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LUIZ CARAMASCHI DE VOLTA DO CAOS “Aqui sim, no meu cantinho, vendo rir-me o candeeiro, gozo o bem de estar sozinho, e esquecer o mundo inteiro” Goethe Editora Sociedade Filosófica Luiz Caramaschi Praça Arruda, 54 - Caixa Postal 44 - 18800-000 - Piraju - SP Fone (14) 3351.1900 Contra-capa A queda do empíreo e a posterior volta do caos, sintetizada em um poema Epitáfio de Satã Jaz, aqui, Satã, para todo o sempre, Se tanto durar a rebeldia sua. Criado foi ele pelo Eterno Pai, Da sempiterna Substância-Amor; Mas, como descriou-se, ele próprio, Por arbítrio seu, eis sua sentença: Terá de recriar-se, por si mesmo, Em não previsto tempo; ou isto, ou Reduzir-se-á, para sempre, a nada. Nem ele, pois, nem os sequazes seus Retornarão à Celestina Pátria, Enquanto não se desvirarem todos De dragões, transformando-se, de novo, Nas formas belas que possuíam antes. Mas há esta esperança aos esforçados, Aos valentes que se negar quiserem: Altos Numes de esferas mais sublimes, Inflamados do sacrossanto Amor, Varando as trevas do Orco levarão Socorros mil a quem quiser salvar-se, A quem, de dragão, desejar negar-se, Reconquistando o perdido Amor. Luiz Caramaschi ÍNDICE 2 PRÓLOGO .................................................. 3 I O QUE É A FILOSOFIA ?....................................... 5 II QUE É A SABEDORIA ?......................................... 11 III AS CLASSES DE SABER ....................................... 17 IV CAMINHOS DO PENSAMENTO FILOSÓFICO .... 23 V O MÉTODO ............................................................ 27 VI QUE OUTRO MÉTODO VIRÁ ? ............................. 37 VII A INTUIÇÃO .......................................................... 43 VIII HIERARQUIA DAS INTUIÇÕES ............................ 49 IX O EQUÍVOCO DE SCHOPENHAUER .................... 57 X ONTOLOGIA E METAFÍSICA ............................... 63 XI QUEM EXISTE ? .................................................... 78 XII A GRANDE SÍNTESE FILOSÓFICA ...................... 85 XIII OBJETOS IDEAIS – ESSÊNCIAS ........................... 90 XIV OBJETOS REAIS – SUBSTÂNCIAS ....................... 99 XV NOSSA CIVILIZAÇÃO EM QUEDA ...................... 110 XVI ALTRUÍSMO PURO E EGOÍSMO DILATADO ..... 123 XVII INVOLUÇÃO .......................................................... 136 XVIII DOUTRINA DOS ESPÍRITOS ................................ 143 XIX TELEFINALISMO EVOLUTIVO ............................ 152 XX SUBIDA DO MENTAL AO MORAL ...................... 160 3 PRÓLOGO De início, queremos agradecer a nímia gentileza da “Folha de Piraju” pelo seu grande trabalho em publicar, em primeira mão, parceladamente, nosso livro anterior “Um Estudo do Nosso Tempo”. Com este grande e meritório esforço, a “Folha” nos proporcionou a oportunidade de darmos aos nossos concidadãos o fruto de prolongadas e profundas lucubrações de largos anos. Para que essa primeira publicação fosse possível, tornava-se indispensável a colaboração da “Folha de Piraju”, com tanta proficiência criada, dirigida e mantida por um grande cidadão pirajuense, Sr. Constantino Leman. Que ele é um grande idealista, não há dúvida nenhuma, pois, manter um pequeno jornal carinhosamente confeccionado, e por tantos anos, é trabalho saliente, digno de admiração. Honra é, que ninguém pode extorquir a Constantino, o haver mantido um jornal em nossa terra até hoje, apesar de tantas incompreensões, tantas lutas, e enormes apertos e sacrifícios financeiros, se bem que, para sermos justo, temos de anotar que muitos colaboraram, financeiramente, quando a “Folha” ressuscitou de suas cinzas - o antigo “O Comércio de Piraju”. Pirajuense por adoção e por título emérito conferido pela nossa respeitável Câmara Municipal, nosso esclarecido e digno colega de pena, Sr. Constantino, em mantendo a nossa “Folha”, prova que ele, ao fechar os olhos para este mundo, quer deixar um legado para Piraju, um Documento imperecível - a sua querida “Folha”. Paralelamente ao trabalho de jornalista, aparece o escritor e historiador que é, nas obras: “Piraju Ontem e Hoje”, “São Sebastião do Tijuco Preto” e “Cem Anos de Piraju”, este, em fase final de impressão. Então, nós, como entendedor do verdadeiro heroísmo de Constantino, quisemos colaborar, se bem que com uma parcela ínfima, na confecção desse grande Documento de Piraju, publicando nele, em primeira mão, para os nossos irmãos de terra, estes nossos livros. A obra que irá sair, querendo Deus, traz o título “De Volta do Caos”. Nela se desenvolvem pontos que já apareceram, em síntese, na obra anterior. Trata-se de obra inédita, tanto como a precedente, sobretudo o capítulo “Origem das Espécies”, visto como tal “origem” não se explicou, cabalmente, nem por Darwin, nem por Lamarck, nem pelo Mutacionismo a partir de Hugo de Vries. Ambos livros pretendem abrir um ciclo novo para o pensamento filosófico. A Primeira Jornada Filosófica teve início na Grécia com a polêmica entre Heráclito e Parmênides; é o ciclo chamado Realismo, que teve o seu termo no fim da Idade Média. Platão é um filósofo realista, não só porque pertence a este ciclo, como também, porque seu “idealismo” é objetivo; a realidade, para ele, se situava fora do sujeito, exterior a este, encontrando-se no lugar celeste ou resplendente – o topos uranos. Tal “idealismo” é polarmente oposto ao de Kant que fazia tudo brotar do sujeito, como puro subjetivismo, ao ponto de afirmar que “nós pomos às coisas as suas essências”. Ora, Platão não admitia isto, e, para ele, como, depois, para seu discípulo Aristóteles, as coisas é que “nos enviam as suas essências”. Tal modo de conceber o mundo teve seu ocaso no fim da Idade Média, com os filósofos Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. Com a verificação experimental dos erros científicos de Aristóteles, foi posta em dúvida também a sua filosofia. Tomando, precisamente, a dúvida por ponto de partida, na Renascença, com Descartes, teve começo a Segunda Jornada - o Idealismo ou filosofia moderna. Kant foi o pináculo deste ciclo, tendo sido continuado por três grandes pensadores absolutistas: Fichte, Schelling e Hegel. Depois a filosofia caiu no ridículo, e, com Augusto Comte, ela passou à nivelante condição de simples síntese das ciências. O positivismo achatou a filosofia, tirando- lhe a terceira dimensão, a altura, que a fazia ocupar-se, primordialmente, com os problemas da 4 origem e fim transcendentais do mundo, do homem e das coisas. Como se não bastasse isto, veio o pior: surgiu a doutrina científica da evolução pondo em xeque-mate todas as filosofias, as religiões todas, todas, sem exceção, de bases criacionistas. Os filósofos contemporâneos, não podendo, por sua vez, resolver o problema do Ser, desgarraram-se pela senda ingrata de criar doutrinas pessimistas, niilistas, conducentes ao Nada, sem nenhuma esperança. Nenhuma filosofia contemporânea forma um sistema completo, pelo que estamos sem filosofia, sem norte filosófico, desde Augusto Comte, como diz Ortega. A nossa é a Terceira Jornada Filosófica, a da Síntese, a da Essência-Substância, a do Ser-Amor, bem própria a nascer no Brasil do qual já se disse que é o “Coração do Mundo e a Pátria doEvangelho”. O Brasil não só assombra o mundo inteiro com o seu desenvolvimento econômico; assombrá-lo-á, também com sua cultura, e ainda será o líder espiritual e moral do mundo, e nisto já se tem mostrado competente com resolver todos os seus problemas políticos pacificamente. É aqui, então, que tinha de nascer o ciclo novo para o pensamento - a Filosofia do Amor. O autor 5 Capítulo I O QUE É A FILOSOFIA ? O homem desde os seus primórdios fez filosofia. Mas este fazer é diferente dos outros quefazeres, porque a idéia de fazer implica ação, movimento. Ora, o fazer da filosofia é diferente porque significa estar parado, meditando. Não se trata de um fazer físico, porém, de um fazer mental. Enquanto o homem agia só do ponto de vista físico, material, ele fazia coisas, não, porém, filosofia. E foi quando ele entrou em si mesmo, esteve em solidão só consigo, quando, parado, se pôs a pensar sobre as coisas, sobre o mundo, aí é que começou a filosofar. Por este motivo, o fazer da filosofia é diferente dos outros quefazeres, porquanto estes fazem coisas, no passo que a filosofia, sendo um estar quedo, em meditação, fez não menos que o próprio homem. O homem só se fez tal, quando principiou a usar a razão, a pensar; pensar sobre o que? Pois pensar sobre as coisas, sobre o mundo; e este pensar sobre as coisas, esta tentativa de descobrir o que elas são, constitui a filosofia. Deste modo, a primeira e mais natural definição da filosofia é a meditação sobre o mundo, para achar um caminho, uma forma de atuar sobre as coisas, um modo de conduzir-se entre elas, uma forma de conduta. Conseqüentemente, não se pode definir a filosofia antes de tê-la feito; e foi fazendo-a, um pouco, que nos foi possível chegar à nossa mais elementar e espontânea definição: a filosofia é a meditação sobre o mundo. Um animal, para agir, segue o seu instinto; porém, o homem é pobríssimo de instintos naturais; como, logo, agiria sem um pensamento antecipado? É-lhe, então, imposto o pensar, o escolher e o decidir-se por um caminho, queira ou não queira. Esta é a razão por que já os antigos diziam do homem que é um animal metafísico. Aliás, todas as demais disciplinas que o homem domina, não nasceram de definições claras, precisas; todas começaram de forma nebulosa, confundidas umas com outras, e só quando o homem teve boa soma de conhecimentos, é que pôde delimitar os objetos das várias ciências, isto é, definir, traçar “fines” ou limites às disciplinas. Daqui se tira que só se sabe o que é filosofia, quando já se é filósofo; mais que qualquer outra matéria, a filosofia precisa de vivência, e isto se define como sendo aquilo que temos em nosso psiquismo carreado do mundo exterior, e que forma a nossa mentalidade; é a nossa convicção pensada, vivida e sentida, e que damos como sendo o nosso conjunto-verdade. É assim que, sem as experiências da vida, a filosofia não seria vivencial, pessoal, e sim, mero estudo das experiências alheias condensados nos sistemas e verdades alheios. Pelos livros se pode chegar a ser um professor de filosofia, isto é, mero repetidor do que os compêndios dizem. O filósofo é um senhor que calcou as vivências alheias nas próprias, e agora possui um sistema-verdade (quer dizer, que tem por verdadeiro), a lhe nortear o fazer e a conduta. Um exemplo: os escritores paisagistas gastam páginas seguidas em seus romances para nos descrever os sítios que fazem fundo às cenas em que se movem seus personagens. Por mais minudentes que tais escritores sejam nas descrições, seja dos lugares, seja dos tipos humanos, não conseguem transferir-nos vivências, e sim, somente, nos sugerem imagens e idéias. Porém, a partir dessas imagens e dessas idéias, vamos construindo nossos quadros mentais próprios, a partir de nossas vivências próprias. Isto se chama convivência. Se, todavia, depois, formos aos locais em que o escritor se inspirou, ainda que ele tenha sido fiel nas descrições, tudo se nos mostra diferente. É que antes, a linguagem literária ia-nos suscitando uma convivência, e agora tudo são vivências, tudo, experiências pessoais, diretas, em que tomam parte não só nossa mente, senão também os nossos sentidos, os nossos sentimentos, as nossas emoções, tudo como coisas vividas, como vivências nossas. É por este modo que o filósofo coordena e sistematiza não só vivências, mas também convivências no seu conjunto-verdade, na sua convicção mais profunda que lhe norteia o 6 fazer e a conduta. Daí que todo homem é filósofo, desde que não se guie por pura fé, por pura sugestão. Esta é a causa por que poderíamos repetir Huberto Rohden quando afirma que: “a inteligência humana é filosófica por natureza” 1, ou então, os antigos que davam para o homem a designação de “animal metafísico”. No entanto, já se vê, não podemos ter todas as vivências que a vida total, o mundo, nos propiciaria, se, a um tempo, como que onipresentes, pudéssemos estar em todos os lugares, vivendo todos os dramas, e ainda trazendo para o presente o passado que já foi. Face a esta impossibilidade, nós nos consolamos com reviver as experiências alheias, imaginativamente nos colocando em seus lugares, procurando sentir o que sentiram, e a repensar o que pensaram. Então, o filósofo não só procura sentir as próprias vivências (que são basilares), e a repensar os próprios pensamentos, senão, também, busca convivenciar e repensar, isto é, incorpora, quanto possível, as vivências alheias, e repensa os pensamentos dos outros. A isto também chamamos meditação sobre o mundo, já, agora, não só sobre o nosso mundo restrito, mas sobre os vários mundos alheios. Se como diz Ortega, cada filósofo está num mirante que se abre para o mundo, cumpre-nos ver o mundo de todos os mirantes, enxergando-o, quanto possível, através de todas as pupilas. Fazendo isto, verificamos que muitas vivências alheias se assemelham às nossas, de modo que nosso conjunto-verdade se reforça e se enriquece mais do que se contássemos apenas com as nossas vivências próprias. Neste sentido é que entendemos o aforismo latino que diz: “primum vivere, deinde philosophari”. Só depois das experiências da vida se torna possível o filosofar. Esta é a razão por que há gênios precoces na música, como Mozart, nas matemáticas, como Gauss, porém, não, na filosofia. Deste modo, não faz filosofia quem não entrar nela, quem não se dispuser a vivê-la com toda a matilha de sentimentos egrégios, de emoções nobres, como diz Ortega do historiador, entusiasmando-se com ela, angustiando-se, criticando-a, censurando-a, aplaudindo-a, completando-a, chorando-a, rindo-se dela, encrespando-se contra ela, abraçando-a, estando nela “cum ira et studio”. Tudo isto faz quem ama..., sobretudo se o amor se dirige à sabedoria. Ora, para fazermos isto que nos coloca na posição de filósofos, precisamos entrar em solidão temporária, retirar-nos, estar só conosco mesmo, fazer aquilo que Goethe põe nestes versos: “Aqui sim, no meu cantinho,/ vendo rir-me o candeeiro,/ gozo o bem de estar sozinho,/ e esquecer o mundo inteiro” 2. Este é o mesmo pensamento de Montaigne quando escreve: “Infeliz a meu juízo, quem não tem em casa um lugar de recolhimento, onde esteja só consigo, onde possa voltar-se para si mesmo, e não para os outros, onde possa esconder-se” 3. Se, de começo, dissemos que todo homem é filósofo, já agora começa delinear-se o cariz do verdadeiro filósofo: é filósofo todo aquele que, para pensar, sente necessidade de retirar-se. O homem-massa não tem esta necessidade pelo que não é filósofo, deixando-se levar ao sabor dos acontecimentos, guiando-se por pura fé, obediente às determinações do social, sem nunca perguntar:por que? O filósofo é o homem que quer ser autêntico, que luta por ser si mesmo, e não o social nele. Na medida em que formamos o nosso conjunto-verdade, ou sistema-verdade, vamos fazendo um balanço, pondo em xeque o nosso sistema, incorporando verdades verdadeiras, e expurgindo dele as verdades falsas tidas por verdadeiras até então, tendo em vista o princípio que Toynbee tomou de Meredith em “O Túmulo do Amor”, que diz: “Somos traídos pelo que há de falso em nós” 4. Então, cada vez mais nossa visão se aclara, visão que determina nossa conduta cada vez mais reta, cada vez mais acertada, sábia. A filosofia, portanto, não é uma coisa feita, mas em se fazendo, e só estará completa e acabada, quando formos, de fato, senhores da verdade. Esta verdade é o sistema único que se chama sabedoria. A filosofia, pois, busca a verdade, a sabedoria, e o homem que estiver inflamado dessa paixão pela verdade, pela sabedoria, é um filósofo. A própria palavra filosofia quer dizer isso: 1 H. Rohden, Filosofia Universal, 1,21 2 Goethe, Fausto, Clássicos Jackson XV, 78 3 Montaigne, Clássicos Jackson, XII, 30 4 Arnold J. Toynbee, Um Estudo de História, III, 784 7 amigo da sabedoria, ou amor à sabedoria. Com isto, chegamos a uma definição mais completa do que seja a filosofia: filosofia é a meditação sobre o mundo, sobre a verdade que subjaz ao mundo; a posse dessa verdade é o anseio do filósofo; essa verdade é a sabedoria, e quem a busca é seu amigo, seu amante, isto é, amigo da sabedoria. Assentado que não podemos ter todas as vivências que a vida global nos ofereceria se fôramos infinitos, onipresentes e dono de todo o tempo, ou seja, capazes de trazer para o presente o passado e o futuro, o passado como memória, e o futuro como previsão do que é possível ser previsto; frente a esta impossibilidade nossa, não nos resta outro recurso senão o de permutar experiências. Esta permuta seria ver o mundo através dos vários filósofos, enxergando-o de seus pontos de vista. Assim, para termos todas as vivências de dado pensador, precisamos ler toda sua obra, colocando-nos no mirante de onde ele enxergou o mundo. Quando, por exemplo, vemos condensada a doutrina de Hegel no enunciado: “quanto mais geral, mais real, e quanto mais individual, menos real”, aí temos sua filosofia na máxima concisão. No entanto, já dizia Horácio: “Esforço-me por breve, torno-me obscuro” 5. Quer dizer que, com este simples enunciado hegeliano, não podemos viver a sua filosofia. Já se passarmos e repassarmos por todos os seus argumentos, depois de certo tempo, aquele enunciado, aquele condensado do grande pensador, se nos mostra cheio de conteúdo vivencial. Dir-se-á que não temos tempo para ler todas as obras de todos os pensadores. É certo que não dispomos desse tempo; mas há as obras de divulgação, os escorços, os compêndios para estudantes de filosofia, em que a condensação é menos restrita, menos compacta que o simples enunciado. E há mais isto: para as mentes filosóficas, um simples enunciado soa como se fora uma premissa da qual se pode deduzir todo um sistema. Um simples enunciado já serve para pôr-nos no mirante que verte para o mundo, em que, realmente, se colocou o filósofo. E assim como Hegel chegou à sua condensação, à sua fórmula, por indução, nós podemos deduzir o seu universo a partir de sua fórmula. O mundo foi enxergado por Hegel, de que ponto de vista? Pois ele viu o universo do mirante criacionista, que não do evolutivo. Do ponto de vista evolutivo, tudo se faz de baixo para cima. Houve um tempo em que este nosso universo estava condensado numa esfera de dez mil anos-luz de diâmetro, que era o Colosso Primitivo de Alpher, Beth e Gamow. Os átomos, aí, em formação, eram nus. Os núcleos atômicos eram já cosmos, porém, rodeados ainda pelo caos. Com a expansão do Colosso Primitivo, os núcleos nus ganharam calotas eletrônicas, pelo que surgiram os átomos; estes, então, eram cosmos, todavia, rodeados pelo caos. As formações se sucederam de baixo para cima, por este processo, e tudo o que se organizou, esteve sempre rodeado pelo caos. O indivíduo humano, o seu ente biológico, foi preciso formar-se primeiro, para que, a partir dele, aparecessem as formações mais altas e complexas da sociedade, do Estado. O Estado, por conseguinte, é uma unidade em formação, e, por isto mesmo, em parte, ainda caótico, não podendo ser mais real que os indivíduos, dado que o Caos mais inteiro é a suprema irrealidade. Daqui se pode construir a fórmula de Hegel pelo avesso: em todo o âmbito que a evolução abarca, quanto mais geral, menos real, e quanto mais individual, mais real. Em nosso mundo evolutivo, o real está na razão inversa do universal, e na razão direta do individual. Há mais ordem e harmonia, e, portanto, realidade, no cosmo atômico e molecular, do que no organismo estatal; isto é pacífico. O cosmo sideral, embora amplo, é simples, como se fora uma ampliação do átomo, da molécula. Não confundir extensão espacial com generalidade. Estaria, então, errado o enunciado hegeliano? Não está. No mundo celeste, no mundo pleniluminoso criado por Deus, o mundo resplendente ou topos uranos de Platão, a fórmula de Hegel se aplica, e quanto mais geral, mais real; a suprema realidade é Deus, da qual todas as demais realidades decorrem; e dele abaixo, quanto menos geral, menos real. As conseqüências que Hegel tirou do seu sistema, relativas ao Estado, o Estado teocrático, em que o chefe manda por eleição divina, aplica-se lá, no topos uranos, onde é inexeqüível a democracia pela 5 Clássicos Jackson, XII, 10 8 qual a massa dos anjos menores elegeria seus chefes, e isto, simplesmente, porque o menos, ainda que em massa, não pode eleger o mais. Um gênio sozinho pode muito mais do que os milhões de homens medíocres que se pudessem reunir num parlamento, num conselho, porque nada de superior será obtido pela potenciação infinita da unidade, do um, ou pela somação de infinitos zeros. Onde não há elite, não há escolha, e um congresso cem por cento constituído de nulos, o eleito será um nulo também. E a massa nem sempre sabe distinguir o homem elegante (donde veio elegente, que sabe eleger ou escolher o que melhor se tem a fazer), o homem excelente, do demagogo vulgar que não passa dum ambicioso do poder e bem falante. No entanto, em relação a este nosso mundo evolutivo, Hegel está errado, e nada mais fez do que recair no passado, porquanto o absolutismo estatal foi o cariz de todos os governos desde os primórdios da civilização, e, já nos tempos modernos, Luiz XIV (“L’etat c’est moi”), o Mikado japonês, Hitler, Mussolini, Lenin, Napoleão Bonaparte, Júlio César, Alexandre Mágno, Anibal, Gengis-Khan encarnaram o “Espírito Absoluto” qualquer que fosse o nome dado à suma Realidade-Deus. Como era de esperar-se, em nosso Estado ainda em formação, a anacrônica e primitivista doutrina de Hegel se mostrou funestíssima, porque a pretensa eleição divina elevou Mussolini e Hitler ao poder. Tal “eleição divina” não fez mais do que permitir a subida de verdadeiros demônios do mal ao supremo mando, como o demonstraram as obras demolidoras de ambos, sobretudo as de Hitler. Basta o que atesta a História para provar que a doutrina de Hegel está errada em relação a este nosso mundo invertido, egoísta e mau. No entanto, se aplicada ao topos uranos de Platão, a filosofia hegeliana se nos mostra corretamente certa. Daí que, conforme o dissemos, a doutrina de Hegel se aplica ao mundo criado diretamente por Deus (criacionismo), e não , a deste nosso mundo evolutivo, imperfeito, que vem da escuridão do Caos, em demanda da luz. O liberalismo democrático, portanto, pode não ser o melhor regime, mas é o que melhor se adapta às condições dragontinas deste nosso mundoem evolução. E, pois, que temos feito até aqui, senão uma crítica a Hegel ? Então, a filosofia pode definir-se, também, como crítica. Cada filósofo, ao erigir o seu sistema, critica os anteriores no que supõe errado, incorporando o que tem por certo e verdadeiro. Daqui vem, conforme o diz Ortega, que a filosofia, por um lado, é “o repositório dos erros”, e, por outro, “o tesouro dos acertos”. Partindo da definição mais natural e espontânea de filosofia, que é a de meditação sobre o mundo, podemos perguntar: o que o homem procura descobrir nas coisas, no mundo, por meio de sua meditação ? Procura descobrir o nexo, a inteligência, a essência das coisas. A própria palavra inteligência vem de duas palavras latinas, inter (entre) e legere (ler); a inteligência é, pois, a faculdade de ler, captar ou perceber o nexo que os sentidos não percebem. A inteligência busca o nexo que co-está com as coisas. É a inteligibilidade das coisas. Há, nas coisas, um princípio de conexão não só que a todas interliga, senão que também integra suas partes. O núcleo atômico é uma unidade polarmente contrária aos elétrons; estas unidades opostas e complementares se conectam na unidade hierarquicamente superior - o átomo. Os átomos de polaridades elétricas contrárias ligam-se entre si, do que resultam as moléculas, e assim por diante, tudo o que existe é uma síntese que agasalha, no seu interior, no seu ser, unidades opostas e complementares. Assim, cada ente, qualquer que seja o nível, se mostra diferenciado em relação à outra unidade do mesmo nível, mas oposta, com a qual se combina, formando uma unidade maior, de espécie superior, do que as componentes. Do homem abaixo, ou do homem acima, o princípio é o mesmo. Como a inteligência busca o princípio, o nexo, que tudo liga e integra, a meditação sobre o mundo se reduz à procura do nexo. A este nexo se deu o nome de Eros que é o princípio de integração, princípio de conexão, de união. A inteligência, portanto, busca Eros, e Eros é o Amor. Por isto é que Platão via o mundo cheio de Eros; via o universo, e tudo o que o constitui, como que amorosamente interligado; o universo, para ele, existia graças a esse 9 congraçamento erótico. Como o objeto da inteligência é Eros, ela é de natureza erosóide, como diz Ortega. E sendo Eros o Amor, a inteligência procura o que há de amor interligando, unificando, integrando. Por esta razão define Ortega a filosofia como a “ciência geral do amor”. Antes, vimos que a filosofia é o amor à sabedoria, e agora nos vem de Ortega a definição da filosofia como a “ciência geral do amor”. O homem ignorante olha o mundo através de suas vivências e convivências; fá-las, depois, desfilar em suas lembranças, isto é, torna observá-las por meio de sua imaginação, ou seja, medita sobre elas em sua quietude física, procurando entendê-las. De olhos fechados, passa e repassa as coisas, as situações, as informações recebidas, os conhecimentos adquiridos em sua mente conscipio, buscando a inteligência das coisas. De repente, de súbito, de relâmpago, clareia-lhe a mente, como que de um estalo, como que de um disparo de intelecção, e ele , heureca ! ... entende o que procura. Este clarão subitâneo, esta velocíssima descoberta do nexo, da essência, vem prenhe, pejada, de emoção ..., da mesma de que ficou possuído Arquimedes quando, nu, sem dar-se de si, saiu do seu banho a correr pelas ruas de Atenas gritando: heureca ! heureca ! ... A descoberta do nexo vem como uma revelação, não de fora, mas de dentro. A este clarão subitâneo, a esta revelação interior, os primitivos filósofos deram o nome de Alétheia que significava na língua vulgar, descobrimento, patentização, desnudamento, revelação, apocalipse. Ortega: “Esta situação, esta experiência vivente do novo pensar grego, que seria o filosofar, foi maravilhosamente denominada por Parmênides e alguns grupos alertas de seu tempo, com o nome de «alétheia»” 6. E todo homem, sem nenhuma exceção, já teve esta experiência vital, quando procurava entender uma coisa ou situação, e a compreendeu de um estalo, como o de Vieira, num relâmpago, pleno de júbilo, de emoção. Mais tarde é que o vocábulo espontâneo, poético e natural alétheia, se banalizou no modesto e prosaico termo filosofia inventado por Pitágoras. Deste modo, da meditação sobre o mundo, vem a alétheia, a revelação racional, a descoberta do nexo, a inteligência do que a coisa é, a essência dela, a filosofia. Mais uma vez esta descarga de intelecção se assemelha à descarga nervosa, erótica, amorosa; aquela própria da inteligência, e, por isto, de natureza erosóide, como refere Ortega. Eis, pois, como a filosofia se vai definindo de modo natural, espontâneo, e isto, usando as nossas vivências, isto é, aquelas que nos são comuns, ou comuns a todos. Não existisse este lastro comum de vivências, os homens não se entenderiam; como todos estamos na vida, em grande parte nossas vivências se assemelham. Então, as várias filosofias são modos diferentes de interpretar o mundo; a causa disto é que cada filósofo, postado no seu mirante, e a partir de suas próprias vivências, nos diz o que o mundo lhe parece, e como há de ser a verdade segundo o seu entender. Juntando-se todas as verdades particulares, todos os testemunhos da verdade, porque cada filósofo tem sua parcela de razão, podemos construir a verdade inteira, global. “Dir-se-ia - escreve Ortega - que a razão se fez estilhaços antes de começar o homem a pensar e, por isso, tem este que ir recolhendo os fragmentos um a um e juntá-los. Simmel fala de uma “sociedade do prato quebrado”, que existiu em fins do século passado na Alemanha” 7. Por conseguinte, a síntese filosófica que desenvolvemos, já tem nessa “sociedade do prato quebrado”, sua precursora. Mais: “Se os filósofos anteriores já não houvessem feito essas «experiências de pensamento» teria que fazê-las o sucessor e, portanto, permanecer nelas e ser ele o antecessor” 8. Ainda: “Como os problemas da filosofia são os fundamentais, não há nenhum em que não estejam já todos. Os problemas fundamentais estão inexoravelmente ligados uns aos outros, e puxando qualquer um saem os outros. O filósofo os vê sempre, ainda que seja sem consciência clara e à parte de cada um. Se não se quer chamar a isto ver, diga-se que, cego, os apalpa. Daí que - contra o que o profano acredita - as filosofias se entendem muito bem entre si: são uma 6 Ortega Y Gasset, Origem e Epílogo da Filosofia, 209 7 Ortega Y Gasset, Origem e Epílogo da Filosofia, 168 8 Ortega Y Gasset, Origem e Epílogo da Filosofia, l68 10 conversação de quase três milênios, um diálogo e uma disputa contínuos numa língua comum que é a própria atitude filosófica e a presença dos mesmos bicórneos problemas” 9. “Deste modo, a série dos filósofos aparece como um só filósofo que houvesse vivido dois mil e quinhentos anos e durante ele houvesse «prosseguido pensando»” 10. A filosofia, deste modo, se nos mostra como uma coisa em se fazendo; mas um dia estará completa, conferindo ao homem a plena verdade humanamente possível. Existirão luzes verdes para todos os lados, indicando campos ignotos do saber, somente acessíveis a outros níveis de consciência; porém, a mente humana, enquanto humana, estará saciada, tendo realizado em ato toda a sua potencialidade. O objetivo perseguido pelo homem é a felicidade, e o saber é, apenas um dos caminhos para ela. Todavia, do mesmo modo como um neurônio do nosso córtex nunca poderá vir a saber o que é o universo-homem em que ele vive, habita, e do qual depende, nós, humanos, ainda que sapientíssimos, jamais, também conseguiremos saber o que é o Ser, o que é Deus. No entanto, podemos falar a respeito dele, podemosdar dele o nosso testemunho, podemos promovê-lo a Estatuto por excelência, a Fundamento primeiro, a Premissa Maior de todas as nossas conclusões. Somente o homem que chegou a tanto, poderá chamar-se sophos, sábio. Quanto a nós, por enquanto, contentamo-nos com apenas ser amantes ou amigos da sabedoria, isto é, filósofos. Capítulo II QUE É A SABEDORIA ? Como a descoberta da verdade se nos assemelha a uma revelação, daí, alétheia, primitivo nome da filosofia; como tal descoberta vem pejada de sentimento, de emoção ... que pode chegar ao êxtase, seu descobridor não se sente propenso a cuidar que sua visão é parcial, que ele observou o mundo apenas de um mirante, que sua visão é uma perspectiva. Sua tendência natural é considerar-se como detentor da verdade inteira, e, portanto, que seu sistema é completo; sente-se, não como o que busca a sabedoria, como seu amante, apenas, mas, como possuidor da inteira verdade. É assim que, antes dos gregos, a verdade que se tinha relampagueado na mente dos pensadores, era dada como pura revelação indiscutível. Buda teve o seu lampejo, quando meditava sob a árvore Bó, e achou que toda a verdade consistia nisto: o mal do mundo decorre dos desejos os quais, em sendo anulados até suas raízes mais profundas que são o desejo-de-ser, levam o homem a aniquilar-se como individuação, dissolvendo-se sua mente individual na Consciência Cósmica ou Nirvana. Todo o mal procede da individuação que se confirma e se reforça com o desejo-de-ser, e todo bem, da desindividuação ou da dissolução do ser, ou ente, no Todo Universal. 9 Ortega Y Gasset, Origem e Epílogo da Filosofia, 170 10 Ortega Y Gasset, Origem e Epílogo da Filosofia, 168 11 A visão de Buda levou-o à anulação e ao não-ser, e isto, pelo seu método de não desejar nada, pelo da negação da vida. Em contraposição, a afirmação da vida conduz o indivíduo a reforçar-se, a impor-se, a individuar-se cada vez mais. Esta afirmação de ser dá como resultado a ampliação dos desejos que, uma vez repetidamente satisfeitos, torna-se hábitos que tecem a teia do destino. Como a alma é uma mina inesgotável de desejos, o desejar não cessa, e em qualquer ponto de parada sobrevém o tédio que é outra forma de sofrimento. Assim, o homem está condenado a desejar coisas, sofrendo por não poder realizá-las todas; e se resolve pôr um termo a tanto desejar, aí nasce o tédio que o esporeia e o faz ir por diante. Iniciando-se, por conseguinte, uma árdua guerra contra os desejos, vencendo-os um a um, pouco a pouco vai cessando a afirmação-de-ser, e quando o indivíduo, através de várias reencarnações, chegar à anulação de todos os desejos, até o de viver, até o de ser, terá chegado à sua extinção total com sua disseminação no Todo, inclusive sua mente que se dissolve no arqui-oceano da Mente universal ou cósmica de onde saiu, quando se individuou, e, após isto, prosseguiu no desejo impuro de continuar individuado. E se esta porção do Todo universal não teve este desejo impuro de individuar-se, e não podia tê-lo, porque inconsciente, segue-se, então, que tal porção foi, à revelia sua, individuada por Algo estranho a si. Daí a ponta de revolta de Buda contra esse Algo a cuja vontade se opõe, querendo exatamente o oposto do que o Algo quis e fez... Quando o indivíduo anelar pela morte, não só a física, mas a da própria alma, então sobrevém a anulação do ser, e sua mente se dissolve na Mente universal de onde foi compelida a sair, de onde foi individuada, como uma onda encapelada que se individua do corpo aquário do oceano, para onde retorna e desaparece. Retornando, assim, ao Todo primitivo, cessa a individuação, e, com ela, os desejos, e, com estes, todas as dores, aflições, fadigas e males. Não adianta Huberto Rohden nos dizer que os budistas sempre consideraram Buda como uma “alma ébria de Deus”. O que os orientais pensam e sentem em seus desejos de autoafirmação, isso não conta. O que conta é o que o próprio Buda disse, e é isto: “Os perseverantes apagam-se como a lâmpada. Onde nada é, onde nada se arrebata, onde nada é palpável está a Ilha do Nada-Além; chamo-a de Nirvana: a suprema abolição do envelhecimento e da morte”. Esta premissa de Buda acha-se bem explicitada na obra do seu maior discípulo ocidental Schopenhauer, no seu livro: “O Mundo como Vontade e Representação”. Ora bem: o que quis a Mente universal? A individuação. E que pode mais: é a vontade individual, ou a Cósmica? É a cósmica. E como pode a mente individual, então, vencer a Cósmica, anulando em si, o que quis e impôs a Mente universal? Aqui está a incoerência de Buda e a de Schopenhauer. De outro modo: a Mente universal ou Cósmica quis e operou a individuação dos entes todos. Querer o contrário, a desindividuação, é estar contra a Mente universal, é ser anti-cósmico, anti-Deus. Lúcifer e seus consócios chegaram ao não-ser pela inversão do amor no egoísmo. A este mesmo não-ser pretendem Buda e Schopenhauer chegar, pelo caminho de não desejar nada, ou pelo de desejar a anulação como indivíduos. Qual, logo, a diferença entre estes dois modos de ser contra Deus? Pois Satanás, pelo caminho de querer tudo, de querer ser o centro para onde tudo haveria de pender. Buda e Schopenhauer não querem nada, nem mesmo ser, que isto é estar abaixo de último. Fale, então, Ortega: “A rigor, a rebelião do arcanjo Lusbel não o houvera sido menor se em vez de empenhar-se em ser Deus - o que não era o seu destino - se houvesse obstinado em ser o mais ínfimo dos anjos, que tampouco o era. (Se Lusbel tivesse sido russo, como Tolstoi, teria talvez preferido este último estilo de rebeldia, que não é mais nem menos contra Deus que o outro tão famoso)” 11. Cada ente, logo, para achar a sua felicidade, que é a única coisa que todos buscam, terá de permanecer no seu posto, fazendo aquilo que o faz ser o que é, numa especialização proveitosa para todos, que o leve a ser único em sua espécie. São Tomás tem razão: cada anjo é uma espécie; e Huberto Rohden: “O fim do homem é revelar em sua existência individual - 11 Ortega Y Gasset, a Rebelião das Massas, 178 12 aqui ou alhures - aquele aspecto peculiar e único da divindade que só ele poderá revelar plenamente. Pois, como todos os seres da natureza, e sobretudo todos os seres humanos, são originais, únicos e inéditos na sua existência, seres que nunca existiram nem jamais existirão iguais; indivíduos que não são cópias de outros anteriores, e dos quais não serão feitas cópias posteriores - segue-se que cada indivíduo e cada personalidade tem a missão peculiar de concretizar um determinado aspecto da divindade” 12. Por conseguinte, é na individuação de inconfundível unicidade original que está o fim do homem, e não na sua despersonificação tendente ao homogêneo, ao amorfismo. O fim do homem é ser único em si mesmo, e ser o que o anjo é, e “cada anjo é uma espécie”. Mas Buda não perdeu tempo em explicitar sua premissa, ou chegar a ela por indução; não se ocupou em descrever suas experiências, em desenvolver seus raciocínios, em demonstrar sua verdade. Apenas apresentou-a como sendo a verdade mesma, a sabedoria inteira sem discussão. A doutrina de Buda não aparece como uma busca da verdade, mas como a verdade achada, inteira, e para revelá-la aos homens, não usou argumentos, raciocínios, razões, exposições, e sim, apresentou-a como coisa definitiva, indiscutível, na qual se devia crer de fé. Assim também ocorreu com Zoroastro, o homem a quem tocou inventar o diabo, pois, para ele, o único modo de resolver o problema dos males, misérias e dores do mundo, seria criar um anti-Deus ou Satanás. Mas não diz Zoroastro quando, porque, de que, por quem e como tenha surgido esse formidoloso Demônio que enche o mundo de mal e dor. Apenas apresentou sua verdade que tinha de ser aceita de fé, sem discutir. No modo de apresentar a verdade vai a diferença entre o dogmatismo e a filosofia, entre o fautor de religião e o filósofo; este, por isto, mais modesto, se contenta com apenas ser amigo da sabedoria, enquanto que o outro não tem por onde senão mostrar-se como sábio. Moisés condensou em si toda a cultura de seu tempo, como príncipe que era, valido da casa de faraó. No entanto, quando previu que o Egito estava condenado, sem remissão, por causa de a materialidade estar suplantando o espírito, e decidiu fazer-se guia do seu povo escravizado, não disse nada do que aprendera com os egípcios, não declarou que sua concepção do Deus único era um aperfeiçoamento do etéreo deus-luz de Akhenaton (Amenotep IV), um faraó que vivera cem anos antes dele, segundo Charles Potter. Não anunciou que seu Decálogo, o conteúdo ético de sua religião, fora calcado sobre o Código de Hamurabi. Nem que o maná das fraldas do deserto que o povo percorrera, era natural aí, e até hoje é colhido de uns pequenos arbustos (tamargueira). Nem que as codornizes caídas de cansaço no arraial, não foram enviadas por Deus, mas que até hoje lá pousam de seus vôos migratórios, depois de vencerem a distância do braço de mar que cada vez mais se alarga com o afastamento dos continentes. Nada disto disse Moisés, e antes, levou tudo à conta de ordens e vontade de seu Deus. Por que? Para ter a indispensável autoridade, falou em nome de Deus. Suas experiências com explosivos no alto do Sinai, eram trovoadas, e quando, um dia, queimou a cara, e teve de ocultá-la com um saco, veio com a explicação de que Deus lhe falara face a face, e que desta vista de Deus, seu semblante de homem ficou resplandecente a tal ponto, que ninguém conseguiria fitá-lo. Em vez de tirar o capuz que lhe cobria a cabeça, e fazer esta prova magnífica do poder de Deus, apenas deu aquela descabelada versão do seu acidente, e ficou só nisto. Foi com tais resinas explosivas que Josué pôs abaixo as muralhas de Jericó, e, para despistar, enquanto os dinamitadores, camuflados, minavam as bases dos muros, o povo, ao longe, ao largo, faziam voltas procissionais, tocando tambores e trombetas. A arqueologia descobriu: as muralhas de Jericó caíram para dentro... Também com explosivos Josué fez desbarrancar as margens do Jordão, bem acima de onde se acampava o povo de Israel, e tendo secado temporariamente o rio dali abaixo, pôde o povo atravessá-lo a pé enxuto. Mais verossímil é esta do explosivo, que a hipótese de terremotos para o desmoronamento das margens do Jordão, e para a queda das muralhas de Jericó, aventada por 12 Huberto Rodhen, Filosofia Universal, 2, 75 13 quem escreveu esta parte de “O Mundo Bíblico” de Seleções... Segundo Sílvio Gesell, há duas fórmulas de explosivos na Bíblia, bastando variar as proporções: uma é a do “azeite da santa unção” 13, e outra, a do “incenso santo” 14. Daí a recomendação, em ambos casos, de que seria extirpado do seio do povo aquele que fizesse uso inadequado de tais incenso e óleo santos, haja vista os dois filhos de Arão que morreram duma explosão, quando erraram na fórmula do incenso; mas a explicação é que apresentaram ao Senhor um “fogo estranho” (!) 15. Agora, então, se sabe como os egípcios rebentavam pedras... Também, diz Fritz Kahn que “os egípcios sabiam até construir aparelhos (elétricos) de alta tensão, pois o cientista moderno que ler a Bíblia tem quase a certeza de que a “arca santa”, da qual os sacerdotes faziam saltar “fogo”e “relâmpagos” que matavam qualquer um estranho que se aproximasse indevidamente, fora uma instalação de alta tensão” 16. De tais raios morreu Uzá 17 quando, para amparar a arca que se inclinara no transporte, pôs-lhe a mão. Os condensadores se descarregaram para a terra pelo corpo de Uzá, e ele morreu. Ou do incenso, ou destes raios elétricos morreram os sacerdotes filhos de Arão 18, já referidos. Saradas as queimaduras, descobriu Moisés o rosto, porque aí, então, já se tinha extinguido o resplendor divino. Ao fazer Miguel Ângelo o seu “Moisés”, talhando-o na pedra, não teve outro meio de fazer esses raios divinos senão como duas pontas a saírem da cabeça de Moisés; com isto Moisés saiu de chavelhos confundindo-se com Pã, com Sileno e com os sátiros e faunos gregos..., para a confusão de algum arqueólogo, de milhares de anos futuros, que o venha desenterrar de entre as demais ruínas desta nossa civilização... Foi bom Moisés ter procedido desse modo? Sim, foi. De outra maneira não teria autoridade sobre aquele povo que, além de fetichista e escravo, estava muito mal acostumado, por causa da degradação e dos desregramentos dos egípcios. Haja vista que quiseram retornar à idolatria egípcia e clamavam pelas paneladas que deixaram para trás no vale do Nilo. Descendo Moisés do Sinai, em cujo cimo Deus lhe dera as Tábuas da Lei, depara-se com seu povo na adoração do estúpido bezerro feito por Arão com as arrecadas de ouro que o povo trouxera dos egípcios. Enfurecido, Moisés quebra as Tábuas Sagradas, e com isto obtém duplo resultado: primeiro mostra todo o seu horror à idolatria, e manda passar pelas armas os idólatras desnecessários e sediciosos, como escarmento para todos; só os desnecessários, sim, porque poupou o indispensável Arão por cuja boca falava, visto que era tartamudo. Arão foi o fautor do bezerro, e interrogado por Moisés sobre por que fez aquilo, respondeu: “lancei (o ouro) no fogo, e saiu esse bezerro” 19. Esta desculpa mais afeiou o ato de Arão, porque, se nega que fez o bezerro, então este se fez a si mesmo, pelo que se comprovava ser o verdadeiro deus. Por tão feio pecado que custou a vida de tantos, Arão não é executado, porque havia outros que podiam servir de bodes expiatórios, somente contra os quais recaiu a fúria sanguinária de Moisés. O outro resultado foi destruir aquelas Tábuas em que Deus escrevera, segundo disse: por que? Ora, porque rudemente imperfeitas, impróprias a constituírem obra de Deus; com isto, Moisés teve oportunidade de escrever, ele mesmo, outras, agora com as imperfeições permissíveis, por serem obra de homem. Que petulância foi aquela de Moisés, de fazer em pedaços uma obra saída da mão de Deus? E das Tábuas originais, por que não se guardaram, como relíquias preciosíssimas, ao menos os cacos? Acaso não se podia emendá-los, reconstituindo toda, inteira, as divinas Tábuas?, como fazem, hoje, os arqueólogos e paleontologistas? estes com fósseis, e aqueles com cerâmicas, documentos, manuscritos e utensílios? Mas não. Das antigas Tábuas não se falou mais, e Moisés escreveu outras, agora 13 Ex. 30, 23-24 14 Ex. 30, 34-36 15 Num. 26, 61 16 Fritz Kahn, O Átomo, 22 17 II Sam. 6, 6-7 18 Lev 10, 2 19 Ex 32, 24 14 apresentáveis a homens que ficaram só a imaginar como seriam aquelas em que Deus, tão portentosamente, escreveu com sua própria mão. Poder-se-ia perguntar: onde fica Deus em toda esta fantástica história? Pois fica na mente e no coração de Moisés, porquanto foi de aí que Deus tudo comandou, propiciando meios de civilizar a besta humana, obra que ainda não está acabada. Nós nos reverenciamos frente à grande figura de Moisés, o gênio usado por Deus para guiar o rebanho de ignorantes, egoístas e maus, em demanda da luz. É aí, na mente e no coração do seu ungido, que Deus atuava, e não com prodígios exteriores, com deslumbramentos e portentosos sinais de força, que é o que o involudo sempre procura. Akhenaton fracassara, porque era um rei. Moisés anotou isso. “As grandes inovações nunca vêm de cima; é de baixo que, invariavelmente,procedem”(Jung). Além disso, Akhenaton não contou com um Paulo, como teve Cristo (Charles Potter). E sendo Moisés também um príncipe da casa de faraó, desceu do seu pedestal, fez-se pastor do rebanho de ovelhas do seu sogro Jetro, antes de ir à sua gloriosa missão de conduzir escravos com o título de “Libertador”, e, como tal, e em nome do seu tonitruante Deus, triunfar sobre o poder supremo do Egito, traçando depois, com mão firme, os primeiros rumos da nossa civilização ocidental. Pudera ter ficado com o trono do reino do Nilo, se aplicasse nisso sua fabulosa inteligência. Mas não. É de baixo que havia de surgir, heróico, sobranceiro, extraordinário aquele que encheria com sua figura mais de três mil anos de história. O povo ignorante, dragontino ainda, queria sinais de força? Pois deu-os Moisés, a mando do seu Deus interior que lhe guiava a mente, o coração e os passos. O faraó do tempo dos prodígios de Moisés, Ramsés II (Charles Potter), não acreditava nos prodígios, porque harto os conhecia das mesmas escolas em que estudou Moisés; mas criam-nos as massas, e isto manietava o rei todopoderoso antes, tornado agora débil. Moisés aprendera a transformar cajados em serpentes, e o feito de a vara de Moisés comer e engolir as dos sábios do Nilo, não diminuiu em nada a glória destes de terem sido nisto os mestres de Moisés. Nessa batalha de magos, os egípcios e Moisés se emparelharam, sem vitória de nenhuma parte, porque o prodígio se cifrava em fazer cajados virarem cobras, e não, numa serpente maior comer e engolir as outras. O Nilo transformado em sangue, já suspeitavam, os sacerdotes e o rei, tratar- se de fenômeno natural; algo invisível e ignorado, em certa época, e sob dadas condições, tingia de vermelhos as águas. Assim as rãs; assim os piolhos; assim os mosquitos: a história (e a conheciam) relatava outras iguais ocorrências no passado. Mas o povo ignorava tudo isso, e sua pressão sobre os sacerdotes e sobre o rei, fazia-os frágeis frente à portentosa figura de Moisés que não se cansava de dizer que agia a mando e em nome de seu Deus. Deus tinha então, e tem ainda, um trabalho a executar no mundo, e Moisés foi o seu instrumento por cujas mãos agia, e, porque gago, Moisés falava pela boca de Arão. E falou Arão, e Moisés escreveu a fala para a posteridade. Neste trabalho de impor o Bem ao Mal, a Luz às Trevas, a Sabedoria à Ignorância, todos os meios e estratagemas servem, como soe acontecer na guerra. Se tenta o Diabo imitar a luz do empíreo, por que não pode Deus fingir as trevas suas? Os homens dragontinos pediam um sinal de força (eis as trevas!) para crer, porque só crêem na força, e o tiveram, que, para tanto, Deus tocara Moisés com sua arqui-luminosa e argêntea vara. Quem quiser saber a quanto andava a ciência egípcia, veja o que fez Moisés. O que este ostentou foi o produto melhorado com seu engenho e arte, do quanto se ensinava aos iniciados, e só a estes. Também os sacerdotes, mestres e magos do Nilo, em relação a Moisés, poderiam ter antecipado Nero... no que disse este de Tigélinos: “– Agasalhei uma serpente no meu seio!”, que tal o fora Moisés, para o bem de Deus, e para a desgraça dos egípcios que se mostraram surdos e insensíveis à voz meiga, mansa e boa de Akhenaton, o rei poeta que morrera aos trinta anos, ralado de desgostos. Foi esta a primeira grande luz que brilhou em meio à escuridão imensa, e foi por esta sufocada, até que surgiu Moisés, a grande luz segunda que as trevas não puderam apagar. 15 Os tempos correram, e Moisés se firmou cada vez mais, brotando dele todos os galhos e vergônteas que hoje frondejam, floreiam e frutificam nas instituições, na ética e nas leis. À besta então se pôs os freios: os éticos e os legais, tornando-a no “civilizado” dos dias que hoje correm. Onde, pois, ficou Deus em toda esta história? Pois ficou na mente e no coração de Moisés, como idéia e como sentimento, para grandeza e glória do homem, para a glória e grandeza da civilização. É aí que age Deus, e não, como o desejaria o involuído que pede efeitos exteriores de força..., a força que esmaga sempre, mas nunca, jamais, convence ninguém! Saibam-no, os que ainda hoje crêem no poder: uma idéia - Moisés o demonstrou - na cabeça e uma pena na mão de um gênio, como o que escreveu o Pentatêuco, podem ser muito mais fulminantes que quantas bombas de anti-matéria se possam produzir..., bombas que só ainda em teoria são possíveis. Eis Moisés, o portentoso homem de Deus, que só pôde ser superado pelo Maior de quantos teve o mundo, que disse no Madeiro, nas vascas da agonia: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem! Estes poucos exemplos bastam para demonstrar que, antes dos Helenos, os senhores da verdade parcial não se davam como meros amigos da sabedoria, mas se punham na frente de todos como sábios, porque, até então, o único meio de apresentar a verdade era o método da fé, o da sugestão, visto que o povo, grosso modo, não era racional. A humanidade também teve sua infância, e as crianças, e os hipnotizados, obedecem sempre, sem nunca pedir razões. Grosso modo, dizíamos, porque sempre houve a raça dos discutidores, dos sofistas e dos cépticos, estes, no sentido grego da palavra, diferente do sentido que se dá hoje a esse termo. Estes tais, ou entendiam e auxiliavam a obra civilizatória, ou eram os sediciosos, como Datã, Coré e Abirão, anarquistas todos, que argumentavam: se toda a congregação é santa, por que se exalta Moisés sobre os demais? Se todos somos santos, por que haver chefes? A estes, com suas tendas, com seus animais, com seus filhos e com suas mulheres, Moisés enterrou no deserto, e depois escreveu com mão firme, decidida: a terra abriu-se debaixo de seus pés, os tragou, e se fechou sobre eles... O céptico, no sentido grego, nada se parece (diz Ortega) com o negativista de nossos dias que não crê em nada por mero comodismo, por preguiça de pensar; esse céptico moderno, sonolento, amodorrado, que não se prende nunca em pensamentos grandes, difere polarmente daquele outro vivo, ativo, percuciente que se dava ao trabalho de, por meio duma cadeia de raciocínios rigorosos, apertados, erradicar a fé de seus coevos. Assim, os cépticos e os sofistas levaram a descrença a todos os gregos, pondo em colapso a sua religião que servira muito bem até ali. No entanto, como o demonstra Ortega, “estamos sempre numa crença” que nunca discutimos, porque a somos. Religião se pode discutir, porque é objeto de razão, de estudos, mantendo-se, por isto, exterior à nossa vida; a crença que somos, que faz a nossa vida, que, imperativamente, nos guia a conduta e os passos, essa não podemos discutir, porque a somos, dado que os fundamentos não se discutem, nem nas ciências, nem nas matemáticas. Quando perdemos nossa crença, o nosso substrato profundo sobre que nos apoiamos para viver e agir, ficamos no ar, suspensos. Um homem pode não ter religião, mas terá sempre uma crença, que, do contrário, não pode conduzir-se, agir, viver. Alguma coisa é sua convicção profunda, e, se a perde, vê-se obrigado a entrar em meditação, a criar pensamentos novos, a organizar nova crença. Pois bem: os gregos tinham perdido a crença nos deuses, e aqui, começa, para eles, um modo diferente de obter nova crença, sem ser pelos caminhos da teofania, da revelação, como até então fora. O homem grego atingira a idade da razão, a maturidade; não se guiaria mais pelo princípio da autoridade, pela sugestão, pela hipnose, pela fé, e sim, por racionalidade, por persuasão. A busca de Deus, do Ser, tinha de fazer-se por via racional, e não mais com base no princípio da autoridade; em vez de continuarem a perguntar: quem disse?, passaram a perguntar: por que? Todavia, o Deus que aparece no fim duma cadeia de raciocínios, não é o mesmo Deus das religiões.A filosofia, até agora, levou o homem à concepção de um Deus-Essência-Pura, 16 Deus-Forma-Vazia-de-Conteúdo, Deus-Pura-Idealidade, no passo que o Deus das religiões é o Deus-Substância, Deus-Vivo, atuante, que tem Querer, que tem Vontade, que se põe em contato afetivo, amistoso, com o homem para o abençoar. Sem apelar para a fé, seguindo sempre a linha racional, iremos ver como as duas meias- verdades se reúnem, se irmanam, se integram na síntese, e a idéia de Deus se resplandece como Essência e Substância a um só tempo. 17 Capítulo III AS CLASSES DE SABER Filósofo é todo aquele que se acha possuído do amor pela sabedoria; porém, que classe de saber ocupa a meditação do pensador? Há muitas classes de saber, como, por exemplo, o saber instintivo, próprio dos animais, e o saber prático, manual, habitual, reflexivo (que faz o artesão, o oficial) próprio dos homens ocupados em rotinas. Dizemos que a Natureza é sábia, porque a vemos resolver os seus problemas inteligentemente, sem, contudo, haver inteligência nos seus agentes. Há certas lagartas que, quando famintas, possuem heliotropismo positivo. Atraídas pela luz, tais lagartas começam a subir pelo tronco, pelos galhos das árvores de cujas folhas se nutrem, indo parar nos brotos mais tenros. Saciada a fome, cessa o heliotropismo, e as lagartas podem voltar, nos galhos, para esconderijos seguros. Acima dos tropismos situam- se os instintos animais, e infindos problemas se resolvem por meio deles. Esta sabedoria irracional levou os homens a criarem aforismos paradoxais quais sejam: a natureza é sábia, e a natureza é cega... É sábia, mas cega (!)... No entanto, acima deste saber irracional situam-se outras classes de saber, como é o caso do saber que procuramos, e do saber que não procuramos; este saber que não buscamos é-nos imposto pelo nosso contorno social desde o berço. Ao nascermos, achamo-nos alojados em um mundo social, e desde pequeno os mais velhos vão-nos ensinando coisas, noções, ao nos transmitir o domínio da língua. Vivemos, destarte, a crédito da sociedade. Nossos pensamentos não são nossos; são o social em nós. A sociedade nos invade, nos domina, expulsa-nos de nós mesmos, para que sejamos o que ela é. Nesta fase não somos autênticos, não somos nós mesmos, e, parodiando o Apóstolo das gentes que disse: “Não sou eu o que vivo, mas Cristo é que vive em mim” 20, também poderíamos afirmar: não somos nós que vivemos, mas a sociedade é que vive em nós. E todos os nossos conhecimentos primeiros nos vêm por esta via do social, sendo esta teoria do conhecimento muito diferente daquela de Kant, segundo a qual tudo começava nas intuições puras de espaço, de tempo e de causalidade. E quando vamos para a escola, a sociedade nos acompanha nas pessoas dos mestres, prosseguindo no seu afã de expulsar-nos de nós mesmos, para que sejamos apenas mais um elemento da multidão. Nossos conhecimentos são livrescos, ofertando-nos uma forma de vivência muito diversa da que nos compete ter para sermos autênticos, para sermos nós mesmos. O conjunto-verdade da multidão passa a ser o nosso conjunto-verdade com todo o seu acervo de verdades falsas, tidas por verdadeiras. Outra classe de saber não procurado é o habitual que nos impõe nossa vida espontânea. Ao nos levantarmos, de manhã, lavamos o rosto, fazemos a barba, tomamos o nosso café, vestimo-nos, e, às vezes, até sem nos apercebermos de tudo isto, se estivermos engolfados em preocupações grandes. Tal, a força do hábito! No entanto, os hábitos foram aprendidos, antes de se fixarem em automatismos semelhantes ao saber instintivo. Eis, portanto, outra classe de saber: o saber irracional dos hábitos. Vestidas as roupas, saímos para a rua, vemos casas, gente, árvores, animais, ouvimos o barulho do mundo, e assim, chegamos ao nosso local de trabalho. Findo o dia, à tarde, voltamos para a casa, pomo-nos à vontade para ler o jornal, ver televisão, ouvir música, meditar sobre o mundo. Até aqui, vivemos nossa vida espontânea, sem problemas. Todavia, quando, em nossa meditação sobre o mundo, nos perguntamos: o que é a árvore?, nesse ponto, a árvore passou a ser-nos um problema, passou-nos a ser objeto de cogitação, de estudo. Enquanto não nos fizermos nenhuma pergunta, todo o nosso saber se resumia num saber não procurado, num 20 Gal 2, 20 18 saber vivencial, espontâneo, natural, patente. No entanto, quando nos perguntamos o que é a árvore?, nesse momento, saímos da nossa vida espontânea, maquinal, para penetrarmos em nossa vida racional. Este saber que procuramos, esse o discutimos, num pleno exercício não só da razão, mas da vontade; queremos saber, e, por isso, procuramos tal classe de conhecimento. A árvore tornou-se-nos um problema; queremos saber o que ela é. Saímos da nossa vida espontânea, dissemos, para penetrar em nossa vida racional; contudo, não é isto verdade, porque nossa vida espontânea, levamo-la conosco para o gabinete de estudos. Não nos apartamos jamais, nunca, dela, e quando nos propomos a questão de o que é a árvore, imaginamos a árvore num ponto da paisagem, e toda a paisagem ao redor dela. Deste modo, o mundo espontâneo, embora não seja um saber procurado, é o fundo ou cenário do outro saber, o que procuramos, porque, um homem que jamais tivesse visto árvore, bosques, florestas, estaria impedido de fazer-se a si mesmo a proposição: o que é uma árvore? Nunca, ninguém se ocupou de perguntar sobre as coisas estranhas que existem em Vênus; não obstante, se algum dia chegar a vê-las, sem dúvida perguntará o que são elas. O caso é como o da laranja para os mãoseanos; se em Mãose (planeta fictício) não houver laranjeiras com suas laranjas, um mãosito ficaria impossibilitado de saber o que são tais coisas... por lhe faltar o complexo das vivências sobre que se apóiam os conceitos, as essências. Já se vê, conseqüentemente, que aquele saber não procurado que o mundo a todo instante nos oferta, é a base natural indispensável do saber que buscamos. Sem as nossas vivências, sem nossa vida espontânea, sem isso que está aí fora, sem esse mundo físico ou da física, não se poderia construir a metafísica, literalmente, depois da física; sem esse antes, que é a física, não haveria o depois, que é a metafísica. Se um serafim viesse nos dizer como é seu mundo celeste, não poderíamos entender, porque nos faltam as vivências que subjazem, que lastreiam, que fazem fundo a esse saber. Ora bem: como estes dois aspectos: o substancial ou físico e o essencial ou metafísico, são inerentes a todas as coisas; como o aspecto substância, física, vivência, experiência sensorial, vida espontânea, e o seu correlato aspecto essência, metafísica, conceito, forma, razão, vida racional não se separam na unidade do ser-das-coisas, segue-se que a filosofia não pode considerá-los divorciados como sempre se fez. Conquanto nossa vida espontânea nos propicie um saber não procurado, ele é o correlativo imediato e a base do outro saber, aquele que procuramos. E o filósofo terá de considerá-los inseparáveis, do mesmo modo como, de uma dada coisa, é impossível separar-se a essência da substância, a forma do conteúdo, a idealidade abstrata da coisidade concreta. Se até aqui os filósofos cuidaram que bastava conhecer a essência para dominar o ser duma coisa, agora demonstramos que o conhecimento da essência pura, é só meio conhecimento. E a sabedoria, de que os filósofos se dizem amantes, não se contenta só com a essência, que tal conhecimento não será sabedoria, visto que esta vem de sabor, de experiência sensorial. Conseqüentemente, na conquista do saber integral, o homem se comporta sempre como um todo de que fazem parte sua razão, de natureza essencial, e suas vivênciassubstanciais. Todos os cinco sentidos exteriores, e ainda supridos e ampliados por instrumentos, e mais os outros internos, não se sabe quantos, propiciam as vivências sobre que cavalga o nosso mundo racional. E o amigo da sabedoria, se quiser sê-lo, agirá como um todo, e não só com sua inteligência..., porque o saber racional, além de meio-saber, ainda não existiria se não fossem as vivências que subestão àqueles. A realidade não se põe somente como essência, senão, também, como vivências que integram, em si, os sentidos todos, e ainda os sentimentos e as emoções que o mundo circundante pode produzir em nós. De tudo isto, concluímos que os filósofos andaram equivocados desde os primórdios, uma vez que se propunham a ser amigos da sabedoria, esta derivada de sabor, de experiência, de vivência, e no entanto, eles se perderam no cultivo da razão abstrata, do puro conhecimento racional, pelo que deviam chamar-se epistemólogos, ou filomáticos, mas, não filósofos. Eles desprezaram, de vez, o substancial das coisas, sob a alegação de que isso era o não-ser; pois 19 bem: se o substancial é o não-ser, o essencial é o não-existir. Certo, como é, que nenhum conceito pode ser vazio da sua substância, quando nos referimos a uma dada coisa, nossa definição se carrega de um conteúdo vivencial implícito, isto é, guarda consigo uma experiência omitida no contexto da definição. Os conceitos de limão, de pimenta, vêm associados às memórias gustativas de azedo, de ardido. O saber da definição implica num consaber vivencial. É por isto que se torna perigoso definir, e nenhuma definição satisfaz. Esta é a razão por que, por exemplo, a palavra algodão tem um sentido para o botânico que o estuda, outro para o lavrador que o cultiva, outro para o tecelão que o fia e tece, outro para o comerciante de tecidos que o vende, outro para o fabricante de colchões que só o vê em mantas, outro para o químico que fabrica o algodão-pólvora para as balas de canhão, e o celulóide de que são feitas as bonecas com que as meninas brincam, outro para o corretor de bolsas. Só pelo contexto o sentido se aclara, sendo muito vasta a concepção da palavra “algodão”, quando isolada. Daí que “todo vocábulo é ocasional” (Ortega). Até em matemática: não se podendo definir-lhe os elementos, diz-se que são “intuições”. O ponto é uma intuição, porque se o definirmos como sendo ele carente de dimensões, simplesmente teremos dito que não é espacial, nem planimétrico, nem linear, pelo que não existe. Ora, as intuições são indefiníveis. Se fosse condição básica o definir, para pensar, aí está que a matemática, a mais exata das ciências, não podendo definir seus elementos, pensa-os, como intuições. Igualmente, os postulados e axiomas dela não se definem, por ser intuições. Eis, portanto, que o saber procurado emana daquele outro que não buscamos com a razão; aí está que da física nasce a metafísica. Não esquecer, todavia, que o saber não procurado que, à primeira vista, parece que nos foi ofertado só pelo mundo circundante, na verdade, não nos vem só por essa via, senão, também, pela do social. De um lado, a vida espontânea a nos ofertar vivências que são um saber não procurado, mas que é básico. De outra parte, a vida social nos obriga, nos impõe, outra forma de saber que, outra vez, não buscamos, e que, por isso, faz parelha ao primeiro, no que diz respeito a ser-nos fundamental. Fundamental é o primeiro, e também basilar, o segundo. Lá, na vida espontânea, apesar de advertidos pelas nossas mães, aprendemos a não pôr a mão no fogo, porque queima; cá, na vida social, recebemos todas as explicações de o que o mundo é, e mais: aprendemos a não fazer tais ou quais coisas, porque, se o fizermos, seremos prontamente reprimidos por uma coerção social, primeiro extrínseca, porque vem do contorno, e logo mais intrínseca, porque vem de dentro, e se chama condicionamento, educação. Aprendemos que essa coerção nos pressiona e comprime fortemente no legal, e com menos força no ético. Essa coerção nos obriga a aprender, não a resolver quaisquer problemas por nós mesmos, e sim, ensina-nos a solução pronta dos problemas, do modo como, anteriormente, os resolveu, a sociedade. Até em matemática, não se aprende a resolver problemas, mas, aprende-se a solução pronta deles. Por este motivo, tais conhecimentos nos deixam pobríssimos daquilo que é mais excelso em nós - a inventividade, a criatividade, o nós mesmos, o eu autêntico. Num nível superior, ocorre-nos o mesmo que acontece no mundo animal. O animal inferior, selvagem, no seu meio agreste, vive na alteração, como diz Ortega; alteração vem de alter e ação, que quer dizer: o outro agindo, sendo outro, tornando-nos o outro, que não nós mesmos; movemo-nos por impulsão alheia, por atuação do outro, em resposta ao outro; vivemos de reação. O animal não pode atentar a si mesmo, porque precisa estar atento ao outro, ao contorno agreste. O ambiente cheio de perigos o faz sempre voltado para fora, para o exterior. Não pode ele entrar em si mesmo, estar só consigo em solidão para pensar, ainda que pudesse, e ser si mesmo; por isto é alter-ado, ou seja, tornado outro e não si. Também o homem primitivo vivia alterado, temeroso de tudo, sempre só atento ao que estivesse fora de si. Porém, diz Ortega, a duras penas, o homem se pôs só consigo em solidão para pensar o mundo, para conferir os seus conhecimentos, para submeter à prova suas verdades. Realizar isto é fazer filosofia... O grego a fez, e dela nasceram as ciências todas, a 20 tecnologia, o mundo ocidental como o vemos hoje..., mundo que está caindo, porque se desprezou a filosofia que lhe deu origem..., unicamente a que poderá mantê-lo em pé..., com lhe resolver os problemas, com lhe responder os reptos (Toynbee), os desafios que enfrenta. O homem-massa, como o primitivo e o animal, também vive na alteração; o mundo técnico que outros como ele criaram, é-lhe ameaçador; distrair-se numa rua de movimento de veículos, é expor-se a ser atropelado e a morrer. Além disso, os demais homens são-lhe, de alguma forma perigosos, contra os quais é preciso precatar-se. A vida que ele criou o obriga a correr sem saber para onde, nem para quê. Até que, um dia, tal corredor para nada e para meta nenhuma, pára, cai em si, mete-se em solidão e medita. Este estar só consigo em solidão, para repensar o consabido e investigar o ignorado; este esforço inusitado que a massa humana não conhece; este xeque-mate que se dá à verdade, é o que se chama filosofia. Este, o saber procurado. E foi por este modo que toda a ciência se urdiu. Porém, a vida é problematicidade, donde vem que o filósofo tem que prosseguir pensando. Todos os pensadores, diz Ortega, são como se foram um único homem imortal que houvesse estado a pensar desde o século VI a.C. até hoje; como o homem é mortal, e suas energias extinguíveis, o único meio de prosseguir pensando, é fazê-lo em cadeia, a cadeia dos pensadores no tempo, na história. Então, todos os filósofos começam por estudar o que os antecessores escreveram, para prosseguir dali. Neste refazer da filosofia, cada um critica nos predecessores o que há de errado, e incorpora-lhes os acertos. Daqui as três definições da filosofia: a filosofia é um refazer; é o “repositório dos erros”; é “o tesouro dos acertos”, como diz Ortega. A filosofia, conseqüentemente, está sendo refeita, continuamente, para fazer-se. Porém, quando Kant nega validade à metafísica, argumenta que as outras demais ciências estão aí, como a física, a química, a astronomia, a matemática, como disciplinas acabadas e indiscutíveis, no passo que a filosofia é um campo de dissensões irreconciliáveis. Por que assim? Ora, porque a filosofia está aindaa fazer-se, dada a sua complexidade. Também as ciências todas que se desmembraram uma a uma da própria filosofia, tiveram esta fase de dissensão, e só puderam delimitar seus objetos, quando tais ciências estavam já em boa parte feitas. Da busca da pedra filosofal e do elixir da longa vida, nasceu a química, então, com o nome de alquimia. O alquímico não podia definir o objeto da sua ciência que se ligava à física e ambas à filosofia. Quando, no séc. XVII, Isaac Newton expõe sua teoria da gravitação universal, dá ao trabalho o título de Philosophiae Naturalis Principia Mathematica (Princípios Matemáticos da Filosofia Natural), porque a física-matemática ainda estava envolta pela filosofia. Logo, não estava delimitado o objeto da física, nem o da matemática. Igualmente, Volta, ao dar nome à sua pilha, chamou-a de “órgão elétrico artificial”, porque já era conhecido, desde Aristóteles, o peixe elétrico. Volta falava em termos de biologia, porque os conceitos biológicos eram-lhe mais familiares, mais conhecidos em sua época. O pensamento de Volta, portanto, estava vinculado à biologia. O homem é como o bifrontal deus Jano o que tinha uma face voltada para o passado, e outra, para o futuro, daí janeiro, que é o primeiro mês de cada ano. Podemos dizer, também, que uma cara do homem-deus-jano se volta para o particular, e outra, para o geral; uma para as ciências, e outra, para a filosofia. Ora, é pacífico que a visão científica do particular, embora obtida pelas inúmeras ciências, é mais fácil, menos complexa do que a visão da totalidade. Na fase evolutiva, as organizações se fazem do simples para o complexo, de baixo para cima, do pequeno para o grande, do individual para o universal; e assim como, quando os átomos se organizaram, estiveram rodeados pelo ainda caos molecular, o mesmo ocorrendo com as moléculas, com a biologia molecular, com os seres unicelulares etc., também as ciências particulares podem apresentar-se como prontas, acabadas, enquanto que a filosofia continua a fazer-se, estando ela ainda no seu meio caos. Se Kant nega validade à metafísica, porque ela é um campo de dissensões, poder-se-ia dizer também que o Estado não é válido, porque ainda em parte caótico e injusto, ainda ocupado em executar suas variadas experiências quanto à 21 melhor forma de regime. O Estado ainda não está feito; por idêntica razão, também o não está a metafísica. Contudo, a verdade unitária e geral tem que haver; é impossível que hajamos de ficar, para todo o sempre, perdidos no relativo, no particular. Kant invalidou a metafísica, por causa das dissensões dos filósofos; tivesse ele vivido antes, na história, pela mesma razão haveria de negar valor à física, à química, à biologia etc., que também eram doutrinas questionáveis. Um dia, a filosofia estará completa num sistema-verdade, e daí por diante será estável como disciplina do espírito, como sabedoria, como absoluta norteadora da conduta humana. A filosofia, ainda agora, é o caminho da sabedoria, e ainda os pensadores são filósofos, isto é, apenas amantes da sabedoria; um dia ela será a “sophia”, a sabedoria, e os pensadores, “sophos”, sábios. Eis, pois, como o atesta a história, que o saber procurado nos levou à filosofia, da qual saíram as ciências todas que, também, por isto mesmo, são saberes procurados... por aqueles que amam tais saberes, ficando de lado a massa dos que só aprendem por imposição do social. Da filosofia se desmembraram todas as ciências que lhe eram até pesada carga; daí que ela, em si, não se exauriu, nem se apoucou, tornando-se até mais leve, porque livre da bagagem embaraçante; perdeu tudo o que não era si mesma, o que não era generalidade, o que não era preocupação do Ser que, para o filósofo, continua a fulgurar no seu ofuscante Oriente eterno, atraindo para si todo o afeto do que se fez pensador. Uma coisa é o saber puro e simples; outra, o saber por amor ao saber. Um saber não amado pode ser prático, rotineiro, a serviço da vida; todavia, um saber amado modifica a conduta do aprendiz; não é exterior como o primeiro, e sim, a própria vida; não mero instrumental da vida, mas ela mesma. O homem-massa aprende, como o filósofo, e até pode vir a ser professor de filosofia, mas está destituído de curiosidade pelas coisas do mundo, não tem surpresas, não se deslumbra, nem se entusiasma com o saber; ele visa apenas uma aplicação prática, utilitária, imediata do saber; já o homem autêntico, o filósofo, inflama-se ante o conhecimento, emociona-se até o êxtase frente à descoberta duma porciúncula do universo, alça-se em pensamentos grandes, quando descobre um ponto periférico no leque cujas varas se juntam no cabo, na unidade suprema do Ser. O filósofo em nada se assemelha, a não ser pelo físico, a esse homem espiritualmente acomodado que se deixa levar pela vida, sem destino, amodorrado em seu viver animal. Um homem comum pode não ver nada no trabalho duma formiga que segue, indiferente, por seu trilho, levando um grão de milho à cabeça; mas Salomão pôde tirar dessa faina uma sentença: “Vai ter com a formiga, ó preguiçoso, olha para os seus caminhos, e sê sábio” 21. Para o medíocre, a formiga não passa de uma das coisas corriqueiras a lhe encherem a vida espontânea, cheia de experiências inúteis, inúteis porque vazias de saber. Porém, o filósofo, o aspirante à sabedoria, tem seus olhos sempre deslumbrados como os da coruja de Minerva. O homem-massa não possui curiosidade; para ele, o mundo é achatado, planimétrico, sem hierarquia, sem significação superior; sua vida é só a espontânea, a vegetativa, a transcorrer sem criações. O filósofo, diz Ortega, não cessa de passar e de repassar o fio já cortante de sua mente na pedra que é o enigma do Ser, em razão do que sabe ele enxergar, em um grão-de-areia, o universo ... Eis que temos ressaltado qual o saber buscado pela filosofia, e quais os homens que, em verdade, se podem chamar filósofos, ainda que ocupados em trabalho humilde, como era o do modesto polidor de lentes, mas grande pensador Espinosa. 21 Prov 6, 6 22 Capítulo IV CAMINHOS DO PENSAMENTO FILOSÓFICO Como vimos, há um saber que não procuramos, que nos vem da visão do mundo espontâneo que está aí, à mão; há outro saber, também não procurado, que nos chega por via social e nos satura desde o berço; e há o saber buscado com método, amor e entusiasmo. A aquele saber não procurado, oriundo de nossas vivências com o mundo à mão, e com o mundo social, Platão dava o nome de doxa, que significa a opinião vulgar. Frente a essa opinião comum, Platão colocava a epistéme, a ciência. Para obter este saber procurado, a epistéme, a ciência, Platão empregava um método ao qual ele dava o nome de dialética que é o desenvolvimento racional de dado assunto. Para começar, se supõe que as coisas são isto ou são aquilo, e a seguir, nega-se o suposto com argumentos contrários. A suposição é assim discutida, alterada, substituída até seu ponto de máxima depuração, e por isso mesmo, resistente a quaisquer críticas. Este saber é a epistéme ou ciência, que se opõe à opinião vulgar, a doxa, sendo aquela epistéme, então, uma para-doxa, donde proveio a palavra paradoxo. Conseqüentemente, a partir de Platão, a palavra filosofia significa um saber racional, obtido pela reflexão através da dialética. Como os filósofos só se interessavam pela epistéme, contra a doxa ou opinião vulgar, deviam chamar-se, como já o dissemos, epistemólogos ou filomáticos, significando filomática o exagerado amor à ciência. Com Aristóteles este saber científico ou epistemológico já adquire volume extraordinário, abarcando todo o conhecimento humano até então obtido.
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