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Psicologia Jurídica no Brasil Gonçalves & Brandão

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Hebe Signorini Gonçalves 
Eduardo ponte Brandão
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Organização
Hebe Signorini Gonçalves 
Eduardo Ponte Brandão
22 Edição
23 Reimpressão
Rio de Janeiro 
2009 E D I T O R A
Apresentação 7
Pensando a Psicologia aplicada à Justiça 15 
Esther Maria de Magalhães Âranles
A ínterlocução com o Direito à luz das práticas 
psicológicas em Varas de Família 51 
Eduardo Ponte Brandão
O psicólogo e as práticas de adoção 99 
Lidia Nafalia Dobriarukyj Weber
O papel da perícia psicológica na execução penal 141 
Saio de Carvalho
A atuação dos psicólogos no sistema penal 157 
Tania Kolker
(Des)construindo a ‘menoridade’: uma análise crítica 
sobre o papel da Psicologia na produção da categoria 
“menor” 205 
Érika Piedade da Silva Santos
Em instituições para adolescentes em conflito com a lei, 
o que pode a nossa vã psicologia? 249 
Marlene Guirado
Violência contra a criança e o adolescente 277 
Hebe Signorini Gonçalves
Mulheres em situação de violência doméstica: limites e 
possibilidades de enfrentamento 309 
Rosana Morgado
Sobre os autores 340
Esse livro é resultado de vários desafios.
O primeiro deles, sem dúvida central, consistiu em apre- 
sentar didaticam ente um ram o da psicologia que está em fran­
ca expansão e desenvolvimento: a Psicologiajurídica. Levando 
em conta os objetivos de um público.alvo formado basicamen­
te por estudantes e interessados erri conhecer esse domínio, 
propusem o-nos a com por um livro-texto que se mostrasse ca­
paz de apresentar a área, em toda sua amplitude. O livro que 
chega agora ao leitor foge portanto do formato clássico de uma 
coletânea, visto que a proposta didática exige mais que a apre­
sentação dos trabalhos de cada um dos autores; ela torna im­
perativa a necessidade de desenvolver uma linha de raciocínio 
capaz de apresentar a área aos interessados de modo esclarece­
dor, sem no entanto deixar de lado' os inúmeros problemas e 
dificuldades que coloca, seja do ponto de vista teórico seja no 
cam po de um a prática que já nasce intèrdisciplinar.
Com efeito, a Psicologiajurídica surgiu de um cham a­
m ento ao ingresso do Psicólogo em áreas originariamente des­
tinadas às práticas jurídicas. Essa dem anda coloca exigências 
específicas, ditadas pelo Direito, mas é mister admidr que o 
ingresso da Psicologia no m undo jurídico precisa encontrar seu 
m otor próprio, já que sua impulsão advém de um compromis­
so com o sujeito que é, por excelência, de outra ordem. Não 
há conflitos insuperáveis aqui, mas há sem dúvida interseções 
de peso que merecem exame.
A tarefa didática exige ainda que sejam abordados os 
muitos e diversos setores e questões de que trata o m undo J u ­
rídico, mesmo porque essas especificidades constroem a demanda 
que o Direito remete à Psicologia. Parece haver um denom ina­
dor comum entre os vários setores aos quais a Psicologia se 
aplica, visão que o leitor certamente deverá com partilhar após 
a leitura dos diversos textos que compõem este livro. No en­
tanto, sobre esse denominador comum ressaltam questões par­
ticulares, afeitas a cada área aqui abordada.
Dividimos então os capítulos de acordo com as práticas 
que envolvem as instituições jurídicas - Varas de Justiça, Con­
selhos Tutelares, prisões, abrigos, unidades de internação, en­
tre outras - nas quais os psicólogos são chamados a atuar. Tais 
práticas se inscrevem nas tutelas jurídicas sobre o adolescente 
no cometimento, do ato infracional, nas disputas judiciais entre 
famílias, nas adoções, na violência sexual, na violência contra a 
mulher, nas instituições de internamento e, por fim, nas pri­
sões.
' Cadá autor'foi solicitado á traçar lim panoram a históri­
co da área, a lançar luz sobre as diversas tendências, a apontar 
os pontos de interlocução entre Direito e Psicologia e, acima 
de tudo, a oferecer uina visão crítica capaz de problem atizar a 
atuação do psicólogo, discutindo as implicações de sua prática 
e as alternativas que se colocam ém termos técnicos, éticos e 
políticos. Eles enfrentaram, finalmente, o desafio de produzir 
um texto em que o didaüsmo não sacrifica o rigor crítico, ne­
cessário para retirar 0 leitor de qualquer pretensão de neutra­
lidade científica da Psicologia Jurídica. O êxito dessa empreitada 
é agora submetido ao crivo do leitor.
É com o texto de Esther M aria de Magalhães Arantes 
que inauguramos essa discussão. Ela busca a resposta na inves­
tigação do objeto, dos. instrumentos e, sobretudo, dos desdo­
bramentos ético-políticos das ciências humanas e sociais e, mais 
especialmente, da Psicologia Jurídica. A partir da indagação de
8
Canguilhem acerca cia unidade da Psicologia, a autora traça 
um cam inho genealógico, debruçando-se sobre as perícias, os 
laudos, as questões da loucura e da sanidade, a criminalidade, 
as relações familiares, a cham ada justiça terapêutica e o difícil 
tem a da infanda e da adolescência. Ela dem onstra como esses 
percursos podem ser lidos como técnicas de subjetivação. Em 
outras palavras, Esther Arantes vem nos m ostrar o jogo estra­
tégico das instituições jurídicas, jogo que impõe sérios dilemas 
à prática do psicólogo.
. Existe neutralidade nas práticas do psicólogo relaciona­
das às Varas de Família? Com essa indagação de fundo, Eduardo 
Ponte Brandão aponta inicialmente para a colonização recí­
proca entre as leis e as práticas de disciplina e normalização 
que teria havido no Brasil desde o Código Civil de 1916 até as 
legislações atuais que regulam as famílias. Corri objetivo de 
analisar essas complexas relações, o autor adota como eixo de 
investigação os critérios definidores da guarda e suas modali­
dades nos processos de separação e divórcio. Feito esse pano­
ram a, o autor põe em xeque a prática pericial relacionada aos 
litígios familiares. Os argumentos são suficientes para estimu­
lar o psicólogo a atuar de forma a não causar mais prejuízos 
do que os processos judiciais por si só já acarretam , devendo o 
profissional lançar m ão de importantes contribuições da psica­
nálise, da abordagem sistêmica e das práticas de mediação.
Erika Piedade enfoca as diferenças valorativas entre os 
conceitos de "m enor” e de “criança” que foram forjadas ao 
longo de nossa história, sobretudo a partir de dispositivos ori­
entados para o controle das parcelas mais desfavorecidas da 
população. O hiato entre os bem-nascidos e os potencialmente 
perigosos para a sociedade é perpetuam ente estimulado desde 
o Brasil colonial até os últimos anos, apesar dos avanços teóri­
cos e sociais propostos pelo Estatuto da Criança e do Adoles­
cente. Investigar a complexa teia de determinações que assevera 
a desigualdade entre as infâncias no Brasil, e com isso proble-
9
m atizar o lugaV que o psicólogo ocupa frente às demandas so7 
ciojurídicas, é a .tarefa a que a autora se'lança corajosamente.
A contribuição de M arlene Guirado, psicanalista e ana­
lista institucional, vem m ostrar um a nova form a de pensar a 
-Psicologia-Jurídica-para-além -dos-cam pos-e-leituras-nas-quais- 
ela já firm ou sua produção. A autora questiona um 'saber pu ra­
m ente acadêm ico, restrito a formas protegidas de proceder, assim 
como um a concepção de sujeito apartada das trocas sociais. 
G uirado dem onstra que a Psicologia não só se transforma como 
ganha potcncia quando se dispõe a enfrentar os desafios do 
cam po, expor sua prática e enfrentar efetivamente os dilemas 
éticos dos sujeitos. A autora apresenta certos preceitos m etodo­
lógicos e se propõe a avaliar sua aplicabilidade em instituições 
destinadas a jovens em conflito com a lei e submetidos a medi­
das de privação de liberdade. No! difícil contexto da FEBEM de 
São Paulo, o Projeto Fique Vivo — por ela supervisionado- é 
alvo de um a análise fecuncla e original, que perm ite depreender 
que o exercício daPsicologia deve definir-se no cam po das ci­
ências hum anas, assessorar-se delas e buscar a conexão entre o 
sujeito e as relações sociais que o cercam e fundam.
A violência contra a criança e o adolescente é discutida 
em capítulo de autoria de Hebe Signorini Gonçalves. Com base 
cm literatura nacional e internacional, a autora faz um apa­
nhado dos tipos de violência, dos sinais e indícios a serem ob­
servados e das conseqüências que o ato violento produz na 
criança ou no adolescente, assim como na dinâm ica familiar. 
Sobre esse panoram a, a autora faz um a análise crítica do cam ­
po, avalia os alcances dos instrumentos legais e alerta para os 
limites da aplicação desses dados aos casos, levando em conta 
que eles tendem a ocultar certas singularidades do sujeito. Seus 
argum entos invocam os questionamentos mais recentes, sobre­
tudo aqueles derivados de pesquisas desenvolvidas no Brasil, e 
conclam am os profissionais a um a ação onde a ética de prote­
ção à criança leve em conta também as necessidades dos de­
10
mais m embros da família, assim como o contexto social em 
que'se inserem.
Rosana M orgado fala sobre a violência contra a mulher. 
A autora mostra que a larga incidência dessa forma de violên- 
-cia,_na_sociedade. contem porânea, contribui para sua naturali­
zação. A leitura crítica de Rosana alèHi7^:íõ ~ ^ tãn tõ ^p ara '“o~ 
fato de que certos modelos de análise do problema terminam 
acatando a naturalização da violência. Em contrapartida, ela 
busca tratar o gênero como construção social, e mostra como a 
partir daí a m ulher pode ser vista de modo muito mais com­
plexo que o estrito lugar de vítima que lhe é atribuído. Sem 
negar o lugar de vítima, e sem negar a dependência econômica 
tão comum nas ■ relações de. casal permeadas pela violência, a 
autora vem nos m ostrar que essas .concepções são insuficientes, 
quando não falaciosas, para dar conta de uma temática que 
implica o sujeito em dimensões mais profundas e complexas. 
Escapando do imediatismo que perm eia certos modelos sociais 
e jurídicos, a autora propõe um novo olhar sobre a mulher que 
sofre a violência, olhar que permite desvendar suas ambivalências 
e conflitos, emprestando nova dimensão às relações de casal. 
Dessa análise, a autora retira implicações importantes para as 
políticas públicas e as formas jurídicas que tratam das relações 
de gênero perm eadas pela violência.
A quem; serve a adoção: aos pais ou à criança adotada? 
A resposta a essa questão é buscada na história do instituto da 
adoção, história, que antecede os modelos jurídicos tal como 
hoje os ^conhecemos. D a Antigüidade ao Brasil contem porâ­
neo, Lidia W eber indica que a Lei e as práticas sociais se inter­
penetram , e que nem sempre a proposta jurídica encontra eco; 
no tecido social. Essa análise histórica das formas de adoção é 
ricamente ilustrada pela mais extensa pesquisa já desenvolvida 
no Brasil sobre o tem a, cujos resultados permitem examinar 
não só as motivações para ' adotar como também os critérios 
das equipes encarregadas de avaliar - e avalizar — os propo-
11
nentes à adoção. A autora sustenta que, para efetivar a propos­
ta legal de privilegiar o interesse da criança, será necessário 
que o trabalho do psicólogo busque afastar-se de um modelo 
pericial, que visa apenas classificar e descobrir atributos desejá­
veis. em candidatos a pais adotivos, para levar também em conta 
o desejo, a motivação, o medo e a ansiedade, entre os candida­
tos, e privilegiar sua preparação para as funções de paternida­
de e os vínculos de filiação dos quais o instrumento jurídico é 
apenas um recurso.
Para entender o fenômeno da criminalidade, é funda­
mental entender o papel da criminalização da pobreza, da 
demonização das drogas, da espetacularização da violência, da 
criação da figura do inimigo interno e da funcionalidade do 
fracasso da prisão, especialmente no contexto atual das socie­
dades neoliberais globalizadas. A expressão de Tania Kolker 
anuncia a complexidade do tema e a amplitude de sua análise. 
Ela no entanto não se restringe a essas determinações sociais; 
demonstra ao mesmo tempo como se consolidou a prática de 
individualizar as penas, o cálculo de reincidência no delito e, a 
mais grave herança positivista, a percepção m aniqueísta da 
delinqüência e do delinqüente. Como mostra a autora, essa 
história de exclusão está até hoje presente na cena prisional, a 
despeito de instrumentos de proteção internacional dos direitos 
humanos. Em sua análise, Kolker se vale de uma literatura 
ampla que contempla Foucault, Castel, Zafaroni, W acquant, 
assim como autores nacionais - Correa, Rauter, Batista - o 
que lhe permite olhar para nossas prisões e analisar critica- 
mente a função do psicólogo nesse espaço.
Alinhado também à criminologia crítica, escola inspira­
da em Foucault, Saio de Carvalho enfoca a avaliação crimino- 
lógica que permeia, a Lei de Execução Penal (LEP). Num a 
exposição rigorosa que articula os aspectos jurídicos às práticas 
de poder, o autor opõe-se à perspectiva de colocar-na cena 
penal a personalidade do apenado, invocando para tanto as
12
garantias constitucionais. Seguindo esse raciocínio, Carvalho 
desvenda a prática autoritária presente no exame criminológi- 
co. Ele interroga a função dos técnicos do sistema penitenciá­
rio, entre os quais o psicólogo, para além da tarefa' de realizar 
avaliações e perícias criminológicas. Carvalho' faz assim algu­
mas indicações preciosas, mas que só serão possíveis de se rea­
lizarem mediante um a perspectiva dita “hum anista” .
Hebe Signorini Gonçalves 
Eduardo Ponte Brandão
13
P e n sa n d o a fs ic o lo g ia ap licada à-JusIiça
Esther Maria de Magalhães Arantes
Talvez a crítica mais contundente dirigida à Psicologia 
tenha sido a formulada por G e o r g e s C a n g u i l h e m , em confe­
rência realizada no Collège Pkilosophique, em dezembro de 1956.' 
À pergunta inicial “O que é Psi- _ 
coloria?” segue-se “Q uem desig-° , . ^dorrâasjdé^
na os psicó logoscom o ínstru- 
mentos do mstrumentalismo? ,, . fttoritémporâricÒkv.S^
num a apreciação cntica tanto da fyyyamós^ enc^
_________ ? _ J _ _!_i-_! -Cl _ J J _ J . J ^
Psicologia como do próprio 
zer do psicólogo. Este buscaria,r O VI 1ÍT) ■' -/i“' r":'h WÍI i’nT'-i cia t saber i£io rflc Janeiro: Gra*n u m a . eíicacia discutível, a sua i -..í '^ 1
im portância de especialista. N o entanto, e aí está o que de fato 
deve nos preocupar na argum entação de Canguilhem, esta efi­
cácia, ainda que mal fundada, não é ilusória.
Ao dizer da eficácia do psicólogo que ela é discutível, não 
se q u e rd ize r que ela é ilusória; quer-se simplesmente ob­
servar que esta eficácia está 'sem dúvida mal fundada, en­
quanto não se fizer prova de que ela é devida à aplicação 
de um a ciência, isto é, enquanto o estatuto da psicologia 
não estiver fixado de tal m aneira que se deve considerá-la
1 U m a tradução de Qu’est-ce que la psychologie?, de G eorges Canguilhem , foi 
publicada no Brasil com o título “O que é a psicologia?” . In Epistemologia, 2. 
R io de Janeiro: T em po Brasileiro, n. 3 0 /3 1 , jú l./d ez ., 1972.
15
BIBUOTECA UNIVERSITÁRIA j 
! PROF ROGER PATT1 j
como mais e melhor do que um empirismo composto, lite­
rariam ente codificado para fins de ensinamento. D e fato, 
de muitos trabalhos de psicologia, se tem a impressão de 
que misturam a um a filosofia sem rigor um a ética sem exi­
gência e uma medicina sem controle (Canguilhem, 1972: 
104-105). ■
O objetivo de Canguilhem nesta conferência foi o de 
criticar o program a universitário de seu colega de Ecole Normal 
Supérieure, Daniel Lagache, que postulava a unificação dos dife­
rentes ramos da Psicologia, afirmando haver convergênciaen­
tre a Psicologia experimental, dita “naturalista” e a Psicologia 
clínica, dita “humanista” .2
A questão “Que é psicologia?”, pode-se'responder fazendo 
aparecer a unidade de seu domínio, apesar da multiplici­
dade dos projetos metodológicos. É a este tipo que perten­
ce a resposta brilhantemente dada pelo Professor Daniel 
Lagache, em 1947, a um a questão colocada, em 1936, por 
Edouard Claparède. A unidade da psicologia é aqui p ro ­
curada na sua definição possível como teoria geral da con­
duta“ síntese da psicologia experim ental, da psicologia 
clínica, da psicanálise, da psicologia social e da etnologia. 
Observando bem, no entanto, se diz que talvez esta unida­
de se parece mais a um pacto de coexistência pacífica con­
cluído entre profissionais do que a um a essência lógica, 
obtida pela revelação de 'um a 'constância núm a variedade 
de casos (Canguilhem, 1972: 105-106).
Continuando suas crídcas à Psicologia, Canguilhem, que 
aceitara ser o relator de Historie de la folie, tese de doutorado 
defendida por Michel Foucault em 196T, não poupou Lagache, 
mostrando que a pesquisa desenvolvida por Foucault fazia des­
moronar o grande projeto de unidade da Psicologia (Roudinesco,
2 VUnilê de la Psychologie, Aula Inaugural ministrada por D aniel Lagache na 
Sorbonne em 1947 e publicada pela PUF, Paris.
16
1994: 15-16). Apesar das críticas de Canguilhem e de outros 
àutóres, entre os quais Jacques Lacan, a proposta de Lagache 
teve am pla repercussão ria França do pós-guerra.
Em dezembro de 1980, num a conferência intitulada Le 
ceroeau et la pensêe, Canguilhem voltou a criticar a. Psicologia, 
desta vez por reduzir o pensam ento ao funcionamento cere­
bral. Afirmando que a Filosofia nada tem a esperar dos servi­
ços da Psicologia, conclamou os filósofos das novas gerações a 
resistirem à “calamidade” psicológica. D iante de críticas tão 
duras, Roudinesco observou que, nesta conferência, Cangui­
lhem não havia se preocupado em distinguir as querelas e discor- 
dâncias internas à própria Psicologia, fazendo um a crítica em 
bloco a saberes muito diferenciados (Roudinesco, 1993). Como 
o próprio Canguilhem havia dito na conferência de 1956, não 
há unidade na Psicologia.3 U.
Mesmo assim, e ainda se perguntando se não haveria-: 
um a certa obstinação por parte de Canguilhem em demolir os c: 
alicerces nos quais se fundam entam a Psicologia, Roudinesco-^ 
presta um a homenagem “a um dos maiores filósofos do nosso 
tem po”, reconhecendo a pertinência e a atualidade de suas crí­
ticas, principalmente porque, segundo a autora, um a a liança ' 
vitoriosa entre o organicismo biológico e genético, a ciência da 
m ente e a tecnologia estaria ganhando terreno, em tódos os 
campos do saber.
(...) até o ponto de fazer emergir um a nova ilusão cientifi- 
cista segundo a qual a intervenção cada vez mais ativa da 
ciência no cérebro hum ano perm itirá conduzir o homem 
à im ortalidade, ou seja, à cura da condição hum ana 
(Roudinesco, 1993: 144).
N ão advindo, desta forma, a cientificidade da Psicologia 
de sua m era rotulação como ciência, seja natural, social ou
3 M ais adequado seria falar de Psicologias?
hum ana, ou ciência pura ou aplicada; nem de sua adjetivação 
como Psicologia Jurídica, Social ou Escolar; ou ainda de sua 
definição como estudo da alma, do psiquismo, da conduta ou 
da subjetividade; sequer do uso de medidas, restaria à Psicolo­
gia, em geral, e à Psicologia Juríd ica, çm _pafticular,-sèrem — 
pensadas apénas como técnicas ou ideologias?
Em prefácio ao livro de, Lei Ia M aria T. de Brito, que 
versa sobre a atuação do psicólogo em Varas de Família, escre­
vera o que ainda considero central em se tratando de pensar a 
Psicologia Jurídica, e que aqui relembro em parte (Arantes, 
1993).
A indagação form ulada pela autora: “Varas de família: 
um a questão para psicólogos?”,, questão que deve ser entendi­
da tanto como lugar de prática, como prática a ser pensada, 
ponderei que se podia responder de diversos modos: sim, se 
considerarmos um m ercado de trabalho potencial ou em ex­
pansão para o qual existe, inclusive, justificativa legal; não, se a 
um Direito autoritário e burguês contrapomos um a Psicologia 
libertária, exterior ao próprio Direito; outra possibilidade é 
considerar a Psicologia como parte do problem a e, deste modo, 
redesenhar a questão.
N a realidade, a pergunta form ulada por Brito, como no 
texto de Canguilhem , desdobra-se em várias outras, sendo que 
um prim eiro grupo diz respeito a um a problem atização que 
podem os cham ar de epistemológica: o que é a Psicologia apli­
cada à ju s d ç a ou Psicologia Jurídica, quais são os seus concei­
tos, em que se fundam enta sua pretensão de prádca científica?
Em artigo dedicado a pensar as Ciências Sociais e a Psi­
cologia Socialj Thom as H erbert ;(1972) pondera que colocar a 
um a ciência as questões “quem és tu”?, “por que estás aqui?” 
e “quais suas intenções?” pode parecer im pertinência à qual 
ela tenderia a responder que “está aqui porque existe” e quan­
to às suas intenções “ela não as tem ” mas apenas “problem as a 
resolver”. No entanto, considera im portante a distinção feita
18
por Louis Althusser entre ciência desenvolvida e ciência em 
constituição. N a ciência desenvolvida o objeto e o método são 
homogêneos e se engendram reciprocamente, o que não acon­
tece com as ciências em desenvolvimento, como a Psicologia. 
-Uma-coisa-é-a-tr-a-nsformaçâ© -pr-odutor-a-do-obj eto-cientifico, 
outra, a reprodução metódica deste objeto, que só pode acon­
tecer, rigorosamente falando, se uma. transformação produtora 
deste objeto já foi realizada. Quanto, à função dos instrumen­
tos, ela não é a mesma em cada um destes tempos da ciência. 
Exemplificando esta diferença, lembra-nos H erbert a transfor­
m ação que a balança sofreu após o advento da Física moderna.
Fora de seu papel técnico-comercial, ela servia para inter­
rogar toda a superfície do real empírico', pesava-se o san­
gue, a urina, a lã, o a r atmosférico etc... e os resultados 
forneciam a “realização do real” sob diversas formas bio­
lógicas, metereológicas etc...
Esta vagabundagem do instrumento foi detida pelo m o­
m ento galileano, que lhe designou, no interior da ciência 
nascente, um a função nova, definida pela teoria científica 
mesma. ' ,
Isto nos designa o duplo desprezo que não deve ser come­
tido: declarar científico todo uso dos instrumentos, esque­
cer o papel dos instrumentos na prática científica (Herbert, 
1972: 31).
Postas estas colocações iniciais, resta dizer que este é um 
prim eiro conjunto de questões e que se apresenta como perti­
nente apenas a partir da reivindicação de cientificidade da Psi­
cologia, e à qual Canguilhem e H erbert, nos textos acima 
mencionados, se.dedicam. Na realidade; mais do que copiar o 
modelo de cientificidade da Física, da Química ou da Biologia, 
espera-se que as Ciências Hum anas desenvolvam algum tipo 
de rigor próprio, adequado ao seu campo de investigação.
U m segundo conjunto diz respeito a uma Arqueologia e 
a um a Genealogia dos saberes sobre o homem, seguindo as 
indicações de Michel Foucault. Isto porque, mesmo do ponto
19
de vista de um a certa leitura epistemológicaj no caso aqui as 
de Canguilhem e Thom as Herbert, não se trata de negar à 
Psicologia, Jurídica ou não, um a existência de fato c um a qual­
quer eficácia. Trata-se, então, de. saber como e porque este 
campo se constituiu, quais os seus procedimentos e de que 
natureza é a sua eficácia. Não devemos nos esquecer que as 
análises Genealógicas perm itiram a Foucault identificar as p rá­
ticas jurídicas, ou judiciárias/com o das mais importantes na 
emergência das formas modernas de subjetividade, e que a partir 
do século XIX, mais do que punir, buscar-se-á a reforma psi­
cológica e a correção moral dos indivíduos (Foucault,1979). 
Este segundo conjunto de questões diz respeito, então, a tudo 
aquilo que faz com que a Psicologia Jurídica exista como prá­
tica em um a sociedade como a nossa, independentem ente de 
seu estatuto epistemológico. Corno nos ensinou Roberto M a­
chado, as análises arqueológicas e genealógicas não se norteiam 
pelos mesmos princípios que a história epistemológica (M acha­
do, 1982). -
No cáso específico da atuação dos psicólogos em Varas 
de Família, de acordo com a pesquisa de Brito já m encionada, 
e para continuar utilizando o mesmo fio condutor, constatou- 
se o predomínio das atividades de perícia nos casos de separa­
ções litigiosas, onde havia disputa .pela .guarda dos filhos.
Sabemos que a perícia tem sido um dos procedimentos 
mais utilizados na área jurídica, tendo por objetivo fornecer 
subsídios para a tomada de uma decisão, dentro do que impõe 
a'lei. Em.algumas áreas da justiça a perícia pode ser solicitada 
para averiguação de periculosidade, das condições de discerni­
mento ou sanida.de mental das partes em litígio ou em julgamento.
Em bora não possamos rigorosamente dizer de que se 
trata quando nos referimos, como psicólogos, a categorias como 
estas, pelo rrienos do ponto de vista de uma. ideologia jurídica, 
algo da ordem do objeto está apontado. No caso de Varas de 
Família, não se trata, pelo menos em princípio, de examinar
20
alguma periculosidadc, alguma ausência ou prejuízo da capa­
cidade cie discernimento ou sanidade mental. Como pano de 
fundo temos o casal em dissolução e em disputa pela guarda 
dos filhos, cada um instruído no processo por seus respectivos 
advogados. Sabemos que muitas das alegações para a guarda 
dos filhos tem sido imputações de infidelidade, desvios de con­
duta, uso dc drogas, doenças ou mesmo a de possuir o outro 
cônjuge m enor renda, trabalhar fora de casa ou não trabalhar, 
ou ainda possuir m enor escolaridade.
É sobre tais alegações, motivo da disputa, que trabalha« 
rá o juiz, formulando quesitos a serem investigados pelo perito, 
que de certa forma comprovará ou não as alegações, formu­
lando um a verdade sobre os sujeitos.
Com o resultado da perícia um a das partes tenderá a ser 
apontada como aquela que reúne as melhores condições para-^ 
a guarda dos filhos, já que tanto o pedido do juiz como a lógi- 
ca do processo se dirige e mesmo impõe esta direção. Enganamo- 
nos todos ao acreditar que a verdade vem à luz e que se faz . 
justiça nesse processo. O resultado parece ser, inevitavelmente, 
a fabricação dc um dos cônjuges como não-idôneo, moralmente 
condenável ou, pelo menos, temporariamente menos habilitado. -
N ão se trata, evidentemente, de lançar aqui um a dúvida ' 
generalizada sobre os diversos tipos de perícia e seus usos pe la ' 
Justiça; tam bém não se trata de negar o sofrimento ou levantar 
suspeitas sobre a sinceridade com que os genitores formulam 
suas queixas, embora, aqui e aü, os advogados orientem a dire­
ção e a formulação das alegações, conhecedores que são dos 
juizes e das regras, e em bora, vez ou outra, as partes estejam 
igualmente preocupadas com os filhos e o patrimônio.
Podemos não saber como resolver problem as tão difícil 
como este,4 podemos mesmo admitir que em certos casos e em
4 “C om o os pais se colocam frente aos filhos? e C om o os filhos de colocam
ccrtas circunstâncias um dos progenitores encontra-se em me­
lhores condições para o exercício responsável da guarda dos 
filhos, mas que não se reduza um a questão tão delicada como 
esta aos seus m eros aspectos gerenciais. Pelo menos, não em 
nom e das crianças.5 ~ : ' ~
Seria sábio, neste m om ento, dar mais ouvidos ao filósofo, 
que ao adm inistrador: "O nde, querem chegar os psicólogos, 
fazendo o que fazem?” (Cangúilhem, 1972: 122).
A prática dos laudos, pareceres e relatórios técnicos
Constata-se, no exercício profissional dos psicólogos no 
âm bito judiciário, a predom inância das atividades de confec­
ções cle laudos, pareceres e relatórios, no pressuposto de que 
cabe à Psicologia, neste contexto, um a atividade predom inan­
tem ente avaliativa e de subsídio aos magistrados.
Este pi'essuposto, em bora defendido em textos clássicos 
de Psicologia (Jacó-Vilela, 2000) e 1'egulamentado pela legisla­
ção brasileira, tem causado mal-estar entre a nova geração de 
psicólogos, que preferiria ter de si um a imagem menos com­
prom etida com a m anutenção da ordem social vigente, consi­
derada injusta e excludente. Este mal-estar tem sido crescente, 
possibilitado, dentre outras razões, pelo advento1 de um a litera­
tura crítica, dem onstrando que a questão da interseção da Psi­
frente aos pais?” é a questão m ais difícil e central, segundo Pierre Legendre 
(1992), que todos os sistemas institucionais do planeta devem resolver histó­
rica, política e juridicam ente, pois é ai que o princípio da vida está ancora­
do. O u seja: com o ordenar o poder genealógico? Q u a l a relação entre o 
D ireito e a vida?
5 A C onvenção internacional dos D ireitos da Criança, dc 1989, dispõe sobre 
o direito da criança ser educada por pai e mãe. A este respeito ver: Brito, 
1999.
22
cologia com o Direito não diz respeito apenas ao bo.m ou mau 
uso da técnica, à habilidade ou não do perito.
(...) deve-se reconhecer que o psicólogo contem porâneo é, 
n a m aioria das vezes, um prático profissional cuja “ciên-
------- ;------- eia—é-totalm ente-inspirada nas “leis” da adaptação a um
meio sociotécnico - e não a um meio natural - o que con­
fere sempre a estas operações de "m edida” um a significa­
ção de apreciação e um alcance de perícia. (Canguilhem, 
1972: 121) ■
P ara Canguilhem , ao buscar objetividade, a Psicologia 
transformou-se em instrumentalista, esquecendo-se de se situar 
em relação às circunstâncias nas quais se constituiu.
Em bora esta observação de Canguilhem se refira apenas 
à Psicologia, ela pode ser estendida a outras áreas. Ao discor­
rer sobre a m odernidade, José Américo Pessanha afirma ser 
um a de suas características a opção por um certo tipo de ra­
zão, ou conhecim ento científico, de natureza operante ou ins­
trum ental, capaz de dom inar e modificar o meio físico. Menos 
mal, talvez, se este tipo de racionalidade tivesse se limitado 
apenas a certos usos e a certos propósitos, e não tivesse a pre­
tensão de se constituir como único m odo legítimo e verdadeiro 
de leitura do m undo.
(...) quando o Ocidente, através de Descartes e de Bacon, 
fez a escolha po r um a form a de cientificidade e deixou de 
lado tudo que fosse dotado de alguma ambivalência, dei­
xou de lado tam bém as cham adas idéias obscuras. Com 
isso tam bém deixou de lado tudo o que na condição h u ­
m ana é ligada ao corpo, ao tempo, à história e à concretude 
(Pessanha, 1993: 26). ■ ‘
N ão se tra ta de negar validade ao modelo das Ciências 
da N atureza ou à M atem ática, mas apenas de reconhecer que 
as Ciências H um anas e Sociais não podem se reduzir ao dis­
curso coagente da razão abstrata, pretendendo a produção de 
verdades a-históricas e universais. O fechamento da razão a
23
dem aos vários setores da vida pessoal e social, levando Gastei 
a fazer à Psiquiatria pergunta similar à feita por Canguilhem à . 
Psicologia: “Sem dúvida nâo é possível estabelecer limite para 
essé progresso. M as seria o mínimo ousar perguntar ‘quem te 
fez re i? a quem te faz sujeito-submisso” (Gastei, 1978: 20).
Assim como para o louco ie para o prisioneiro, será ne­
cessário encontrar uma nova forma de adm inistrar os conflitos 
familiares e tám bém um a nova form a de assistência. No Anti­
go Regime, em troca de seu grande poder, o chefe de família 
devia zelar para que nenhum de seus membros perturbasse a 
ordem pública. Este mecanismo de controle se tornará insufici­
ente e inadequado em função do aum ento crescente do núm e­
ro de pessoas “desgarradas”ou que “escapavam” ao controle 
das famílias como os pobres, os vagabundos, os viciosos e a 
infancia abandonada, levando os novos filantropos a um a crí­
tica feroz do arbítrio familiar e dos procedimentos da antiga 
caridade. Estes filantropos lutavam por um a nova racionalidade 
na assistência e principalmente para que a ajuda dada à famí­
lia favorecesse sua prom oção e não sua dependência. Neste 
contexto, multiplicaram-se as leis sobre o abandono, maus tra­
tos, trabalho e mortalidade infantil, surgindo novos profissio­
nais dedicadas ao campo social: os chamados “técnicos” ou 
“trabalhadores sociais”. A partir;de então, para com preender­
mos o que Jacques Donzelot cham a de “complexo tutelar”, 
torna-se necessário entender as formas de agenciamento entre 
as suas principais instâncias: o judiciário, o psiquiátrico e o 
educacional (Don2elot, 1980).
Mas todas estas práticas riao incidem, como nos ensina 
M ichel Foucault, sobre universal como “doente m ental”, “de­
linqüente”, “carente” que lhes seriam exteriores, senão que esses 
“universais” ou “essências”, são iaquilo mesmo que se produz
vida social, ao postular as degenerescências como desvios em relação ao tipo 
normal da humanidade, transmitidos por hereditariedade.
26
nestas práticas. Recusar estas categorias como sendo “natureza 
hum ana” significa, ao mesmo tempo, reconhecer, nas práticas 
sociais concretas, a formação de um campo de experiência onde 
processos de subjetivação/objetivação têm lugar. Significa tam ­
bém reconhecer o papel que trabalhadores sociais, técnicos e 
peritos desempenham neste campo de poder-saber.
Dos conflitos e do
Até aqui a discussão serviu apenas para estabelecer que 
as questões de definição, de sentido e de eficácia de um a ciên­
cia não são questões menores, como também não dizem res­
peito apenas à Psicologia. No entanto, mencionamos também 
um certo mal-estar entre os psicólogos brasileiros, insatisfeitos 
com certas demandas e constrangimentos a que, muitas vezes, 
são submetidos. Neste sentido, o campo denominado de Psico- 
logia Jurídica é particularmente tenso e contraditório.
Deveria fazer parte do ensino levar os alunos, a compreen­
derem a qualidáde do poder que a ‘especialização5 lhes 
confere: encerrar no inferno da Febem um jovem, negar 
um a adoção ou facilitar a guarda de crianças, afastar filhos 
de pais, lançar um a criança na carreira, sem esperança, 
das classes especiais, contribuir para a morte civil da crian­
ça ou jovem contraventor (Leser de Mello, 1999: 149).
Recentemente no Brasil, na transição da ditadura mili­
tar para o regime democrático, grupos organizados da socieda­
de, descontentes com situações como as descritas acima, se 
organizaram para introduzir na Constituição de 1988 disposi­
tivos que assegurassem o respeito aos direitos humanos e de 
cidadania dos grupos que tradicionalmente se encontravam sob 
tutela, como as crianças e os loucos, por exemplo (Arantes e 
M otta, 1990). Em que pesem modificações pontuais aqui e ali, 
ou mesmo experiências mais ousadas em alguns estados ou
um modelo pretensam ente único e absoluto não traz, como 
conseqüência , o e n riq u ec im en to do pen sam en to m as o 
irracionalismo e a intolerância à diferença. Nas palavras dc 
Pessanha (1993: 31):
Trata-se é de negar a matematização daquilo que ríao é 
matematizável, de negar a desumanização daquilo que 
precisa se manter humanizado, negar a extração da di­
mensão temporal daquilo que só pode ser compreendido 
temporalmente. Tra.ta-se, portanto, de preservar a tempo­
ralidade do tempo, a humanidade do homem, a concretude 
do concreto.
Como se vê, não é apenas da Psicologia que se trata, 
mas dc um a problem ática que envolve as chamadas Ciências 
Hum anas e Sociais. R obert Castcl, ao analisar a questão m o­
derna da loucura, m ostra que o sucesso da M edicina M ental 
na França se deu por prover um novo tipo de gestão técnica 
dos antagonismos sociais, podendo a Psiquiatria, neste sentido, 
ser considerada um a Ciência Política, porque respondeu a um 
problem a de governo. Ao fazê-lo, no entanto, reduziu a loucu­
ra às condições de sua administração.
E portanto essa constituição de um administrável (poderí­
amos dizer com mais ousadia de um ‘administrativável’) 
que se trata de revelar: administrar a loucura no sentido 
de reduzir ativamente toda a sua realidade às condições de 
sua gestão em um quadro técnico (Castel, 1978: 19).
No Antigo Regime, a responsabilidade pela internação 
dos indivíduos considerados insanos era com partilhada pelo 
poder judiciário e executivo. As portas da Revolução Francesa, 
qualificado o poder real como arbitrário e abolidas as lettres 
de cachet; ou ordenações do rei, como justificar o grande nú­
mero de pessoas seqüestradas que, apesar de tudo, não se que­
ria libertar? E ra im portante para a nova ordem solucionar este 
impasse, já que não se podia ignorar o ordenam ento jurídico 
que disciplinava a m ed idade privaçãp_dc_ liberdade. -Ao-p os tu--
24
larem a minoridade do louco e
o seu isolamento corno m edida 
terapêutica necessária ao con­
trole de sua pcriculosidade, os 
alienistas ofereceram um a jus­
tificativa médica à sua repres­
são.
M as não eram os loucos 
os únicos que colocavam pro­
blemas de governo, após a abo­
lição das lettres de cachety um a ve2 
que estas serviam tarito para sancionar as condutas considera­
das imorais como as consideradas perigosas. No entanto, antes 
de se colocar como fator indispensável ao funcionamento do 
aparelho judiciário e de estender-se em direção a outros gru­
pos, a Medicina necessitou primeiro legitimar-se como um poder 
face à Justiça. Em relação ao prisioneiro, por exemplo, a atu­
ação m édica se dará inicialmente visando à execução da pena, 
e só mais tarde se dedicará à avaliação da responsabilidade do 
criminoso (Castel, 1978: 38).
Neste momento posterior, ao desfazer-se a rígida sepa­
ração entre o normal e o patológico sobre a qual repousavam 
as in ternações dos alienados, desfazim ento in iciado pelas 
teorizações dè Esquirol sobre as m onom anias6 e as de M orei 
sobre as degenerescências,7 as atividades de perícia se esten-
A Lettue-de-Cachet “não era uma lei ou um de­
creto, mas uma ordem do rei que concernia a 
uma pessoa, individualmente, obrigaudo-a a fa­
zer alguma coisa. Podia-se até mesmo obrigar 
alguém a sc casar peia leltre-de-cacheí. Na maioria 
das vezes, porém, cia era um instrumento de pu­
nição. Podia-se exilar alguém pela lellre-de-cachet, 
privá-lo de alguma função, prendê-lo etc. Ela cra 
um dos grandes instrumentos dc poder da mo­
narquia absoluta” francesa (Foucault, 1979: 76). 
Por outro lado, ainda segundo Fouçault, as Uures- 
de-cachet eram solicitações diversas dos próprios 
súditos: maridos ultrajados, pais de família des­
contentes com o comportamento de um de seus 
membros, seja por vadiagem, bebedeira, prosti-'
ü D e acordo com a m áxim a dos primeiros alienistas de que “não existe lou­
cura sem delírio” , surge a dificuldade de se caracterizar a alienação m ental, 
para efeitos de dcsresponsabílização jurídica,, nos casos em que nao se ob­
servam a presença de delírios nos indivíduos que com eteram crim c ou infra­
ção penal. Em contraposição às m anias, Esquirol postulou ás m onom anias, 
ou loucura sem delírio, am pliando a noção de alienação m ental. A m ono­
m ania é com o um delírio parcial, que não subverte inteiram ente a faculda­
de da razão o.u do entendim ento (Ver Gastei, 1978:_164^165).._____________ -
7 Com M orei am pliam -se as possibilidades de intervenção da m edicina na
25
municípios, a promessa de um a vida melhor para todos ainda 
não se concretizou. Continua a prática de atribuir a determi­
nados grupos, particularmente os jovens pobres das periferias 
urbanas, características negativas como perigoso, marginal, in­frator, deficiente, preguiçoso, como se tais atributos constituís­
sem a sua própria natureza. A Reforma Psiquiátrica, por outro 
lado, embora avance, se vê, às voltas com a difícil questão da 
inclusão social dos ex-pacientes, álém de divergências internas 
ao próprio movimento.
Como profissionais que atuam no campo social, os psi­
cólogos têm sido chamados, cada vez mais, a refletirem sobre o 
papel estratégico que desem penham nestes processos de 
objetivação/subjetivação, a próblematizarem as demandas que 
lhes são feitas e a colocarem em análise a sua condição de 
especialista.
Do tratamento que é pena
. Estudando as; internações psiquiátricas de crianças e ado­
lescentes do sexo masculino, realizadas atrayés de M andado 
Judicial, no período 1994-1997 e comparando-as com os de­
mais pacientes do mesmo sexo, encaminhados por familiares 
oü pélòpróprio serviço de saúde, Ana L. S. Bentes constatou 
estarem aquelas internações em crescimento, passando de 7% 
em 1994 para 33% em 1997 na unidade hospitalar na qual 
trabalha, no Rio de Janeiro. Um a vez verificado que os diag­
nósticos das crianças e adolescentes internados por M andado 
Judicial não correspondiam aos critérios psiquiátricos adotados 
pela unidade, pergunta porque, mesmo após a vigência do 
Estatuto da Criança e do Adolescente e do Movimento Nacio­
nal da Luta Antimanicomial e da Reforma Psiquiátrica, conti­
nuam acontecendo as internações compulsórias de crianças e 
adolescentes?
28
Algumas das características destas internações tem sido: 
1) a compulsoriedade;' não se podendo recusar a internação 
sob pena de desacato à autoridade; 2) o predomínio dc qua­
dros não psicóticos; 3) a estipulação de prazos para a internação, 
a despeito do que pensa a equipe médica que recebeu a crian­
ça ou o adolescente; 4) a caracterização do tratam ento como 
pena, no caso de adolescentes em conflito com a lei; 5) as cri­
anças e adolescentes apresentando-se fortemente medicados com 
psicofármacos, no ato da internação; .6) presença de escolta 
durante o período da internação; 7) tempo médio- de internação 
superior aos dos demais internos admitidos por outros procedi­
mentos; 8) desconhecimento, pela equipe técnica, dos proces­
sos judiciais referentes aos adolescentes em conflito com a lei.
Dadas estas especificidades, o adolescente internado por 
esta via judicial tende a não ser considerado paciente “legíti­
m o” pela equipe médica, pois esta não pode opinar sobre a 
indicação de internação nem sobre a alta, sentindo-se acuada 
entre o Código de Ética M édica e o Penal. Estabelece-se então 
um a distinção entre “nossos” adolescentes (da equipe) e adoles­
centes do “ju iz” , sendo estes considerados desobedientes, sem 
limites e agressivos. Além do mais, éxiste o medo de que as 
crianças e adolescentes do “ju iz” possam trazer “riscos” para 
as outras. A alternativa de separar essas duas clientelas em pátios 
ou alas distintas do hospital equivaleria a instituir, na prática, 
um a espécie dc manicômio judiciário para crianças e adoles­
centes.
Procedendo a um detalhamento maior da clientela, Bentes 
constatou que do total de crianças e adolescentes encam inha­
dos jud ic ia lm en te , 60% não foram diagnosticados com o 
“psicóticos”; 42, 9% dos que receberam diagnóstico de “dis­
túrbios do com portam ento” eram adolescentes em conflito com 
a lei, encam inhados por juizes da Com arca da Capital; e que a 
m aior média de tempo de internação (55, 6 dias) foi em decor­
rência dc encam inham entos feitos por juizes do interior do
Estado. O utros diagnósticos neste grupo foram dependência 
de drogas, epilepsia, distúrbios de emoções na infancia e ado­
lescência, transtorno da personalidade.-
D a entrevista realizada por Bentes com um dos juizes,
— onde-buscou-esolareeim entossobre-osencam inham entos-judi---------
ciais, destaco alguns trechos, indicativos do conflito aqui anali- 
. , sado:
As M edidas Socioeducativas são impositivas não só para o 
. menino com o tam bém p ara o local cm que ele vai cumpri- 
la. (...) Esta é um a questão essencial (..,) se a M edida médica 
for um a Pena, que nós chamamos de M edida Socioeduca- 
tiva, ela se torna imposiriva para todo mundo: para o Juiz, 
para a família, para o M inistério Público, para a Defesa,
' p a ra o médico, para o próprio garoto, para a equipe técni­
ca do Hospital, enfim ... A gente sabe, por exemplo, 
que p a ra tra ta r de drogas a OM S, o C onselho '(...) dizem 
que tem de ter a adesão voluntária da parte, mas no caso 
de adolescente em conflito, com a Lei, é um a M edida, é 
contra a vontade de todo , m undo, contra esta- P o rta ria ," 
contra a Convenção, contra a recomendação, contra a fa­
mília, contra o técnico. A medida não é, vamos dizer as­
sim, um a coisa voltada para 'a Proteção; é um a Pena (Bentes,
1999: 1 2 8 -1 3 8 ).
Não se trata aqui apenas de conflito entre Judiciário e 
M edicina mas tam bém de interpretações conflitantes da pró­
pria legislação, um a vez que outros operadores do Direito, como 
veremos mais adiante, não concordam em considerar o trata­
m ento como pena; nem creio estariam dispostos a ignorar re­
comendações da O M S, ou considerar que no Brasil a idade da 
responsabilidade penal foi reduzida para 12 anos a partir da 
vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente, como no 
exemplo abaixo. D e qualquer modo, se estas interpretações 
puderam ser apresentadas à pesquisadora é porque represen­
tam um a das correntes de pensam ento existentes no m undo 
jurídico.
30
De 1990 para cá, a imputabilidade está em 12 anos. Quando 
as pessoas dizem assim: - “Eu sou a favor de reduzir (a 
imputabilidade) para 16 anos” - na verdade, não estão 
reduzindo e sim aum entando de. 12 para 16 (Bentes, 1999: 
136-137).
Assim como encontramos interpretação de que a im pu­
tabilidade está em 12 anos, encontramos também aqueles que 
consideram que a “medida socioeducativa” é apenas um eufe­
mismo para “pena” e a “m edida de internação” um eufemis-' 
mo p a ra “prisão” , sendo a diferença entre o adulto e o 
adolescente apenas-o local onde cum prirá a “pena”: prisão de 
“m aior” para adultos e prisão de “m enor” para adolescentes. 
Com o agravante que, muitas vezes, a “medida sócio-educativa” 
aplicada ao adolescente é um a “pena” maior do que a que 
receberia se fosse adulto. Devemos nos lembrar que esta foi 
um a das críticas mais contundentes feitas ao Código de M eno­
res: a de que infligia à criança e ao adolescente “carente”, pela 
imposição de sua internação, em instituição total, um a “pena” 
de privação de liberdade freqüentem ente maior do que rece­
beria um adulto que cometesse um crime. Contradição do 
Direito, portanto, e ao que parece, insiste em se perpetuar.
Acredito que alguns destes conflitos e divergências pode­
riam ser resolvidos, ou pelo menos minimizados, caso fosse dada 
m aior atenção à política de atendimento. Freqüentemente o 
executivo municipal e o estadual são objetos de críticas por 
não assegurarem condições para o : cumprimento de direitos 
constitucionais básicos. Muitas vezes, feito um diagnóstico ou 
detectado um problema, não há como dar encaminhamento 
ao caso. Alguns juizes reclamam que enviam os adolescentes 
para a internação apenas por falta de alternativas para a exe­
cução das medidas sócio-educativas. Esta insuficiências das 
políticas tem sido um dos motivos para constantes desentendi­
mentos entre escolas, serviços de saúde, famílias, Conselhos 
Tutelares e Justiça da Infância e Juventude. Detectado que a
31
criança encón tra-se fora da escola, por exemplo, o C T a enca­
m inha a uma das escolas da região què, muitas vezes, alega 
não poder receber a criança por falta de vaga, o mesmo po­
dendo acontecer com o sistema de saúde ou com os abrigos.
Mas nem sempre os conflitos se devem à precariedadedas condições do atendimento. A escola pode não querer m a­
tricular a criança, não por falta áe vaga, mas porque ela é vista 
como “da rua”, “infratora” ou :‘deficiente”, fugindo do padrão 
de normalidade desejado. Neste caso, a escola alega que não é 
sua função óu que não tem os meios para lidar com aquela 
criança. Ou seja, não crê que o “problema’5 da criança pode 
ou deve ser enfrentado pedagogicamente, preferindo encaminhá- 
la ao juiz, ao Conselho Tutelar ou ao sistema de saúde, resul­
tando muitas vezes no que M aria Aparecida Affonso Moysés 
chamou de “medicalização da aprendizagem”, ao estudar cri­
anças que só não aprendiam na escola. (Moysés, 2001)
Configura-se assim, no campo social, um a situação mui­
tas. vezes complexa e confusa, onde pobreza, abandono e vio­
lência’ se misturam à ausência ou precariedade dás políticas 
públicas, às desconfianças, medos, omissões e acusações m útu­
as. Não é, certamente, o melhor dos mundos.
Da justiça que é terapêutica
Segundo estatísticas oficiais, o número de atos infracionais 
praticados por adolescentes.no Rio de Janeiro cresceu de 2.675 
em 1991 para 6.0Ò4 em 1998. Grande parte desses adolescen­
tes foram acusados de infrações análogas aos crimes previstos 
na Lei de Entorpecentes (6.368//76): de 204 infrações em 1991 
. para 3.211 em 1998 (Arantes, 2000).
Os adolescentes apreendidos pela polícia e levados à 
presença do Juiz da Infância e Juventude têm recebido m edi­
das judiciais, de natureza socioeducativa, consideradas severas:
32
no a n o de 1999, do total dc 11.256 adolescentes que cum pri­
ram medidas no D epartam ento de Açõés Socioeducativas da 
Secretaria de Estado e Justiça do Rio de Janeiro (DEGASE),
■ 40, 6% eram internações provisórias; 26, 07% medidas de semi- 
liberdade; 14, 8% internáções com sentença judicial e 9, 71% 
liberdade assistida, totalizando 91, 18% dos casos — o que sig­
nifica que menos dc 10% receberam medidas mais brandas, 
tam bém previstas na Legislação e consideradas mais adequa­
das ao adolescente, como a medida1: de prestação dc serviço à 
comunidade, por exemplo. Além do DEGASE, muitos adoles­
centes cum prem medidas em Programas oferecidos pela pró­
pria Justiça da Infância e Juventude.
Em bora o Rio dc Janeiro respondesse por 12, 98% do 
total de adolescentes privados de liberdade cm todo o país em 
30 /06 /1997 , vindo logo abaixo de São Paulo com 44, 87%£* 
respondia, no ehtanto, pelo m aior percentual de adolescentes 
internados por infrações relacionadas à Lei de Entorpecentes:- 
42, 07% (Volpi, 1998: 68-83). Para termos um a idéia do que* 
estes núm eros significam, o Relatório do Juiz de M enores Saul 
de Gusm ão, de 1941, m ostra um crescimento de 127 atos 
infracionais em 1924 para 248 em 1941 no Rio de Janeiro'/ 
sendo que nenhum a criança ou adolescente foi acusado dc 
envolvimento com drogas. As infrações apontadas são delitos 
de sangue, de furto, roubo e sexuais (Cruz Neto et al., 2001: 
58).
No livro Delinqüência juvenil na Guanabara são apresentadas 
estatísticas do Juizado de M enores/R J do período 1960 a 1971 
(Cavalieri et al., 1973). Nestes registros, verifica-se o início das 
apreensões por drogas, em bora os números sejam de m agnitu­
de múito. inferior aos atuais: 14 em 1960, do total de 666 atos 
infracionais e 192 em 1971, do total de 1.253 atos infracionais. 
Esclarece o Juiz de M enores Alyrio Cavallieri, em seu livro 
Direito do M enor, que estes núm eros se referem ao uso e não 
à venda de drogas, pois, em suas palavras “raram ente o m enor
33
é tra f ic a n te ” (C ava llie ri, 1976: 137). N este p e río d o a té o an o 
d e 1995, os m a io re s p e rc e n tu a is de a to s in frac io n a is são re la ti­
vos ao p a tr im ô n io : 2 .0 1 6 casos em 2 .624 no a n o de 1991, sen­
d o d ro g as a p e n a s 2 0 4 deste total.
_______ Esta_situação_diferenciada-para-o-Rio-de Janeiro-foi-ob—
jeto de estudos e de intensos, debates realizados nas universida­
des, n a C om issão de D ireitos H um anos da A ssem bléia 
Legislativa e no Conselho Estadual de Defesa da Criança e do 
Adolescente, ocasiões em que se indagavam sobre os motivos 
que estariam propiciando esta situação:
M udou a realidade e aum entou a criminalidade ou a m u­
dança é apenas o resultado de um a filosofia mais repressora 
e policialesca? O u seria fruto de aum ento de operosidade 
da Justiça, do M inistério Público e da Polícia? (Relatório: 
s/d).
M uitos destes adolescentes, quando apreendidos pela 
prim eira vez, dem onstram esperança de que a passagem pelo 
sistema socioeducativo possa ajudá-los, constituindo-se em opor­
tunidade pa ra o reingresso na escola e preparo para o trabalho
- esperança que acaba quase sempre em frustração, tomando- 
se por base o percentual significativo de reincidências. M uitas 
vezes sem possibilidade de voltar para casa ou para a comuni­
dade de origem, após a apreensão, evadido ou expulso da esco­
la, sem trabalho e sem perspectivas de um fúturo melhor, este 
adolescente peram bula peias ruas, furtando para viver ou per­
m anecendo com a venda da droga, até ser novamente apreen­
dido ou m orto em algum cgnfronto com a polícia ou grupo 
rival. São estes jovens as maiores vítimas da cham ada violência 
urbana. ,
Segundo a Síntese de Indicadores Sociais do IBGE/2000, 
relativa aos anos de 1992 e 1999, observa-se, a partir dos anos 
80, o peso crescente das causas externas sobre a estrutura da 
m ortalidade p o r idade, afetando principalmente os adolescen­
tes e jovens brasileiros do sexo masculino na faixa etária entre
15 c 19 anos. Estes índices chegam a quase 70% em muitos 
dos Estados brasileiros.
• Em vários fóruns de defesa dos direitos das crianças e 
dos adolescentes, onde estas questões são debatidas, pergunta- 
-gp-ppln. “acerto” e pela “justiça” destas apreensões e encami- 
nhamentos. Questiona-se se não estaria havendo rigor excessivo 
ná aplicação das medidas socioeducativas e a própria adequa­
ção do rótulo de traficante dado a alguns destes adolescentes, 
que m uitas vezes vendem pequenas quantidades de drogas 
apenas para sustentar seu próprio consumo ou como forma de 
subsistência. Questiona-se tam bém a adesão do Brasil a um 
política antidrogas norte-am ericana, favorável à chamada “to­
lerância zero”, e o papel que os .psicólogos são chamados a 
exercerem nesta nova m odalidade de “pena-tratam ento”, pro­
cedimento polêmico denominado Justiça Terapêutica e impor­
tado das Dmg Courts dos Estados Unidos da Amcrica.’1 O próprio 
Conselho Federal de Psicologia tem se manifestado neste sen­
tido, conclam ando os psicólogos a discutirem melhor o assun­
to, preocupados em que não exerçam atividades que contrariem
o Código de Ética dos Psicólogos.
Em artigo dedicado a pensar a Justiça Terapêutica, 
D am iana de Oliveira faz importantes considerações a respeito 
do papel que o psicólogo é cham ado a desempenhar nesta m o­
dalidade de Justiça, a partir de um dos programas existentes 
para adolescentes no Rio de Janeiro (Oliveira, s/d). Como foi 
dito, a J T se baseia no modelo norte-americano dos Tribunais 
para D ependentes Químicos (Cortes de Drogas), e oferece ao 
adolescente que for apreendido portando drogas para uso pes­
soal, depois de avaliado e considerado elegível, a opção de tra­
tam ento, ao invés de receber um a M edida Socioeducativa e / 
ou M edida Protetiva prevista no Estatuto da Criança e do Ado-
B Para um a apresentação favorável à Justiça Terapêutica, ver: Fernandes, s/d .
lescentc. A inclusão neste Program a deve ser voluntária e im­
plica, dentre outras coisas, o adolescente concordar em ser sub­
metido a testagem de urina periódicas e aleatórias, um a vez 
que o Program a prega abstinência total de drogas ilícitas e de 
bebidas- alcoólicas. Oliveira aponta aí um primeiro conjunto 
de dificuldades para o psicólogo:a de concordar com o c a rá te r 
compulsório do tratam ento e com a testagem de urina, além 
de que "usar ou não drogas” passa a ser o centro do acompa­
nhamento psicológico, podendo o adolescente receber sanções 
por descumprir. as regras do Programa. Este tipo de questão 
leva freqüentemente os psicólogos a terem dilemas éticos e a se 
perguntarem “Quem são os clientes da Psicologia?” e “Quais 
são os limites da atuação do psicólogo?”.
Falando a futuros juizes e defensores em “A Psicanálise 
c a determinação dos fatos nos processos jurídicos”, Freud aponta 
um a diferença fundam ental entre' o paciente da Psicanálise e a 
pessoa acusada pela Justiça: esta, no caso do cometimento de 
um delito, tem a intenção de ocultar o segredo da Justiça; já o 
neurótico não conhece o segredo; que está oculto para ele 
mesmo. No caso do neurótico, ele ajuda a com bater a sua pró­
pria resistência, porque espera curar-se com o tratam ento en­
quanto que o réu não tem porque cooperar com a justiça 
revelando o seu, delito; se o fizer, estará.trabalhando contra ele 
mesmo. Além do mais, para os procedimentos da Justiça, basta 
que os seus operadores obtenham uma convicção objetiva dos 
fatos, independentemente do que pensa o acusado; o mesmo 
não se dá com o tratamento psicanalítico, onde o paciente tam ­
bém necessita adquirir esta mesma convicção. Lembra-os, fi­
nalmente, da existência de normas que impedem que o réu se 
submeta a intervenções psicológicas sem ter sido alertado de 
que poderá denunciar-se através desta intervenção.
Além, destas, outras perguntas têm sido feitas em rela­
ção aos Programas da J T para adolescentes, entre as quais: 
uma vez que os tratamentos médico e psicológico já são previs­
36
•V:. :vT
tos no Estatuto da Criança e do Adolescente como M edidas 
Protetivas, p o rq u ê 'à existência da Justiça Terapêutica no âm­
bito da Justiça da Infância e Juventude? No caso de um adoles­
cente que nunca praticou qualquer outro ato infradonal a não 
ser o usó eventual de drogas, por quanto tempo será m antido 
em tratam ento? E o critério “tolerância;zero” condição de alta 
m édica ou psicológica? Neste caso, a Justiça Terapêudca teria 
como um de seus pressupostos a “criminalização” do atendi­
mento médico e psicológico? (Batista, mimeo, s/d)
D entre os pontos polêmicos de um dos Programas exis­
tentes9 destaco os artigos 6 e 7, que trazem dificuldades especí­
ficas para a atuação do psicólogo, como, por exemplo, o aumento 
na freqüência de sessões de tratam ento individual ou familiar c 
as entrevistas compulsórias, definidas como medidas punitivas 
por ter o adolescente descumprido alguma regra do Programa.
Artigo 6o - Dos participantes do Program a, exige-se:
I - Não usar ou possuir drogas ilícitas e bebidas alcoólicas e, se
for exigido pela unidade de tratam ento conveniada, não fu­
m ar tabaco nas sessões ou conforme a orientação desta uni­
dade.
II — C om parecer a todas as sessões dc tratam ento determ inadas
III - Ser pontual.
IV ,- ' .N ão fazer ameaças aos participantes, à equipe do program a 
ou da unidade de tratam ento, bem como não comportar-se 
de modo violento.
V - Vestir-se apropriadam ente para as sessões dc tratam ento e
audiências no Juizado.
VI — C ooperar com a. realização dos testes de drogas.
® Pela O rdem de Serviço N° 0 2 /0 1 , datada de 27 de junho de 2001, foi 
criado o Programa Especial para Usuários de Drogas (P R O U D ), no âm bito 
de com petcncia da 2 a VIJ, Com arca da C apital/R J, de acordo com as nor­
mas gerais previstas no Provim ento N° 2 0 /2 0 0 1 , da Corregedoria-G eral de 
Justiça.
37
VII — C ooperar p ára a obtenção de informações necessárias à ava­
liação inicial e seqüencial de seu caso.
V III — Os pais ou responsáveis deverão com parecer às audiências
no Juizado e às sessões de tratam ento recomendadas.
IX - C om parecer e dem onstrar desempenho satisfatório na esco­
la, estágios profissionalizantes e laborativos. '
X - Agir de acordo com as normas específicas da unidade de
tratam ento p a ra a qual foi feito o encam inham ento” .
Artigo 7° — As sanções previstas para a falha injustificada no cum ­
prim ento das normas ;do Program a são as seguin­
tes:
I - . A dvertência verbal.
II — R etirada de privilégios (válida para os casos de algum ado­
lescente que esteja, por exemplo, em program a de recebi­
m ento de cesta básica, lazer, etc.)
III - A um ento na freqüência de sessões de tratam ento individual
ou familiar.
IV — Regressão na fase de tratam ento e conseqüente m aior tempo
de perm anência no Programa.
V — : C om parecim ento a palestras e. sessões educativas sobre uso
indevido de drogas ou outros temas considerados úteis pela 
equipe de acom panham ento.
VI — M aior freqüência na realização de testes de drogas.
V II — Internação tem porária.
V III - Entrevistas compulsórias com 'médicos, psicólogos ou inte­
grantes de grupos de auto-ajuda.
IX — Restrições às atividades de íazer,’inclusive nos finais de se­
m ana. ’
X — Prestação de serviços na comunidade ou na sua própria casa,
de acordo com o entendim ento do Juiz.
X I — Limitação de horário de saída cia residência.
X II — Exclusão do Program a e re to m ad ad o processo inicial.
D iante de tais regras podemos nos perguntar o que fez o 
adolescente pa ra m erecer tam anha penalidade? E esta um a 
resposta adequada à experimentação do adolescente? Por que 
o envolvimento com drogas está se tornando, atualmente, o
38
responsável por grande parte do contingente dos hospitais psi­
quiátricos, manicômios judiciários, internatos^e prisões? Nao se 
tra ta aqui de negar o sofrimento de pessoas e de famílias 
destruídas pela dependência química -e pelo uso abusivo de 
drogas. No entanto, trata-se de perguntar, como faz Luiz Eduar­
do Soares: Por.que circunscrever o uso,de drogas ao campo da 
ilegalidade? Baseado em quais critérios certas drogas são con­
sideradas lícitas e outras ilícitas? Por que difundir a idéia de 
que ingerir substâncias psicoativas significa consumí-las em 
excesso? (Soares, 1993).
Perguntado se achava possível ou mesmo desejável a 
existência de um a .-cultura sem limites e repressões, Foucault 
respondeu que o im portante não era a existência de restrições 
e sim a possibilidade oferecida, às pessoas a quem afeta, de 
modificá-las (Foucault, 2000b: 26).
A juiza M aria Lúcia K aram , contrária aos procedimen­
tos da Justiça Terapêutica, advoga a s.ua inconstitucionalidade. 
D ada a im portância da argum entação para o tema tratado, 
perm ita o leitor um a longa citação.
Em bora reconhecendo a ausência de culpabilidade e, as­
sim, a inexistência de crime nas condutas daqueles que sc 
revelam inimputáveis, o ordenam ento jurídico-penal b ra­
sileiro, paradoxalm ente, insiste em alcançá-los, ao impor, 
como conseqüência da realização da conduta penalmente 
ilícita, as cham adas medidas de segurança, com base em
- um a alegada “periculosidade” atribuída a seus inculpáveis 
autores.
Aqui, indevidamente, se abre: o espaço para manifestação 
da aliança entre o direito penal e a psiquiatria, responsável 
' ■ por trágicas páginas da história do sistema penal.(...)
N a realidade, as medidas de segurança para inimputáveis, 
consistindo, como prevêem as mencionadas regras dos ar­
tigos 96 a 99 do Código Penal e do artigo 29 da Lei 6.368/ 
76, na sujeição obrigatória e por tempo indeterminado a 
tratam ento médico (ambulatorial oú mediante internação), 
não passam de formas mal disfarçadas de pena, sua in­
39
compatibilidade com a Constituição Federal, por manifes­
ta vulncraçâo do princípio da culpabilidade é,. conseqüen­
tem ente, por manifesta vulneração da p ró p ria norm a 
constitucional, que aponta a dignidade da pessoa hum ana 
como um dos fundamentos da República Federativa do 
Brasil, decerto, havendode ser afirmada.
Mas, este inconstitucional tratam ento obrigatório já vem 
sendo aplicado até mesmò para aqueles que têm íntegra 
sua capacidade psíquica, nas tentativas,' diretam ente veicu­
ladas pelos Estados Unidos da América,- de transportar, 
para o Brasil, as chamadas drug court, que, aqui, se preten­
de sejam adotadas, com a tradução literal de “ tribunais de 
drogas” , ou sob a denominação de “justiça terapêutica” , 
esta última explicitando a retom ada daquela' nefasta alian­
ça entre o direito penal e a psiquiatria. (...)
Assim, estende-sc o tratam ento médico a imputáveis, o que 
já contraria as próprias leis penais ordinárias vigentes. As­
sim, amplia-se o alcance do sistema penal, com a imposi­
ção de verdadeiras penas, negociadas ao preço da quebra 
de diversas garantias do réu, derivadas da cláusula funda­
mental do devido processo legal, constitucionalmente con­
sagrado. (...)
Esta importação das drug court chega, ainda, ao âmbito dos 
juizados da infancia e juventude. Ali também, pretende-se 
violar a liberdade individual, a intimidade e a vida privada 
de adolescentes, através da imposição de um tratam ento 
médico obrigatório, sem que sequer seja externado trans­
torno mental que, teoricamente, o pudesse aconselhar. (...). 
(Karam, 2002: 210-224).
Não foram por outros motivos que o Grupo de T raba­
lho “Justiça Terapêutica”, coordenado pelo Conselho Regio­
nal de Psicologia 03 e que contou com a participação de 
representantes de diversos outros CRPs, recomendou um a dis-
• cussão nacional sobre o problema das drogas. Em bora a ju s ti- 
ça Terapêutica não aconteça em todo o país, diversos outros 
. serviços, mesmo sem utilizar esta. denominação, estão operan-
40
do sob a m esm a lógica, o q u e ju s tifica a discussão n ac io n a l, 
seg u n d o o R e la tó rio -d es te G T.
A JT faz parte de um a política nacional de com bate às 
drogas, adotada pela SENAD - Secretaria Nacional Anti- 
drogas, cm parceria com a Em baixada Am ericana, país 
que exporta este modelo. A SENAD, ao mesmo tempo que 
apó ia iniciàtivas de redução de danos (ao p rem ia r a 
REDUC), incentiva iniciativas do .tipo daJT (Relatório, CRP: 
s/d).
O G T in d ica u m a p o sição “ c o n trá r ia ao m o d e lo d a J T e 
a in se rção d o psicólogo b asead o nos seguintes e lem en tos in ic i­
ais” , e n tre os quais: a q u e b ra do sigilo profissional, j á q u e deve 
o psicó logo p ro d u z ir p ro v a q u e d ep õ e c o n tra o p ró p r io su jeito ; 
q u e b ra dos d ireitos in d iv idua is m ín im os, p osto q u e o su je ito 
q u e o p ta p e la J T tem de a b r ir m ã o do d ire ito dè defesa , te n d o 
de se con fessar cu lp ad o , m esm o q u e u su ário even tual; p o r e n ­
te n d e r q u e h á u m a d ife ren ça e n tre u su ário ev en tu a l e d e p e n ­
d e n te e p o r re a f irm a r o c a r á te r v o lu n tá rio do t r a ta m e n to , 
co n d ição fu n d a m e n ta l p a ra sua eficácia; ta m b é m p o r e n te n ­
d e r, co m o j á foi d ito , ser necessá ria u m a am p la discussão sobre 
a q u es tão das d rogas n o Brasil.
Em 2002, pelas Portarias 336 e 189 do M inistério da 
Saúde, foram criados, dentro dos parâm etros da Reform a Psi­
quiátrica, os Centros de Atenção Psicossocial para atendim en­
to de crianças e adolescentes (CAPSi) e para portadores de 
transtornos em decorrência do uso e dependência de substân­
cias psicoativas (CAPSad), trazendo esperança de que novas 
modalidades de assistência em saúde mental possam ter lugar.
Criticando a prática dos psicólogos
Segundo Michel Foucault, em Vigiar e punir, conhecemos 
já todos os inconvenientes e perigos que a prisão oferece e tam-
41
bém a sua inutilidade em relação a um a suposta regeneração 
dos prisioneiros, e, no entanto, as nossas sociedades não que­
rem dela ab rir m ão. Sabemos também, pelo menos enquanto 
a prisão não se propunha a regenerar ou tratar, que a prisão 
nào-deveria-sérnadaalém -do^que"a'sim ples'privação_deiiber- 
dade, m as não é o que acontece. É a este excesso, ao que ex­
cede a pena, que Foucault cham ou o penitenciário. O aparelho 
penitenciário, local de cumprim ento da pena, é também lugar 
de um a “curiosa substituição”:
(...) das mãos da justiça ele recebe um condenado; mas 
aquilo sobre que ele deve ser aplicado, não é a infração, é 
claro, nem mesmo exatam ente o infrator, mas um objeto 
um pouco diferente e definido por variáveis que pelo m e­
nos no início não foram ■ levadas em conta na sentença, 
pois só eram pertinentes ’para um a tecnologia corretiva. 
Esse outro personagem que o aparelho penitenciário colo- 
« ca no lugar do infrator condenado, é o delinqüente.
O delinqüente se distingue do infrator pelo fato de não ser 
tanto seu ato quanto sua vida o que mais o caracteriza (...)
O castigo legal se refere a um ato; a técnica punitiva a 
um a vida (..,) Por trás do.infrator a quem o inquérito dos 
fatos pode atribuir a responsabilidade de um delito, reve­
la-se o caráter delinqüente cuja lenta formação transparece 
na investigação biográfica: A introdução do “biográfico” é 
im portante na história da penàlidade (Foucault, 1977.: 223- 
224).
A partir de sua atuação como psicólogo no sistema só- 
cio-educativo do R io de Janeiro , Adilson Dias Bastos dedicou- 
se a pensar como se dá a construção deste “biográfico” na prática 
técnica dos psicólogos. N a reconstrução da história de vida dos 
sentenciados, incluindo adolescentes, este biográfico visa mos­
trar como o indivíduo “já se parecia com seu delito antes mes­
m o de o ter praticado”: o pai é ausente... diz que a mãe morreu 
no p a r to ... estudou apenas até a 2a série... acha que como está 
nesta vida não tem mais je ito ... foi expulso da escola.'., pouco
sociável... disperso... im pacien te... baixo grau de tolerância à 
frustração... vive nas ruas e diz que é mendigo... diz que nas­
ceu para ser ladrão... disse que conhece mais gente que está 
presa do que gente em liberdade...'tem um irmão- mais velho
que-j á-foi-preso. ..-(Bastos,_20.02115-119).______ _______ ____
Segundo Bastos, esta produção técnica, que além de ser 
um discurso de “verdade” e um discurso que no limite “faz 
v iver e deixa m orrer”, é tam bém ,um discurso que “faz rir” . 
Exemplificando, cita laudos periciais colhidos por Isabelle N o­
gueira nos arquivos do M anicôm io Judiciário Heitor Carrilho, 
situado no município do Rio de Janeiro. Nogueira se dedicou 
a pesquisar os laudos de pessoas que haviam sido apreendidas 
por motivos banais como brigas, xingameritos, vadiagem, pe­
quenos furtos e desacato a autoridade (Nogueira, 2002). Veja­
mos um pequeno trecho, de um dos exemplos, do ano de 1924.
É elle portador de estygmas phisicos de degeneração bem 
pronunciados (...) Nem mesmo lhe faltam as tatuagens, 
estygma physico adquirido .que, com freqüência aparecem 
nos degenerados e nos delinqüentes. Vê-se, assim, no seu 
. ante-braço direito, um pássaro com um a carta no bico; 
um vaso de planta e o nom e de Idalina; no braço direito 
várias estrellas, um com eta e algumas lettras; no braço es­
querdo as iniciais AP; no peito, iniciais, um pássaro e a 
expressão ‘Amo-te1 (Bastos, 2002: 120; Nogueira, 2002: 99).
D entre os discursos que “faz chorar” destaco o de um 
grupo de médicos, membros da Escola Nina Rodrigues, estu­
dado por M arisa Corrêa. Este grupo foi importante na consti­
tuição da M edicina Legal no Brasil, sendo um dos mais atuantes 
Leonídio Ribeiro, fundador do Instituto de Idendficação do 
Rio de Janeiro e ganhador do Prêmio Lombroso de 1933. É 
dele a citação abaixo:
N a criança de um ano é, às vezes, possível já reconhecer o 
futuro criminoso. É na prim eira infanda, ou na puberda­
de, que se revelam as prim eiras tendências para as atitudes
43an ti-sociais, que se concretizam e agravam progressivamente, 
sob a influência geral do ambiente. Existem, na criança, os 
chamados ‘sinais de alarm e’ de tais predisposições e ten­
dências ao crim e, sinais que podem ser .de na tu reza 
morfológica, funcional ou psíquica. Especialmente sobre 
estes últimos é que devem estar vigilantes todas as mães, 
sabiclo que as crianças perversas, rebeldes, violentas, im ­
pulsivas, indiferentes e desatentas são principalmente as que 
precisam recebcr cuidados especiais para não se. tornarem , 
afinal, elementos perigosos para a sociedade (Corrêa, 1982: 
60-61).
Em pesquisa sobre juventude e drogas, Vera M alaguti 
Batista estudou a evolução, do problem a no Rio de Janeiro, no 
período 1968-1988, a 'partir de processos encontrados no ar­
quivo do então Juizado de Menores (Batista, 1998). Além de 
análise quantitativa, Batista analisou os conteúdos dos laudos e 
pareceres das equipes técnicas formadas por assistentes sociais, 
psiquiatras e médicos das Delegacias de Menores, da FUNABEM 
e do Juizado de Menores, encontrados nos processos.
Pela análise de Batista é flagrante a construção de este­
reótipos, a partir de olhares cientificistas e preconceituosos, 
erigidos na virada do século XIX, e que ainda persistem na 
prática de muitas equipes técnicas: o preconceito em relação às 
favelas e bairros pobres (“o .local onde reside propicia seu en­
volvimento com pessoas perniciosas à sua formação”); a atitu­
de suspeita (“estava desempregado, perambulando em estado 
de vadiagem pela Zona Sul quando sua residência se encontra­
va na Zona Nòrte”); a criminalização do uso de drogas (“foi 
detido cheirando benzina”); a desqualificação familiar (“proce­
de de família desagregada”); serviços que não são considerados 
trabalho (“está trabalhando em biscates, pois diz não ter paci­
ência para aturar patrão; não está estudando nem trabalhan­
do”); a hereditariedade (“o pai já fez tratamento nervoso”); os 
distúrbios de conduta (“autuado por práticas anti-sociais”). T al
caracterização leva sempre às.mesmas recomendações: resso- 
cializar, reeducar,’recuperar, tratar, profissionalizar, rem eten­
do as faltas e as dificuldades dos adolescentes a eles mesmos ou 
às suas famílias. No entanto, conclui Batista, mais do que “doen­
ça m ental”, os processos revelam histórias de miséria c exclu­
são social. . ;;r
Aline Pereira Diniz, estudando uma amostra de 46 pa­
receres psicológicos, no período de 1995 a. 1998, encontrados 
nos processos de adolescentes evadidos do sistema socioeducadvo 
do Rio de Janeiro enquanto cum priam M edida Socioeducati- 
va de Internação, e com M andato de Busca e Apreensão, cons­
tatou que a grande m aioria pertencia ao sexo masculino, com 
idades entre 15 e 17 anos e poucos anos de escolaridade. Em 
sua m aioria estes adolescentes foram acusados dc infrações 
análogas aos crimes contra o patrimônio e análogas à Lei de 
Entorpecentes. Dentre os motivos alegados pelos adolescentes 
para as fugas, destaco a existência, na mesma unidade dc aten­
dimento, de adolescentes pertencentes a grupos ou facções ri­
vais: “fugiu por lá ter encontrado o gerente da boca, que disse 
que ele deveria pegar a carga”; “porque lá encontrou m em ­
bros do comando rival, que estão em guerra, então teve que 
fugir de novo” . Outros motivos foram ameaças de estupro, por 
sofrer agressões, por ter a roupa furtada; por medo de ser pu ­
nido ou encaminhado à Delegacia de Polícia por ter sido pego 
fumando m aconha (Diniz, 2001: 50).
Diniz identifica dois “tipos” de adolescentes, a partir dos 
pareceres psicológicos: aquele que foi “levado” ao ato infracional 
pelas circunstâncias ou pelas amizades e aquele que teria o 
“perfil” de infrator, facilitado pela ausência paterna, desestru- 
turação familiar e por determinados traços ou caracterísdcas 
de personalidade como agressividade, impulsividade, malícia, 
dificuldades em lidar com limites, sentimentos de inferioridade 
etc. Com o conclusão dos pareceres, a adequação à rotina ins­
titucional e a participação nas atividades propostas aparecem
45
quase sempre como critério de que o adolescente está recupe­
rado ou ressocializado.
Para concluir, gostaria de dizer que um fator comum 
que une os estudos acima é a busca de alternativas para a atu- 
açâo_profissional3_na-esperança~de-quc-a-Psieoiogia-possa-ser— 
exercida de um a outra forma, além de trazer à luz o enorme 
sofrimento causado pelo encarceram ento de adolescentes. ^
Retom em os então, de um Outro modo, a pergunta “Que 
é a Psicologia?”, possibilitada aqui pelas lembranças de Bastos 
(2002): : : í
N um a de suas belíssimas aülas ele se dirigiu a alguns alu­
nos do curso de psicologia e perguntou: O que vem a 
ser a psicologia?” “P ara que ela serve?” Ante a nossa con­
fusão, perplexidade e dem ora, Cláudio U lpiano nos disse: 
D epende das forças que se apoderam 'dela!; Coloquem- ■ 
suas forças em batalha para produzirem um a psicologia 
afirm ativa.” 10
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10 N ota de esclarecim ento feita por Bastos (2002: 58): “Cláudio U lpiano, 
filósofo, ex-professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) 
e da U niversidade Federal F lum inense (UFF), já falecido. Responsável por 
introduzir nestes estabelecim entos o pensam ento de D eleuze, Bergson, 
Guattari, N ietzsche etc., através de suas aulas e gvupos de estudo que, 
inclusive, atraiam pessoas de fora do m undo acadêm ico.”
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