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A tendência anti-social na Teoria do Amadurecimento de D.W.Winnicott: Um Apelo Esperançoso Maíra Golovaty RESUMO Ao detectar a relação direta entre os comportamentos ditos “delinqüentes” com a questão da deprivação sofrida por crianças numa certa idade na situação de guerra, e muito embora as circunstâncias da querra fossem anormais, Winnicott percebeu que tais conhecimentos obtidos desta experiência têm aplicação geral, já que as crianças que sofrem deprivação e se tornam delinqüentes têm problemas básicos que se manifestam de modos previsíveis, independentemente das circunstâncias nas quais a deprivação se dá Winnicott cunha o termo “tendência anti-social” em preferência ao termo “delinqüência” pela razão de que o primeiro nos permite vislumbrar uma mesma natureza da problemática em diferentes graus do seu desenvolvimento, desde sua forma mais primitiva, casos brandos que se aproximam inclusive daquilo que designamos normalidade, como a birra extremada de um bebê, a enurese noturna ou o furto de uma moeda na bolsa da mãe, até os atos mais graves estruturados como delinqüência, sendo a psicopatia o estágio mais avançado. Além disso, este termo facilita a compreensão da existência de uma conexão entre a tendência e a esperança, por mais difícil que seja de percebe-la quando o ato anti-social atinge certa gravidade e seu sentido original tenha esmaecido. . Este presente trabalho busca localizar na obra de Winnicott de que maneira a delinqüência pode ser compreendida enquanto um sintoma caracterizado pela deprivação (deprivation) ocorrida no processo de amadurecimento do indivíduo, e ainda, como podemos entendê-la como um pedido de socorro e expressão da esperança em ser ajudada que a criança ainda é capaz de manifestar. Palavras-Chave: tendência anti-social, delinqüência, deprivação. Antes de eclodir a Segunda Guerra Mundial, a experiência profissional do pediatra e psicanalista D.W. Winnicott tinha se concentrado eminentemente na prática clínica em contextos hospitalares e no exercício clínico privado. O assunto da delinqüência havia sido deliberadamente evitado por ele até aquele momento, por se sentir despreparado teoricamente e pela ausência de recursos demandados por estes casos. Quando eclodiu a guerra, Winnicott escolheu não mais se abster, assumindo a Consultoria de Evacuação, já intuindo a problemática que teria de enfrentar, e foi nesse intenso contato com crianças desapossadas que sua teoria e prática clínica tomaram uma nova dimensão, afetando seus conceitos básicos sobre crescimento e desenvolvimento emocionais. A partir desta experiência, Winnicott pode formular sua teoria sobre a tendência anti-social, ao detectar sua relação direta com a questão da privação sofrida pela criança numa certa idade; e muito embora as circunstâncias da querra fossem anormais, os conhecimentos obtidos desta experiência têm aplicação geral, já que as crianças que sofrem privação e se tornam delinqüentes têm problemas básicos que se manifestam de modos previsíveis, independentemente das circunstâncias nas quais a privação se dá. Winnicott cunha o termo “tendência anti-social” em preferência ao termo “delinqüência” pela razão de que o primeiro nos permite vislumbrar uma mesma natureza da problemática em diferentes graus do seu desenvolvimento, desde sua forma mais primitiva, casos brandos que se aproximam inclusive daquilo que designamos normalidade, como a birra extremada de um bebê, a enurese noturna ou o furto de uma moeda na bolsa da mãe, até os atos mais graves estruturados como delinqüência, sendo a psicopatia o estágio mais avançado. Além disso, este termo facilita a compreensão da existência de uma conexão entre a tendência e a esperança, por mais difícil que seja de percebe-la quando o ato anti-social atinge certa gravidade e seu sentido original tenha esmaecido. (...) tive de inventar a expressão "tendência anti-social", para reuni-la com a criança que furta um tostão do bolso de alguém ou que tira alguns bolinhos, a que tem perfeito direito, da despensa. Quis unir isso com as tendências que podem conduzir à delinqüência [...] Trata-se de algo importante, e a vida foi diferente para mim após isso, porque agora sabia o que fazer com meus amigos que me estavam trazendo suas crianças por estas apresentarem uma tendência anti-social em um lar perfeitamente bom. Descobri que antes de os lucros secundários aparecerem, isto não era algo difícil de tratar, mas sim fácil, ainda que não em todos os casos. Acho que isso foi uma contribuição. Não conheço ninguém que estivesse realmente fazendo isso então, e, se houvesse, gostaria de saber. (Winnicott, 1989f, p. 439) A teoria do Amadurecimento Pessoal de D.W.Winnicott é categórica ao explicitar a importância do papel do ambiente na formação do indivíduo. Mais especificamente, é no âmbito da relações interpessoais (no início do bebê com a mãe, e posteriormente, se estendendo ao pai, à família, etc.) que o bebê é capacitado a integrar experiências, constituir um psicossoma integrado a partir da elaboração imaginativa do corpo, viver de modo autêntico e criativo (com base na experiência de onipotência sustentada pela mãe nos estágios mais primitivos da dependência) e tantas outras conquistas e tarefas que se dão nos diferentes estágios do amadurecimento, desde o nascimento até a morte (considerada por Winnicott como a marca derradeira da saúde). Em outras palavras, é imprescindível que exista uma provisão ambiental suficientemente boa1 Quando tudo corre bem, o indivíduo consegue caminhar de maneira satisfatória numa espécie de “linha” do seu amadurecimento pessoal, e apesar deste processo nunca ser linear, envolvendo conquistas e perdas, existem algumas aquisições necessárias para a conquista de outras, sendo bastante prejudicado aquele indivíduo que não consegue estabelecer suas bases para ser, ou o faz de maneira precária. Quanto mais imaturo é o indivíduo, maior sua dependência da provisão ambiental, e maior também a gravidade dos danos causados quando o ambiente falha e o traumatiza. Quando há uma falha ambiental abrupta, intolerável para o indivíduo e que acarreta numa quebra do processo de amadurecimento, dizemos que ocorreu um trauma, uma ruptura na continuidade de ser, que dependendo do estágio do amadurecimento no qual se localiza é responsável pela instauração de uma determinada doença psíquica. O caminho para o tratamento de um distúrbio de natureza ambiental, seja ele qual for, sempre passa por proporcionar ao indivíduo um ambiente terapêutico, no qual a confiabilidade possa ser restaurada, permitindo assim uma regressão até o ponto de origem do trauma. Somente assim o amadurecimento poderá ser restabelecido e continuar seu curso no sentido da tendência inata à integração. para que o desenvolvimento transcorra de forma saudável. Este brevíssimo resumo sobre a concepção de Winnicott sobre as condições necessárias para que transcorra o desenvolvimento saudável de um indivíduo faz-se necessário para podermos localizar o que seja a tendência anti- social e como ela se relaciona com sua teoria do amadurecimento pessoal. Ainda hoje é bastante comum a correlação da questão da delinqüência com um colapso mais geral da provisão social, como a miséria e as condições de vida adversas. No entanto, já na década de 60 Winnicott nos adverte: “(...) a tendência anti-social esta inerentemente ligada à privação. Em outras palavras, um fracasso específico é mais importante do que um fracasso social geral. ” (Winnicott, W14/1986b, pág. 82). 1 Termo este cunhado por Winnicott para designar um ambiente que é bom o suficiente para facilitar a tendência inata à integração, atendendo às necessidades de um bebêou criança específicos numa fase específica do amadurecimento pessoal. Tais necessidades, apesar de apresentarem um padrão geral em comum, variam em suas nuances de indivíduo para indivíduo como também se transformam com o decorrer do amadurecimento, necessitando que uma mãe suficientemente boa possa se identificar com tais necessidades e se adaptar a elas no transcorrer deste processo. O fracasso específico ao qual Winnicott se refere na citação acima diz respeito à falha ocasionada na relação interpessoal da criança com seus pais, relação esta que estava sendo suficientemente boa e, por algum motivo, sofreu uma transformação repentina numa fase do amadurecimento pessoal da criança em que ela já tem idade suficiente para saber o que aconteceu com ela. Para Winnicott, a tendência anti-social denota exatamente uma tentativa inconsciente (acting out) da criança em comunicar esta falha ocorrida. Por isso é possível compreender, na manifestação da tendência anti-social, a subjacente expressão da esperança que a criança apresenta em ser compreendida e ajudada. “ A questão é:que esperança é essa? O que a criança espera fazer? É difícil responder a essa questão. A criança, sem sabe-lo, espera conseguir levar alguém que a ouça a recordar-se do momento de privação ou da fase em que a privação consolidou-se numa realidade inescapável. A esperança é que o menino ou a menina seja capaz de reexperimentar, na relação com a pessoa que está agindo como psicoterapeuta, o intenso sofrimento que precedeu a reação à privação.” (winnicott, 1986b, p. 89-90) O trabalho de Winnicott com crianças anti-sociais possibilitou-lhe confirmar a importância do ambiente na constituição do indivíduo e mudar o enfoque intrapsíquico que a psicanálise tradicional dava para a questão da delinqüência e da criminalidade em geral para o enfoque interpessoal da psicanálise winnicottiana, consolidando uma teoria totalmente original. Durante sua reflexão sobre a tendência anti-social, Winnicott não acreditava que sua etiologia pudesse ser explicada nem em termos de fatores externos grosseiros, como os definidos pela psicologia acadêmica, nem por conflitos psíquicos internos, como os definidos pela psicanálise tradicional, que a atribuía à culpa resultante da inevitável ambivalência inconsciente. Era difícil entender como em lares onde a provisão ambiental parecia ser suficientemente boa poderia a tendência anti-social se instalar na criança. O desenvolvimento dessa reflexão levou-o a perceber que a falha ambiental que leva à tendência anti-social não era necessariamente grosseira, que poderia ser extremamente sutil e, muitas vezes, passar despercebida por um observador menos atento às sutilezas das relações mais primitivas. Fazia-se necessário um olhar mais minucioso, verificar os detalhes da relação interpessoal do bebê ou da criança com sua mãe ou pai, e tentar identificar aí uma quebra, uma transformação. Foi assim que Winnicott verificou que tal quebra na confiabilidade do ambiente não estava necessariamente relacionada ao fato da mãe ou a família se tornarem de repente “maus” ou incapazes de cuidar da criança, mas que mesmo mudanças mais sutis poderiam resultar numa vivência traumática pela criança. Uma mudança de humor da mãe pela chegada de um novo filho, ou o fato da mãe ter que se ausentar por um período de tempo demasiado longo para que a criança pudesse manter a confiabilidade inabalada, ou a separação dos pais, são exemplos de “quebras” na continuidade que podem passar desapercebidas a “olho nu”, mas que têm potencial para desencadear uma tendência anti-social, em decorrência da extrema sensibilidade da criança com relação aos cuidados ambientais nesta fase do amadurecimento pessoal. A grande especificidade com relação a falha ambiental deflagradora da tendência anti-social é que ela ocorre de maneira abrupta do ponto de vista da criança, numa fase do amadurecimento no qual ela (a criança) já é capaz de identificar a falha como proveniente do ambiente, ou seja, já existe um EU integrado e separado do ambiente e que reconhece que foi lesado por ele. Esta perda do ambiente suficientemente bom foi denominada por Winnicott pelo termo deprivação (deprivation, em inglês), e está sempre presente na raiz da tendência anti-social: (...) a perda de algo bom que foi positivo na experiência da criança até uma certa data, e que foi retirado; a retirada estendeu-se por um período maior do que aquele em que a criança pode manter viva a lembrança da experiência. (1958c, p.131) [...] é uma característica essencial que o bebê tenha atingido a capacidade de perceber que a causa do desastre reside numa falha ou omissão ambientais. (Ibid., p. 135) Uma descrição completa da deprivação inclui as condições anteriores ao trauma, o ponto exato do trauma - e do prolongamento da condição traumática - e as condições posteriores a ele. A criança que sofre esse tipo de trauma vive uma agonia impensável e o sofrimento é entendido por Winnicott como "um estado de confusão, de desintegração da personalidade, um cair para sempre, uma perda de contato com o corpo, uma desorientação completa, e outros estados dessa natureza" (1968e, p. 77). Quando a agonia impensável vivida durante a deprivação consolida-se como numa realidade inescapável, diz Winnicott, “a criança acaba por tornar-se submissa, inofensiva e sem esperança. Para quem cuida dela isso pode ser muito cômodo, mas para ela significa sofrimento. Mas a criança pode ter a sorte de encontrar um ambiente favorável, por exemplo, a mãe reconhece a falha e a "mima" durante um certo período de tempo, cercando-a de cuidados especiais. Nessas circunstâncias, a criança começa a voltar a confiar que o ambiente possa ser capaz de compreender e acolher o seu problema. Um tal ambiente permite que a esperança renasça, e assim, os atos anti-sociais podem começar a ocorrer para testar a confiabilidade do ambiente. Esses atos anti-sociais nada mais são do que um pedido de socorro, para que alguém reconheça e a ajude a recordar-se "do momento da deprivação ou da fase em que a deprivação consolidou-se numa realidade inescapável" (id.). A esperança e o sentido do impulso que levam a criança a buscar o estado de coisas que existia antes da deprivação são características essenciais da tendência anti-social e, para que haja cura, devem ser reconhecidas pelo ambiente. Se os sinais de surgimento da tendência anti-social forem desperdiçados por intolerância ou incompreensão, a criança não terá condições de desfazer o medo da agonia impensável ou da confusão que ela viveu antes de se tornar desesperançada, e não poderá retomar o seu amadurecimento. A tendência anti-social possui essencialmente dois aspectos que acarretam em diferentes manifestações clínicas: O primeiro aspecto remete a um período mais precoce do desenvolvimento e diz respeito à interação da criança pequena com a mãe. Este aspecto decorre do fato da mãe ter falhado numa tarefa específica, de continuar capacitando a criança a encontrar objetos de forma criativa, sentindo-se a criança impossibilitada para tal e percebendo a proveniência desta falha. Para ela, é como se lhe tivesse sido roubada a possibilidade de usar o mundo de forma criativa. Por isso, quando ela encontra um objeto qualquer, ela o rouba por compulsão. Mas o verdadeiro sentido do roubo permanece encoberto, e é comum a criança se sentir louca e confusa devido a esse não entendimento, especialmente quando é inquirida a respeito. A criança de fato não busca por um objeto em específico, mas pela capacidade de encontrar. A manifestação clínica mais comum deste aspecto da tendência anti-social é o roubo. Já o segundo aspecto se dá num estágio mais desenvolvido e diz respeito à relação do menino (ou do aspecto masculino presente na menina) como pai, e se relaciona à falha da tarefa de integrar impulsos agressivos e destrutivos com os amorosos. Para que tal conquista seja alcançada, é necessário que a criança possa contar com a figura de um pai ou o correspondente (alguma autoridade, alguém em quem a mãe possa confiar) que lhe permita perceber que é seguro exercitar sua agressividade em termos de fantasia, e que inclusive esta agressividade é inerente ao amar. A criança que é bem sucedida nesta tarefa integrativa busca organizar sua vida de modo construtivo, tentando afastar a possibilidade de danificar algo de que gosta. Mas para conseguir isso a criança necessita de um ambiente que seja “indestrutível”, coeso, de um certo modo. Quando esta confiança no ambiente fica abalada, por uma separação dos pais, a morte do pai, uma transformação nas relações familiares, etc, ocorre uma deprivação, fazendo com que as idéias e os impulsos agressivos antes respaldados no quadro de referência familiar se tornem inseguros. Em decorrência disto, a criança se retrai na sua espontaneidade por medo de destruir na realidade aquilo que ama.Neste caso, assim que a criança recobra a confiança e, com ela, a esperança de ser ajudada, sente a necessidade de se redescobrir, e isso implica na redescoberta de sua agressividade represada. O pedido de socorro vem travestido, neste caso, por uma explosão de agressão, que poderá de fato acarretar em danos concretos, como a quebra de uma vidraça ou mesmo a agressão física. O fato é que muitas vezes a tendência anti-social, seja na forma de roubo ou de agressão, suscita no ambiente uma atitude moralista, de retaliação e punição, o que só tenderá a agravar mais e mais o problema. Por mais paradoxal que possa parecer aos moldes da educação clássica, o caminho para a cura de uma tendência anti-social é a compreensão e o provimento de cuidados especiais, pelo tempo que ela demandar, e jamais a condenação e a retaliação. Quando bem instruída a respeito, a própria família pode realizar a terapia necessária, evitando que a tendência anti-social possa se desenvolver e se agravar, cristalizando-se em delinqüência, que já é uma defesa anti-social organizada, por não ter sido tratada adequadamente. Outro aspecto importante relativo à tendência anti-social é que crianças que roubam ou que praticam algum ato destrutivo, geralmente, quando inquiridas, negam tê-los cometido, e isso aparenta ser feito por elas sem o menor sinal de culpa ou responsabilidade. Isto pode parecer uma cínica mentira para quem vê de fora, mas para ela é totalmente verdadeiro. Isso porque, como Winnicott percebeu em sua clínica, as crianças anti-sociais apresentam, regularmente, uma dissociação na personalidade. "Dissociação é um termo que descreve uma condição da personalidade relativamente bem desenvolvida, na qual há uma excessiva falta de comunicação entre os diversos elementos" (1988, p.159). Isto significa que o aspecto do self que cometeu o ato anti-social está dissociado da personalidade total. Não existe, portanto, uma comunicação entre os dois. Se houver uma pressão para que ela confesse o delito, inclusive mediante apresentação de provas, provavelmente ela o fará, mas isso, diz Winnicott, lhe custará "deixar essa área de ser verdadeira e transferir-se para uma outra espécie de integração na área intelectual do funcionamento do ego" (1966c, p. 263). Com a confissão, haverá uma falsa integração, que se dará somente a nível intelectual, a criança será "capaz de saber, compreender e recordar [...]. A culpa é agora admitida, mas não é sentida" (id.). Do ponto de vista externo, isto pode parecer satisfatório e até cômoda para os que cuidam, mas a criança não foi compreendida e nem ajudada. Tais atos não podem ser confessados de forma genuína pela criança porque esta agiu sob compulsão e com a parte da personalidade que está dissociada. A compulsão está ligada à esperança que a criança tem de ter reconhecido o débito do mundo para com ela, débito este que foi gerado pelo ambiente falho, e dele se espera ressarcimento. Neste ponto faz-se importante ressaltar que o fato da criança que cometeu um ato anti-social não estar consciente do seu “delito” não significa que essa inconsciência seja fruto da repressão. Pois aqui não se trata de inconsciente reprimido, mas de dissociação. A negação do ato anti-social, pela criança, significa que ela está aflita e pedindo socorro, necessitando de alguém que não a julgue nem a puna, e que a compreenda e a ajude nesse estágio em que ela está sofrendo e é ainda uma pré-delinqüente. Essa descoberta é de importância fundamental para se pensar as questões de prevenção da delinqüência. Conclusão A descoberta de Winnicott de que os atos mais graves de delinqüência fazem parte da mesma problemática de um bebê que dá um trabalho excessivo ou de uma criança que furta um lápis na escola abre grandes perspectivas para pensarmos a respeito da prevenção da delinqüência. Abrangidos pelo mesmo termo “tendência anti-social”, os atos anti-sociais surgem na sua versão mais branda num período ainda precoce do desenvolvimento do indivíduo, e quando não tratados adequadamente vão adquirindo o grau da defesa anti-social estruturada na forma de delinqüência. Outra importante descoberta de winnicott referente à tendência anti-social é sua conexão com a esperança: é nos momentos de maior esperança que a criança “deprivada” (que sofreu deprivação) mais mobiliza seu ambiente, esperando que este reconheça e compense o dano causado. A criança, com esse comportamento, não tem a consciência do que se está de fato procurando atingir, sendo o acting-out o meio encontrado pela criança para comunicar o seu sentimento de ter sido lesada. Esses sinais de tendência anti-social expressos pelo acting-out podem aparecer já muito precocemente, a partir do momento em que o EU se integra numa unidade. Pode já estar presente no bebê que causa um incômodo que começa a parecer excessivo para a mãe, e se esta reconhece sua falha e torna- se uma “terapeuta”, proporcionando uma fase de cuidados especiais para o seu bebê, na qual atende suas reivindicações e permite suas regressões necessárias, muito provavelmente esse "tratamento" feito por ela terá sucesso. E assim, igualmente, para todas as idades durante a infância. Para o tratamento da tendência anti-social é imprescindível que se reconheça o valor positivo que o acting-out tem na cura da mesma e que se tome o sintoma expresso no ato anti-social como a comunicação de uma falha específica e um pedido de ajuda . Quando uma criança sofre deprivação e o ambiente reconhece a falha e passa a ressarcir, com cuidados especiais, a dívida para com ela, a chance dela ser "curada" é muito grande, especialmente antes de que haja benefícios secundários. Contrariamente a isso, se o ambiente não reconhece o dano causado, isso pode levar a criança a desenvolver uma delinqüência que, com os ganhos secundários, afasta-a cada vez mais do trauma original, podendo tornar impossibilitada a sua cura. A cura, nestes casos, não tem a ver com a interpretação do inconsciente reprimido, ou seja, de nada adianta, para a criança, saber que sofreu deprivação, numa história contada por outra pessoa. Isto seria uma apreensão meramente teórica, o que pode ser muito simples para uma criança inteligente, mas que não altera em nada o sentimento de ter sido lesada que ela carrega consigo. O verdadeiro valor terapêutico está na descoberta da falha ambiental pela criança através da possibilidade de um ambiente terapêutico (seja o ambiente familiar ou o setting analítico) que esteja disposto a proporcionar os cuidados que permitam restaurar o clima de confiabilidade. Só assim a tendência anti- social poderá se manifestar, como que para testar esta confiabilidade restaurada. Este éo caminho da cura. Neste sentido que podemos dizer que a tendência anti-social é a manifestação de esperança, esperança com relação a ser compreendido, poder comunicar a falha e conseguir as provisões de que necessita para o restabelecimento do processo de amadurecimento saudável. Infelizmente, existem um grande número de casos anti-sociais mais graves, casos em que o distúrbio já se estabeleceu e que dizem respeito, em geral, àqueles indivíduos que não contam com um ambiente que se disponha a ser terapêutico. Nestes casos winnicott é bem pessimista, chegando a dizer que a cura é praticamente inatingível. Mas nos casos em que a criança vive em um ambiente relativamente bom (chamado também de “ambiente expectável médio), ou seja, quando existe uma família disposta a oferecer cuidados especiais, enquanto forem necessários, as chances de restabelecimento são muito maiores. Através de uma modalidade específica de tratamento, chamada por Winnicott de “Consultas Terapêuticas”, Winnicott procurava chegar ao ponto de deprivação sofrido pela criança através de uma comunicação profunda, por vezes pré-verbal, e a partir daí buscava orientar a família e acompanha-la em sua tarefa de co-terapeuta. Capacitar os pais a criarem um ambiente terapêutico para os filhos não só vai de encontro com o tipo de demanda encontrada por Winnicott na época, a qual, aliás, caracteriza o serviço público ainda mais intensamente nos dias atuais: um grande número de pessoas procurando ajuda, poucos profissionais, famílias que não têm condições de arcar com os custos de um tratamento mais longo, etc; como também fornece aos pais a chance deles próprios cuidarem dos filhos e repararem o dano causado , o que é de extrema importância para muitos pais, favorecendo um enriquecimento geral da situação. Referências bibliográficas: Winnicott, Donald W. 1958c [1856]: “A tendência anti-social”, in Winnicott 1984a Privação e delinqüência. ––– 1971vc: “Introdução (da parte três)”, in Winnicott 1971b: Consultas Terapêuticas em Psiquiatria Infantil. ––– 1963c: “Os doentes mentais na prática clínica”, in Winnicott 1965b: O ambiente e os processos de maturação (em especial pp.203-204). ___ 1968e: “A delinqüência como sinal de esperança”, in Winnicott 1986b: Tudo Começa em Casa. ––– 1984i [1961]: “Variedades de psicoterapia”, em especial pp.242-243, in Winnicott 1984 a: Privação e delinqüência. ––– 1965ve: “A psicoterapia de distúrbios de caráter”, in Winnicott 1984a: Privação e delinqüência. A tendência anti-social na Teoria do Amadurecimento de D.W.Winnicott: Um Apelo Esperançoso Maíra Golovaty RESUMO Ao detectar a relação direta entre os comportamentos ditos “delinqüentes” com a questão da deprivação sofrida por crianças numa certa idade na situação de guerra, e muito embora as circunstâncias da querra fossem anormais, Winnicott percebeu que tai... Winnicott cunha o termo “tendência anti-social” em preferência ao termo “delinqüência” pela razão de que o primeiro nos permite vislumbrar uma mesma natureza da problemática em diferentes graus do seu desenvolvimento, desde sua forma mais primitiva, ... Este presente trabalho busca localizar na obra de Winnicott de que maneira a delinqüência pode ser compreendida enquanto um sintoma caracterizado pela deprivação (deprivation) ocorrida no processo de amadurecimento do indivíduo, e ainda, como podemos... Palavras-Chave: tendência anti-social, delinqüência, deprivação. Referências bibliográficas: Winnicott, Donald W. 1958c [1856]: “A tendência anti-social”, in Winnicott 1984a Privação e delinqüência. ––– 1971vc: “Introdução (da parte três)”, in Winnicott 1971b: Consultas Terapêuticas em Psiquiatria Infantil.
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