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Professor e Educação Realidades em movimento

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Professor e Educação: Realidades em Movimento
Wanda Maria Junqueira Aguiar
Este artigo pretende, a partir de pesquisa realizada para fins de doutoramento1, refletir sobre as possibilidades, caminhos e desafios encontrados no trabalho de intervenção com professores.
O objetivo da pesquisa era, tendo a Psicologia sócio-histórica2 como referência, aprofundarmos nosso conhecimento sobre o professor, suas transformações, seus movimentos de consciência (conceitos que ao longo do texto irão sendo explicitados). O que os leva a se transformarem? Ou a não se transformarem? Como realizar um trabalho com professores tendo por objetivo que construam maiores condições de se apropriar de suas determinações, de suas histórias e, assim, transformá-las?
Vários trabalhos têm se dedicado ao estudo e à análise de cursos ("treinamentos", "reciclagem") para professores. Andaló, (1989) em seu trabalho "Repensando o aperfeiçoamento docente", faz uma ampla revisão a respeito dessa questão, apontando que esses profissionais, de uma maneira geral, esperam soluções claras e definitivas para as dificuldades enfrentadas no dia-a-dia. Segundo a autora, o caminho mais viável para a ocorrência de possíveis transformações. seria a "formação em serviço", através da abertura da possibilidade de repensarem sua própria prática. No entanto, as experiências de trabalho com professores têm nos mostrado muitos entraves. Como aponta Kramer (1993), mesmo aqueles trabalhos comprometidos com uma perspectiva transformadora ou progressista, dificilmente escapam de uma prática dicotomizada, separando conteúdo e método, dimensão política e técnica, fragmentando assim o ato pedagógico, que, sendo prática social, é indissociável, complexo e contraditório.
Tendo em vista as preocupações apresentadas, acompanhamos (para a realização da pesquisa em questão) o processo de um grupo de professores de uma escola pública municipal de São Paulo que viviam uma experiência de "Grupo de Formação"3. Durante dois anos (1992/1993), participamos semanalmente de suas reuniões, com o objetivo de analisar o movimento de consciência apresentado pelos professores, ou seja, as transformações nas suas formas de apropriação do real.
O que esse grupo nos mostrou?4 O que foi possível depreendermos sobre os movimentos ocorridos com os professores ao longo do processo?
Na tentativa de enfrentar e debater tais questões, vemos como necessário, de início, apresentar algumas considerações teórico-metodológicas (a partir de uma orientação sócio-histórica) que, a nosso ver, se mostraram fundamentais tanto para orientar nosso olhar, de forma que compreendamos o professor como um indivíduo histórica e socialmente construído, como para a elaboração de uma critica desveladora das práticas cotidianas dos professores. - importante destacar nossa compreensão do professor, como ação da realidade social, ideológica, institucional, compreensão -i que possibilita um olhar que ultrapasse a aparência, dando-nos condições de apreendê-lo na sua concretude.
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1. A tese de doutorado em questão foi defendida em fevereiro de 1997, com o título "As formas de significação como mediação da consciência: um estudo sobre o movimento de consciência de um grupo de professores".
2. Como autores referência dessa abordagem podemos citar: Vigotski, Rey, F.G.; Leontiev, Luria, Bock A.M.
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3. A estratégia de "Grupo de Formação" foi criada em 1990, pela gestão do Partido dos Trabalhadores na PMSP. Tal estratégia tinha como objetivo garantir a formação permanente dos professores. Segundo o próprio documento que propunha essa modalidade de grupo, "A imersão no cotidiano da escola, o caminhar solitário pode resultar numa prática cristalizada que nunca se modifica e cuja teoria jamais é questionada, nem explicada. O trabalho no 'Grupo de Formação' pode romper com esta situação".
4. O grupo pesquisado contava no seu início (1992) com seis professoras. No início de 1993 entraram duas professoras, tendo no final do ano uma delas saído. A princípio o grupo deveria ser coordenado pela Coordenadora Pedagógica da escola, no entanto era coordenado por uma das professoras que se dispôs a tal. A coordenadora dava suporte e acompanhava o grupo.
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Desse modo, destacamos, como tendo sido fundamental para a realização de nossa análise, a compreensão da categoria metodológica Totalidade". Tal princípio não significa de modo algum o estudo de totalidade da realidade, o que seria impossível dado que a realidade inesgotável. Segundo Lõwy (1988, p.16), "A categoria metodologica da totalidade significa a percepção da realidade social como um todo orgânico, estruturado, no qual não se pode entender um elemento, um aspecto, uma dimensão, sem perder sua relação com oconjunto".
Com isto estamos dizendo que a história social, econômica, a memória coletiva, a ideologia, a própria historicidade da instituição escola se tornam fundamentais e constituem a chave para compreendermos o movimento de consciência dos professores.
Assim, o professor só poderá ser compreendido à luz da realidade institucional, e mais do que isto, à luz da realidade social e histórica. Não podemos ainda deixar de considerar, como um aspecto indissociável ao acima afirmado, uma das hipóteses fundamentais da dialética, ou seja, de que tudo que existe na vida humana e social está sempre em permanente mudança. Destacamos dessa forma, como fundamental, o princípio apontado por Vigotski (1996), ao discutir os problemas do método, de que a análise psicológica deve sempre incidir sobre os processos, nunca entendidos como objetos fixos e estáveis. Assim, estamos afirmando que não existe nada eterno, fixo, absoluto. Tudo o que existe na vida humana e social está em permanente mudança, tudo é perecível.
Ainda com o intuito de apresentar os pressupostos teóricos e metodológicos, destacamos como fundamental a explicitação de que palavras/signos foram considerados como nosso ponto de partida para empreendermos o trabalho de apreensão da constituição do movimento de consciência.
Assim, a partir da articulação apreendida no próprio discurso, das palavras/signos, entendidas como significação, buscávamos explicações na história social e individual, na ideologia, na memória coletiva etc, a fim de novamente olharmos para o nosso sujeito particular, com o intuito de caminharmos na compreensão de como ele configurou tal realidade, de como ele produziu seus sentidos, de como se transformou.
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Acreditamos que somente através da compreensão das determinações (entendidas como propriedades essenciais do processo de constituição do sujeito) a que os sujeitos estão submetidos, podemos compreender suas formas de atribuir sentido.
É fundamental frisar que, quando nos referimos a determinações, de forma alguma elas se restringem àquelas imediatas, vividas naquele momento particular, naquelas relações imediatas. O homem, como um ser histórico, contém o social, interiorizado, transformado. Assim, suas formas de agir, pensar, sentir expressam mais do que determinações imediatas, mas a forma como a realidade sócio-histórica foi configurada internamente e assim transformada em realidade psicológica.
O Grupo Pesquisado
Vale ressaltar que vimos esse espaço, "Grupo de Formação", como privilegiado para a vivência de ressignificações, interações, negociações de sentimentos e ações e, assim, para refletirmos sobre o movimento de consciência. Dessa forma, o objeto de estudo constituiu-se nesse grupo, entendido como um espaço de encontros, confrontos de ideias, de produção de sentido, ou seja, um espaço de intersubjetividade.
Não podemos deixar de lembrar que esse grupo também é expressão de uma multiplicidade de determinações, contendo como propriedade essencial a realidade histórica, institucional e as histórias particulares, únicas e irrepetíveis dos sujeitos.
As professoras pesquisadas, desde o iníciodo grupo, explicitam os embates, dilemas e contradições vividas no movimento - de configuração5 das propostas do "Grupo de Formação" que participaram. É importante destacarmos que esse movimento deve ser entendido como um processo subjetivo, mas de natureza social, no qual as relações vividas vão sendo integradas de maneira contraditória pelo sujeito; o diferente move o instituído, que se desintegra ao integrar o externo, tendo assim como fundamental a idéia de que o interno participa da construção dos sentidos subjetivos atribuídos. A subjetividade é, assim, histórica: constrói-se ao longo da vida do sujeito e,: essa razão, não pode refletir o imediato, uma vez que a história da subjetividade deverá, também, incorporar e refletir a realidade objetiva.
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5. Segundo Rey Gonzales (1997, p.99) "As configurações subjetivas são categorias complexas, pluridimensionais que representam a unidade dinâmica sobre a qual se definem os diferentes sentidos subjetivos dos eventos vividos pelo homem ".
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Para a realização da análise, organizamos uma história do grupo, :o é, a história de suas falas individuais, também históricas, sociais que são e mediação da vivência grupai. A partir daí destacamos alguns emas centrais, assim entendidos por serem aqueles que catalisavam r motivavam o grupo, gerando discussões, expressões de emoções e envolvimento. Seguindo nosso trabalho de análise notamos que os temas centrais, denominados posteriormente por nós de Núcleos de Significação, se transformavam ao longo do tempo. Percebemos assim três grandes momentos, que evidenciavam o movimento de consciência das professoras, o processo de mudança pelo qual o grupo passa, as tensões vividas.
Os movimentos do grupo
Destacaremos a seguir alguns aspectos dessa história que, a nosso ver, melhor explicitam o movimento expresso pelo grupo, suas transformações.
No início do grupo o que verificamos é que suas práticas, suas formas de relação e os conteúdos tratados indicam o novo, motivam as professoras. As professoras valorizam a democracia e a participação (aspectos considerados por elas marcantes nas propostas da Gestão do Partido dos Trabalhadores), afirmam satisfação nessa forma de trabalho. Mas não podemos esquecer que os indivíduos são históricos, que suas formas de significar o mundo não são somente determinadas pelo social imediato; os indivíduos contêm como propriedade básica a história social, que atravessa e constitui suas histórias individuais. Assim presenciamos, nesse início do grupo, por um lado, o medo e a insegurança diante de novas situações que, de alguma forma, emergem e fazem parte das práticas, dos pressupostos e formas de trabalho que começam a se constituir através do grupo de formação, e, por outro, uma grande vontade de participar, de serem eficientes, de se apropriarem das novas propostas.
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O que verificamos são dificuldades e contradições constituídas no confronto do que poderíamos denominar negação do instituído, do ideológico, por um lado, e de concepções extremamente ideológicas, eivadas pelo individualismo, pelo preconceito, pelo tecnicismo, por outro.
As novas experiências, nesse início de grupo, são configuradas internamente, e aí "avaliadas" afetiva e cognitivamente. Temos, assim, o querer participar, temendo, o querer mudar, mas com medo e sofrimento.
A complexidade da consciência, constituída de múltiplas possibilidades de configuração, não permite um movimento linear, a apropriação sem a contradição, o reflexo direto da realidade.
Nesse primeiro momento, denominado por nós "O investimento no novo X o medo do desconhecido", as professoras mostram-nos, através das suas formas de configuração que o novo, ao mesmo tempo que adquire um peso emocional e cognitivo grande, nem sempre é realmente integrado nos seus aspectos afetivos e cognitivos. Para que tal integração ocorra, é necessário que o novo, o diferente, mova o constituído, que o novo mobilize os sentimentos significados assim como os não significados, os conteúdos cognitiva e afetivamente arraigados, muitas vezes impeditivos da mudança.
As professoras demonstravam muito o desejo de ser competentes, mas tecnicamente competentes. Apropriavam-se da concepção, a nosso ver equivocada, de competência como um conceito não-histórico, não articulado à dinâmica social e política. A competência técnica passa a ter, desse modo, um valor em si, universal, independente das condições sociais que a produz. Como nos lembra Nosella: 
"competência ou incompetência são qualificações atribuídas no interior de uma visão de cultura historicamente determinada, pois existe o competente e o incompetente para certa concepção de cultura, como existe o competente e o incompetente para uma nova concepção. de cultura" (1983, p.92).
A ênfase na técnica acaba por escamotear as relações entre Educação e política, Educação e poder. Querem fazer bem a tarefa de ensinar, mas não valorizam o fato de refletirem, questionarem praticas antigas, disporem-se a tentar o novo e sofrerem por isso, como algo fundamental para a formação do educador, como um caminho para a construção de um tipo de competência. Esta é a forma como objetivam esses valores na Educação, daí a dificuldade de trasformá-los.
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Não percebem, ou pelo menos têm dificuldade de apreenderem, a importância da problematização da prática, de modo que busquem suas raízes, seus fundamentos, a importância do conhecimento teórico como um instrumento fundamental para saírem do senso comum. A relação teoria - prática não é apreendida na sua articulação dialética, não lhes permitindo, na maior parte das vezes, enxergarem criticamente sua prática, descobrindo os elementos teóricos aí presentes. Elas querem ser competentes, elas têm pressa, querem resultados, e técnicas aparecem como salvadoras.
Lembrando Paulo Freire (1992), quando falamos em transformo do professor, não podemos deixar de nos perguntar sobre os possíveis temores vividos por eles. Será que não temem o constrangimento de reaprender sua profissão diante dos estudantes? Será que a necessidade de se recriarem no trabalho não os intimida? O que as professoras expressam nesse primeiro momento é também um grande medo de se exporem, medo do que vão pensar delas, medo de não conseguirem ser boas profissionais. Vejamos a fala de uma delas:
"Ninguém quer ser visto como não sabendo o que faz, é assim, eu sempre tive medo disso, é uma questão de caráter. Depende de cada um, eu não gosto de ficar me mostrando de qualquer jeito, acho que eu nasci assim ".
O que constatamos é que a tensão e a contradição são uma constante nesse primeiro momento, mas o agir pouco ou nada se transforma.
Seguindo a história do grupo, destacamos, inclusive como um marco do início do segundo momento, denominado por nós "O entusiasmo pela resistência e o fantasma da impotência", um fato novo, ou seja, a construção coletiva do "diagnóstico" de um aluno. O que motivou a necessidade de realizarem essa tarefa foram as queixas constantes de uma das professoras sobre um determinado aluno. Diante disto, a coordenadora do grupo propôs que todas as professoras se envolvessem na construção coletiva do diagnóstico do aluno. O objetivo de tal atividade, segundo a proposta feita pela coordenadora, consistiria não só em compreender o aluno em questão, mas em construírem as formas para isso, ou seja, uma "técnica diagnostica", como denominou. A proposta teve muita aceitação por parte do grupo. Agora o grupo tinha um enigma, algo que o mobilizava, algo que era importante para todos; como compreender "aqueles alunos difíceis"?
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A construção do diagnóstico foi uma atividade na qual as professoras partiram de uma tarefa bastante prática, problematizaram-na de forma coletiva, buscando os elementos teóricos aí presentes,caminhando assim para uma compreensão que ia além da aparência.
A construção desse diagnóstico, pela forma como foi efetivada, pelo envolvimento das professoras, criou o interesse em práticas até então vistas como chatas, como, por exemplo, algumas leituras já realizadas, possibilitando sua re-significação (retomam discussões sobre a construção do sujeito como histórico e social, fazem crítica às concepções inatistas etc).
Tal atividade trazia respostas concretas para o grupo, resgatando assim a potência deste. Como afirmou uma delas "..é tão bom não se sentir no buraco ".
Segundo Heller (1985), a implicação do sujeito em determinada atividade depende do tipo de ação, do próprio sujeito e da situação. Assim, vimos na realização do diagnóstico a articulação de interesses e motivos vividos pelo grupo ser organizada a partir de uma coordenação que propiciava a participação e interesse de todos.
A alfabetização e a atividade educativa são vividas como práxis, como um momento em que conseguem enxergar criticamente a sua prática, problematizá-la, buscando os elementos teóricos aí presentes.
Fica claro que o movimento de consciência expresso pela professoras se constrói na atividade, mas, como coloca Sawaia: "...ao enfatizar a importância do trabalho no processo da consciência, é preciso salientar que, mais do que o trabalho, é a qualidade dele e das relações nele estabelecidas que são fundamentais" (1987, p. 292).
Assim, é fundamental para apreendermos a importância da atividade diagnóstico que ela seja vista como uma atividade semio-ticamente mediada e, sem dúvida, vivida com uma grande implicação.
Como já afirmamos anteriormente, o movimento é constante, mas, em alguns momentos, ele torna-se mais evidente. Tem o poder de gerar transformações de modo que afeto, cognição e ação aconteçam sem cisão, expressando mais claramente a transformação nas foras de pensar, agir e sentir.
Nesse momento (diagnóstico), percebemos que sentimentos como o medo, insegurança, baixa auto-estima não são abandonados, são vividos de outra forma, com maior clareza da sua existência com mais garra para enfrentá-los. Mas um dado novo aparece. Mudanças na política educacional avizinham-se6-.
A desorganização típica de fim de gestão, o medo do que virá, o medo da perda e o desamparo vão caracterizar uma situação que subjetivamente se configura como difícil e desestruturadora, dando lugarar a um novo processo.
O que as professoras nos mostram é que diante da ameaça (fim i proposta PT, novas propostas de alfabetização, de organização do trabalho etc.) o envolvimento com as propostas da gestão antiga jumenta, gerando novas configurações e novos sentidos. As propostas ia gestão PT, apesar de não serem mais oficialmente colocadas, são significadas como algo fundamental a ser defendido.
Nesse momento, o grupo assume a identidade de "Grupo de Resistência" de forma clara e contundente. O resistir é vivido com muita emoção, com ânimo, medo, força, angústia, potência e impotência. Como afirma Heller (1985) diante do surgimento de obstáculos, novas vivências são suscitadas, tanto cognitiva como afetivamente, surgindo novos significados, gerando inquietação, movimento, novas possibilidades e possivelmente uma maior implicação.
A tensão vivida é extremamente emocional e constitui um elemento fundamental para a emergência de conteúdos que, de alguma forma, até então não haviam sido apropriados, significados, criando as condições para um momento de grande explosão emocional e re-significação. Poderíamos dizer que as tensões são a expressão emocional, empírica, das possíveis contradições existentes, denunciando assim um movimento latente, que pode ainda não ter se traduzido em alguma alteração na prática do sujeito, mas que sem dúvida já acarreta mudanças na subjetividade. Vejamos o que as professoras nos dizem nesse momento:
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6. Em meados de novembro, deparam-se com o fato de que o PT havia perdido as eleições. A Coordenadora Pedagógica que dava apoio à professora coordenadora do grupo aposenta-se, sem que outra coordenadora assumisse até o final do ano.
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"Sofremos porque todas nós queremos ensinar, e é difícil...queremos o bem das crianças. Todo nosso sofrimento resultará em alguma mudança, em melhoria na forma de lidar com as crianças. " "A consciência avança assim, a cada obstáculo ela avança, tem sido difícil, mas nós temos avançado, vai ser uma vergonha se não conseginrmos. "
Este é um momento de grande sofrimento, mas que aponta para novas possibilidades. Parece que em nenhum outro momento o grupo viveu tão intensamente, tão sofridamente. Vivem o auge da impotência e da crença na potência, sofrem pela falta de confiança em si mesmas e animam-se com as possibilidades que vislumbram. Do centro de todo esse sofrimento, surge um novo sentimento: o otimismo. Mesmo a baixa auto-estima, a insegurança e o medo são vividos de outra forma, cumprem papéis diferentes (desafios a serem enfrentados), são configurados diferentemente, geram sentidos diferentes. É ainda um momento de sofrimento, mas poderíamos dizer de um "sofrimento bom", um sofrimento que não contribui para paralisia, para impotência, para exclusão das possibilidades de transformação, mas sim um sofrimento que contribui para que as professoras se incluam no processo educativo, sem ser via o conformismo e a submissão. 
A implicação com a mudança acentua-se. Era o momento em que "as coisas tinham de acontecer", ou o discurso da mudança, do construtivismo, da participação, das concepções de democracia se efetivavam, ou morreriam. Era uma situação muito tensa.
O confronto com o novo, a adesão às novas concepções, mesmo que de maneira contraditória, criaram condições para que as professoras, de alguma forma, construíssem novas necessidades, desejos, formas de olhar a realidade. A vontade de mudar impulsiona o grupo, mas ao mesmo tempo traz no seu bojo o medo, o sofrimento: medo de não conseguir, vergonha por fraquejar, descrença nas propostas institucionais atuais, sensação de que precisariam um tempo maior para que mudanças efetivas ocorressem.
Manter a trajetória de mudanças é ser vitorioso, é conquistar, é resistir ao retrocesso, como elas afirmam, mas é também algo que pode parecer acima das possibilidades, é correr o risco de comprovar a si próprias a incompetência. O que elas afirmam nesse momento é que precisam de respostas imediatas, de "receitas", talvez assim, -em sabe, sentiriam pelo menos um alívio na sensação de incompetencia ou de culpa por tudo isto. Vejamos:
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"Eu abandonei mesmo a cartilha, estou satisfeita, vejo a diferença, acho que trabalho melhor com as crianças, mas não é fácil, de vez em quando me dá uma aflição, um medo de não saber fazer, ...tem horas que me sinto desarmada, agora vai ser muito difícil, acho que precisava de uma coisa mais prática.... "
O que nos fica evidente é que não podemos ignorar as condições institucionais, a política proposta pelo PPB (Partido Popular Brasileiro) que não colocava questões como a reflexão sobre a prática, a critica às formas tradicionais de Educação como importantes, o apoio ara as discussões etc.
Será que as professoras adquiriram as condições para continuar caminhando, no sentido das mudanças desejadas, ou pelo menos apontadas como desejo? Será que as questões discutidas ao longo do processo, como a construção do diagnóstico, foram superadas, negadas dialeticamente pelo novo, passando a existir no novo? Vemos assim a necessidade de sermos muito cautelosos ao .(firmarmos a ocorrência de mudanças. 
Apesar de as professoras afirmarem que continuariam resistindo, independentemente da política educacional ser outra, vimos que não foi bem assim. Vimos no caminhar do grupo o desejo de mudar, a tensão entre potência x impotência ir se esvanecendo. A implicaçãoque havia atingido seu auge diminui. O desejo de mudanças não mais se constitui um alvo de muita implicação. Os sentimentos vividos pelo conjunto das professoras que começam a se fortalecer são o desânimo e a tristeza, sentimentos que não levam à ação. Apesar de no plano do discurso (mesmo que com pouca implicação) ainda colocarem questões como resistência, necessidade de mudanças, no plano das ações não mais as realizam, não são mais possíveis.
Vemos o grupo ser capturado por saídas aparentemente menos sofridas, pela ilusão da ordem, pela idéia da possibilidade de caminharem por etapas.
Começam a falar em "não-cobrança". em "'liberdade para cada um fazer o que quiser", em menos sofrimento. Dizem que se sentem mais "aliviadas", "menos pressionadas". 
 O processo de significação que se delineia nesse momento parece resgatar a voz da ideologia (idéias que camuflam a realidade), da memória coletiva do que é ser professor na nossa realidade social. São vozes familiares que dizem: não façam, não se arrisquem; que apontam a técnica, a ordem, a disciplina como salvadoras. As novas condições pedagógicas, políticas e educacionais suscitam velhas fórmulas que poderiam estar adormecidas, mas não superadas.
Mas será que em nenhum momento se constituíram em falantes, em autoras, mas sim, como coloca Kramer (1993, p.188) "em simples mensageiras de conteúdos vazios ", falando de algo que nunca esteve vivo em suas práticas? Nossa hipótese é de que não.
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Acreditamos que um dos elementos que pode ajudar-nos a compreender esse movimento que consideramos de retorno às posições antigas, menos arriscadas, seja justamente o que passamos a denominar, a partir da pesquisa em questão, de a cisão entre o pensar, sentir e agir.
Nesse sentido vemos como importante a compreensão da extensão do conceito de ressignificação. Seria simplista afirmarmos que basta a apropriação das determinações, a sua apreensão racional, para que a re-significação ocorra. Temos de considerar a dialética objetividade/subjetividade como facilitadora ou não desse processo.
Dessa forma, temos situações em que o indivíduo, mesmo caminhando no processo de apropriação de sua realidade (subjetiva/ objetiva) e com isto alterando aspectos da sua configuração subjetiva, não consegue imprimir uma nova forma de agir, talvez mais coerente com as novas formas de configuração que começam a se esboçar. Poderíamos dizer que esse indivíduo vive uma situação de cisão entre o pensar, sentir e agir, cisão esta constituída a partir de uma nova configuração, marcada pela tensão entre a possibilidade do novo e a permanência, situação esta que pode (dependendo das condições objetivas/subjetivas) caminhar para sua superação, com o surgimento do novo, com o aumento da potência de ação do sujeito; ou para o equilíbrio do familiar, do conhecido, para o não desvelar das determinações, gerando a paralisia, a falta de potência, que seria o caminho inverso da superação, da transformação.
Nesse processo, de objetivação/subjetivação, que é único, social e histórico, a realidade social encontra múltiplas formas de ser configurada, com a possibilidade de que tal configuração ocorra sem desconstituir velhas concepções e emoções calcadas em preconceitos, visões ideologizadas, fragmentadas etc, fazendo com que o novo não seja apreendido com toda a novidade que pode conter, que ele seja negado, resgatando assim vozes que dizem "não faça, não se arrisque", promovendo a repetição, a não-transformação.
 Nesse momento final do grupo, denominado por nós de "Não São mais quem se dispuseram ser?", fica evidente como é difícil construir um discurso diverso. As professoras mostraram-nos como são múltiplos os fatores constitutivos da mudança, e que somente a tensão gerada pela crítica e insatisfação com determinada situação não é suficiente, mas que nesse processo os indivíduos têm de se potencializar para a ação. Para transformar a prática, além das condições objetivas, é preciso transformar as significações construídas que são sempre cognitivas e emocionadas) e o agir, o que só ocorre quando se sensibilizam as configurações da consciência.
Na prática, as professoras não conseguiram mudar, e assim o sofrimento (que poderíamos dizer mau, paralisante, a percepção de mesmas como incompetentes) constituiu-se em um sentimento muito presente. Sofreram muito e na percepção delas os alunos continuaram iguais, com os mesmos problemas; elas continuaram iguais segundo percepção delas próprias), sem conseguir alfabetizar; a escola continuou a mesma, de acordo com elas, muito pior.
O que observamos é que as professoras não conseguiram compreender que a luta pela competência não se dá somente no plano individual, que ela não se constrói por meio de um esforço pessoal em busca de técnicas milagrosas;, que a dificuldade de atingi-la não se dá somente por problemas individuais. Segundo Cortella (Secretário da Educação do Município de SP de 1990 a 1992), o trabalho competente da escola é o trabalho coletivo da escola e que, portanto, a noção de competência envolve, necessariamente, a noção de "compromisso político", ou "compromisso competente". Entretanto, essa compreensão de que a escola é mediação do social, é um espaço institucional, onde o emergente e o conservador vivem uma dialética constante, que se constitui em determinante do grupo, não foi construída pelas professoras, continuando dessa forma a se sentirem culpadas, incapazes, quase que naturalmente incompetentes.
A maioria das professoras viveu com grande envolvimento o segundo momento do grupo, quando o sofrimento diante da possibilidade de não conseguirem mudar se constituiu em potencializador da crença na possibilidade de mudança. No entanto, nesse momento (final do grupo), parece que só o sofrimento aniquilador da potência resta na memória. O sofrimento foi, sem dúvida, uma emoção fundamental para alavancar a tentativa do grupo de se manter "resistindo", mas não nos parece que tenha sido elaborado, compreendido na sua constituição e historicidade; ele não é mais vivido como uma emoção que foi gestada em um processo de avanços e descobertas, em um processo que criou possibilidades de conquistas. Parece que o que restou (para a maioria delas) foi somente a lembrança de que sofreram muito. As conquistas, as novas formas de lidar com os alunos, foram desejadas, mas pouco experienciadas. 
No momento em que a realidade institucional não lhes cobra mais que mudem (início da gestão PPB), que se arrisquem para tentar o novo, aquelas que sofreram muito, que tentaram não só apreender o significado da mudança, como realizá-la, se entristecem, desanimam e acabam perdendo a vontade, conformando-se.
As novas relações e conteúdos do grupo favorecem o ressurgimento e o reforço de uma história que não foi superada. Vemos, assim, a volta e a ênfase em questões como disciplina, ordem, regras de controle (presença de alunos, de professores horário etc).
Assim, em uma situação de desamparo, de falta de apoio que lhes fizesse acreditar que podiam continuar, a "volta" (para a maioria do grupo) é mais segura. Mas não podemos qualificar esse movimento de retrocesso, como uma volta ao ponto de partida, mas como um momento de desequilíbrio que busca o equilíbrio na segurança, no conhecido, ainda mais porque nunca tiveram certeza de que o novo era o melhor caminho. Parece que a única forma que encontram de se incluírem no espaço institucional é pela via do conformismo, da submissão, da tristeza.
Conseguem sufocar os conflitos, minimizar a tensão? Aparentemente sim, mas isto acontece com alguma tristeza. Tristeza por perceberem que suas capacidades de agir se encontram diminuídas.
As professoras mostraram-nos que a consciência se constitui na atividade ao mesmo tempo que é atividade. Atividade engendrada e alavancada pelas e nas contradições que, quando superadas, indicam caminhos novos, possibilitam novas formas de apreensão do mundo. Mas o que elas também nos mostraramé que nem sempre a superação é vivida, abrindo-se assim um leque de outras possibilidades, que podem indicar o apego ao conhecido, ao familiar, à repetição.
Muitas perguntas, no entanto se mantêm. Por exemplo: a tristeza será logo engolida e esquecida pelas praticas do dia-a-dia? Ou se constituirá em uma semente de insatisfação de falta de algo que indique a necessidade, a motivação para o novo?
Sem a pretensão de responder a tais questões, pois só a história poderá fazê-lo, afirmamos a necessidade de compreensão do processo de configuração subjetiva da realidade social, entendido como um momento fundamental para a criação de uma intervenção que considere a particularidade (em toda sua complexidade) das tensões, conflitos e sofrimentos das relações humanas.
Como nos coloca Barros (1995, p.413), "A Educação precisa causar ferimentos onde o novo possa ser inoculado”. Para isto devem ser criados espaços que se tornem lugares de encontro, de aliança, de negação e construção de novas formas de significar a realidade cotidiana: monótona, repetitiva, emudecedora, mas sem dúvida rica em contradições.
Finalizando, ninguém melhor que Paulo Freire para expressar que eu gostaria que, de alguma forma, chegassem às professoras que sob as condições mais adversas lutam, sofrem e não se conformam daquelas crianças não aprenderem.
"...ai daqueles e daquelas, entre nós, que pararem com sua capacidade de sonhar, de inventar a sua coragem de denunciar e de anunciar. Ai daqueles e daquelas que, em lugar de visitar de vez em quando o amanhã, o futuro, optam pelo profundo engajamento com o hoje, com o aqui e o agora; ai daqueles que, em lugar desta viagem constante ao amanhã, se atrelem a um passado de exploração, de rotina" (1983, p. 101).
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