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Animais, eles também têm cultura
Novas revelações da ciência sobre o comportamento dos animais estão ajudando a derrubar uma das últimas barreiras que distinguia o homem das outras espécies.
por Rodrigo Cavalcante / Rodrigo Maroja, Revista Superinteressante, agosto de 2002.
Há quase 50 anos, na pequena ilha de Koshima, no Japão, Imo, um jovem macaco que gostava de batata- doce, teve um insight que mudaria para sempre o hábito alimentar da sua espécie. Num dia de setembro de 1953, ele não levou a batata diretamente à boca, como faziam todos os outros animais. Ninguém sabe ao certo se ele percebeu que a terra suja desgastava seus dentes. Ou se ele achou mais saboroso comer ela limpa. O fato é que Imo começou a lavar a batata antes de comer, como faria qualquer dona-de-casa. No começo, ele apenas mergulhou a batata num pequeno braço d’água que corria em direção ao mar. Depois, aperfeiçoou a técnica: enquanto afundava a batata na água com uma das mãos, aproveitava a outra para retirar a lama mais aderente. Três meses depois, dois amigos dele começaram a fazer o mesmo e o hábito se espalhou pelos irmãos mais velhos, foi repetido pelas mães, numa espécie de reação em cadeia. Em cinco anos, mais de três quartos dos jovens da espécie lavavam a batata exatamente como Imo.
Hoje, comer a batata limpa é uma característica das novas gerações de macacos da ilha de Koshima.
A descoberta de Imo pode parecer banal, mas obrigou os cientistas a reverem para sempre a forma como viam os animais e a espécie humana. Para os pesquisadores, a capacidade de Imo transmitir uma nova técnica para outras gerações é uma das provas de que alguns animais também têm um dom que era considerado exclusivo do homem: a cultura. “Precisamos reconhecer que está caindo uma das últimas barreiras que nos separam das outras espécies”, diz o primatologista holandês Frans de Waal, autor do livro The Ape and The Sushi Master (O macaco e o sushiman, sem tradução no Brasil). Ele diz que é claro que cultura, nesse caso, não significa a capacidade para escrever obras literárias ou pintar quadros cubistas. “Cultura é um comportamento transmitido socialmente que não é adquirido individualmente nem geneticamente”, diz de Wall. “É algo que se aprende com os outros, como a técnica de lavar batata dos macacos japoneses.”
Apesar de o primeiro artigo sobre esses macacos ter sido publicado no Japão ainda na década de 1960, a maioria dos pesquisadores ocidentais só recentemente vem usando sem pudor o termo cultura para descrever o comportamento dos animais. “Não é à toa que essas descobertas pioneiras foram feitas no Japão”, diz de Wall. “Os orientais vêem o homem bem mais perto das outras espécies, ao contrário da tradição do Ocidente, que coloca o ser humano num pedestal muito acima dos outros.”
A Bíblia é um bom exemplo dessa tradição. A primeira parte do Gênesis descreve como Deus, depois de criar as outras espécies, fez o homem à sua imagem e semelhança para “dominar os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos e todo réptil que se arrasta sobre a terra”. Do grego Aristóteles, no século IV a.C., ao filósofo francês René Descartes, no século XVII, os animais continuaram sendo encarados como seres desprovidos de razão, emoção e alma. Mesmo no século XX, quando ficou evidente que a inteligência de diversas espécies era muito superior ao que se imaginava, essa capacidade de aprendizado foi classificada de instinto, reflexo condicionado ou pura imitação. “O curioso é que, quando um garçom de um restaurante japonês aprende a fazer seus pratos observando o sushiman em ação, isso é aprendizado. Quando um animal aprende uma nova técnica de conseguir alimentos observando outro, isso é visto como imitação”, diz de Wall.
Todas essas descobertas só vieram à tona quando os pesquisadores passaram a prestar atenção nos animais como uma forma de descobrir mais sobre a própria evolução humana. Foi o que ocorreu com a inglesa Jane Goodall, que ficou famosa por seu convívio com os chimpanzés na década de 1960, na Reserva Nacional de Gombe, na Tanzânia. Contratada pelo famoso antropólogo Louis Leakey para trazer informações sobre o comportamento dos primatas – e possivelmente conseguir, com essa observação, esclarecer alguns pontos obscuros da própria evolução da cultura humana – o trabalho de Goodall logo revelaria que os chimpanzés eram fascinantes pela diversidade da sua própria cultura. Acampada dentro da floresta, ela passou milhares de horas observando e coletando dados surpreendentes. Goodall comprovou que os chimpanzés tinham uma complexa vida social, uma linguagem primitiva com mais de 20 sons diferentes e usavam diversas ferramentas para extrair alimento – algo que até então era considerado um marco da cultura humana.
Lembra a clássica cena de abertura de 2001 Uma Odisséia no Espaço, em que um dos nossos antepassados hominídeos usa pela primeira vez um pedaço de osso como ferramenta e dá início a todo o desenvolvimento tecnológico? Goodall provou que os chimpanzés também usam ferramentas, como gravetos, de uma forma semelhante ao homem. Não se trata apenas de artefatos como a casa do joão-de-barro, que, de geração para geração, tende sempre a permanecer a mesma, como quem segue à risca a planta de conjunto habitacional programado pelos genes. Quando a revista National Geographic enviou o fotógrafo alemão Hugo van Lawick (futuro marido de Goodall) para registrar o dia-a-dia dos chimpanzés no parque, em 1962, até o mais cético foi obrigado a rever sua crença de que a cultura é um dom único da nossa espécie. Além das ferramentas, a pesquisa de Goodall e as imagens de Van Lawick revelaram que eles tinham um sistema de organização política.
Os machos da espécie disputavam a liderança do grupo não só pela força, mas com intrincados jogos de alianças, conflitos e reconciliações. “Eles participam de acordos, disputas e reconciliações semelhantes ao que ocorre em qualquer parlamento”, diz Eduardo Ottoni, estudioso do comportamento animal da Universidade de São Paulo. Recentemente, uma dessas alianças entre chimpanzés terminou em tragédia no zoológico de Arnhem, na Holanda, quando dois machos se uniram e assassinaram um dos líderes do grupo. “Depois da morte do chimpanzé, a aliança entre os dois ‘assassinos’ terminou”, diz Ottoni.
Ottoni vem estudando, no Brasil, o uso de ferramentas e a vida social de grupos de macacos-prego que vivem em uma área reflorestada de 180 000 metros quadrados no Parque Ecológico do Tietê, em São Paulo. Há sete anos, um funcionário do parque viu um dos macacos quebrando cocos com pedras sobre uma base rochosa. “Desde então, estamos acompanhando esse grupo”, diz Ottoni. “Como essa técnica não é comum em outros macacos da espécie, essa descoberta foi surpreendente.” Além do uso de ferramentas, a pesquisa vem revelando que o macaco-prego apresenta alguns traços de vida política semelhante à dos chimpanzés. “Na hora em que um deles vai dividir a comida, os amigos têm sempre a preferência”, diz a pesquisadora Patrícia Isar, que faz parte do grupo que estuda a espécie no Brasil.
Mas será que a lista de animais que têm cultura estaria restrita a chimpanzés, macacos-pregos, gorilas, orangotangos e outras espécies próximas do homem? “É natural que, no início, as pesquisas se concentrem em animais mais semelhantes ao homem”, diz o etólogo (estudioso do comportamento animal) César Ades, da Universidade de São Paulo (USP). “Até mesmo porque é mais fácil reconhecer a presença de cultura em artefatos produzidos pelas mãos, o que exclui, por exemplo, os animais que vivem no mar”, afirma.
Há muito tempo, os cientistas sabem que os mamíferos marinhos, como baleias e golfinhos, têm uma inteligência surpreendente. Mas novas descobertas trouxeram dados ainda mais reveladores. No ano passado, no Aquário de Nova York, uma experiência mostrou que os golfinhos têm uma capacidade que até então era considerada exclusiva do homem e dos grandes primatas: são capazes de se reconhecer no espelho. Para comprovar que, de fato, o animal sabe que quemestá ali do outro lado do vidro é ele e não um estranho (se você já viu o olhar desconfiado de um gato e de um cachorro em frente ao espelho, sabe do que se trata), os pesquisadores fizeram um teste simples mas bastante eficaz: colocaram pintas pretas de tinta não tóxica em diversas partes do corpo do golfinho para saber se eles iriam procurar a imagem desses sinais. Resultado: os golfinhos Presley e Tab, do Aquário de Nova York, colocaram exatamente as partes do corpo pintadas em frente ao espelho, como se quisessem ver as manchas pretas.
E, a cada vez que uma outra parte do corpo era pintada, eles expunham a nova marca no espelho. “Isso prova que essa habilidade não é exclusiva dos grandes primatas”, diz Diana Reiss, p

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