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Textos Fundamentos/3.Nogueira.pdf 45 Revista Serviço Social & Saúde. UNICAMP Campinas, v. X, n. 12, Dez. 2011 DETERMINANTES SOCIAIS DE SAÚDE E A AÇÃO DOS ASSISTENTES SOCIAIS – UM DEBATE NECESSÁRIO Vera Maria Ribeiro Nogueira1 RESUMO Este artigo trata da relação entre as ações profissionais do assistente social na área da saúde e as possibilidades derivadas da compreensão crítica sobre os determinantes sociais em saúde, tendo como eixo referencial o direito à saúde, as necessidades sociais em saúde e a produção de saúde. A partir da crítica à posição tradicional sobre os Determinantes de Saúde, sinaliza para uma perspectiva crítica a respeito deles. Apresenta, inicialmente, uma referência acerca das ações profissionais. Em seguida, aborda as recomendações e limites contidos na Declaração da Conferência Mundial sobre Determinantes Sociais da Saúde. Concluindo, aponta as possibilidades estratégicas das declarações da Conferência para favorecer e ampliar o cunho técnico científico das ações profissionais, no desempenho das funções sócio-ocupacionais do assistente social nas equipes de saúde, com vistas à extensão do direito integral e universal à saúde. PALAVRAS-CHAVE: Ação profissional, Determinantes Sociais de Saúde, Direito à Saúde. INTRODUÇÃO O debate acerca dos Determinantes Sociais da Saúde (DSS), nos últimos cinco anos, destacou-se entre os estudiosos e profissionais que atuam ou pesquisam a interface ciências sociais e saúde. O retorno desse tema na agenda da saúde, no plano internacional, ocorreu devido à reconquista, pela Organização Mundial da Saúde (OMS), de seu papel estratégico na orientação do setor, substituindo o Banco Mundial 1 Professora do Mestrado em Política Social da Universidade Católica de Pelotas e do Programa de Pós- Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail vera.nogueira@pq.cnpq.br. Revista Serviço Social & Saúde. UNICAMP Campinas, v. X, n. 12, Dez 2011 46 (BM), dominante no cenário internacional na década de 1990. A Comissão dos Determinantes de Saúde (CDSS), aprovada na Assembleia da OMS, em 2004, e instituída em 2005, retomou e impulsionou a produção de conhecimento sobre o tema, instigando e favorecendo a multiplicação de pesquisas e relatórios, mobilizando profissionais, gestores e autoridades do campo sanitário. A ênfase nos determinantes sociais é explicada pelo agravamento da situação de saúde em nível mundial, apresentada no longo informe da CDSS, publicado em 2008. O relatório da Comissão expôs as evidências dos DSS na melhoria e garantia de saúde das populações, as disparidades entre os países e no interior deles, sinalizando fortemente para a gravidade do problema sanitário em nível global e alertando para a responsabilidade do sistema econômico face ao ocorrido. Seu conteúdo provocou a convocação de uma Conferência Mundial a respeito do tema, visando sensibilizar a opinião pública internacional, os dirigentes de sistemas de saúde em todos os níveis, bem como autoridades governamentais dos países vinculados à Organização das Nações Unidas (ONU) acerca das condições de iniquidades em saúde e da gravidade dos índices de morbimortalidade em certas áreas do planeta. Não sem razão, os mais empobrecidos e com altos índices de desigualdade econômica, desigualdades na gestão dos sistemas e desigualdades na oferta de bens e serviços de saúde. Os documentos aportados como contribuição acadêmica à CDSS e à Conferência Mundial mostraram que a determinação social do processo saúde doença “é uma área do conhecimento que oscila entre o absolutamente óbvio e o surpreendentemente oculto”, em que pese seu papel na organização dos processos e modelos de atenção à saúde (FLEURY-TEIXEIRA, 1997, p. 1). As produções dos últimos dez anos, no campo teórico-metodológico e no campo político, tornaram patentes as distintas visões sobre os DSS, seja na formulação 47 Revista Serviço Social & Saúde. UNICAMP Campinas, v. X, n. 12, Dez. 2011 de modelos de atenção sedimentando uma determinada concepção de saúde, tanto na definição das políticas, como na adoção do modelo de atenção e financiamento, como ainda no âmbito da gestão dos sistemas de saúde. Isto é, trouxeram à tona as tensões entre posições distintas, as quais, a partir de um campo teórico definido, contemplam projetos sanitários contrapostos que se filiam a uma tradição universalista, pautada na garantia integral do direito à saúde como um direito humano, ou que buscam consolidar a saúde como um bem mercantilizado e sujeito, portanto, às leis do mercado. Este debate, no Brasil, não tem sido foco de atenção dos estudiosos que tratam das ações profissionais dos assistentes sociais envolvidos com o setor saúde, sendo, entretanto, um dos supostos neste texto a relação intrínseca existente com as demandas cotidianas que são colocadas aos profissionais do Serviço Social. No plano internacional, especialmente na Europa, a relevância da relação entre DSS e as ações profissionais é evidenciada através da inclusão de conferência plenária no Congresso Mundial de Serviço Social, a ser realizado em julho deste ano, em Estocolmo, sobre o tema, com o professor Michael Marmot. A preocupação com as ações do assistente social na área da saúde não é recente e tem sido objeto de reflexões por pesquisadores e assistentes sociais nos últimos dez anos. A aproximação com este objeto, inicialmente, se deu pelo eixo da participação e controle social, em decorrência de uma produção teórica mais densa sobre este eixo. A implementação do Sistema Único de Saúde (SUS), no entanto, exigiu dos assistentes sociais novos saberes e novas práticas para responder de forma competente as demandas dos usuários e do próprio sistema nos demais espaços sócio- ocupacionais do setor. A inserção profissional nos quadros funcionais municipais, ou em equipes multiprofissionais ligadas à estratégia da saúde da família, saúde mental, urgências e emergências hospitalares, entre outras, demandou um esforço analítico para Revista Serviço Social & Saúde. UNICAMP Campinas, v. X, n. 12, Dez 2011 48 qualificar teoricamente as respostas oferecidas por parcelas da categoria vinculadas profissionalmente ao vasto, complexo e diverso campo da saúde. A partir de variados lugares institucionais, a produção acadêmica vem adensando a construção de conhecimento sobre a particularidade e a contribuição do Serviço Social no campo da saúde. Concorreu de maneira inequívoca para esta ampliação a atuação das entidades organizativas da categoria profissional, a Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS) e o Conselho Federal de Serviço Social (CFESS), através do fomento e indução do debate em fóruns nacionais e regionais. Destaca-se a contribuição da ABEPSS, iniciada na gestão 2002/2004, ao participar da instalação do Fórum Nacional de Educação das Profissões na Área de Saúde (FNEPAS) e estabelecendo, assim, as bases para o convênio firmado com o Ministério de Saúde/Organização Pan- Americana de Saúde, em 2005. O objetivo do acordo foi o de qualificar os docentes e supervisores vinculados ao ensino da graduação para preparar alunos no sentido de incluir nos currículos conteúdos referentes à ação profissional no campo da saúde. Desenvolveu-se, à época, um ciclo de formação para a área da saúde, abrangendo todas as regiões do país. Outro aspecto a ser refletido em relação à teorização sobre as ações profissionais na saúde relaciona-se aos objetos sobre os quais os Núcleos de Pesquisa da área do Serviço Social vêm se debruçando. Identifica-se uma forte preocupação com os princípios e diretrizes do SUS e sua apropriação pelos profissionais, e uma aproximação ainda frágil em relação aos determinantes sociais da saúde. Uma das razões para tanto pode ser debitada ao traço epidemiológico contido nas abordagens teóricas veiculadas sobre os determinantes sociais da saúde. A articulação necessária entre perspectivas críticas dos determinantes e a ação profissional, conformando uma totalidade explicativa mais ampla, vem ocorrendo timidamente, tanto na qualificação profissional 49 Revista Serviço Social & Saúde. UNICAMP Campinas, v. X, n. 12, Dez. 2011 como na produção acadêmica. Tal articulação viabilizaria, desde que tratada de modo rigoroso e crítico, estabelecer os nexos e mediações entre os objetivos profissionais no campo sanitário e os pilares das ações profissionais – direito à saúde, necessidades sociais em saúde e produção da saúde. Constata-se, também, na implementação do SUS, um duplo movimento no setor saúde. De um lado, a dimensão social da saúde vem sendo ressaltada, o que se expressa na ampliação do número de assistentes sociais contratados pelos municípios, na expansão das residências multiprofissionais atendendo aos diversos campos de conhecimento e práticas vinculadas à saúde, e ainda a ênfase recente, capitaneada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) com a realização da Conferência Mundial sobre Determinantes Sociais da Saúde, em outubro de 2011, no Rio de Janeiro. De outro lado, e contrapondo-se à relevância do social na saúde, identifica-se um movimento no sentido de solidificar um modelo hegemônico dominante ainda hoje, reconhecido no debate em relação ao ato médico, a definição de equipes interdisciplinares unicamente com médicos e enfermeiros e as altas diferenças salariais que consagram um trato valorativo diferenciado entre os integrantes das equipes. Neste cenário, o presente artigo tem como objetivo contribuir para qualificar as ações profissionais por meio da instituição de competências dentro da visão da proteção social à saúde. Sugere-se a apropriação da vertente crítica dos DSS, entre outras opções, como uma das formas de ampliar o arsenal heurístico necessário à ação dos assistentes sociais que atuam no setor, viabilizando a sua utilização como um dos suportes teóricos que favorecem a leitura do real e o encaminhamento das demandas dos sistemas de saúde – usuários e gestores, além de suas potencialidades ético-políticas. É oportuno recordar que a legitimidade e o reconhecimento profissional dependem da Revista Serviço Social & Saúde. UNICAMP Campinas, v. X, n. 12, Dez 2011 50 clareza teórica e da qualidade técnica do exercício profissional (MIOTO, NOGUEIRA, 2009). Tendo em vista a contribuição pretendida, o encaminhamento do artigo apresenta, inicialmente, uma referência sobre as ações profissionais, revendo e retomando conteúdos já explicitados em textos anteriores. Em seguida, discorre acerca do debate sobre os determinantes sociais, destacando as perspectivas, as lutas e posições distintas expressas nos documentos que subsidiaram a Conferência Mundial sobre Determinantes Sociais (CMDSS). Indica, neste tópico, as principais recomendações, além de seus limites intrínsecos. Concluindo, aponta as possibilidades do uso estratégico destas recomendações iluminando as ações profissionais. Supostos teóricos sobre a ação profissional no campo da saúde Reafirmando posições já explicitadas em outros textos, cabe marcar a importância e o significado da ação profissional, como o reconhecimento da intervenção sobre situações concretas, de forma deliberada e intencional, utilizando o conhecimento e formulando estratégias de intervenção em variáveis empíricas para alterar a realidade. As ações profissionais expressam a capacidade e a competência a partir das quais são formulados, no plano societário, os juízos sobre determinada profissão, legitimando-a ou desqualificando-a. Villa (1996) menciona que um dos fatores determinantes na consolidação de uma profissão é a consistência de seu corpus teórico. Para a autora, é esse corpus que funda a habilidade e a autoridade profissional ao lado de outros elementos como o reconhecimento jurídico, a existência de um código de ética, a organização da comunidade profissional e o projeto curricular. Deve-se lembrar de que as ações profissionais ocorrem em um campo tenso, no espaço da divisão sociotécnica 51 Revista Serviço Social & Saúde. UNICAMP Campinas, v. X, n. 12, Dez. 2011 do trabalho. Não existem em si mesmas, sendo referenciadas em relação a outros profissionais e ao objeto sobre o qual incide sua interferência. Conforme assinala Mioto (2004), as ações profissionais são entendidas como o conjunto de procedimentos, atos, atividades pertinentes a uma determinada profissão, realizados por sujeitos/ profissionais de forma responsável, consciente. Contêm tanto uma dimensão operativa quanto uma dimensão ética, e salientam em sua realização a apropriação dos profissionais quanto aos fundamentos teórico-metodológico e ético- políticos da profissão em determinado momento histórico. A sua concretização em espaços particulares exige dos profissionais um movimento de apropriação dos saberes e valores construídos sobre estes mesmos espaços. Ou seja, a ação profissional, ao responder às demandas específicas, institui a possibilidade de construção de referências a partir dos fundamentos que delimitam o conhecimento particular necessário para o êxito da intervenção. Ao realizar suas ações profissionais no campo da saúde, o assistente social depara-se com um conjunto complexo de situações que exigem conhecimentos próprios não só da área sanitária como de outras áreas do conhecimento, os quais devem ser apropriados e ressignificados para a sua ação cotidiana, abarcando o campo teórico, ético, político e operativo. Assim, pode-se ter como suposto que a ação profissional em saúde se assenta em três pilares que permitem o trânsito dos teórico-metodológicos e dos princípios ético-políticos à concretude da intervenção: o direito à saúde; as necessidades sociais em saúde; e a produção da saúde. 1. O direito à saúde, mediado pelas políticas públicas, reflete um patamar determinado da relação Estado e Sociedade, sendo operacionalizado através dos sistemas e serviços de saúde, envolvendo a gestão, o planejamento e a avaliação, além do controle social. Revista Serviço Social & Saúde. UNICAMP Campinas, v. X, n. 12, Dez 2011 52 Quando pensado em relação às ações profissionais, já no campo da garantia das políticas de saúde, relaciona-se à forma de organização dos sistemas de saúde, o que diz respeito ao conjunto de relações políticas, econômicas e institucionais responsáveis pela condução dos processos relativos à saúde da população e se materializam em institucionalidades particulares, visando alcançar resultados de acordo com a concepção de saúde existente entre a população e as formas de sua garantia. Enquanto um direito, reflete o patamar determinado da relação Estado e Sociedade, sendo concretizado via sistemas e serviços de saúde, envolvendo a gestão, o planejamento e a avaliação, o controle social, além da assistência em si. Assim, um sistema de saúde espelha o conjunto das complexas e contraditórias relações políticas, econômicas e institucionais responsáveis pela condução dos processos relativos à saúde de uma população, materializados em organizações, regras e serviços, buscando alcançar a concepção de saúde existente na sociedade (CONILL, 2008). 2. As necessidades sociais em saúde – historicamente construídas e determinadas pela posição das classes sociais e segmentos de classe e situadas entre a natureza e a cultura, e “não dizem respeito somente à conservação da vida, mas à realização de um projeto em que o indivíduo, ponte entre o particular e o genérico, progressivamente se humaniza” (HINO et al, 2009). Os mesmos autores alertam que não são necessidades médicas ou problemas de saúde, mas expressam carências que expressam modos de vida e identidades. Abordar as necessidades sociais em saúde, a partir da perspectiva das ações profissionais, é relevante na medida em que apontam as pistas para o reconhecimento das reais demandas dos usuários, muitas vezes subsumidas por programas verticais, descontextualizados e definidos tendo como critérios necessidades outras que não as de saúde. 53 Revista Serviço Social & Saúde. UNICAMP Campinas, v. X, n. 12, Dez. 2011 Cecílio (2004, p. 28) diz que os fatores determinantes da saúde se traduzem em necessidades de saúde, classificando-as em quatro grandes conjuntos: O primeiro são as condições de vida, entendendo-se que o modo como se vive se traduz em diferentes necessidades; o segundo diz respeito ao acesso às tecnologias que melhoram ou prolongam a vida; o terceiro bloco refere-se à criação de vínculos efetivos entre usuários e o profissional ou equipe dos sistemas de saúde. Vínculo deve ser entendido, nesse contexto, como uma relação contínua, pessoal e calorosa, fundada na dignidade humana e na igualdade intrínseca entre as pessoas; por fim, necessidades de saúde estão ligadas também aos graus de crescente autonomia que cada pessoa tem no seu modo de conduzir a vida, o que vai além da informação e da educação. Mesmo vislumbrando o limite nesta abordagem, pode-se reconhecer sua relevância para o debate sobre a organização dos sistemas e serviços de saúde, sendo o assistente social o profissional mais apto a reconhecer as demandas sociais e assistenciais não só dos segmentos populares usualmente desprotegidos das políticas de saúde, como igualmente da população como um todo. 3. Produção de saúde – Sendo a autonomia e as condições de saúde as duas dimensões essenciais para avaliar os direitos sociais e o patamar de igualdade alcançado pelas formações societárias, a forma de produzir saúde é um fator importante. Junto com outros determinantes, é a finalidade precípua dos sistemas e serviços de saúde e pode ser entendida como um processo que se articula a partir das transformações econômicas, sociais e políticas. Resulta em padrões saudáveis de existência, dificultando o surgimento de enfermidades e compreende as ações de vigilância à saúde voltada para a promoção e prevenção de enfermidades e mortes; as práticas de assistência à saúde – clínica e reabilitação, além dos cuidados individuais de saúde; os Revista Serviço Social & Saúde. UNICAMP Campinas, v. X, n. 12, Dez 2011 54 atendimentos de urgência e emergência, em que práticas de intervenção imediatas, em situações limites, evitam morte e sofrimento. Sob o domínio da hegemonia médica, tais dimensões da produção da saúde foram e são pensadas a partir unicamente dos fatores biológicos, sendo a referência para a organização e a avaliação dos serviços de saúde. Hoje, tem-se outra perspectiva, são reconhecidas as desigualdades sociais e seu impacto na forma de produzir saúde, sendo levados em conta nas decisões sobre a atenção à saúde quando há um respaldo democrático neste sentido, na linha do controle social. A este respeito, afirmam: Como se vê, a definição de necessidades de saúde ultrapassa o nível de acesso a serviços e tratamentos médicos, levando em conta as transformações societárias vividas ao longo do século XX e já no XXI, com a emergência do consumismo exacerbado, a ampliação da miséria e da degradação social e das perversas formas de inserção de parcelas da população no mundo do trabalho. Mais que isso, envolve aspectos éticos relacionados ao direito à vida e à saúde, direitos e deveres. Nesse sentido, é necessário apreender a saúde como produto e parte do estilo de vida e das condições de existência, sendo que a situação saúde/doença é uma representação da inserção humana na sociedade (NOGUEIRA; MIOTO, 2006, p. 13). Os pilares aqui referidos adquirem concretude no movimento do social, variando, portanto, a sua direção ética e política, pois expressam as relações estabelecidas entre classes e segmentos de classe, entre instâncias corporativas e profissionais, e entre saberes instituintes e instituídos. Uma reflexão mais acurada sobre os DSS, a partir de uma perspectiva crítica, poderá iluminar os seus conteúdos, tanto no plano analítico como operativo, adensando os princípios de universalidade e integralidade que estruturam a atenção universal e integral à saúde. 55 Revista Serviço Social & Saúde. UNICAMP Campinas, v. X, n. 12, Dez. 2011 Determinantes Sociais da Saúde – aproximações conceituais Uma primeira aproximação, aparentemente consensual, conceitua os DSS como as condições nas quais as pessoas completam o seu ciclo vital, incluindo aqui o sistema de saúde, além de fatores econômicos, culturais, étnicos, psicológicos e comportamentais que influenciam situações de morbidade e fatores de risco para a população. Contém uma dimensão objetiva – vinculada às condições materiais necessárias à vida e uma dimensão subjetiva – referida à interpretação e à forma como as pessoas vivem e significam estes processos (LOPES et al, 2008). Reconhecer que o processo saúde-doença é determinado socialmente traz implícita uma posição sobre o modelo societário que o produz e a escolha de uma referência teórica para explicar sua gênese e determinação. Adquire centralidade a opção pela perspectiva teórica, pois é a partir dela que se reconstrói e se reinterpreta a totalidade social. Reside nesta opção o impasse entre uma visão calcada em uma epidemiologia social das doenças, de cariz norte-americano, com os fatores sociais ocupando uma posição similar, e a posição herdeira da tradição marxista e que se inscreve no âmbito da epidemiologia social latino-americana da década de 1970. Esta última apreende os fatores sob uma ordem hierárquica, com a centralidade do vetor econômico e da divisão de classes em sua estruturação. As duas matrizes comportam particularidades internas, não sendo unívocas, e embora permeadas por distinções, é possível agrupá-las a partir de seu marcos referenciais e modelos teóricos. A matriz herdeira da epidemiologia social norte-americana ampliou sua base analítica e os fatores sociais são evidenciados pela sua funcionalidade em relação à produção da doença. Foram assim construídos modelos explicativos diversos, sendo que os principais são os de Dahlgren e Whitehead, de Diderichsen e Hallqvist, adaptado por Revista Serviço Social & Saúde. UNICAMP Campinas, v. X, n. 12, Dez 2011 56 Diderichsen, Evans e Whitehead e o de Brunner, Marmot e Wilkinson (DAHLGREN, WHITEHEAD, 1992; CDSS, 2005; BUSS, PELEGRINI, 2007). O mais disseminado na literatura brasileira é o de Dahlgren e Whitehead, que, articulando aspectos éticos e sociais com a centralidade no indivíduo, estabelece níveis de influência entre os fatores que determinam as desigualdades, incluindo fatores comportamentais, sociais e institucionais (DAHLGREN, WHITEHEAD, 1992; CDSS, 2005; BUSS, PELEGRINI, 2007). Almeida Filho (2004), ao propor um novo enfoque para a determinação social das doenças crônicas não transmissíveis, faz uma crítica que, embora se refira à abordagem do modelo do capital social e desigualdades em saúde, de Wilkinson e Kawachi, a mesma pode ser estendida às abordagens derivadas da matriz epidemiológica norte-americana. Como crítica de base, podemos dizer que esta concepção apresenta um quadro extremamente ideologizado dos contextos sociais ditos tradicionais, supostamente formados por indivíduos que compartilham formas culturais e objetivos sociais harmônicos e comuns. Além disso, tratam as sociedades como se fossem agrupamentos humanos homogêneos, na medida em que omitem as privações e carências sociais, bem como as desigualdades diante do acesso a recursos econômicos (ALMEIDA FILHO, 2004). A outra matriz interpretativa assinala que a ideia da articulação do pensamento social na saúde não é recente, remontando ao início do século passado. Todavia, a dimensão crítica do social na saúde, no Brasil, aparece com a incorporação da teoria marxista ao pensamento sanitário através da análise das condições de saúde da população, relacionando-as com os componentes estruturais das sociedades capitalistas. Tem como lócus de produção acadêmica os pesquisadores e profissionais reunidos sob 57 Revista Serviço Social & Saúde. UNICAMP Campinas, v. X, n. 12, Dez. 2011 uma área de estudos que se convencionou denominar como Saúde Coletiva. Nos demais país da América Latina, como produto da confluência do pensamento crítico em saúde e das lutas dos povos latino-americanos em defesa de sua saúde, surgiu o movimento que se denominou de Medicina Social. Ambos partilham da mesma orientação teórica e entendem que os processos saúde-doença são determinados pelas formas de produção, consumo e distribuição dos bens e serviços de uma dada sociedade. Partem da premissa de que, nas formações capitalistas, os processos de reprodução social expressam a contradição entre propriedade privada, produção coletiva e apropriação da riqueza, tornando as relações de poder assimétricas e opressivas, repercutindo diretamente no padrão de saúde. Las desigualdades sociales sintetizan estas relaciones, antagonismos y contradicciones económico-políticas e ideológicas, que se expresan en ejes de explotación, dominación, subordinación y exclusión múltiple: de clase, género, etnia/origen y generación, entre otros” (LOPES et al, 2008, p. 326). Destacam que a perspectiva da determinação social da saúde sustenta-se nas categorias trabalho e reprodução social da vida. As condições naturais, ambientais e biológicas aparecem subordinadas ou “filtradas” por essas categorias que fundam e estruturam as necessidades em saúde. O pressuposto filosófico implícito é que as dimensões biológicas e ambientais da vida humana estão “subsumidas” às características de cada sociedade, em seu desenvolvimento histórico. A partir deste pensamento, afirmam que as condições sociais viabilizadoras de saúde ou de doença devem ser interpretadas incorporando-se uma multiplicidade de determinações – a síntese de múltiplas determinações, ou seja, “de atribuições conceituais que, combinadas adequadamente, permitem transformar a ideia abstrata da saúde em algo que expressa, antes de tudo, as condições concretas de trabalho e de reprodução da vida Revista Serviço Social & Saúde. UNICAMP Campinas, v. X, n. 12, Dez 2011 58 de uma dada classe social” (CEBES, 2009). Esta acepção é central, pois afasta qualquer possibilidade de adesão às perspectivas que abordem os DSS de forma abstrata, sem uma teoria explicativa acerca da sociedade e sua forma de produção e reprodução social, adensando com formulações sobre relações entre saúde, sociedade, economia, democracia e políticas públicas. A concepção da Medicina Social e a da Saúde Coletiva colocam em posição de destaque o aspecto político contido nos determinantes sociais, como bem aponta o relatório da ALAMES (2008) e López, Escudero e Moreno (2008, p. 327). La MS-SC reconoce que la noción de determinanates sociales de la salud (DSS), posse una doble connotación en términos de lo político. Por una parte, se incluye dentro de los determinantes de as salud a la dimensión política y por otra parte, se assume que la modificación del conjunto de determinantes de la salud exige la acción política. Conferência Mundial sobre Determinantes Sociais da Saúde A Conferência Mundial sobre Determinantes Sociais da Saúde, realizada no Rio de Janeiro, em outubro de 2011, convocada pela Organização Mundial de Saúde, reuniu representantes de 125 países e contou com 1.300 participantes. Durante sua realização, o tema dos determinantes sociais da saúde foi o centro das atenções de autoridades sanitárias de todo o mundo, além de mobilizar organizações da sociedade civil e o sistema das Nações Unidas. Sanches (2011) ressalta ter sido este o grande ganho da Conferência, ou seja, o de colocar em cena as iniquidades em saúde. Contrariamente ao que é usual em eventos desta natureza, onde se costuma concluir com uma declaração a partir de consensos construídos ao longo de seu desenvolvimento, na CMDSS foram apresentadas duas declarações, a primeira em uma linha mais normativa e com posições mais conservadoras, e outra, formulada pelas 59 Revista Serviço Social & Saúde. UNICAMP Campinas, v. X, n. 12, Dez. 2011 organizações da sociedade civil e movimentos sociais, expressando uma leitura mais crítica da relação entre estrutura social e saúde e quanto às ações a serem realizadas para garantir maior equidade em saúde e reduzir as desigualdades injustas e evitáveis. Os pontos centrais da Declaração Política do Rio sobre Determinantes Sociais da Saúde são os seguintes: • indica a necessidade de fortalecimento de programas universais de acesso aos bens e serviços de proteção social; • reitera a importância da abordagem intersetorial em uma ação compartilhada entre Poder Público, sociedade civil e comunidade internacional. A indicação desta última sugere, ainda que timidamente, a responsabilidade de atores políticos de nível internacional; • destaca a importância das medidas sociais para o alcance da equidade em saúde como um direito humano sem quaisquer restrições de ordem econômica, social, étnica ou política; • reitera a disposição dos governantes em atuar sobre os determinantes sociais de forma coletiva, com vistas a “melhorar as condições de vida; combater a distribuição desigual de poder, dinheiro e recursos; e medir a magnitude do problema, compreendê-lo e avaliar o impacto das intervenções” (DCMDSS, 2011); • enfatiza não apenas a importância de um sistema de saúde universal, equitativo e acessível em termos de integralidade e qualidade, mas afirma igualmente a importância da intersetorialidade tendo a saúde como escopo final das politicas governamentais; • propõe alterar a distribuição desigual de recursos na área da saúde e reduzir as condições desfavoráveis à saúde, incorporando à questão o modelo de Revista Serviço Social & Saúde. UNICAMP Campinas, v. X, n. 12, Dez 2011 60 desenvolvimento a ser adotado e seu impacto no bem-estar e redução das iniquidades em saúde; • menciona a crise global e exige medidas protetivas para atenuar os efeitos provocados por ela, evitando especialmente a deterioração dos sistemas universais de serviços de saúde e de proteção social; • propõe ações em cinco áreas para reduzir as iniquidades em saúde – melhor governança em saúde, a participação social significativa nas discussões de políticas relacionadas aos DSS, sistemas de saúde orientados para a redução das iniquidades em saúde, mais forte e melhor governança global para a saúde, e melhoria da medição e prestação de contas sobre as iniquidades em saúde. O detalhamento das áreas indica pistas, dentro dos limites estruturais do capitalismo, como possibilidades argumentativas junto aos gestores das políticas de saúde e para incrementar as ações profissionais, sendo que se destacam as mais significativas: formulação de políticas inclusivas, o apoio a programas de pesquisa e levantamentos permitindo informações para a formulação de políticas e as ações consequentes; buscar e fortalecer o acesso universal aos serviços sociais e aos pisos de proteção social; dar visibilidade aos processos decisórios e de prestação de contas, e ampliar o acesso à informação, à justiça e à participação pública; instituir e fortalecer sistemas de controle e monitoramento para avaliar as iniquidades à saúde e na distribuição e uso de recursos; fortalecer medidas de proteção social; instituir sistemas de avaliação confiáveis sobre a eficácia das intervenções sobre as desigualdades em saúde. A Declaração traz um apelo dos Chefes de Governo, Ministros e representantes dos governos para implementar a Resolução WHA62.14 da OMS, 61 Revista Serviço Social & Saúde. UNICAMP Campinas, v. X, n. 12, Dez. 2011 aprovada na 62ª Assembleia Mundial de Saúde, realizada em maio de 2009, visando reduzir as iniquidades em saúde através da ação sobre os determinantes sociais (OMS, 2011). Em uma posição mais contundente, a Declaração das Organizações e Movimentos de Interesse Público da Sociedade Civil (2010) repõe o cenário de crise do desenvolvimento sustentável decorrente do neoliberalismo, do individualismo e do consumismo, levando à exacerbação da violência e de conflitos, ao desemprego estrutural, às desigualdades na distribuição das riquezas que levam ao declínio da proteção dos direitos sociais. Enfatiza que: Por trás dos determinantes imediatos da saúde (educação, habitação, emprego decente, segurança alimentar, proteção social e cuidados universais de saúde) encontram-se os determinantes estruturais mais profundos, incluindo as relações desiguais de poder e o acesso desigual aos recursos e às tomadas de decisão. A ampliação das iniquidades e a discriminação institucionalizada através de eixos de classe, raça, gênero, etnicidade, casta, indigenicidade, idade e capacidade/discapacidade contribuem para a impossibilidade de atingir boa saúde. A ação sobre estes determinantes estruturais da saúde é essencial para superar as crises econômica, ambiental, do desenvolvimento e alimentar (DOMISC, 2011). Assinala, ainda, a importância de a OMS e governantes presentes reconhecerem que as iniquidades em saúde e a negação do direito à saúde são modeladas e decorrentes das atuais estruturas de regulação do comércio internacional. Reconhecerem também a influência e a determinação do capital financeiro sobre a economia global e suas crises periódicas. Nesta linha, ratificam o chamado da Declaração de Alma Ata por uma nova ordem econômica internacional. Revista Serviço Social & Saúde. UNICAMP Campinas, v. X, n. 12, Dez 2011 62 Indica a relevância de sistemas de proteção social universalista através de Estados de Bem-Estar fortes, a necessidade de regulação do meio ambiente, do comércio, de leis migratórias e de políticas industriais tendo como foco a equidade em saúde. No plano ético, defende a mudança do atual conceito de ajuda em saúde dos países ricos tendo como suposto o insumo à produtividade ou uma caridade aos pobres para um conceito pautado na obrigação internacional sob os princípios dos direitos humanos básicos. Os limites maiores da declaração oficial estão relacionados à forma de inserção da sociedade civil, pois, em determinados trechos da Declaração oficial, identifica-se um apelo forte às iniciativas comunitárias de participação no financiamento e nas decisões, não havendo a particularização de quais parcelas da sociedade civil estão sendo referenciadas. Ainda em relação a este tópico, não há menção ao controle do setor privado, fundamental para a equidade em saúde. Determinantes Sociais da Saúde e ações profissionais A contribuição do discurso atual acerca dos determinantes sociais da saúde pode ser visualizada a partir de sua relação com as três dimensões do Serviço Social – a teórico-metodológica, a ético-política e a técnico-operativa. No plano teórico-metodológico, as indicações da CMDSS sinalizam para a relevância de estudos a respeito das situações sociais ao apontar a necessidade de “medir a magnitude do problema, compreendê-lo e avaliar o impacto das intervenções” e ainda a importância dos governos favorecendo o apoio a “programas abrangentes de pesquisa e levantamentos que forneçam informações para a formulação de políticas e implementação de ações” (DPCDSS, 2011). Tomando como referência metodológica a perspectiva crítica sobre os determinantes sociais, esta recomendação viabiliza construir uma agenda de pesquisa que aborde: 63 Revista Serviço Social & Saúde. UNICAMP Campinas, v. X, n. 12, Dez. 2011 • as politicas de saúde entendendo sua relação com os aspectos históricos e econômicos que as determinam, tanto as lutas políticas travadas no plano nacional como nos espaços restritos dos serviços de saúde. Estudos tendo os referidos objetos de análise permitem avaliar as tendências e as diversidades regionais e locais, especialmente quando de larga duração; • as demandas dos usuários para além do discurso biomédico, o que somente será viável com a explicitação concreta, e correta metodologicamente, das condições de vida e trabalho e das iniquidades vividas cotidianamente, tanto no plano individual como coletivo da população, a atendida nos serviços de saúde, bem como a que não consegue acesso ao sistema; • as políticas de saúde e sua operacionalização enquanto uma das instâncias de mediação do Serviço Social, qualificando e fortalecendo a inserção dos assistentes sociais no setor saúde. Tais estudos favorecem as evidências do hiato entre as propostas e ação, descortinando a real situação da implementação das políticas públicas de saúde. Aprofundando o foco para situações locais, aportariam elementos relacionados à materialidade das políticas de saúde, cooperando para subsidiar a luta política em torno dos limites derivados da implementação. No plano ético-político, devem ser consideradas as críticas apontadas por Birn (2011) quanto à pouca ousadia da Declaração Política, exigindo uma outra Declaração com a posição mais radical dos participantes vinculados a organizações da sociedade civil; de Paim (2011), ao destacar a não abordagem das condições estruturais internacionais que levam às iniquidades em saúde, e de Labonté (2011), lamentando a falta de uma definição clara do que será feito, observando que “não há metas, não há estratégias específicas e não se comprometem a informar se os compromissos Revista Serviço Social & Saúde. UNICAMP Campinas, v. X, n. 12, Dez 2011 64 assumidos serão honrados”. Mesmo assim, as indicações normativas podem ser utilizadas como fundamentos do discurso ético e politico junto a gestores, policy makers e profissionais de saúde e mostrar pistas para o desempenho profissional. Nesta linha, pode-se apontar: • o reconhecimento oficial e público das desigualdades injustas e em parte vitáveis entre os países, exigindo a ação sobre os determinantes sociais através da elevação das condições de vida, o combate à distribuição desigual de poder, dinheiro e recursos; • a adoção de uma visão ampliada de saúde, fazendo referência explícita aos determinantes decorrentes da educação, situação econômica, emprego e trabalho decente, habitação e meio ambiente e sistemas eficientes para a prevenção e o tratamento das enfermidades. A preocupação em situar historicamente os determinantes, levando em conta as particularidades locais e nacionais, guardadas as distinções entre contextos sociais, econômicos e culturais; • a referência à saúde e ao bem-estar como expressões de uma sociedade inclusiva e justa e o “compromisso com os direitos humanos nos âmbitos nacional e internacional”. Ao anunciar coletivamente o compromisso com os direitos humanos, os presentes, ainda que no discurso, assumem a tarefa de sensibilizar seus governos para cumprirem os propósitos definidos na Conferência. Parte das recomendações da CMDSS favorece o encaminhamento de aspectos técnicos operativos, a saber: • o destaque conferido à integralidade em suas várias dimensões, especialmente a intersetorialidade. Nesta perspectiva, sinaliza para a responsabilidade dos 65 Revista Serviço Social & Saúde. UNICAMP Campinas, v. X, n. 12, Dez. 2011 gestores de políticas para que cumpram a deliberação de incluir as políticas de saúde em todas as demais políticas dos distintos níveis de governo, ressaltando a função de coordenação das mesmas e uma avaliação constante do alcance obtido; • a ênfase na participação das decisões, cabendo aqui uma ação dos profissionais na difusão de informação e mobilização de grupos e setores vinculados à saúde, fortalecendo os mecanismos de controle social. Nesta linha, cabe retomar a indefinição contida no documento, tratando a sociedade civil indistintamente e não levando em conta os conflitos de interesses e particularismos nela existentes; • estabelecer sistemas de monitoramento e avaliação das políticas e das intervenções implementadas, dentro das competências do assistente social, incluindo a representação de setores populares com o escopo de criar uma cultura de avaliação que bloqueie o discurso vazio sobre as políticas de proteção social; • a realização de pesquisas a respeito da relação entre DSS e equidade em saúde, favorecendo o ajuste de políticas sociais no setor e fortalecendo o conhecimento sobre a relevância dos determinantes acerca das condições sanitárias e, consequentemente, melhorando os indicadores de saúde; • identificar, em cada espaço sócio-ocupacional, como se configuram as desigualdades sociais em saúde, favorecendo a opção de alternativas de intervenção eficazes e duradouras, tendo como marco teórico a determinação social do processo saúde-doença. Revista Serviço Social & Saúde. UNICAMP Campinas, v. X, n. 12, Dez 2011 66 CONCLUSÕES PRELIMINARES A escassa abordagem sobre os determinantes sociais no âmbito do Serviço Social e a persistente e correta recusa em utilizar como referência a perspectiva conservadora sobre os determinantes sociais em saúde são elementos a serem refletidos ao se aventar a atual proposição. A possibilidade de superar o movimento de recusa, incorporando sobre o mesmo tema outra referência teórica, é instigante e poderá instaurar um debate entre a categoria profissional com vistas a adensar os parâmetros para a ação profissional em saúde propostos pelo Conselho Federal de Serviço Social (CFESS, 2010). A proposta indicada neste artigo buscou refletir acerca de um arsenal teórico- metodológico visando contribuir para qualificar teórica e metodologicamente as ações profissionais, além de conferir maior visibilidade às mesmas através de uma argumentação embasada em parâmetros científicos. Neste sentido, procurou mostrar a intrínseca relação entre os DSS em uma perspectiva crítica e as ações dos assistentes sociais, e apresentou as possibilidades estratégicas do uso das Declarações da Conferência Mundial sobre Determinantes Sociais nas três dimensões que envolvem o exercício profissional – o componente teórico-metodológico, o ético-político e o técnico operativo. Não pretendendo ser um documento conclusivo, e sim mobilizador para ampliar o conhecimento, as conclusões definitivas não são pertinentes. Assim, destacam-se alguns elementos que servem mais de indicativos para futuras investigações do que propriamente conclusões. O primeiro é a oportunidade do debate face ao cenário de incertezas que permeia a ação profissional em saúde no interior das equipes interdisciplinares ou interprofissionais. Como a capacidade argumentativa é frágil, o que ocorre, no mais das 67 Revista Serviço Social & Saúde. UNICAMP Campinas, v. X, n. 12, Dez. 2011 vezes, é a submissão aos demais profissionais com capacidades discursivas e argumentativas aparentemente mais consistentes e apoiadas na visão reducionista do processo saúde-doença. Como o arcabouço teórico sobre os DSS, quando situado historicamente, possibilita ampliar a capacidade de interlocução em todos os espaços da saúde onde atua o profissional, sua incorporação poderá contribuir para a legitimidade profissional. A segunda é instaurar o debate entre os pesquisadores e Núcleos de Pesquisa, seja para construir ou desconstruir a proposição ora apresentada. Em qualquer dos casos, o enriquecimento para o exercício profissional será favorável e necessário. Não se pode esquecer que está em jogo a identidade profissional em face de outras profissões consolidadas e legitimadas socialmente. E na divisão social e técnica do trabalho, o conhecimento e a capacidade argumentativa se constituem em forças vigorosas no embate das ideias. Por fim, a possível contribuição para levar “água ao moinho” dos que entendem ser a saúde um direito humano universal e um bem não mercantil, ou como bem sintetiza a Carta dos Povos pela Saúde (MSP, 2010, p. 2): Saúde é uma questão social, econômica, política e, acima de tudo, um direito humano fundamental. Desigualdades, pobreza, exploração, violência e injustiça encontram‐se entre as causas das doenças e morte dos pobres e marginalizados. Proporcionar condições de saúde para todos implica desafiar interesses poderosos, resistir à globalização e mudar drasticamente as prioridades políticas e econômicas. Revista Serviço Social & Saúde. UNICAMP Campinas, v. X, n. 12, Dez 2011 68 ABSTRACT This article concerns the relationship between the professional actions of social worker in the field of healthcare and the possibilities derived from a critical understanding about social determinants in health, using as a reference the right to health, social needs for healthcare and the production of health. Based on a criticism of the traditional position about health determinants, it presents a critical perspective on them. It first presents a reference about professional actions. It then addresses the recommendations and limits of the Declaration of the World Conference on the Social Determinants of Health. In conclusion, it points to the strategic possibilities of the Conference declarations for favoring and expanding the technical and scientific nature of professional actions in the performance of the socio-occupational functions of social workers in healthcare teams, in order to extend the integral and universal right to health. KEYWORDS: Professional Action, Social Determinants of Health, the Right to Health. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BIRN AE. A CMDSS foi uma oportunidade perdida e a Declaração do Rio pouco política [entrevista na internet]. Rio de Janeiro: DSS Brasil; 2011 Dez 18. Entrevista concedida a Alberto Pellegrini Filho [acesso em]. Disponível em: http://cmdss2011.org/site/entrevistas/a-cmdss-foi-uma-oportunidade-perdida-e-a- declaracao-do-rio-pouco-politica/. CECILIO, L. C. O. As necessidades de saúde como conceito Estruturante na Luta pela Integralidade e Equidade na Atenção à Saúde. LAPPIS - Laboratório de Pesquisa sobre Práticas de Integralidade em Saúde. Rio de Janeiro: ENSP, 2004. Disponível em: <www. lappis.org.br>. Acesso em: 07 jul. 2005. CEZAR, C. A., MIOTO, R. C. T., SCHÜTZ, F. A construção da intersetorialidade em saúde como estratégia na garantia de direitos. In: 19ª Conferência Mundial de Serviço Social, Salvador, 2008,CD-ROM. ISBN 9788599447048. 69 Revista Serviço Social & Saúde. 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Textos Fundamentos/4_-_Expressoes_ideoculturais_da_crise_capitalista_na_atualidade_e_sua_influencia_teorico-pratica.pdf As expressões ideoculturais da crise capitalista na atualidade e sua influência teóricopolítica Ivete Simionatto Professora da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC As expressões ideoculturais da crise capitalista na atualidade e sua influência teóricopolítica Introdução Apreender a real dimensão da crise capitalista na atualidade pressupõe discutir suas principais manifestações não apenas na esfera da economia e da política, mas, também, as repercussões nos campos do conhecimento, das ideias e dos valores. Com o objetivo de discutir tal temática, o texto a seguir apresenta, inicialmente, o surgimento e a crise da razão moderna e suas consequências na realidade contemporânea; num segundo momento, aborda o advento e a efetivação do pós‐modernismo em suas dimensões teóricas, políticas e culturais. Como consequência no plano do conhecimento, discute a crise dos paradigmas totalizantes e as novas tendências teóricas na análise dos processos sociais; finalmente, o terceiro tópico oferece algumas indicações para a reflexão sobre a relação do Serviço Social com os paradigmas da modernidade e da pós‐ modernidade, suas implicações no exercício profissional e na consolidação do projeto tico‐político. é 1 Surgimento e crise da razão moderna As revoluções científicas ocorridas entre os séculos XVI e XVII podem ser consideradas os principais marcos do pensamento moderno. Temos, a partir de então, o surgimento da chamada “nova ciência” ou “razão moderna”, fundada na astronomia e na física, tendo em Copérnico e Galileu seus principais representantes. Ocorre, nesse período, uma verdadeira revolução na maneira de ver e explicar o mundo. As formas vigentes de interpretação da realidade, pautadas na fé e na religião, são derrubadas, destacando‐se a importância da observação e da experimentação para o desenvolvimento científico. O abandono de uma concepção dogmática e restrita de mundo, alicerçada nas concepções religiosas, terá repercussões não apenas no campo epistemológico, mas também na economia, na política, na ética e na estética. 1 A modernidade institui, assim, um novo modelo explicativo do real, fundado no primado da razão, ou seja, na capacidade do homem em formular teorias científicas a partir de leis objetivas. Essa forma de pensar está na base do projeto epistemológico da tradição racionalista inaugurada por Descartes e da perspectiva empirista iniciada por Francis Bacon. Será, no entanto, o filósofo alemão Immanuel Kant quem ampliará as reflexões acerca das possibilidades da razão na organização e sistematização dos dados empíricos de forma mais científica. Buscando superar as concepções dogmáticas de seus antecessores, Kant discute a vinculação entre razão e experiência e as possibilidades de cada uma no processo do conhecimento. 2 Nas formulações kantianas sobre a produção do conhecimento, destacam‐se dois elementos fundamentais: a existência do objeto que desencadeia a ação do pensamento e a participação do sujeito ativo e de sua capacidade de conhecer. Ao vincular “razão” e “experiência”, afirma que o sujeito não tem a capacidade de conhecer “a coisa em si”, somente captar sua aparência, sua expressão fenomênica, não sendo possível conhecer a essência dos fenômenos pesquisados. A análise da realidade é realizada aqui pela “razão fenomênica”, a partir de um modelo que o sujeito do conhecimento elabora de forma subjetiva, tendo nos dados empíricos o ponto de partida e o ponto de chegada (TONET, 2006). Essa forma de pensar, centrada na capacidade da consciência individual e autônoma para o conhecimento do mundo, prosseguiu durante o século XVIII e em todo o período do chamado Iluminismo. O questionamento mais contundente a esse modo de pensar subjetivista é realizado por Hegel, no início do século XIX. Na polêmica com Kant, Hegel estabelece a distinção entre objetividade e subjetividade no processo do conhecimento e reafirma a razão como base absoluta da existência humana. A “razão fenomênica” ou acrítica presente em Kant é substituída, em Hegel, pela “razão dialética” capaz de captar a processualidade dos fenômenos sociais para além de sua mera aparência. A partir de Hegel, portanto, desenvolve‐se uma proposta revolucionária de compreensão do real, sintetizada por Coutinho (1972, p. 14), em três núcleos: o humanismo, que remete à compreensão do homem enquanto “produto da sua própria atividade, de sua história coletiva”; o historicismo concreto, relativo à “afirmação do caráter ontologicamente histórico da realidade, com a consequente defesa do progresso e do melhoramento da espécie humana”; e a “razão dialética”, que implica na compreensão objetiva e subjetiva da realidade e na superação do saber imediatista e intuitivo. Essa forma de apreensão da realidade, inaugurada com o pensamento hegeliano, contribuirá para a formação teórica de pensadores como Marx, Engels e toda a tradição marxista. 3 A transição entre os séculos XVIII e XIX é marcada pela constituição do Estado burguês, com mudanças significativas nas esferas econômica, política, social e cultural. A hegemonia burguesa no campo das ideias favoreceu as condições necessárias para o rompimento definitivo com o feudalismo e o surgimento de um novo modo de produção – o modo de produção capitalista. A emergência da sociedade burguesa dará origem a um intenso processo de modernização, mediante uma série de transformações que de longa data encontravam‐se latentes na Europa, seja no campo da ciência e da tecnologia, seja na organização política, no trabalho, nas formas de propriedade da terra, na distribuição do poder e da riqueza entre as classes sociais. Esse processo de modernização social (incluindo a economia e o Estado) e de modernização cultural (abrangendo a arte, o saber e a moral), produto da racionalização característica das sociedades ocidentais desde o final do século XVIII, expressa, para Max Weber, o surgimento da própria modernidade (ROUANET, 1989, p. 231). As intensas mudanças e contradições que marcam esse período estão na base de duas grandes matrizes teóricas da razão moderna: o positivismo de Comte e a teoria social de Marx. O sistema comteano surge como sustentáculo da ordem burguesa, uma vez que as estruturas econômicas, sociais e políticas estabelecidas pela burguesia precisavam, para sua perpetuação, de um ideário, um sistema explicativo capaz de afastar as ameaças das lutas sociais e políticas que emergiam nesse contexto. Ao estudar a sociedade segundo as leis da natureza, tendo como modelo a biologia, a filosofia positivista a concebe como uma ordem natural que não pode ser mudada e à qual os homens devem submeter‐se. Da matriz positivista derivam as vertentes denominadas de funcionalismo, estruturalismo e estrutural‐funcionalismo, assentadas na abordagem instrumental e manipuladora da realidade. Essa forma de conhecimento do real fundamenta a chamada “racionalidade formal‐abstrata” ou “razão instrumental”, que nega a dimensão dialética, histórica e humana da práxis social. Ao renunciar a tais dimensões, as correntes vinculadas ao racionalismo formal fortalecem o terreno do irracionalismo, ou seja, uma visão fetichizada da realidade social (COUTINHO, 1972). 4 A teoria social de Marx, contemporânea ao positivismo, é outra das grandes expressões da razão moderna. Marx, diferentemente de Kant e de Comte, desenvolve uma teoria tendo como objeto a sociedade burguesa e como objetivo sua superação, mediante um processo revolucionário. O conhecimento, em Marx, não se apresenta apenas como ferramenta para a compreensão do mundo, mas, acima de tudo, como possibilidade de sua transformação, segundo as necessidades e os interesses de uma classe social. A “razão instrumental” ou “fenomênica”, presente nas formulações anteriores, é substituída, em Marx, pela “razão dialética” ou “razão ontológica”, que busca captar o real em suas múltiplas determinações e reafirmar o caráter histórico e criador da práxis humana. Um dos traços fundamentais da “razão ontológica” é o ponto de vista da totalidade. Recuperada de Hegel, essa perspectiva implica uma análise da sociedade que contempla as relações de produção da vida material e as instituições jurídicas e sociais, como o Estado, a família, a ciência, a arte e a ideologia. O conhecimento da realidade aqui não se restringe à mera aparência, aos elementos imediatos da vida social, mas implica o desvendamento de todas as suas determinações e relações intrínsecas: sociais, econômicas, políticas e culturais. Ao contrapor‐se à “razão instrumental”, o método proposto por Marx também tem na realidade empírica seu ponto de partida, mas, ao desvendá‐la, possibilita uma crítica radical à sociedade capitalista, revestindo‐se, assim, de grande força política na luta pela transformação social. Se a razão moderna afirmou‐se, no século XX, a partir das grandes teorias sociais ou das “grandes narrativas”, pode‐se dizer que as transformações societárias em curso desde as últimas décadas do século XX desafiaram implacavelmente o conhecimento e os modelos de interpretação do mundo. A crise geral do capitalismo, desencadeada na transição entre os anos 1960 e 1970, e as respostas articuladas pelo grande capital provocaram mudanças significativas em diferentes esferas da vida social. A crise das ideologias, o proclamado fim das utopias, devido ao colapso do socialismo real nos países do Leste europeu, e o questionamento dos paradigmas teóricos, políticos e históricos colocaram em debate o projeto da modernidade. Além disso, as grandes promessas da era moderna, como a elevação da humanidade a estágios superiores de vida e os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, não haviam se concretizado. É nesse cenário que ganha centralidade, no âmbito das ciências humanas e sociais, a chamada “crise dos paradigmas”, relacionada, principalmente, aos modelos clássicos de conhecimento da realidade. A grande polêmica dirige‐se contra o marxismo, entendido, equivocadamente, como um modelo determinístico e insuficiente para captar as expressões da subjetividade, da cultura, do simbólico, do imaginário, do cotidiano e das representações sociais. A “razão dialética”, colocada em xeque, teria se esgotado, cedendo lugar ao irracionalismo e ao relativismo. Ampliou‐se, a partir de então, o embate entre modernidade e pós‐modernidade, destacando‐se a novidade dos chamados “novos paradigmas” como caminhos analíticos alternativos para se fazer ciência e se conhecer a realidade social. 5 Quais as principais matrizes do conhecimento características da razão moderna e em ue se diferenciam? q 2 O advento do pósmodernismo: dimensões teóricas, políticas e culturais Embora a pós‐modernidade, enquanto ideia, não seja recente, sua expressão no âmbito do conhecimento pode ser verificada com maior intensidade a partir da metade dos anos 1970. No campo filosófico, as primeiras reflexões aparecem na obra A condição pósmoderna, de Jean‐François Lyotard. Nela, o autor concebe a sociedade não como um todo orgânico ou um espaço de conflitos, mas como uma “rede de comunicações lingüísticas”, uma “multiplicidade de jogos”, não mais apreendidas através das formas de conhecimento próprias do pensamento moderno. A realidade e a experiência humana são constituídas apenas por signos de linguagem, e sua interpretação não se abre a outras possibilidades analíticas. Ainda no início da década de 1970, Michael Foucault é outro autor que desenvolve vários argumentos a favor da pós‐modernidade e contra os paradigmas totalizantes. Suas reflexões abordam especialmente a noção de poder situada na esfera do Estado, deslocando‐a para o terreno da micropolítica e de suas expressões em instituições, contextos e situações particulares. No debate contemporâneo, sob perspectivas distintas, outros autores também se destacam na defesa da pós‐modernidade, como Boaventura de Souza Santos, Michel Mafessoli, Jacques Derrida, Jean Baudrillard, Ulrich Beck, dentre outros. 6 Longe de apresentar‐se como um pensamento homogêneo, a pós‐modernidade tem como “traço definidor” a perda de credibilidade nas chamadas metanarrativas ou grandes teorias sociais (ANDERSON, 1999). Anuncia o desaparecimento das grandes oposições nos campos político, social, filosófico, artístico e cultural. O abandono de categorias como totalidade e essência (TONET, 2006) leva à emergência de outras mais locais e operativas, originando, assim, um modo de análise da realidade mais flexível, fragmentado e subjetivo. Para Jameson (1996, p. 32), os elementos constitutivos do pós‐ moderno referem‐se a “uma nova falta de profundidade, que se vê prolongada tanto na ‘teoria’ contemporânea quanto em toda essa cultura da imagem e do simulacro; um conseqüente enfraquecimento da historicidade tanto em nossas relações com a história pública quanto em nossas formas de temporalidade privada”. As transformações societárias desencadeadas nas últimas décadas do século XX e seus desdobramentos no início do século XXI, sob o domínio do capitalismo financeiro e da sua afirmação enquanto sistema hegemônico, exacerbaram os problemas e as contradições em todas as esferas da vida social. A razão dialética, até então afirmada como o instrumento por excelência para se analisar a realidade social, é desqualificada em favor das tendências fragmentárias e em detrimento dos sistemas globalizantes de explicação do mundo. A produção do conhecimento passa a centrar‐se nas “práticas discursivas”, no superdimencionamento do cotidiano, na tematização sobre os “novos sujeitos sociais”, enfeixados na ideia de um novo paradigma que toma a realidade como um “caleidoscópio de micro‐objetos” incapazes de ser captados a partir das perspectivas teóricas totalizantes. No campo das ciências sociais, desencadeiam‐se polêmicas metodológicas, buscando‐se convencer que as abordagens individualistas e culturalistas permitem uma aproximação maior com o mundo vivido pelos sujeitos sociais. Prioriza‐ se a esfera da cultura como chave das análises dos fenômenos contemporâneos, deslocada, no entanto, da totalidade social. Os denominados “novos paradigmas” assumem, como bandeiras epistemológicas, “trabalhar não a realidade, mas as suas representações”; não o universal, e sim o singular, o micro, o pontual; não as questões macro, de estrutura, mas o cotidiano, os fragmentos; não o futuro, e sim o presente; não o público, mas a intimidade (CARVALHO, 1995, p. 19). “O mundo social” – conforme descreve Rouanet (1989, p. 233) – “se desmaterializa, passa a ser signo, simulacro, hiper‐realidade”. 7 Ao negar o percurso de análise que caminha da parte para o todo, do singular ao universal, da aparência à essência, do objetivo ao subjetivo, e vice‐versa, as interpretações do pensamento pós‐moderno detêm‐se na visão distorcida do real, apanhado apenas em sua manifestação imediata. Faz ressurgir os postulados da “razão fenomênica” kantiana (TONET, 2006) ou da “razão instrumental” positivista, na medida em que categorias como “essência e totalidade” são abandonadas em nome da aparência e da imediaticidade. As metanarrativas, especialmente o marxismo, seriam propostas repetitivas, sem criatividade e inventividade para decifrar as amplas e intrincadas situações desencadeadas pelos processos de globalização e sua materialização no cotidiano dos indivíduos sociais. É inegável que a globalização abriu novos desafios e horizontes no âmbito do conhecimento, instituindo dilemas práticos e teóricos na análise do emaranhado campo de movimentação das classes e grupos sociais, das estruturas de poder, dos processos de integração e fragmentação, das tensões religiosas, étnicas e de gênero. Às demandas tradicionais agregam‐se novas demandas resultantes da complexificação da sociedade capitalista. Tais fenômenos requerem, todavia, orientações teóricas capazes de captá‐los não somente em suas particularidades, mas em suas múltiplas determinações, enquanto momentos de uma totalidade “viva, aberta e contraditória” (IANNI, 1999, p.32), que só podem ser apanhadas pela razão crítica ou pela “astúcia da razão” (MÉSZÁROS, 2004, p.488). 8 Outra característica presente no debate sobre a pós‐modernidade é a dicotomia entre objetividade e subjetividade, economicismo e politicismo. Os teóricos pós‐ modernos passaram a defender a tese de que as grandes narrativas, especialmente o marxismo, estariam ancoradas numa visão dogmática e economicista, excluindo de suas análises as dimensões subjetivas dos processos sociais. Cabe lembrar, contudo, que no debate marxista a compreensão da objetividade histórica não se reduz a esfera da produção, na medida em que essa também abarca a reprodução das relações sociais entre os homens. Tais relações, se abordadas de um ponto de vista histórico‐ontológico, não deixam de incluir os processos singulares dos indivíduos sociais, embora nunca desvinculados da historicidade que os fundamenta. Para Marx e Engels (1989, p. 20), as determinações do processo produtivo indicam que “são os homens que produzem suas representações, suas idéias etc., mas os homens reais atuantes, tais como são condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e das relações que a elas correspondem, inclusive as mais amplas formas que estas podem tomar”. Pode‐se afirmar, a partir das ideias aqui expostas, que a pós‐modernidade está intimamente relacionada a um novo tipo de hegemonia ideológica nesse estágio do capital globalizado. Fundamentada nas teorias do fragmentário, do efêmero, do descontínuo, fortalece a alienação e a reificação do presente, fazendo‐nos perder de vista os nexos ontológicos que compõem a realidade social e distanciando‐nos cada vez mais da compreensão totalizante da vida social. O pós‐modernismo seria, no dizer de Coutinho (2006, 111‐113), uma “combinação de irracionalismo e de miséria da razão”, representando “a superestrutura ideológica da contra‐reforma neoliberal” que vivemos na contemporaneidade. Por isso, não se esgota no campo teórico, mas invade as formas de pensar, impõe modelos, participa não só da produção de mercadorias, mas também da produção de relações sociais, de formas de consciência social enquanto princípios articuladores de uma visão de mundo. Em síntese, as expressões da pós‐modernidade, segundo Rouanet (1989), podem ser identificadas em três planos: no plano do cotidiano, através da valorização das vivências particulares, dos signos, do simulacro e da hipercomunicação; no plano econômico, mediante a mundialização ou planetarização do capitalismo e suas manifestações estruturais e superestruturais, com destaque para a cultura informatizada; e no plano político, pela desqualificação do Estado e as novas formas de expressão da sociedade civil, através de uma vasta rede de grupos segmentares que passam a compor o terreno da política moderna. 9 Os atuais padrões e formas de domínio no terreno econômico, necessários à reestruturação do capital, impõem a necessidade de socialização de novos valores e regras de comportamento, de modo a atender tanto a esfera da produção quanto a da reprodução social. Em outros termos, um conjunto de fatores nos campos objetivo e subjetivo redefine a correlação de forças entre as classes sociais e, consequentemente, os projetos sociopolíticos mais amplos. Tais relações não se referem apenas à criação de uma nova forma de organização do trabalho e do capital, mas, também, à formação de novos pactos e consensos entre capitalistas e trabalhadores, já que o controle do capital não incide somente na extração da mais‐valia, mas ainda no consentimento e na adesão das classes à nova ideologia. Tal como Gramsci (2001) analisou em "Americanismo e Fordismo", a organização do sistema produtivo transcende a esfera econômica, na medida em que exige uma vasta empresa intelectual para implementá‐la e criar um "novo tipo de homem", com qualidades morais e intelectuais afeitas à nova ordem. Assim, a transição do modo de produção fordista para a acumulação flexível e a implementação de novas formas organizacionais e de trabalho presentes na pós‐ modernidade no plano econômico somente tornaram‐se possíveis mediante um sofisticado sistema de comunicação, de fluxos de informações e de racionalização das técnicas de distribuição e de circulação de mercadorias. Na esfera da cultura, a pós‐modernidade também expressa as alterações provocadas pelo capitalismo globalizado. Para Harvey (1992), os pensadores pós‐modernos, além da linguagem,
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