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ESPAÇO CREMERS 190 Revista AMRIGS, Porto Alegre, 48 (3): 190-194, jul.-set. 2004 Aspectos éticos e legais do atendimento de emergência LUIZ AUGUSTO PEREIRA Médico e Advogado Vice-Presidente do Conselho Regional de Medicina do RGS Espaço CREMERS ESPAÇO CREMERS Revista AMRIGS, Porto Alegre, 48 (3): 190-194, jul.-set. 2004 191 ESPAÇO CREMERS O atendimento de emergência cons-titui uma forma especial de aten- dimento médico cujas decisões são es- tabelecidas num curto espaço de tem- po. Uma série de modificações na re- lação médico-paciente convencional é estabelecida nessa forma de presta- ção de serviço. Médicos não são es- colhidos pelos pacientes, interven- ções invasivas e de risco muitas ve- zes são mal informadas ao paciente ou familiares, e a falta de ambiente próprio para a troca de informações confidenciais impede uma maior aproximação entre ambos. Além dis- so, a carência de recursos e/ou a su- perlotação da maioria dos hospitais brasileiros e o receio de médicos e instituições à exposição a processos, acabam tornando impessoal a maio- ria dos atendimentos de emergência. Pacientes transformam-se em fichas de atendimento e médicos em meros técnicos de saúde, ambos envoltos numa atmosfera de insegurança e ati- tudes defensivas. A relação entre médicos e pa- cientes, assentada em bases huma- nitárias, éticas e legais, garante a melhor relação interpessoal e favo- rece o correto processo diagnóstico e terapêutico. Assim todos os profissionais que atuam nessa área da atividade médi- ca devem familiarizar-se com os prin- cipais conceitos éticos e legais co- muns no atendimento de emergência. R ESPONSABILIDADES DO MÉDICO Responsabilidade não é fenôme- no exclusivo da vida jurídica, mas se liga a todos os domínios da vida so- cial. Responsabilidade médica ocor- re quando o médico não cumpre a obrigação que tem em relação ao pa- ciente, causando-lhe dano. Negligência, imprudência e impe- rícia caracterizam o erro médico. É preciso evitá-lo ou reduzi-lo, pois o erro faz parte da falibilidade humana. Negligência: constitui a omissão ou a não observância de determina- dos deveres por parte do médico, Por exemplos: exame superficial e desatento, omissão ou retardo de so- licitação de consultoria por especia- lista, retardo de intervenções cirúrgi- cas ou procedimentos vitais, prescri- ção de medicamentos com superdo- sagem, anestesias simultâneas, per- manência por abandono de corpo es- tranho após determinada técnica ci- rúrgica, colocação indevida de apa- relhos gessados, transfusão de sangue incompatível etc. Imprudência: constitui a omissão de cautela, precipitação ou audácia do ato médico. Exemplos: utilização de técnica cirúrgica inadequada ou não reconhecida para a ciência, adoção de determinado procedimento cirúrgico sem o exame prévio adequado, pres- crição médica por telefone etc. Imperícia: constitui a inaptidão, ignorância, falta de destreza ou insu- ficiência de conhecimento técnico por parte do médico. Exemplos: secção de ureteres em cirurgia cesariana, intro- dução de alimentação no trato respi- ratório através de sonda mal posicio- nada sem o controle radiológico pré- vio, secção da artéria femural em ci- rurgia de varizes etc. C ONSENTIMENTO INFORMADO Nas urgências e emergências não é freqüente pela própria situação a obtenção de um documento de con- sentimento informado. Obter o consentimento do pacien- te é um dever do médico expresso no artigo 46 do CEM, que determina que é vedado ao médico efetuar qualquer procedimento médico sem o esclare- cimento e o consentimento prévios do paciente ou de seu responsável legal, salvo em iminente perigo de vida. O documento de consentimento infor- mado (ou esclarecido) tem sido mui- to mais utilizado como documento de defesa jurídica do que de garantia aos direitos dos pacientes. É recomendá- vel que seja aplicado em situações como amputações, cirurgias de alto risco, mas não deve constituir um ele- mento de constrangimento para o pa- ciente ou para a família. R ESPONSABILIDADES DO PACIENTE Fidelidade, confidencialidade e veracidade das informações prestadas são as principais responsabilidades do paciente. O paciente deve ser infor- mado que o correto encaminhamento diagnóstico e terapêutico da situação clínica por ele apresentada depende da observação desses pressupostos. R ESPONSABILIDADE CIVIL O Código Civil normatiza que aquele que por ação ou omissão vo- luntária, negligência ou imprudência, violar direito ou causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, co- mete ato ilícito, sendo obrigado a re- parar o dano. Não gera responsabili- dade civil o erro profissional que cor- responde ao risco e não apresenta vín- culos com a negligência, imperícia ou imprudência. A medicina é uma profissão a ser- viço da saúde do ser humano e da co- letividade e deve ser exercida sem dis- criminação de qualquer natureza. O médico deve exercê-la com o máxi- mo de zelo e o melhor de sua capaci- dade profissional. R ESPONSABILIDADE ÉTICA O atendimento de urgência é uma obrigação do Estado. O direito ao atendimento de emergência é igual ao direito à vida, à educação, ao traba- lho etc. Essa é a questão ética mais importante do atendimento de urgên- ESPAÇO CREMERS 192 Revista AMRIGS, Porto Alegre, 48 (3): 190-194, jul.-set. 2004 cia. Alem disso, também constitui res- ponsabilidade ética, por parte do di- retor técnico, assegurar o controle de qualidade profissional de todos os que atuam no setor de emergência. Com- pete-lhe promover o aprimoramento científico de toda equipe de atendi- mento, de tal modo que toda ação no setor de urgência deve ser fundamen- tada em rotinas próprias e protocolos assistenciais previamente aprovados e constantemente revisados, sem es- quecer o raciocínio clínico e a auto- nomia do médico e que algo correto do ponto de vista técnico pode não ser do ponto de vista ético. P RIORIDADE DO ATENDIMENTO A ordem é que deverão ser aten- didos prioritariamente os mais graves mas todos devem ser atendidos. Pa- cientes mais angustiados ou com maior ansiedade podem também ter prioridade no atendimento. Com relação ao uso de equipamen- tos, como, por exemplo, respiradores artificiais, o Poder Judiciário tem ma- nifestado que deve ser observada a ri- gorosa ordem cronológica da chegada do paciente no local do atendimento. Juridicamente não importa quem tem maiores chances de sobreviver. Não se retira aparelho de quem já o está utilizando, nem se substitui apa- relho melhor por outro pior. Não se antecipa alta de UTI para paciente sem plenas condições, para liberar a outro necessitado. É o hospital, através do seu Dire- tor Técnico, que tem a responsabili- dade de prover a existência de equi- pamentos imprescindíveis para a ma- nutenção da vida de seus pacientes. C OMISSÕES DE ÉTICA As Comissões de Ética dos Conse- lhos de Medicina existentes nos hospi- tais têm um papel fundamental de zelar e trabalhar pelo perfeito desempenho ético da Medicina e pelo prestígio e bom conceito da profissão. Os pacientes de- vem ser informados da presença des- sas comissões para esclarecer suas dú- vidas e encaminhar reclamações. É importante ressaltar que as Co- missões de Ética Médica não possuem competência para realizar julgamen- to e nem estabelecer penalidades nas questões éticas. A Comissão de Ética Médica, ao receber denúncia ou to- mar conhecimento de eventual infra- ção ética, deverá instaurar uma sin- dicância para apuração dos fatos por meio de audiência, devendo lavrar os depoimentos dos denunciantes, dos denunciados e das testemunhas arro- ladas ou envolvidas, bem como a jun- tada das provas. Uma vez constatado o indício de infração ao Código de Ética Médica, deverá encaminhar ao Conselho Regional de Medicina có- pia de toda essa documentação,que deverá ser mantida arquivada. A Re- solução CFM 1.657/2002 regulamen- ta as Comissões de Ética. G REVE NOS SERVIÇOS DE EMERGÊNCIA O Código de Ética Médica, no seu artigo 24, normatiza: “É direito do médico suspender suas atividades, in- dividual ou coletivamente, quando a instituição pública ou privada para a qual trabalhe não oferecer condições mínimas para o exercício profissional ou não remunerar condignamente, res- salvadas as situações de URGÊNCIA e EMERGÊNCIA, devendo comuni- car imediatamente sua decisão ao Conselho Regional de Medicina. É vedado, portanto, aos serviços de emergência a utilização da greve (suspensão das atividades). A Cons- tituição Federal/88 reconhece expres- samente a greve como direito funda- mental, tanto para o trabalhador em geral (art. 9), quanto para os servido- res públicos civis (art. 37, incisos VI e VII). Entretanto, a Lei 7.783/89, art. 10 (II), considera serviço ou ativida- de essencial a assistência médica e hospitalar. O artigo 11 obriga a pres- tação dos serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiá- veis da comunidade. É aceitável sob o ponto de vista ético a utilização de comissões de avaliação e triagem pelo movimento grevista; entretanto o as- sunto é suscetível de questionamento judicial. G REVE DE MÉDICOS RESIDENTES A Lei 6.932/81 estabeleceu que a Residência Médica é modalidade de ensino, recebendo o médico uma “bolsa”. Não há relação de emprego. Mesmo que conceitualmente se trate de uma “bolsa”, não passa desperce- bido a ninguém que se trata de uma forma de remuneração. A própria lei o faz contribuinte da Previdência So- cial, como “segurado autônomo”. Como médicos, o artigo 24 do Códi- go de Ética Médica assegura o direi- to à paralisação dos residentes. Como não são empregados e exercem ativi- dade discentes, em princípio a respon- sabilidade pelo atendimento é da ins- tituição (hospital), que deve providen- ciar a presença de médicos para o atendimento, até porque há também os preceptores. Entretanto, se o resi- dente está no local e há uma emer- gência, ele, como médico que é, não se pode furtar ao atendimento. S UPERLOTAÇÃO DOS SERVIÇOS DE EMERGÊNCIA A Constituição brasileira de 1998 estabelece o dever do Estado e o di- reito de todos à saúde, acrescentando como essencial, universal e igualitá- rio o acesso às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde. Nesse sentido o Poder Judiciá- rio, representado pelo Tribunal de Jus- ESPAÇO CREMERS Revista AMRIGS, Porto Alegre, 48 (3): 190-194, jul.-set. 2004 193 tiça do RS, tem interpretado questões como a superlotação em unidades de terapia intensiva pediátrica da rede pública como sendo responsabilida- de do Estado a contratação de leitos na rede privada nessa situação. Tam- bém a questão da disponibilidade de medicamentos indispensáveis à so- brevivência do cidadão, quando este não puder prover o sustento próprio sem privações, é obrigação do Esta- do a forma de provê-los. Essa é a ma- neira como os países civilizados agem para que o sistema de saúde possa fun- cionar priorizando o atendimento de emergência. É fundamental que o médico, atuando num serviço de emergência superlotado, possa trans- ferir aos órgãos competentes (direção técnica e gestores públicos) e não ao paciente a dificuldade da prestação do serviço. T ESTEMUNHAS DE JEOVÁ É vedado ao médico efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e consentimento prévio do paciente ou de seu respon- sável legal, salvo em iminente peri- go de vida. A legislação penal em vigor admite como crime deixar de prestar assistência a pessoas com grave ou iminente risco de vida. Nesse caso o médico deve agir no cumprimento legal do dever. Assim determina a Resolução CFM 1.021, de 26 de setembro de 1980. O mé- dico deve lembrar, entretanto, que o sangue pode ser substituído por outros fluidos ou estimulantes da eritropoiese para a correção da ane- mia do paciente testemunha de Jeo- vá, optando sempre pela forma de tratamento que não sacrifique os preceitos religiosos do paciente. Para o ordenamento jurídico bra- sileiro, cuja base é a Constituição Fe- deral de 1988, a vida é um bem indis- ponível. No confronto entre dois bens, deve prevalecer o de maior valor; no caso, a vida. Segundo o Código de Ética Médi- ca (artigo 8o): “O médico não pode, em qualquer circunstância ou sob qualquer pretexto, renunciar à sua li- berdade profissional, devendo evitar quaisquer restrições ou imposições que possam prejudicar a eficácia e correção de seu trabalho.” O RDEM DE NÃO REANIMAÇÃO A ordem de não reanimação (ONR) visa a respeitar a autonomia de pacientes e familiares e evitar a adoção de medidas que comprome- tam a dignidade humana. A obsti- nação terapêutica através de medi- das ou procedimentos que não mos- tram eficácia comprovada ou me- lhora das condições do paciente ou da qualidade de vida deve ser ques- tionada. A adoção da ONR, entretanto, apresenta dificuldades de implanta- ção nos serviços de emergência pela falta de interação necessária entre médicos, pacientes e familiares para adoção desse tipo de medida. A au- sência de conceitos claros sobre fu- tilidade terapêutica, o risco de o mé- dico avaliar inadequadamente a si- tuação, baseado em informações in- completas, e o conflito ético em re- lação ao paciente no que se refere às esperanças de tratamento tornam a adoção da ONR muito restrita na situação de emergência. Apesar disso, a ONR pode ser empregada por médicos, pacientes, familiares e instituições quando es- tiver normatizada previamente. A ONR deve ser restrita ao não início de manobras de ressuscitação car- diopulmonar quando não houver be- nefícios clínicos comprovados em termos de sobrevida e qualidade de vida. De maneira prática, a ONR restringe-se à aplicação da massa- gem cardíaca externa, desfibrilação e ventilação assistida. Tratamentos não considerados como parte dessa atitude são: uso de antibióticos, he- moderivados, técnicas de diálise, quimioterapia, vasopressores, an- tiarrítmicos, hidratação e nutrição enteral ou parenteral. Câncer avançado sem possibili- dades terapêuticas, doença pulmo- nar obstrutiva crônica avançada, AIDS sem possibilidades terapêuti- cas, acidentes vasculares cerebrais hemorrágicos extensos, estados ve- getativos persistentes e doenças neurológicas degenerativas avança- das são situações que podem ser avaliadas para a aplicação da ONR, desde que atenda aos desejos, valo- res e crenças do paciente e de seus familiares. Contudo, a ONR não constitui normativa a ser seguida in- discriminadamente e não existe res- ponsabilidade ética sobre a decisão tomada. D EVERES DO MÉDICO E DO HOSPITAL EM RELAÇÃO AO PRONTUÁRIO Conforme a Resolução do CFM no 1.638/2002, art. 1o, o prontuário mé- dico constitui um documento único constituído de um conjunto de infor- mações, sinais e imagens registradas e geradas a partir de fatos e aconteci- mentos relativos à saúde do paciente e à assistência a ele prestada. O pron- tuário tem caráter legal, sigiloso e possibilita a comunicação entre mem- bros da equipe multidisciplinar, a con- tinuidade da assistência prestada e pode servir de instrumento científico. Todo ato médico deve estar registra- do no prontuário. Quatro são os princípios básicos das informações contidas no pron- tuário: integridade (apenas pessoas autorizadas podem modificar as in- formações), confidencialidade (as informações devem estar restritas a um grupo de pessoas autorizadas); disponibilidade (as informações de- vem estar disponíveis quando soli- citadas, entretanto viola a ética a en- ESPAÇO CREMERS 194 Revista AMRIGS, Porto Alegre, 48 (3): 190-194, jul.-set. 2004 trega de prontuário a companhia se- guradora responsável pelo reembol- so das despesas/Recurso Especial 159527-RJ);e legalidade (o pron- tuário deve atender aos aspectos éti- cos e legais das informações, deven- do estar disponível também a de- terminado perito nomeado por um juiz). A guarda do prontuário, confor- me estabelece a Resolução do CFM no 1.639/2002, deve ser mantida pelo prazo mínimo de 20 anos a par- tir do último registro. De acordo com o artigo 69 do Código de Ética Médica, é vedado ao médico deixar de elaborar prontuário médico para cada paciente. C ONCLUSÃO Profundas transformações da so- ciedade, ocorridas nas últimas déca- das, especialmente as relacionadas à prática médica, têm contribuído para o aparecimento de situações favorá- veis ao questionamento da atuação dos profissionais médicos. O enfrentamento desta questão passa preponderantemente por um maior interesse dos médicos, princi- palmente pelos aspectos éticos e le- gais da profissão. Passa pela preven- ção; prevenir não para evitar pagar, prevenir para dar um passo adiante no bem-estar dos seres humanos, para melhorar a qualidade de vida. R EFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. A ÉTICA NA EMERGÊNCIA, LUIZ CARLOS SOBANIA; Desafios Éticos, edição do Conselho Federal de Medici- na, Brasília, 1993. 2. TRATAMENTO ARBITRÁRIO, as- pectos éticos e legais, Genival Veloso de França; Bioética Clínica, editora Re- vinter, Rio de Janeiro, 2003. 3. BIOÉTICA CLÍNICA, Cícero de An- drade Urban, editora Revinter, 2003. 4. Código de Ética Médica – Resolução CFM no 1246/88. 5. MANUAL TÉCNICO DISCIPLINAR – Cremers, 2004. 6. A INFLUÊNCIA DO DIREITO NO EXERCÍCIO DA MEDICINA, Jorge Timi, Editora Revinter, 2004.
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