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Passei na UFBA, e agora? Adriana Maria Santos de Souza e Aline de Oliveira Costa Santos 1 Será que é verdade? Eu não acredito? Só vou acreditar no dia em que tiver com o comprovante de matrícula na mão. Foi assim que reagimos, ao sabermos que passamos no vestibular da Universidade Federal da Bahia. Nesse lugar, até então “inacessível”, que achávamos que precisávamos pedir licença para entrar, lugar dos “cabeções”, dos “feras”, instituição almejada pela grande maioria dos estudantes que deseja fazer um curso superior, principalmente pelos filhos da nossa querida escola pública. A princípio, não acreditávamos, como muitos alunos oriundos dessa escola, que teríamos oportunidade de estar ali, um dia, como alunas. Pensamos, muitas vezes: será que podemos? Será que aquele espaço tão disputado, teria um lugar para nós? Hoje sabemos que não se tratava apenas de baixa-estima, falta de expectativa ou coisa parecida. Éramos mesmo as primeiras, as primeiras de nossas famílias a ingressar no ensino superior e o melhor de tudo em uma universidade pública. Fazíamos parte do primeiro grupo de alunos cotistas a ingressar nesta Universidade, ou seja, estávamos estreando, por isso a insegurança, o medo que, por muitas vezes, nos assombrou, sob forma de pensamento assim traduzido: será que somos capazes? Será que vamos dar conta? Até o dia da matrícula, que demorou... o pensamento se repetia... Finalmente, no segundo semestre de 2005, devido à última greve que durou 110 dias e resultou na anulação do segundo semestre de 2004, pisamos na UFBA!. Já devidamente matriculadas, afirmávamos, nos perguntando: “Passamos na UFBA! E agora?” Como será de agora em diante? Será que vamos conseguir acompanhar as discussões? Será que vamos conseguir fazer os trabalhos? Ingressamos no bojo da expansão do ensino superior e no primeiro ano da implantação da política de cotas. Será que haverá uma atenção especial para conosco? Será? Será? Será? Tinha “serás” para tudo que se possa imaginar. As aulas começaram, éramos tratadas como iguais, apesar das diferenças. Isso era bom ou ruim? Não sabíamos avaliar. Entre os colegas, percebíamos que não estávamos sozinhas, Curso de Pedagogia, Faculdade de Educação, pessoas diferentes, algumas histórias parecidas outras nem tanto... Tivemos dificuldade de nos situar nesse “novo universo” como todos que 1 Estudantes de Pedagogia da UFBA. chegam à Universidade. Passou certo tempo para entendermos de fato o que significava D.A., DCE, PROAE, SMURB, PROEX e mais umas dezenas de siglas que se misturavam com siglas de grupos de pesquisa, isso sem falar nas palavras proferidas pelos professores e repetidas por nós alunos, termos ou palavras que mesmo pedindo ajuda ao “pai dos inteligentes”, não conseguíamos entender: ontologia, epistemologia, etnocentrismo, hermenêutica, materialismo, positivismo, status quo, e tantas outras que pensávamos conhecer, mas foram ressignificadas pela academia. Ouvíamos de alguém: “Você que está chegando agora, nem se preocupe, essa coisa de usar palavras difíceis é ontológico nesse “novo universo”, aos poucos a gente vai incorporando e passamos a utilizar assim, sem percebermos”. Mas se todas as dificuldades parassem por aí, estava moleza. O que segue, caro leitor, se estiver lendo em voz alta, por favor, leia baixinho. Não sabíamos utilizar o correio eletrônico, era verdade! Na primeira semana de aula, uma professora perguntou se existia alguém que ainda não tinha e-mail, o tom irônico com que ela fez a pergunta, fez com que muitos que ainda não o tinha permanecessem calados, inclusive nós – isso depois ficou explícito - a única colega que corajosamente assumiu não ter e-mail, recebeu o “carinhoso” conselho da professora: “Então, minha filha, saia da pré-história!”. Tudo era novo, até uma “simples” atividade, para nós, se transformava em um trabalho da mais alta complexidade, algo mirabolante, tínhamos que nos reunir para discutir. E por falar em trabalho... Nosso primeiro seminário, podemos dizer que foi um desastre, não gostamos nem de lembrar, mas aqui vamos fazer uma concessão... Naquele dia, parece que tudo conspirou para dar errado: primeiro o texto eletrônico não abria, mesmo tendo sido gravado em várias mídias, o que desencadeou outros problemas de ordem psicológica como: um festival de “ééééééé!”, gagueira, suor e tremedeira. Porém, o que nos deixava mais angustiadas, era quando olhávamos para a cara da professora que se mostrava impaciente com tamanha falta de habilidade. Nesse momento, vimos ir por água abaixo um semestre inteiro de estudos, visitas a instituições, pesquisas em bibliotecas, horas e horas perdidas na casa de vizinhos para construir o texto eletrônico. Essas foram algumas das muitas dificuldades que enfrentamos ao ingressar na UFBA. Entende agora por que tanto medo? Estudar em casa é outro grande desafio que nós estreantes tivemos que enfrentar, pois não somos somente as primeiras de nossa família a alcançar o ensino superior, somos muitas vezes as primeiras de nossas ruas. E tanto a nossa família como os nossos vizinhos, não são adeptos do silêncio, pelo contrário, gostam de agitação. Conversar à distância sobre os mais variados assuntos de uma casa para outra ou um em cima da laje e o outro no meio da rua, ouvir música no último volume, inclusive colocando as caixas de som na janela ou na porta para que todos possam ouvir com mais intensidade. Isso sem falar nas crianças, que não tendo onde e com o que brincar, logo inventam formar uma banda com latas, tampas de panelas, baldes e pedaços de paus para acompanhar o som. Imagine você, leitor, ter um texto de Max Weber ou Foucault, para ler e entender ouvindo “Rala a tcheca no chão...”, “Esfrega a xana no asfalto...”, “Desce com a mão no tabaco...”, “Perereca pra frente, perereca pra trás...” e os mais variados estilos musicais a mais de 100 decibéis? “É barril ou não é”? Mas, passamos na UFBA, estamos na UFBA e... continuaremos, sempre, a perguntar: E agora? E agora? Temos essa e outras narrativas para partilhar Chegar à Universidade todos os dias é outra tarefa dificílima para todos nós, moradores da periferia de Salvador, das “Cajazeiras”, das “Mussurungas”, Pau da Lima, 7 de Abril, Plataforma, Mirante de Periperi, Valéria, Fazenda Coutos, Alto do Coqueirinho, Mata Escura, Águas Claras, sem falar dos colegas que vêm de outras cidades da região metropolitana e de tantos outros lugares tão distantes desse “novo universo”. Muitos de nós demoramos de 2 a 3 horas nos deslocando todos os dias de casa até a faculdade e, quando chegamos atrasados, os professores não querem saber o tempo que demoramos nos deslocando e sim que estamos atrasados e por diversas vezes nos perguntam: “Por que não sai mais cedo?” eles não entendem que ao contrário deles viemos de ônibus e não de carro, que passamos mais tempo dentro do transporte que na própria faculdade, que para chegar para assistir a aula de 07:00h é necessário sair de casa às 05:00h ou 05:30h da manhã, e ainda correndo o risco de encontrar uma paralisação ou um dos inúmeros engarrafamentos que encontramos todos os dias. E você pensa, caro leitor, que aproveitamos essas quatro horas para ler um texto? Que nada! Primeiro que, apesar de sairmos cedo, na maioria das vezes viemos em pé, sem falar que, na volta, para casa encontramos vários baleiros que a todo o momento entram nos ônibus a oferecer seus produtos: “Boa tarde, pessoal, desculpe atrapalhar o silêncio da viagem de vocês pessoal, eu estou trazendo aqui as deliciosas jujubas que em qualquer supermercado, pessoal, vocês encontram uma unidadepor R$1,00. Aqui na minha mão, pessoal, vocês vão levar quatro por apenas R$1,00”. Depois do vendedor de jujuba, entram os das canetas, marcador de CD, cartelas de agulhas, paçocas, pés-de-moleque, balas, chicletes, chocolates, pastilhas... Enfim, uma infinidade de produtos, para todos os gostos e necessidades. Bom, agora já somos mesmos alunas da UFBA, não dá mais para duvidar, mas o que vamos fazer se todo mundo diz que quem estuda na UFBA são somente os “filhinhos de papai” que podem só ficar estudando sem trabalhar? Ao entrarmos, já não tínhamos 18 anos e precisávamos trabalhar. No início, não conseguíamos estágio, nem trabalho, vivíamos na “franja”. Você deve está se perguntando, o que é isso? Certa vez uma professora numa das aulas fez referência a questão da falta de trabalho na sociedade atual e disse que, pelo menos, 25% da população vive na “franja da economia”, ou seja, é a parcela da população que não tem um emprego formal, mas utiliza-se de estratégias para sobreviver. Estávamos na franja e nem sabíamos, pois, na época da páscoa, vendíamos ovos de chocolate, na época da chuva, sombrinhas, e a cada época procurávamos uma forma de ganhar dinheiro, para ajudar nas despesas com transporte, alimentação e xerox. Depois de várias tentativas de participação em seleções, conseguimos bolsa de iniciação científica e, desde então passamos a “viver a universidade”, participávamos de todos os seminários, palestras, apresentações de monografias, dissertações de mestrado, defesas de teses, reuniões de D.A., colegiado, departamento e congregação. Tudo era muito novo para nós, o nosso sentimento era que não podíamos perder mais nada. Por várias “vezes ouvimos de colegas frases do tipo: “Vocês moram nessa faculdade”! “Não sei como vocês conseguem ficar aqui tanto tempo”. Eles não percebiam que estávamos aproveitando todas as formas de aprendizado que esse “novo universo” nos proporcionava dentro e fora da sala de aula. Hoje, reconhecemos que aprendemos muito no decorrer da nossa formação, apesar de todas as dificuldades passadas nesse lugar que até bem pouco tempo pensávamos ser inacessível para nós. Se ao entrarmos tínhamos várias indagações, hoje temos outras tantas como: E os outros filhos da nossa escola pública que continuam a pensar que este lugar não é deles? E aquela maioria de nossos familiares e vizinhos que nem sequer tentam entrar nesse “novo universo”? E os colegas que não conseguem bolsa de iniciação científica e passam pela Universidade sem vivê-la? Como ficam? Entendemos que vamos sair daqui com uma visão de mundo mais ampla, vislumbrando outros horizontes que antes nem imaginávamos que existia e profissionais capazes de analisar criticamente os problemas que permeiam nosso campo de atuação, a Educação e a sociedade como um todo. Se hoje alguém nos perguntar: Passei na UFBA e agora? Podemos responder com convicção: “Pode entrar, essa Universidade também é nossa, ainda que “os nossos” tenham passado um logo tempo distante dela. No início a adaptação é difícil, mas depois não queremos mais sair, por isso VIVA INTENSAMENTE E APROVEITE TUDO QUE ESSE “NOVO UNIVERSO” TEM A OFERECER! Pois a UFBA é tudo que as pessoas falam, e ao mesmo tempo não é, ou seja, ao tempo em que ela é elitista, ela também é popular, exclui no vestibular, mas também sabe acolher, da mesma forma que desorienta, nos mostra vários caminhos, enfim a UFBA é a luta dos contrários.
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