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Revista do GELNE, v.19, n.2, 2017 ISSN: 2236-0883 ON LINE 76 Revista do GELNE, Natal/RN, Vol. 19 - Número 2: p. 76-90. Jul-Dez. 2017 A TRANSGRESSÃO DO PERSONAGEM DETETIVE NAS SÉRIES TELEVISIVAS “ELEMENTARY” E “CSI - CRIME SCENE INVESTIGATION” THE TRANSGRESSION OF THE DETECTIVE CHARACTER IN THE "ELEMENTARY" AND "CSI - CRIME SCENE INVESTIGATION" TELEVISION SERIES Cristina I. Santana de Oliveira1 RESUMO: Presenciamos um crescente interesse em torno das séries de televisão, em especial as norte-americanas que atingem múltiplos mercados e têm, em sua retaguarda, uma experiência cinematográfica de sucesso. Consolida-se um acervo de pesquisas que relaciona essas séries às narrativas literárias - caso do detetive Sherlock Holmes de Arthur Donan Coyle. Procuraremos analisar como produtores de Hollywood e as novas tecnologias revitalizam esse personagem criando possibilidades de manutenção e incentivo a novos leitores para o gênero policial. A breve reflexão sobre os gêneros de discurso (Bakhtin e Todorov) demonstra que sua maleabilidade pode trazer novos olhares para esse segmento literário, movimentar o cenário editorial, televisivo- cinematográfico e acadêmico. Palavras-chave: Narrativa Policial. Sherlock Holmes. Detetive. Séries de Televisão ABSTRACT: We are seeing a growing interest in television series, especially the North American that reach multiple markets and have a successful cinematic experience behind them. It consolidates a collection of research that relates these series to the literary narratives - case of the detective Sherlock Holmes of Arthur Donan Coyle. We will try to analyze how great producers of Hollywood and the new technologies revitalize this character creating possibilities of maintenance and incentive to new readers for the police genre. The short reflection on the genres of discourse (Bakhtin and Todorov) shows that its malleability can bring new views to this literary segment, for the editorial, television-cinematographic and academic scenery. Keywords: Police narrative. Sherlock Holmes. Detective. TV Series INTRODUÇÃO Este artigo tem por objetivo apontar alguns elementos, que na adaptação do romance policial para o meio televisivo, criam uma nova dimensão para o personagem detetive. Para isso faz-se necessário uma pequena discussão sobre gêneros e seus tênues limites. Limites esses que permitem ao leitor criar um horizonte de expectativas e que norteiam escritores na composição de suas narrativas. O gênero policial está dentro do grande guarda-chuva conceitual de gêneros do discurso, analisado por Bakhtin (2010) e Todorov (1980) e alguns outros semioticistas. A conceituação, mesmo que de maneira ampla, de gênero é importante, pois a narrativa policial é 1 Doutoranda em Letras/Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC) Revista do GELNE, v.19, n.2, 2017 ISSN: 2236-0883 ON LINE 77 Revista do GELNE, Natal/RN, Vol. 19 - Número 2: p. 76-90. Jul-Dez. 2017 entendida, por vezes, como um subgênero, mas que apresenta características próprias e peculiares. Para Bakhtin os gêneros discursivos são enunciados, relativamente estáveis, com um conteúdo temático em uma composição específica. Esses gêneros modificam-se de acordo com o propósito comunicacional e levam em conta formas de produção, estilo, linguagem, etc. Ao acrescentarmos a criatividade humana, potencializamos inúmeros e variados tipos de discurso. Os gêneros do discurso são incontáveis e heterogêneos resultando em “traços gerais [...] demasiadamente abstratos e vazios” (Bakhtin, 2010, p. 266). Para melhor esclarecer o que seria então um gênero de discurso, já que sua definição parece excessivamente aberta e ampla, Bakhtin, o divide em dois grupos: um primário ou simples e um secundário ou complexo. Os gêneros discursivos complexos são os romances, os dramas, textos científicos, etc.…, pois carregam consigo uma ideologia. (Bakhtin, 2010, p. 263) Tzvetan Todorov2 também investigou os gêneros do discurso e apresentou sua conceituação. Para ele os gêneros são classes de texto, sendo que a palavra discurso deve ser entendida como sinônimo de texto (Todorov, 1980, p.46). Destaca também que um discurso se compõe de enunciados inseridos em um contexto de enunciação. Bakhtin denomina esse contexto de campo de atividades porque contém um sujeito enunciador dentro de certas condições e finalidades especificas. Um dos mais renomados pesquisadores brasileiros da Análise do Discurso, José Luiz Fiorin aponta em seu livro Introdução ao pensamento de Bakhtin (2008) que a noção de gênero é entendida, via uma visão bakhtiniana, como “um conjunto de propriedades formais a que um texto deve obedecer” (Fiorin, 2006, p.60). Ressalta o linguista que a preocupação do linguista estava mais no processo de produção dos gêneros discursivos do que na definição de gênero propriamente dita. Isto porque há uma relação inerente entre o uso da linguagem e as relações humanas. Os seres humanos agem em determinadas esferas de atividades, as da escola, as da igreja, as do trabalho num jornal, as do trabalho numa fábrica, as da política, as das relações de amizade e assim por diante. Essas esferas de atividades implicam a utilização da linguagem na forma de enunciados. (Fiorin, 2006, p.61) Corroborando com essa observação apontada por Fiorin(2006), é importante também ressaltar que Bakhtin também investiga a Estilística como um aspecto da Linguística, pois ela está intimamente relacionada aos gêneros do discurso. Um estilo se liga as formas típicas de enunciados, ou seja, aos gêneros do discurso. Se o enunciado é algo particular, nele encontraremos traços de um estilo individual. O campo da Literatura é promissor para esse processo. Cada gênero discursivo corresponde a determinado estilo por causa dessa maleabilidade, ou como prefere ressaltar Bakhtin “os gêneros do discurso são relativamente estáveis” (BAKHTIN, 2010). O aparecimento de um “novo” gênero de discurso é delimitado por uma série de características, mas ele ganha destaque a partir do momento em que diferentes autores passem a explorá-lo. Para Todorov, os gêneros do discurso podem ser avaliados sob dois aspectos distintos: a observação empírica e a análise abstrata. O primeiro ligado à percepção da relação de codificação que compõe o gênero e a segunda relacionada à codificação das propriedades discursivas (TODOROV, 1980). Segundo sua óptica, as diferenças entre os gêneros podem mostrar, por exemplo, porque o romance de suspense não seria considerado uma narrativa policial clássica. Considerando então o horizonte de expectativas é possível se pensar que aspectos e características o leitor do romance policial espera desse gênero? 2 Les genres du discours (1980 – edição em Língua Portuguesa) Revista do GELNE, v.19, n.2, 2017 ISSN: 2236-0883 ON LINE 78 Revista do GELNE, Natal/RN, Vol. 19 - Número 2: p. 76-90. Jul-Dez. 2017 Fiorin (2008, p.63) ressalta a relevância na compreensão do porquê determinados enunciados são produzidos de uma forma e não de outra. Que elementos da esfera literária levam ao aparecimento desse tipo de enunciado. O gênero surge em certa época, lugar, sob certos critérios que lhe passa a ser “típicos”. Entretanto, ao transitar no meio social ele se transforma. Para o semioticista há uma combinação de critérios que acarreta um remanejamento e mudança de valor em função de seu entorno cultural. Todorov assim como Bakhtin consideram a existência de enunciados para formação de textos, mas Todorov não via com bons olhos as transgressõesdas regras de um gênero. Isso denotaria a pretensão de criação de um novo gênero. Ambos os linguistas não deixam de afirmar a questão ideológica que perpassa a formação de gêneros discursivos; entendem que ela regula a relação entre autores e leitores de textos pertencentes a um gênero específico. Mesmo se ponderarmos que há diferenças entre as narrativas literárias e as traduções/adaptações para outras linguagens, não se deve desprezar as afinidades complexas vindas das relações intertextuais, o que possibilita conexões com as mais variadas áreas de conhecimento. Parafraseando Leila Perroné Moises (1998), ao inserir em seus estudos os conceitos de dialogismo e intertextualidade3, compostos de vozes diversas, reafirma que o objetivo desses processos é examinar de que modo acontece à produção de um “novo” texto, os processos de rapto, absorção e integração de elementos externos na criação da nova obra. A tradução da narrativa literária para outras linguagens configura-se como novo produto, com novas significações e sentido. Even-Zohar (1990), linguista israelense, dirigiu seus estudos investigando estas relações comunicacionais como sistemas integrados em sua Teoria dos Polissistemas onde ele retrabalhou algumas categorias afirmando que a Literatura não pode ser considerada apenas como um conjunto de textos acabados e encerrados em si mesmos. Ela é, antes de tudo, uma resultante de atividades que, em seu todo, constitui um sistema que interage com outros sistemas. Para organizar os elementos que formam essa noção de sistemas, o crítico israelense, buscou referências nos estudos de Roman Jakobson e os adequou à Literatura. Esquematizou então, sua reflexão, redefinindo alguns termos fundamentais para compreensão desse funcionamento sistémico. Entende que Instituição é contexto; Repertório é código, Produtor é emissor/escritor, Consumidor é o receptor/ leitor (e telespectador), Mercado é o canal e Produto a mensagem. Declara que é preciso pensar “os textos” como produtos em diálogo com o meio social, vinculado a um discurso de poder moldado a partir de certo repertório legitimado e aceito. Como Kristeva e Bakhtin, nas palavras de Leyla Perrone-Moisés “a literatura é como um sistema de trocas, onde as questões da propriedade, da originalidade se relativizam e a questão da verdade se torna impertinente”. (MOISÉS, p.94, 1990) A narrativa policial clássica criada por Edgar Allan Poe insere, nesse gênero, certos elementos que o tornam “particular”, traços de um estilo individual. A criação de um detetive como personagem central dessa narrativa tornou-o elemento definidor desse gênero, mas não só isso. A inserção desse personagem traz um discurso cientifico, preciso, racional. Aspectos diretamente ligados ao contexto no qual o autor estava. O desenvolvimento das Ciências ligadas à fisiologia, a busca por maior compreensão do ser humano, o descrédito da Instituição Polícia e seu fraco discurso de proteção à sociedade, a propagação de jornais de cunho popular, etc., despertaram um interesse pelo percurso de investigação do detetive. O gênero tem sua origem em um certo contexto, que absorve traços que lhe passam a ser típicos, transita nesse meio social e se transforma. As narrativas policiais são exemplos de como o gênero se revitalizou e ganhou espaço nobre no meio televisivo. Feitas estás considerações, adentremos ao mundo emocionante do romance policial e suas particularidades de discurso na contemporaneidade. 3 Kristeva (1966) concebe o termo intertextualidade como uma propriedade inerente ao texto literário que se constrói como um mosaico de citações, como absorção e transformação de outro texto, em outras palavras, o que antes era entendido como uma relação intersubjetiva passa a ser coletiva. Revista do GELNE, v.19, n.2, 2017 ISSN: 2236-0883 ON LINE 79 Revista do GELNE, Natal/RN, Vol. 19 - Número 2: p. 76-90. Jul-Dez. 2017 1. Narrativa Policial: um gênero literário É fator de consenso que a leitura é uma atividade fundamental para o aprimoramento intelectual. Pode-se dizer que lemos muito, mas as leituras são rápidas ou superficiais. Apesar da acessibilidade aos meios tecnológicos e as redes de informação como a internet e as redes sociais, a maioria de brasileiros continuam desconhecendo a Literatura. Mas se não há um hábito de leitura consistente de obras literárias, não se pode dizer o mesmo do hábito de assistir televisão. A presença de um aparelho de TV’s nos lares brasileiros é um fator cultural já há muitas décadas. Considerar este panorama é importante, bem como as várias pesquisas dasdiversas áreas de conhecimento que são realizadas para compreensão do processo de chegada e instalação desse meio de comunicação no país. Dentro desse universo cultural, muitos são os caminhos pelos quais se pode desenvolver um trabalho acadêmico que nos auxilie a compreender o consumo de Literatura via meios televisivos. O diálogo entre esses dois elementos “Literatura” e “Televisão” cresce e se diversifica. Mesmo que alguns brasileiros desconheçam obras de grandes escritores, eles os assistem sem, muitas vezes se dar conta disso. Novelas de época, minisséries, casos especiais, e mais recentemente seriados ganham espaço na programação e divulgam, mesmo que com algumas restrições de críticos especializados, narrativas literárias. Esse artigo procura então, analisar, com foco na investigação dos processos de tradução de narrativas literárias policiais para a televisão (séries), a personagem clássica do detetive revitalizado a partir da inserção de novas características (conjuntos investigativos e figura feminina) como forma de reposicionar o gênero no mercado editorial e alcançar leitores que não conheciam ou não se interessava pela narrativa policial. Entrar no mundo misterioso do romance policial é, antes de tudo, buscar aventuras, emoções, enigmas e mistérios. Mas é também conhecer, pelas eximias mãos dos escritores4 que se dedicaram a esse gênero, as controversas, excêntricas e admiráveis personagens chamadas de “detetives”. Concebidos no campo da ficção, esses heróis ganham vida e ultrapassam as páginas dos livros. Para Medeiros Albuquerque, autor de O emocionante mundo do romance policial (1969), as narrativas que conhecemos hoje como romance policial têm suas origens no romance de aventuras. Por um longo período os dois gêneros permaneceram ligados intimamente, mas com a valorização do raciocínio e da lógica, o romance policial passou a se destacar e ganhou certa autonomia (ALBUQUERQUE, 1969, p.1-11). Contudo, o romance de aventuras é parte da história da humanidade e está presente nas narrativas que contam as grandes epopeias mitológicas, os relatos bíblicos, lendas, fatos históricos relevantes, etc., são representativos do grande desafio que é a sobrevivência e a evolução do homem na Terra. Por séculos a aventura dominou a literatura mundial. As transformações culturais, econômicas e sociais criaram novos nichos de leitores e o romance de aventuras sofreu algumas modificações. Albuquerque (1979, p. 3) observa que o romance de aventuras se dividiu em três fases: a primeira preservou o espirito, ampliando apenas seu campo de ação. Em um segundo momento inter-relaciona-se com o romance de espionagem e, em seguida surge então o romance policial onde a razão e a lógica se faz maior que a ação e a força. Alguns autores preferem denominar esse gênero de romance de mistério, de ação, ou até mesmo criminal, uma vez que sempre existirá um crime a ser resolvido. É pertinente também a denominação de romance de mistério já que sempre haverá um enigma a ser desvendado. 2. Allan Poe: o pioneiro no gênero policial moderno 4Edgar Allan Poe, Conan Doyle, Agatha Christie, Dorothy Sayers, Émile Gaboriau, Edgar Wallace são alguns deles. Revista do GELNE, v.19, n.2, 2017 ISSN: 2236-0883 ON LINE 80 Revista do GELNE, Natal/RN, Vol. 19 - Número 2: p. 76-90. Jul-Dez. 2017 O marco inicial para o reconhecimento do gênero policial deu-se a partir de três contos escritos por Edgar Allan Poe no século XIX. São eles: “Os crimes da rua Morgue” (1841), “O mistério de Marie Roget” (1842) e “A carta roubada” (1845). É nesse primeiro conto que Allan Poe nos apresentará seu célebre detetive C. Auguste Dupin que aparecerá nos dois contos seguintes. O protagonista é uma figura extraordinária, dotado de uma inteligência fora do normal. O próprio escritor nos dá pistas da personalidade da personagem. Residindo em Paris, durante a primavera e parte do verão de 18..., travei conhecimento com um senhor C. Auguste Dupin, jovem cavalheiro de excelente e ilustre família. Em consequência de uma série de acontecimentos desastrosos, ficara reduzido a tal pobreza que a energia de seu caráter sucumbira aos reveses, tendo ele deixado de frequentar a sociedade e de esforçar-se em recuperar sua fortuna. Graças a condescendência de seus credores, mantinha-se ainda de posse de resto de seu patrimônio, com cuja renda conseguia, com rigorosa economia, prover-se do necessário, sem cuidar das coisas supérfluas. Tinha na verdade um único luxo: os livros, que em Paris, podem ser adquiridos a baixo custo. (...). Tinha uma esquisitice, que era amar a noite por amor da noite. (...). Em tais condições não podia deixar eu de notar e de admirar certa habilidade peculiar. Dizia-se, com vangloria e com uma risadinha escarninha, que a maioria dos homens tinha para ele janelas no coração, acompanhando geralmente tal afirmativa de provas diretas e bem surpreendentes de seu profundo conhecimento de minha própria pessoa. (POE, [1841]1960, p.18) Dupin é encarregado de encontrar a identidade de um criminoso e, para isso utiliza um método de investigação preciso e particular, baseado no raciocínio lógico. A trilogia criada por Allan Poe foi responsável por determinar as características da personagem “detetive” na narrativa policial moderna e contemporânea. Muitos outros autores nos anos seguintes, não só nos contos policiais, foram influenciados por ele. Das características criadas por Allan Poe pode ser ressaltar que o detetive não podia pertencer à polícia, uma vez que no contexto histórico da época, a população não confiava nessa instituição; trabalharia sozinho, pois era dotado de extrema inteligência e porque seu adversário, o criminoso, também agia só; e o fator mais relevante; deveria, obrigatoriamente, utilizar um método de investigação de natureza racional, lógica. Além do detetive, na narrativa policial deveria existir impreterivelmente um criminoso e, é óbvio, pelo menos uma vítima. A vítima tem para o criminoso um valor (de revelação de um segredo, de usurpar-lhe uma fortuna, de interromper um relacionamento amoroso, etc.). Observa Lins (1947, p. 19) “[...] o verdadeiro núcleo do romance policial está no assassinato, que tem além de tudo o privilégio de colocar o leitor diante do mistério da morte, aquele que mais excita, inquieta e apavora a natureza humana.”. Após o crime, o criminoso deve preservar sua identidade em segredo, e o fará mesmo que para isso precise cometer novos crimes. Ao detetive cabe a missão de capturá-lo, evitar novos crimes e reestabelecer o equilíbrio das regras sociais desrespeitada pelo criminoso diante da sociedade em que vive. Em uma sociedade em ebulição do século XIX, com suas teorias evolucionistas e avanço no conhecimento científico, aumento da burguesia, e desenvolvimento e barateamento de impressões, o crescimento da alfabetização, a concentração em meios urbanos, a melhoria do poder aquisitivo, o progresso tecnológico e a própria configuração dos jornais, que surgirá aquele que originalmente é o mais clássico dos detetives da narrativa policial: Auguste Dupin. Será ele o responsável por desvendar três crimes “diferentes”. No primeiro caso, “Os Crimes da Rua Morgue” sucedem-se crimes violentos e chocantes, com aspectos do gênero fantástico centrados em um quarto fechado. O uso de um ambiente fechado não era novidade nos romances5, e atrai ainda 5 “Le Mystére de la Chambre Jayne” de Gaston Leroux; “Na pista do Alfinete Novo” de Edgar Wallace, John Dickson Carr e Carter Dickson, dentre outros exploraram esse recurso. Revista do GELNE, v.19, n.2, 2017 ISSN: 2236-0883 ON LINE 81 Revista do GELNE, Natal/RN, Vol. 19 - Número 2: p. 76-90. Jul-Dez. 2017 mais a atenção dos leitores, pois desafia sua percepção e inteligência. Neste conto o assassino é um macaco que age brutalmente. No segundo conto “O Mistério de Marie Roget”, Allan Poe inspira-se em um caso verídico ocorrido em Nova York, e Dupin a partir de artigos de jornais consegue desvendar o crime. Em “A Carta Furtada”, não há um assassinato, mas o desfecho é inusitado porque estava o tempo todo diante dos olhos dos leitores. Poe é o pai da narrativa policial criando três trabalhos, que mostra cada um, sob um ângulo de mistério diferente: o crime em um quarto fechado cujo assassino é um macaco; um crime real transposto para a ficção e uma carta escondida em um lugar visível a todos. Em uma das falas do personagem-detetive, August Dupin, Poe destaca como se deve encaminhar a investigação a partir dessa personagem que lida com a lógica e os fatos. “(…) Em investigações como esta que estamos fazendo, não se deve perguntar ‘o que aconteceu’, mas sim ‘o que aconteceu desta vez que nunca aconteceu antes’. Na verdade, a facilidade com a qual eu chegarei, ou já cheguei, à solução deste mistério está na razão direta de sua aparente insolubilidade aos olhos da polícia”. (Auguste Dupin “Os assassinatos na Rua Morgue” - 1841) A iniciativa de Poe inaugurou o romance policial moderno e arrebanha seguidores e leitores até os dias de hoje, permanecendo atual e instigante. 3. Conan Doyle e Sherlock Holmes [..] Sim. Tenho tendência a observar e a deduzir. As teorias que expus aí, e que lhe parecem tão fantasiosas, são extremamente práticas, tanto que dependo delas para comer e beber. - E como? - Perguntei sem querer. - Bem, trabalho por conta própria. Imagino que seja o único no mundo com meu ofício. Sou detetive-consultor, se entende o que quero dizer. Aqui, em Londres, há muitos detetives particulares e a serviço do governo. Quando eles têm dificuldades, procuram por mim e tento colocá-los na pista certa. Apresentam-me todos os indícios e, graças a meus conhecimentos da história do crime, geralmente consigo encaminhá-los corretamente. S. Holmes (Um estudo em vermelho, 1887). Arthur Conan Doyle (1859-1930) é declaradamente um dos autores que leram Poe e retirou dele as bases para criação de outro detetive. Médico britânico, criador de Sherlock Holmes (e seu companheiro também médico, Dr. Watson), foi responsável pelo desenvolvimento da criminologia e de técnicas cientificas para solucionar os crimes nos contos policiais. O amplo acervo de obras que relatam as aventuras de Holmes e seu companheiro é conhecido como o cânone holmesiano e é formado por quatro romances e 56 contos6. O detetive aparece pela primeira vez em A study in scarlet 7(1887), quando se apresenta um detetive de inteligência cortante, violinista, amante dos conhecimentos científicos, curioso, arrogante e que usa morfina para aliviar a tensões provocadas pelo seu exercício mental profundo.Em contraste com seu ingênuo amigo dr. Watson, Holmes é capaz de traçar um perfil a partir de um simples cartão de visitas de seu dono, ou até de um chapéu causando o espanto e, por vezes, o desconforto, daqueles aos quais expõe fraquezas e segredos. 6 A obra relativa a Sherlock Holmes é formada por quatro romances fechados: A study in scarlet, The sign of four, The hound of Baskerville e The Valley of Fear, e cinco compilações de contos: The adventures of Sherlock Holmes e The memoirs of Sherlock Holmes, com 12 contos cada; The return of Sherlock Holmes, com 13 contos; His last bow, com 7 contos, e The case-book of Sherlock Holmes, com 12 contos, o que contabiliza 60 histórias protagonizadas pelo personagem. 7 Publicado no Beeton’s Christmas Annual, de 1887 Revista do GELNE, v.19, n.2, 2017 ISSN: 2236-0883 ON LINE 82 Revista do GELNE, Natal/RN, Vol. 19 - Número 2: p. 76-90. Jul-Dez. 2017 (...) Esta brincando. Que informação pode tirar desse velho chapéu amarotado? Perguntou Watson. (...) Tiro dele algumas deduções muito claras e outras baseadas em probabilidades sérias. É evidente que o dono desse chapéu era muito inteligente e vivia bem nos últimos três anos, embora esteja em situação difícil. Era previdente, mas o é muito menos agora o que prova uma decadência moral, que somada ao financeiro parece indicar algum vicio em sua vida, provavelmente embriaguez... (DOYLE, 2014, p.157 - O Carbúnculo Azul). O universo sherlockeano tem alguns personagens que se apresentam em mais de uma de suas aventuras. O fiel companheiro do detetive que, segundo Doyle é seu alter-ego, ocupa fundamental papel na divulgação dos casos do detetive e na condução e construção de Sherlock Holmes literariamente. Ele é o narrador de todas as histórias. É então o elemento de valor literário da criação doyleana, dispositivo que autentica o fazer literário do autor. Sob a voz de Watson conhecemos Holmes. Watson é o leitor que tenta seguir o raciocínio de Holmes, mas a inteligência de Sherlock não se compara aos simples mortais. Ressalta ele para seu amigo: você vê e não observa (DOYLE, 2014, p.14 -Um escândalo na Boêmia). Sempre impressionado pelos crimes que lhes chega, Watson é o lado humano e emocional. Holmes por sua vez atenta-se à logica e declara “Os crimes são comuns. A lógica é rara. Portanto é preciso enfatizar mais a lógica do que os crimes” (DOYLE, 2014, p.271 -As faias cor de cobre). Nesse sentido aproximam-se Auguste Dupin e Sherlock Holmes das temáticas de investigações truncadas, soluções problemáticas criadas por Allan Poe. Conan Doyle resgata esse jogo narrativo que prende o leitor e dá aos seus contos uma solução possível, o que em Poe ainda era embrionário. Dois outros personagens enriquecem a trajetória de Sherlock Holmes: Irene Adler – que aparece em “Um escândalo na Boêmia” – e consegue impressionar o detetive que até então se mostrava descrente da inteligência feminina. Foi assim que se evitou um grande escândalo na Boemia, e que os planos mais perfeitos de Sherlock Holmes foram frustrados por uma mulher. Ele tinha o hábito de ironizar sobre a esperteza feminina, mas daquele dia em diante nunca mais o ouvi fazê-lo. E quando fala de Irene Adler, ou quando se faz alusão à sua fotografia, é sempre com o honroso título de a mulher. (DOYLE, 2014, p.37 - Um escândalo na Boêmia). Na adaptação estadunidense-alemã para as telas de cinema, o filme Sherlock Holmes de 2009, dirigido por Guy Ritchie, à personagem de Irene Adler (Rachel McAdams) ganha destaque e se envolve emocionalmente com Sherlock Holmes que é interpretado por Robert Downey Jr., esses dois personagens se juntam ao Dr. Watson que é representado pelo ator Jude Law em mais duas outras produções. Há ainda (e não poderia deixar de faltar na narrativa ficcional policial) um inimigo maior a quem o detetive persegue em vários momentos: Professor Moriarty. Ao inserir um inimigo que se rivaliza em inteligência com o detetive, Conan Doyle abriu uma possibilidade “de seriação”, ou continuidade das narrativas. Mas ao contrário do que muitos fãs acreditam, o Professor Moriarty aparece apenas em duas histórias criadas por Doyle. Ele é apresentado, mesmo que rapidamente em “O problema final. Memórias de Sherlock Holmes” 8. A caracterização de Moriarty contrasta com a de Holmes, pois ele passa a ideia de plenitude e riqueza. Depois de persegui-lo por três meses, Holmes declara fui obrigado a confessar que afinal encontrara um adversário que, no plano intelectual, equiparava-se a mim. Ao decidir pela morte do detetive, em O problema Final (1893)9 Conan Doyle, deixa um que de mistério sobre a morte dos dois, detetive e criminoso, nas cataratas de Reichnbach. A cena é, metaforicamente, uma maneira de mostrar o equilíbrio de forças 8Disponível em http://www.livros-digitais.com/sir-arthur-conan-doyle/as-memorias-de-sherlock-holmes/252 9 O conto pertence a coletânea de onze contos The Memoirs of Sherlock Holmes (no Brasil, As Memórias de Sherlock Holmes), publicada em 1894 Revista do GELNE, v.19, n.2, 2017 ISSN: 2236-0883 ON LINE 83 Revista do GELNE, Natal/RN, Vol. 19 - Número 2: p. 76-90. Jul-Dez. 2017 intelectuais entre os dois. No cinema a personagem ganha um maior destaque pela manifestação da dualidade entre “mentes brilhantes”, uma que a usa para o bem e outra que a usa para o mal. Na “vida real” a decisão de matar seu personagem mais famoso foi justificada pelo autor como necessária para que ele pudesse se dedicar a outros trabalhos10. Sherlock Holmes foi tão importante para a literatura e o gênero policial que muitos até hoje confundem autor e detetive achando-os uma só pessoa. Das páginas dos livros para a tela de cinema e televisão, Sherlock Holmes é figura ímpar da Literatura policial e da Cinematografia mundial. Dezenas de filmes, séries de televisão, peças de teatro foram produzidas a partir da criação de Conan Doyle. 4. Séries televisivas: recriando Sherlock Holmes Ao iniciar essa seção, recorremos ao filósofo e historiador Rainer Rochlitz que conceituou a figura do detetive no romance policial moderno, como um Dom Quixote, cuja certeza subjetiva não contém nenhuma utopia. Para ele o romance policial clássico é um gênero kitsch precursor da indústria cultural. A fecundidade de adaptações para a televisão, que é um propagador da cultura de massas, pode nos levar a uma compreensão do porquê tantas séries televisivas utilizam-se desse gênero na criação de sua programação. Para o jornalista Rodrigo Seabra (2016), na última virada do século, aconteceu um enorme salto evolutivo e uma reintegração da importância da série de TV, o que foi apelidado pela imprensa especializada como uma nova era do ouro em comparação a outros momentos anteriores. O sucesso desse formato, segundo Morin (2009) se dá porque “se dirigem efetivamente a todos e a ninguém, as diferentes idades, aos dois sexos, às diversas classes da sociedade, isto é, ao conjunto de um público nacional e, eventualmente, ao público mundial”. Nesse sentido, as séries televisivas exploram pontos de atração inserindo, em suas histórias, aspectos comuns (o cenário das grandes cidades é um desses exemplos, acontecimentos “reais” (possíveis), temas recorrentes e “universais” (violência, justiça, drogas, ódio, machismo, doenças, ,racismo), humanização do herói (dramas pessoais de um cidadão comum), substituição do individual/dupla detetive-parceiro para um coletivo que trabalha em equipe para solução de um mistério (os especialistas de CSI ou os médicos de House) e a figura do anti-herói (terroristas, serial killers), etc. Esses elementos despertam cadavez mais o interesse dos telespectadores; na ficção policial trabalha-se a ideia de que não é necessário que haja uma verdade absoluta na resolução de um mistério, mas é preciso criar uma identificação na narração a partir de aspectos com os quais o telespectador está habituado. Em outras palavras, mesmo que pareça um mundo desconhecido, as séries devem tornar acessível as revelações que mostram. Por exemplo, em House as patologias raras devem ter alguma veracidade para que possam ser tratadas pela equipe médica. Em CSI o aparato da polícia científica (especialistas) contém equipamentos possíveis. Os testes e imagens elaborados e apresentados com riqueza visual de detalhes na investigação preenchem o desejo de saber (libido cognoscendi), o que causa ao telespectador uma impressão de descoberta de conteúdos desconhecidos. O sucesso desse nicho na TV explica-se não por sua literal realidade, mas sim por criar condições para uma compensação simbólica sobre o nosso mundo (real). Filmes e séries de televisão que, embora acompanhem em geral a forma clássica da história de detetive, combinam pistas e ação são os de procedimento policiais altamente bem-sucedidos. O serviço policial tem fornecido material para filmes e programas de televisão há décadas. (JAMES, 2012, p. 166) 10 Conan Doyle escreveu uma quantidade significativa de livros sobre a guerra, o exército e o espiritualismo bem como alguns ensaios. Revista do GELNE, v.19, n.2, 2017 ISSN: 2236-0883 ON LINE 84 Revista do GELNE, Natal/RN, Vol. 19 - Número 2: p. 76-90. Jul-Dez. 2017 Para Décio Pignatari (1984) a televisão é um veículo de veículos, um grande rio com grandes afluentes, mas é um rio reversível, ou seja, recebe devolve influências. A palavra escrita é o rio subterrâneo, a literatura está por baixo de toda narrativa. Tal metáfora ilustra ricamente o diálogo entre televisão e outras mídias, entre elas o cinema. A constatação de que a TV é o “novo cinema” é pertinente à medida em que percebemos uma frutífera aproximação de profissionais de Hollywood com o meio televisivo. Pensar uma série é, de certa maneira, elaborar um longa- metragem em partes que se sucedem ou se encadeiam. É natural que os seus produtores e equipe tenham conhecimentos de técnicas especificas e domínio de conceitos cinematográficos. Cada série tem a sua premissa, é um programa único e diferente, mas que se repete de certo modo. Assim como na literatura ela é elaborada em cima de conflitos que envolvem seus personagens. Se não houver o conflito não haverá o que revelar, não haverá necessidade da narrativa, da série. Do pioneirismo literário de Edgar Allan Poe na criação de seu célebre detetive Dupin ao surgimento de inúmeras séries televisivas, mais de um século se passou. Mas as características definidoras do personagem e das engrenagens que compõe o gênero literário policial, aprimorados por Arthur Conan Doyle parece se sintetizar esse pensamento de Poe: “o universo é o enredo de Deus. Uma intriga é apenas um conjunto de relações, e a dedução é um instrumento lógico que permite ordenar essas relações e reduzi-las ao princípio supremo que as contém. Graças a dedução o homem sobe a Deus”. Portanto, em uma narrativa policial, o detetive exerce uma função ética dentro de uma sociedade corrompida e desequilibrada, torna-se mediador entre um mundo em decomposição e uma outra realidade, é isso é atemporal. O romance policial pode então, de modo salutar influenciar uma mudança de costumes dentro de sociedade, cujo sentido parece se perder gradativamente. O também escritor de romances policiais Thomas Narcejac declarou, certa vez, que “o crime, longe de ser uma anomalia é um, efeito de violência que ultrapassa e provém de um estado coletivo de desequilíbrio”. Ao detetive - Dom Quixote moderno – cabe a árdua missão de reestabelecer esse equilíbrio coletivo social. Ao sair das páginas dos livros para outras mídias é preciso destacar a ampla visibilidade que um personagem atinge através da exposição televisiva e como ele se propaga em diversas leituras e adaptações. “A literatura é um sistema integrante de um sistema cultural mais amplo, estabelecendo diversas relações com outras artes e mídias” (PELLEGRINI, 2003, p.9). É essa maleabilidade do texto e suas relações que transformam a literatura em uma fonte inesgotável de inspiração para produções televisivas, teatrais e cinematográficas. Guimarães (2003) reforça essa afirmação ao reconhecer o valor do processo de adaptação, que na maioria das vezes, traz ganhos. O processo de adaptação, portanto, não se esgota na transposição do texto literário para outro veículo. Ele pode gerar uma cadeia quase infinita de referências a outros textos, constituindo um fenômeno cultural que envolve processos dinâmicos de transferências, tradução e interpretação de significados e valores histórico-culturais (GUIMARÃES,2003, p.91) Alguns elementos são reforçados e outros são inseridos de modo a “atualizar” as histórias criadas por Conan Doyle no século passado. Desde a primeira versão cinematográfica até as mais recentes séries, milhares de fãs acompanham o detetive. Destaca-se a versão de 1939 The Hound of the Baskervilles protagonizada pelo ator Basil Rathbone que atuou no papel até 1946 e a mais atual exibida em 2009 na superprodução de Guy Rirchie com os atores hollywoodianos Robert Downey Jr e Jude Law. Para a televisão é importante ressaltar as séries com referência explicita à narrativa sherlockeana (O Jovem Sherlock, Elementary), e as que para o público em geral, não há ligações como a série “médica” House. David Shore, diretor dessa série já admitiu publicamente e insere em vários episódios elementos do universo de Conan Doyle (Holmes e House iniciam-se Revista do GELNE, v.19, n.2, 2017 ISSN: 2236-0883 ON LINE 85 Revista do GELNE, Natal/RN, Vol. 19 - Número 2: p. 76-90. Jul-Dez. 2017 com H, moram em ruas de mesmo nome, seus parceiros têm as iniciais J.W e são médicos, etc.). Muitas séries poderiam ser analisadas, mas os limites de um artigo, restringem o corpus, mas instigam à outros estudos e a outras reflexões. O corpus selecionado é composto por duas séries exibidas nos canais de TV pagas (Universal Chanel, AXN e Sony) e Record (aberta) inspiradas no detetive doyleano. Tratam-se das séries Elementary e CSI (versões Las Vegas, Miami e Nova York) e CSI Cyber. 5. Séries televisivas: o cinema em casa A entrada no século XXI trouxe mudanças reais e objetivas no modo de pensar a produção televisiva. A entrada de séries na grade de exibição proporcionou um salto evolutivo chamado por alguns especialistas de “renascimento”. Mesmo que para o grande público não haja diferenças, é importante esclarecer o que é e o que não é uma série televisiva. De um modo geral a série é a história roteirizada, que conta a história de um grupo relativamente pequeno, normalmente sem uma previsão de encerramento, tem periodicidade quase sempre semanal, direcionada a um certo público. Essa série pode ser seriada ou episódica. Como os termos não se distinguem muito na linguagem popular, podem parecer a mesma coisa, mas não são. A série episódica será aquela que cada história tem um final no episódio e ele não tem necessariamente uma ligação com a trama da semana seguinte. O fã nesse caso, não precisa seguir todas a sequência cronologicamente, em qualquer momento pode assistir um episódio pois entenderá o enredo. Exemplos atuais são as séries Criminal Minds, Law & Order, Doctor Who, House, Monk, Psych, Elementary, CSI, etc. A série serializada, por sua vez, conta uma história que tende a ser contínua, os episódios dependem uns dos outros e se assemelham à capítulosde uma novela. É um formato mais elaborado, pois os personagens devem “crescer” em detalhes. Esse modelo exige uma fidelidade maior do telespectador e uma fidelização à programa. Segundo Seabra (2016) os telespectadores costumam se apegar mais às séries serializadas do que as episódicas, o que pode ser comprovado pelo crescimento nas vendas de DVD de temporadas completas, como se compra um romance. Exemplos desse formato são encontrados em The Walking Dead, Lost, Game of the Thrones, Heroes, entre outros. O hábito de acompanhamento de novelas, no caso do Brasil, influencia na captação desse público que tem acesso à programação dos canais fechados e na diversidade de séries cada vez mais disponibilizadas. Dado esses pequenos esclarecimentos vamos analisar duas séries que celebram a criação de Arthur Conan Doyle em tempos atuais. Série estas que mantém no imaginário popular a figura do maior detetive da literatura universal: Sherlock Holmes e seu método dedutivo. Passado mais de um século, o personagem continua sendo retratado sob os mais diversos olhares e com isso alcança públicos que desconheciam sua origem literária. Uma recente exposição no Museu de Londres sobre Sherlock Holmes resume brilhantemente a abrangência do personagem na Literatura, Cinema e televisão. Denominada de “O homem que nunca existiu e nunca morrerá” sintetiza a vitalidade do personagem que ultrapassou o campo ficcional e se tornou referência para várias gerações de escritores e fã desse gênero policial. Elementary: O mundo está cheio de coisas óbvias que ninguém jamais observa Esta série de televisão estadunidense, criada por Robert Doherty, estreou na CBS (EUA) em 27 de setembro de 2012. É protagonizada por Jonny Lee Miller como um problemático Revista do GELNE, v.19, n.2, 2017 ISSN: 2236-0883 ON LINE 86 Revista do GELNE, Natal/RN, Vol. 19 - Número 2: p. 76-90. Jul-Dez. 2017 detetive londrino, ex-viciado em drogas, consultor da Scotland Yard11 que vai para Nova York para reabilitação. Seu abastado pai impõe que ele divida um apartamento com a Dra. Joan Watosn, uma médica que perdeu sua licença para clinicar em função da morte de um paciente. Watson na verdade deve acompanhar seu tratamento, mas os dois se aproximam e passam a construir uma relação de companheirismo e respeito. Ambos são criados a partir de problemas reais o que proporciona uma identificação com os telespectadores. A inteligência de Sherlock é “um dom e uma maldição” – como observava outro detetive cuja série circulou pela TV entre os anos de 2002/2009 – Monk - e isso é um fardo grande de suportar. O uso de drogas alivia sua alta tensão mental, mas também coloca toda a fragilidade e solidão que o personagem vivencia. Essa fragilidade é representada na personagem Watson que não consegue mais exercer a medicina e se afasta do seu convívio social, busca uma redenção através da salvação de Sherlock Holmes. A série apresenta duas inovações (ou transgressão?) se considerarmos que ela tem sua base na criação de Conan Doyle: tanto John Watson quanto Moriarty são representados por figuras femininas. Elementary focaliza a figura da mulher de uma maneira brilhante. Coloca Watson como Joan e dá toques de delicadeza à série sem perder a majestade. Moriarty por sua vez é a única personagem a qual Sherlock se iguala em capacidade mental. Dois presentes atualizadíssimos à uma era de empoderamento feminino. Joan Watson é o porto seguro do paciente Sherlock e Moriarty é aquela que desperta a paixão e a dor que o amor provoca em um homem que não consegue lidar com sua humanidade. Sherlock Holmes mantém, nessa série, a genialidade, a lógica, a dedução de um Dupin de Allan Poe, mas convive com problemas da modernidade. Dos anos de 1880 até os dias de hoje, Holmes tornou-se o protótipo de detetive e um ícone na cultura e literatura inglesa. Faz parte de um seleto grupo de personagens que ofuscaram seus criadores12 e entraram para o inconsciente coletivo universal. Crime Scene Investigation: primeira série policial a focar seus casos pelo prisma da Ciência. É a segunda série a ser apontada nesse artigo como inovadora da narrativa policial. O foco de cada episódio é a investigação realizada por um grupo de cientistas forenses13 do Departamento de Criminalística. Criada no final dos anos 2000, por Anthony Zuiker, ela estreou no Brasil no ano seguinte e já está em sua 13ª temporada. O que nos chama a atenção nessa seriação é a transformação do detetive em um coletivo de investigadores centrados num só crime. A dedução, lógica e muitos efeitos especiais trazem o telespectador para um complexo de especialistas que buscam desvendar o crime. É ambientada em três cidades americanas Las Vegas (original), Miami ou Nova York (franquia). A narrativa é construída a partir das cenas do crime, e foca principalmente o processo de análise das pistas em laboratórios recheados de equipamentos de alta tecnologia. O detetive é um cientista e usa todo um aparato de equipamentos para chegar à solução. “Todo conhecimento é útil para o detetive” (DOYLE, 2014, p.1318) Curioso e interessado pela ciência forense, Anthony Zuiker, visitou o laboratório de criminologia de La Vegas. Com uma ideia e proposta clara, chamou o produtor Jerry Bruckheimer14 para trabalhar com ele na produção da série. Reunidos, decidiram quais seriam os 11 Policia metropolitana instituída a partir de 1829, quando a população desacreditava dos policiais na resolução de crimes e proteção da sociedade inglesa vitoriana. Londres, mergulhada em seu nevoeiro, povoada de uma multidão de anônimos, labirintos de ruas escuras era o cenário que amedrontador. 12 Frankenstein de Mary Shelley, Drácula de Bram Stoker, Dom Quixote de Cervantes, etc. 13 Compreendido como o conjunto de todos os tipos de conhecimentos científicos e tecnológicos existentes, utilizados para desvendar crimes. 14 É um dos mais importantes produtores norte-americano de cinema e TV, foi responsável pelos filmes Top Gun, Dangerous Minds, Armageddon, entre outros na década de80/90. É conhecido como o rei do entretenimento. Revista do GELNE, v.19, n.2, 2017 ISSN: 2236-0883 ON LINE 87 Revista do GELNE, Natal/RN, Vol. 19 - Número 2: p. 76-90. Jul-Dez. 2017 elementos essenciais da série: intriga e suspense, um cadáver, o processo de descobrimento dos casos. A tecnologia e os efeitos especiais - marca do seriado - ficaram a cargo de Danny Cannon15. Com essa perspectiva, conseguiu-se certo glamour à profissão, até então tratada como de segundo escalão. Exemplo do que foi citado anteriormente esse grupo de produtores/técnicos resgata sua experiência com o cinema e a agrega à série primando por um padrão de qualidade e meticulosidade que convence o telespectador num emaranhado de especialistas que recolhem e analisam as pistas. Na captação de recursos muitas portas de fecharam – observa o produtor - pois, o custo de produção estava orçado em 2.500,00 dólares por episódio. (Hernando, 2003, p. 112). Um custo alto para se arriscar. A Rede CBS, buscando modernizar sua grade adquiriu a temporada de 2000/2001. Ficaram surpreendidos com o êxito. Aliou-se então, à Disney Touchstone para a produção dos episódios seguintes. As produtoras de televisão Carol Mendelsohn16 e Anny Donahue17 se uniram ao projeto consolidando a equipe de produção. Um cuidado especial foi dado à trilha sonora com o uso de bandas clássicas como o The Who ou de sucesso no período de exibição da série. Recorreu-se ainda a produção de episódios especiais escritos por grandes diretores de Hollywood como é o caso de Quentin Tarantino. Mesmo com todo o cuidado, os produtores avisam que algumas manipulações sãorealizadas e que apesar de se buscar uma realidade muito próxima ao que ocorre, a série é uma ficção. Com um time de produção esmerado, atores que se consolidam no segmento de seriados policiais e a essencial presença do detetive multifacetado, fragmentado, mas que, no conjunto, consegue solucionar o crime, CSI é outra perspectiva de desdobramento da narrativa policial, revitalizando o gênero, agregando novos telespectadores e contrariando o que Paulo Medeiros e Albuquerque (1979), em seu livro O mundo emocionante do romance policial (1979) alertava: a ficção cientifica vai matar o romance policial, CSI, Elementary e outras mais abusam da tecnologia e sem fugir daqueles detetives originais que aguçaram nossa inteligência na resolução de seus mistérios, desde o primeiro conto de Allan Poe. Depois dele, muito se aprendeu e se criou em torno do gênero policial sem, no entanto, perder as bases do seu precursor. Nota-se diferentes possibilidades de desenvolvimento de narrativas e análises deste segmento. Independentemente de seu “tipo” (romance noir, de enigma, místico, suspense), o gênero tem sim seus leitores porque sua relação com a natureza humana é instantânea. O mistério em torno da verdade mantém o leitor preso às linhas do texto e a tela de TV ou cinema na busca pela solução do enigma, o que dá sentido ao romance policial. E quando o leitor chega à verdade sob a condução do detetive, uma catarse se dá e aquela indagação da Esfinge “Decifra-me ou te devoro”, se desfaz mitologicamente no ar. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS A produção de séries é um dos grandes nichos da programação de TVs, em especial os canais pagos. Alguns fatores são destacados como fundamentais para o crescimento e estabilidade no número de seguidores. A série fideliza o telespectador. Em artigo publicado no jornal Folha de São Paulo de 09.10.2012, intitulado “Texto sofisticado sustenta bonança das séries”, a autora Isabelle Moreira Lima, defende que a sofisticação do texto é um dos motivos que garante a valorização e crescimento das séries de tevês, e em especial as americanas. O motivo destacado pela autora para esse argumento é o aumento na quantidade de roteiristas, diretores e atores, já consagrados em Hollywood, que migram para o formato seriado. O discurso que se constrói é que, ao vermos um grande nome como produtor executivo da série, isso já lhe traz 15 Roteirista, diretor e produtor de cinema e televisão. 16 Melrose Place (1992) e China Beach (1988) 17 Beverly Hills (1990), Murder One (1995) Revista do GELNE, v.19, n.2, 2017 ISSN: 2236-0883 ON LINE 88 Revista do GELNE, Natal/RN, Vol. 19 - Número 2: p. 76-90. Jul-Dez. 2017 créditos de qualidade e excelência. O produtor (ou showrunner) é a mente criativa do programa, responsável pela estrutura narrativa e a encenação, mas mesmo em produções mais simples ele estará cercado de uma equipe de multiprofissionais que o ajudarão no roteiro e na direção. O escritor/diretor garantirá a unidade de sentido da série seja pela supervisão do processo, pela redação dos episódios, ou ainda pelo estabelecimento de um padrão de encenação. Com isso, o diretor de séries de TV, ocupa um lugar análogo ao de diretor de cinema para a crítica cinematográfica. Nomes com o de David Chase, Joss Whedon, Aaron Sorkin, Allan Ball, Vince Gilligan, Matthew Weiner, J.J. Abrams, David Crane, Larry David, Tina Fey, Seth MacFarlane e Rick Gervais tornaram-se comentaristas críticos sobre a excelência das séries de TV, capazes de mobilizar o interesse do público para obras diferentes de um mesmo autor. É um raro momento em que público e crítica parecem dialogar positivamente. Todavia, o crescimento de oferta das séries para a TV ainda alcança um restrito grupo de telespectadores, pois as transmissões no caso brasileiro, ainda estão vinculadas a canais abertos. E a transição da televisão para a internet ainda é algo distante de ser consolidado. Para que se alcance um público amplo e diversificado com produções de qualidade muitos obstáculos precisam ainda ser vencidos18. Falar de discurso televisivo/cinematográfico implica em falar, antes de tudo de um discurso midiático. Significa refletir sobre seu papel na sociedade que é de espetáculo (Debord, 1979) e também na estetização do mundo (Lipovestsky & Serroy). “Novas linguagens” como a da televisão e do cinema exercem um papel fundamental ao ressaltar, reafirmar, recriar ideologias, diversificar, adaptar, traduzir, pequenas narrativas que ganham corpo e se universalizam. Com isso interferem no comportamento social. Em síntese, um dos fatores relevantes nessa nova reconfiguração do mercado televisivo em relação à produção de séries está na criação de novos modelos narrativos. Aliado a isso os avanços tecnológicos - notadamente o acesso e divulgação via internet – impulsionando as transmissões globalmente. Completa o processo o consumo desses programas, que através de fã- clubes, concebem estratégias de ocupação nos meios de comunicação direcionados, o que fidelizam telespectadores. Elementar, meu caro Watson!19 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBUQUERQUE, P. de M. O mundo emocionante do romance policial, Rio de Janeiro, Editora Francisco Alves, 1979 BAKHTIN, M. (1979). Estética da criação verbal. Tradução do Russo por Paulo Bezerra. São Paulo, Martins Fontes, 2010a. BARROS, Diana Luz Pessoa de. Fiorin, José Luiz (org.) Dialogismo, polifonia, intertextualidade: em torno de Bakhtin, São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 2003 DEBORD, Guy. 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