro de Direito de Fa- mília. Quem abordou o tema foi a juíza Angela Regina Gimenez, presidente do IBDFAM/MT. Para a magistrada, a modificação legislati- va com o advento da Lei Nº 1358/ 2014 impõe uma interpretação concreta sobre o que vem a ser a aplicação da guarda compartilhada e faz uma reafirmação de alguns preceitos legais, “ “ O Direito das Sucessões precisa se encaixar na configuração da família atual, que é plural 14 principiológicos que vêm estruturando o orde- namento jurídico. Além disso, segundo Angela, “a nova lei traz a igualdade parental, ela coloca um final na história muito triste que nós tínhamos no Brasil, em que, na situação de separação, um genitor ficava na condição de mero visitante do seu filho. As estatísticas têm mostrado que essas visitas eram preponderantemente estipu- ladas ao pai, que nesse sistema de visitas per- manecia apenas 8% do tempo com seu filho, revelando uma situação de total desigualdade entre os genitores, perpetuando o mito da ma- ternidade”, diz. De acordo com a juíza, durante o último sé- culo acreditava-se que a maternidade era mais importante do que a paternidade e por esse mo- tivo, “negligenciamos a convivência dos nos- sos filhos com os pais, trazendo a eles proble- mas muito graves”. “Em decorrência dessa negligência, e de perpetuamos uma visão extremamente precon- ceituosa de que ao pai cabe a função de pro- vedor e à mãe, naturalmente por ser inato das mulheres a posição de cuidadora, nós temos hoje toda uma geração que tem gerado sérios conflitos com a lei. Ao garantir que as crianças e os jovens posssam conviver livremente, cal- mamente, amorosamente com o seu pai e com a sua mãe nós não estamos tratando individual- mente daquela criança ou daquela familia, mas estamos pensando no impacto social do afasta- mento dos pais – eu falo dos pais porque 93% das guardas judiciais, até dezembro do ano passado, eram concedidas de forma unilateral e favoráveis às mães”, diz. DIVISÃO DO TEMPO A juíza Angela Regina Gimenez explica que ao lidar com a guarda compartilhada os profissionais da área se deparam com um ce- nário difícil. “Toda separação, ainda que cons- cientemente desejada, causa frustração, causa dor. A pessoa que está em sofrimento muitas vezes se ensurdece para questões importantes dos próprios filhos, isso não é por desmere- cimento nem por negligência paterna ou ma- terna, é devido ao sofrimento”, diz. E por esse motivo, segundo ela, é responsabilidade do Po- der Judiciário, das famílias e de toda a socie- dade viabilizarem a convivência das crianças com ambos os pais. “Nós precisamos compreender que é im- portante que as nossas crianças possam convi- ver com seu pai e com a sua mãe e que o ideal seja do compartilhamento igualitário sem que isso tenha que ser uma camisa de força, mas que seja um ideal a ser buscado, que seja uma perspectiva a ser alcançada. Inclusive, porque essa convivência com o pai e com a mãe tem sido um grande antídoto à alienação parental, tem propiciado que as nossas crianças possam ter uma visão bifrontal da vida, trazendo valo- res de seu pai e de sua mãe, recebendo afeto e alento do pai e da mãe e acolhimento das duas famílias extensas, o que sem dúvida nenhuma vem ao encontro do melhor interesse das crian- ças porque é assim que as nossas crianças po- dem melhor se desenvolver”, diz. Segundo Angela, a lei da guarda comparti- lhada fala, expressamente, na distribuição equi- librada de tempo. Ela afirma que, apesar da grande controvérisa que essa questão tem ge- rado, “não há qualquer razão para que o tempo não seja distribuído de forma igualitária”. “Todas as pesquisas têm mostrado que quando não for possível o compartilhamento de 50 % do tempo da criança para o pai e 50% para a mãe, àquele que permanecer por menor tempo tem que ser resguardado o tempo mí- nimo de 35%, como uma forma de se garantir o compartilhamento. Todos os estudiosos têm demonstrado que menos do que 35%, ape- sar de chamarmos de guarda compartilhada, é guarda unilateral. A guarda compartilhada não veio aumentar o direito de visitação; veio de fato desafiar a sociedade brasileira a um novo modelo de desenvolvimento humano. O amor é exercício de convivência e de toque, que não pode ser superado pela internet, e isso deve ser resguardado”, diz. 15 Apesar de serem ramos distintos do Código Civil, o Direito das Sucessões e o Direito de Família se entrelaçam em vários aspectos. Por esse motivo, o X Congresso também teve espaço para o Direito Sucessório, aludido por grandes nomes, entre eles Marcelo Truzzi Otero, presidente da Comissão de Advogados de Família do IBDFAM. O advogado Marcelo Truzzi Otero falou sobre as perspectivas existenciais no Direito das Sucessões em uma reflexão sobre o Direito Sucessório a partir da legalidade constitucional, levando em consideração a imperiosidade da mesma releitura verificada nos demais institutos do Direito Privado. Para ele, o Direito Sucessório não pode simplesmente continuar atribuindo patrimônio aos herdeiros de forma desvinculada das necessidades de cada um deles. “É preciso realinhar o Direito Sucessório de modo a que atenda os interesses reais e efetivos dos herdeiros, cumprindo a função promocional exigida de todos os institutos jurídicos. É preciso torná-lo mais humano, sem ignorar o conteúdo patrimonial que lhe é inerente”, diz. Segundo Truzzi, a Constituição Federal alterou substancialmente o panorama jurídico das relações privadas, até então caracterizadas pela tutela marcante do patrimônio em detrimento dos próprios sujeitos envolvidos. Segundo ele, a tutela da personalidade estava restrita, em visão “acanhada”, à tutela do patrimônio, e não precisamente da pessoa do seu titular. “A positivação de princípios no texto constitucional, com o merecido destaque para a dignidade e para a solidariedade, valorizou a pessoa humana, obrigando o operador do Direito a uma releitura de conceitos e de institutos jurídicos clássicos, como a propriedade, o contrato, a empresa, a família, realinhando-os, em escala de valores, às diretrizes constitucionais que impõem o respeito e a valorização da pessoa humana acima de tudo”, diz. FAMÍLIA HUMANIZADA Nesse sentindo, Truzzi expõe que os institutos jurídicos tradicionais adquiriram contornos existenciais e serão merecedores de tutela jurídica se estiverem em perfeita harmonia com a perspectiva promocional e funcionalizada que lhes é inerente, sendo observados o contexto inclusivo e protetivo da pessoa humana em cada caso concreto. “Merecedor da tutela jurídica é o sujeito, considerado objetivamente em todas as suas particularidades, e não mais o instituto em si. Não basta, portanto, ADVOGADO PROMOVE REFLEXÃO SOBRE O DIREITO SUCESSÓRIO COM UM OLHAR HUMANIZADO 16 que seja meramente lícito para ter-se como jurídico; é preciso que o ato seja merecedor de tutela e esse juízo deve ser feito à luzdos princípios fundamentais do ordenamento jurídico, observando que a tutela da dignidade e a solidariedade, princípios fundamentais dos quais emanam outros tantos princípios, não constituem um direito apenas, mas um dever a ser observado em todas as relações privadas. Nada há de ilegal na desconsideração de uma norma de Direito Privado que contrariar os vetores constitucionais da tutela da dignidade e da existência. Ilegal é aplicar uma lei, em sua literalidade, para gerar uma injustiça, em confronto com os princípios constitucionais como o da solidariedade e da dignidade da pessoa humana; afinal, estaríamos diante de uma verdadeira subversão da hierarquia normativa, prestigiando leis ordinárias em detrimento de normas constitucionais”, afirma. O advogado explica que dentro desta ótica, os institutos jurídicos marcantemente privados passaram por indispensável releitura de modo a conformá-los à ordem constitucional, sempre atenta à perspectiva funcionalizada e promocional da dignidade da pessoa humana. “Sem apartar da autonomia da vontade e do pacta sunt servanda, o contrato passou a contar com um olhar mais atento e personificado dos contratantes, reconhecidamente figuras centrais, ganhando contornos mais humanos a partir do equilíbrio mais efetivo, e menos formal, entre os contratantes. Assim, o contrato foi revalorizado pelos deveres anexos de conduta e pela própria função social que deve desempenhar. A propriedade, ainda marcada pelo caráter individual e absoluto, também foi funcionalizada, não apenas na ótica do titular, mas também na da própria coletividade”, expõe. Conforme o advogado, a função social, o respeito ao meio ambiente, a positivação do abuso de direito na legislação infraconstitucional, a moradia como direito social, a possibilidade do bem de família e a ampliação, pelos Tribunais, das hipóteses de impenhorabilidade, contribuem para a compreensão da propriedade como um instrumento para a tutela de valores fundamentais e extrapatrimoniais do titular e das pessoas que dela se beneficiam, com um viés mais humanizado, apartado daquele individualismo exagerado que décadas atrás permitia ao proprietário fazer tudo o que lhe agradasse pelo simples fato de ser proprietário. “Essa é justamente a função promocional do instituto. A família não se manteve imune a essa verdadeira revolução. Diferentemente do passado, em que era protegida como ente despersonalizado e abstrato, e reconhecidamente excludente, desigual, discriminatória e excessivamente patrimonialista, a família atual é igualitária, democrática, plural, pautada no respeito das individualidades de seus membros, que se obrigam mutuamente em uma comunidade de vida”, conclui. Marcelo Truzzi ainda elucida que, a exemplo do contrato e da propriedade, a família também foi funcionalizada; mais que funcionalizada, a família foi humanizada, voltou-se para seus membros, conscientizando-se de seu verdadeiro papel como instrumento executor de valores fundamentais, tornando- se o locus existencial por excelência, destinada a promover o desenvolvimento da personalidade de seus componentes, a partir do afeto, da solidariedade e da cooperação. “É sob essa ótica existencial, funcionalizada e promocional, imposta pela Constituição Federal, que as relações sucessórias também devem ser analisadas e compreendidas, sob o risco de flagrante inversão hermenêutica. O problema é que a prática forense tem demonstrado que essa avalanche de transformações verificadas em todos os institutos do Direito Privado não se espraiou para o Direito Sucessório, como se pudesse este ramo do Direito permanecer isolado e infenso à nova tábula existencial imposta pelo texto constitucional”, explica. Por fim, o advogado afirma que cabe aos operadores do Direito, analisar o Direito Sucessório com os mesmos olhos que atualmente interpretamos o contrato, a propriedade, as relações familiares, pautando essa análise pela perspectiva existencial dos atores que se apresentam no palco do Direito Sucessório. “A tutela sucessória deve estar focada na perspectiva existencial do sucessor, e não mais na ótica única, exclusiva e individualista do autor da herança. Esse cenário provoca intensas e significativas mudanças paradigmáticas, como verificamos, exemplificativamente, na tutela sucessória do cônjuge, na compreensão da legítima do herdeiro necessário, na restrição à imposição de cláusulas sobre esta legítima e na orientação à própria partilha de bens”, completa. “ “ A família também foi funcionalizada; mais que funcionalizada, a família foi humanizada 17 “Com a Emenda Constitucional nº 66/2010, o divórcio no Brasil alcançou o seu ponto máximo ao garantir que as pessoas não tenham impedimentos e possam livre- mente reconstituir suas vidas afetivas”, disse o advogado Paulo Lôbo, diretor nacional do IBDFAM, que proferiu palestra no segundo dia do X Congresso Brasileiro de Direito de Família. Na palestra “Divórcio e os modelos de separação entre o Código Civil e o CPC de 2015”, o advogado defendeu que o Esta- do só deve intervir naquilo que diz respeito aos conflitos que as partes não conseguem resolver, como a guarda e proteção dos fi- lhos; partilha de bens; os alimentos e, even- tualmente, a permanência ou não do nome de casado. Paulo Lôbo apresentou argumentos con- tra a permanência da separação judicial, en- tre eles: a orientação consagrada na doutrina e nos tribunais; e as consequências jurídicas da separação de corpos e da separação de fato. O jurista ressaltou a extinção da sepa- ração judicial no Direito brasileiro, após a Emenda Constitucional n°66/2010. “Com o advento da Emenda Constitucional nº 66/2010, extinguiu-se a separação judicial como requisito prévio ou como alternativa ao divórcio, revogando-se as normas do Código Civil que tratavam desta matéria”, diz. Segundo ele, as referências feitas em al- gumas normas do CPC de 2015 à separação não “restauram” a separação judicial e de- vem ser interpretadas como referentes à se- paração de fato. Paulo afirma que, historicamente, criou- se, desde 1977, com o advento da legislação do divórcio, uma duplicidade “artificial” en- tre dissolução da sociedade conjugal e disso- lução do casamento, como solução de com- promisso entre divorcistas e antidivorcistas, o que, segundo ele, não mais se sustenta. “As circunstâncias mudaram, profunda- mente, e a sociedade passou a aceitar o di- vórcio como solução normal para o desapa- recimento da afetividade no casal, não mais repercutindo a demonização manejada pelos que o rejeitavam”, diz. “A submissão a dois processos judiciais - separação judicial e divórcio por conversão - resultava em acréscimos de despesas para “ “ Com o advento da Emenda Constitucional nº 66/2010, extinguiu-se a separação judicial HIERARQUIA NORMATIVA, EC66/2010 E A INUTILIDADE DA SEPARAÇÃO JUDICIAL 18 o casal, além de prolongar sofrimentos evitáveis”, lembra Paulo Lôbo. Para ele, o divórcio direto - amigável ou judicial - dispensando causas, contempla me- lhor a dignidade das pessoas no “delicado” momento de suas separações, sem interferên- cias estatais “constrangedoras” e é a opção mais utilizada na atualidade. Lôbo esclarece que, quanto à interpreta- ção sistemática, não se pode estender o que a norma restringiu e nem se pode interpretar e aplicar a norma desligando-a de seu contexto normativo. “Tampouco, podem prevalecer normas do Código Civil ou de outro diploma infra- constitucional, que regulamentavam o que é previsto de modo expresso na Constituição e que esta excluiu posteriormente”. Ao pretender que o Código Civil “valha” mais que a Constituição,segundo o jurista, inverte-se a hierarquia normativa. “No Di- reito brasileiro, há um consenso doutrinário e jurisprudencial acerca da força normativa própria da Constituição. Sejam as normas constitucionais regras ou princípios, não de- pendem de normas infraconstitucionais para estas prescreverem o que aquelas já pres- crevem. O § 6º do art. 226 da Constituição qualifica-se como norma-regra, pois seu su- porte fático é precisamente determinado: o casamento pode ser dissolvido pelo divórcio, sem qualquer requisito prévio, por exclu- sivo ato de vontade dos cônjuges”, afirma. Conforme o jurista, no plano da interpretação teleológica, ou seja, do estudo filosófico dos fins ou propósito da sociedade, indaga-se so- bre quais os fins sociais da nova norma cons- titucional. “Permitir sem empecilhos e sem intervenção estatal na intimidade dos cônju- ges, que estes possam exercer com liberdade seu direito de desconstituir a sociedade con- jugal, a qualquer tempo e sem precisar decli- nar os motivos”, diz. E quais os fins sociais da suposta sobre- vivência da separação judicial, considerando que não mais poderia ser convertida em di- vórcio? Ou que interesse juridicamente rele- vante subsistiria em buscar-se um caminho que não pode levar à dissolução do casamen- to, pois o divórcio é o único modo previsto na Constituição? Para o jurista a resposta é, “palmar inocuidade, além de aberto confron- to com os valores que a Constituição passou a exprimir, expurgando os resíduos de quan- tum despótico: liberdade e autonomia sem interferência estatal”, diz. Ainda que se admitisse a sobrevivência da sociedade conjugal, segundo ele, a nova redação da norma constitucional permite que os cônjuges alcancem suas finalidades, com muito mais vantagem. No entanto, por outro lado, entre duas interpretações possíveis, não poderia prevalecer a que consultasse apenas o interesse individual do cônjuge que dese- jasse instrumentalizar a separação para o fim de punir o outro, comprometendo a boa ad- ministração da justiça e a paz social. “O uso da justiça para punir o outro cônjuge não atende aos fins sociais nem ao bem-comum, que devem iluminar a decisão judicial sobre os únicos pontos em litígio, quando os cônjuges sobre eles não cedem: a guarda e a proteção dos filhos menores, os alimentos que sejam devidos, a eventu- al compensação econômica, a continuidade ou não do nome de casado e a partilha dos bens comuns. Anote-se, ainda, no plano da inutilidade da preservação da separação judi- cial, que esta não pode mais ser convertida em divórcio. Não existe mais o divórcio por conversão. Assim, tudo o que fosse objeto de eventual separação convencional teria de ser repetido no pedido do divórcio judicial ou no divórcio extrajudicial. A situação de incom- patibilidade agrava-se na hipótese de divór- cio judicial litigioso, pois, se neste não há acordo quanto aos itens necessários (modo de exercício da guarda compartilhada, ou do quantum dos alimentos, partilha dos bens, sobrenome), que terão de ser decididos pelo juiz, independentemente da existência de se- paração convencional anterior”, comenta. Paulo Lôbo explica, ainda, que a nova redação da norma constitucional teve a vir- tude de pôr cobrança à exigência de compro- vação da culpa do outro cônjuge e de tempo mínimo. “O divórcio, em que se convertia a separação judicial litigiosa, contaminava-se dos azedumes e ressentimentos decorrentes da imputação de culpa ao outro cônjuge, o que comprometia inevitavelmente o relacio- namento pós-conjugal, em detrimento, sobre- tudo, da formação dos filhos comuns”. Segundo ele, o princípio do melhor inte- resse da criança e do adolescente dificilmen- te consegue ser observado, quando a arena da disputa é alimentada pelas acusações recí- procas, que o regime de imputação de culpa propiciava. “Quando o Poder Judiciário, mobilizado pelo cônjuge que se apresentava como aban- donado e ofendido pelo outro, investigava a ocorrência ou não da causa alegada e da cul- pa do indigitado ofensor, ingressava na inti- midade e na vida privada da sociedade con- jugal e da entidade familiar. A Constituição (artigo 5º, X) estabelece que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a ima- gem das pessoas, sem qualquer exceção ou restrição. Ora, nada é mais íntimo e privado que as relações entretecidas na convivência familiar. Sob esse importante ângulo, não poderia a lei ordinária excepcionar, de modo tão amplo, a garantia constitucional da invio- labilidade, justamente no espaço privado e existencial onde ela mais se realiza”. “ “ O uso da justiça para punir o outro cônjuge não atende aos fins sociais nem ao bem- comum, que devem iluminar a decisão judicial 19 No X Congresso Brasileiro de Direito de Família, foram aprovados os Enunciados Programáticos do IBDFAM. Os Enunciados servirão de diretriz para a criação da nova doutrina e jurisprudência em Direito de Família no Brasil. A votação foi promovida pela Diretoria da entidade junto a seus membros, sob a coordenação dos profes- sores Flávio Tartuce, José Fernando Simão e Mário Luiz Delgado, diretores do Instituto. Das 16 propostas em pauta, 11 foram aprovadas e se somam aos 9 Enunciados aprovados em 2013, na nona edição do evento. Para Flávio Tartuce, os enunciados do IBDFAM são “leme doutrinário” para os aplicadores do Direito de Família e das Sucessões no Brasil. Na linha do que propõe o IBDFAM, segundo Tartuce, os enunciados representam o que há de mais inovador a respeito desses temas no País. “Assim como o Instituto, os enunciados aprovados estão à frente da legislação”, diz. CONFIRA TODOS OS ENUNCIADOS: 01 A Emenda Constitucional 66/2010, ao extinguir o instituto da separação judicial, afastou a perquirição da culpa na DISSOLUÇÃO do casamento e na quanti- ficação dos alimentos. 02 A separação de fato põe fim ao regime de bens e importa extinção dos deveres entre cônjuges e entre companheiros. 03 Em face do princípio da igualdade das entidades familiares, é inconstitucional o tratamento discrimina- tório conferido ao cônjuge e ao companheiro. 04 A constituição de entidade familiar paralela pode gerar efeito jurídico. 05 Na adoção, o princípio do superior interesse da criança e do adolescente deve prevalecer sobre a fa- mília extensa. 06 Do reconhecimento jurídico da filiação socioafe- tiva decorrem todos os direitos e deveres inerentes à autoridade parental. 07 A posse de estado de filho pode constituir pater- nidade e maternidade. 08 O abandono afetivo pode gerar direito à repara- ção pelo dano causado. 09 A multiparentalidade gera efeitos jurídicos. 10 É cabível o reconhecimento do abandono afetivo em relação aos ascendentes idosos. 11 Na ação destinada a dissolver o casamento ou a união estável, pode o juiz disciplinar a custódia com- partilhada do animal de estimação do casal. 12 É possível o registro de nascimento dos filhos de casais homoafetivos, havidos de reprodução assistida, diretamente no Cartório do Registro Civil. 13 Na hipótese de adoção intuitu personae de crian- ça e de adolescente, os pais biológicos podem eleger os adotantes. 14 Salvo expressa disposição em contrário, os ali- mentos fixados ad valorem incidem sobre todos os rendimentos percebidos pelo alimentante que possua natureza remuneratória, inclusive terço constitucional de férias, 13º salário, participação nos lucros e horas extras. 15 Ainda que casado sob o regime da separação con- vencional de bens, o cônjuge sobrevivente é herdeiro necessário e concorre com os descendentes. 16 Mesmo quando houver testamento, sendo todos os interessados capazes e concordes com os seus ter- mos, não havendo conflito de interesses, é possível que se faça o inventário extrajudicial.17 A técnica de ponderação, adotada expressamente pelo art. 489, § 2º, do Novo CPC, é meio adequado para a solução de problemas práticos atinentes ao Di- reito das Famílias e das Sucessões 18 Nas ações de divórcio e de dissolução da união estável, a regra deve ser o julgamento parcial do méri- to (art. 356 do Novo CPC), para que seja decretado o fim da conjugalidade, seguindo a demanda com a dis- cussão de outros temas. 19 O rol do art. 693 do Novo CPC é meramente exemplificativo, e não taxativo. 20 O alimentante que, dispondo de recursos eco- nômicos, adota subterfúgios para não pagar ou para retardar o pagamento de verba alimentar, incor- re na conduta descrita no art. 7º, inc. IV da Lei nº 11.340/2006 (violência patrimonial). DAVID CRUMPTON O professor David Crumpton é o mais novo associado internacional do IBDFAM. Crumpton é professor PHD na universidade de Maryland (EUA) da matéria de políticas públicas e professor e pes- quisador na UNB e na UFG, no Brasil. Ele esteve no X Congresso Brasileiro de Direito de Família e conversou com a reportagem. Confira: COMO CONHECEU O IBDFAM? Eu trabalho com programas voltados à familia, crianças e mulheres na Universidade de Baltimore e conheci o IBDFAM através de amigos brasileiros. Eu achei interessante e começei a ler as publicações do Instituto. QUAIS TEMAS SÃO MAIS INTERESSENTATES PARA O SEU TRABALHO? Os temas que mais me interessaram, que mais conectam com o meu trabalho nos EUA são os que envolvem mediação e resoluções alternativas de conflitos. Por lecionar politicas sociais, também es- tou interessado nos temas de direitos das crianças e das mulheres e identificação de gênero. O QUE ESTÁ ACHANDO DESSA EXPERIÊNCIA AQUI NO BRASIL? A razão principal de estar aqui é para trazer mé- todos de pesquisas para ver se são aplicáveis aqui envolvendo os direitos das minorias. Ouvindo as palestras eu percebi que vocês podem utilizar essas discussões de forma mais empírica, mais prática. O que, na minha opinião, seria bem viável e interes- sante. Brasileiros e americanos têm problemas simi- lilares em muitas áreas, inclusive nas questões en- volvendo o Direito de Família, e a minha intenção é unir a experiência dessas pesquisas e trazer também soluções interessantes. Os sistemas são diferentes, mas os problemas acabam sendo os mesmos. IBDFAM APROVA ENUNCIADOS O Tratado de Direito das Famílias, em suas mais de 1000 páginas, reúne 19 dos mais renomados autores e doutrinadores brasileiros na área, numa obra inédita, ímpar no Brasil. O conteúdo espelha o Direito de Família Contemporâneo, atualizado com as leis 13.105/2015 (novo CPC), 13.140/2015 (Mediação) e 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência) e traduz- se na maior obra já publicada pela Editora IBDFAM. A maior obra publicada em Direito de Família. Com a marca IBDFAM. ADQUIRA SEU EXEMPLAR EM www.ibdfam.org.br/tratato OU LIGUE (31)3324-9280 www.ibdfam.org.br
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