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Autor: Prof. Silas Guerriero Colaboradoras: Profa. Josefa Alexandrina da Silva Profa. Ivy Judensnaider História da Antropologia Re vi sã o: G io va nn a - Di ag ra m aç ão : M ár ci o- 2 3/ 05 /2 01 4 Professor conteudista: Silas Guerriero Graduado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC–SP (1983), mestre em Ciências Sociais (1989) e doutor em Antropologia (2000) pela mesma instituição, o professor também tem graduação e mestrado em Teologia. É professor-titular da Universidade Paulista desde 1991, onde atua com as disciplinas Antropologia e Cultura Brasileira, Homem e Sociedade e Ciências Sociais nos cursos de Psicologia e Direito. Sua área de pesquisa é a de Antropologia da Religião, principalmente, novos movimentos religiosos, espiritualidades contemporâneas e natureza da religião. É professor também do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciência da Religião na PUC–SP. Escreveu livros e tem artigos publicados sobre o tema. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) G935a Guerriero, Silas. História da antropologia. / Silas Guerriero. – São Paulo: Editora Sol, 2014. 164 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XX, n. 2-076/14, ISSN 1517-9230. 1. Antropologia. 2. Cultura. 3. Organização social. I. Título. CDU 572 Re vi sã o: G io va nn a - Di ag ra m aç ão : M ár ci o- 2 3/ 05 /2 01 4 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Prof. Dr. Yugo Okida Vice-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcelo Souza Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dra. Divane Alves da Silva (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Dra. Valéria de Carvalho (UNIP) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Giovanna Oliveira Amanda Casale Re vi sã o: G io va nn a - Di ag ra m aç ão : M ár ci o- 2 3/ 05 /2 01 4 Sumário História da Antropologia APRESENTAçãO ......................................................................................................................................................7 INTRODUçãO ...........................................................................................................................................................8 Unidade I 1 A FORMAçãO DA CIêNCIA DO ANTROPOS ........................................................................................... 11 1.1 A pré-história da Antropologia ...................................................................................................... 18 1.1.1 Por que há essa preocupação do ser humano com o outro? ............................................... 20 1.2 A invenção do conceito de ser humano – século XVI a século XVIII .............................. 22 1.3 Os viajantes do século XIX e o sistema colonial ...................................................................... 25 2 O SURGIMENTO DO SER HUMANO .......................................................................................................... 30 2.1 Charles Darwin e a Teoria da Evolução ....................................................................................... 33 2.2 A espécie humana ................................................................................................................................ 37 2.3 Teorias atuais sobre o surgimento do ser humano ................................................................ 47 3 A NOçãO DE CULTURA ................................................................................................................................. 51 3.1 A dicotomia natureza e cultura ...................................................................................................... 51 3.2 Cultura, socialização e aprendizagem cultural ........................................................................ 55 3.3 Teorias da cultura ................................................................................................................................. 59 4 A QUESTãO DA DIVERSIDADE CULTURAL ............................................................................................. 62 4.1 A alteridade cultural ........................................................................................................................... 62 4.2 A formação das diferentes etnias .................................................................................................. 65 4.3 Identidade étnica e etnicidade ....................................................................................................... 71 4.4 Etnocentrismo e relativismo cultural ........................................................................................... 75 Unidade II 5 OS PAIS FUNDADORES DA ANTROPOLOGIA......................................................................................... 84 5.1 O evolucionismo social: Tylor, Morgan e Frazer ....................................................................... 84 5.1.1 Tylor .............................................................................................................................................................. 86 5.1.2 Maine ........................................................................................................................................................... 87 5.1.3 Frazer ........................................................................................................................................................... 89 5.1.4 O darwinismo social............................................................................................................................... 92 5.2 A crítica ao evolucionismo: Boas e Malinowski ....................................................................... 93 5.2.1 O culturalismo de Franz Boas (1858-1942) ................................................................................. 94 5.2.2 O Funcionalismo de Bronislaw Malinowski (1884–1942) ...................................................... 96 5.2.3 Radcliffe-Brown ....................................................................................................................................100 6 O MÉTODO ANTROPOLóGICO ...................................................................................................................101 Re vi sã o: G io va nn a - Di ag ra m aç ão : M ár ci o- 2 3/ 05 /2 01 4 6.1 O estudo da totalidade ....................................................................................................................102 6.2 Etnografia e o método etnográfico – a observação participante ..................................105 6.3 Técnicas de pesquisa e trabalho de campo..............................................................................108 7 A ORGANIzAçãO SOCIAL ...........................................................................................................................1137.1 Família e sistemas de parentesco ................................................................................................114 7.1.1 Grupos de descendência ....................................................................................................................118 7.1.2 A proibição do incesto ........................................................................................................................121 7.2 Adaptação e sistemas econômicos .............................................................................................123 7.3 Sistemas políticos ...............................................................................................................................127 7.4 Religião e magia .................................................................................................................................133 7.4.1 Mitos, rituais, símbolos e crenças .................................................................................................. 138 8 OS LUGARES DA ANTROPOLOGIA ..........................................................................................................141 8.1 A Antropologia Aplicada .................................................................................................................141 8.2 O multiculturalismo e os usos da diversidade ........................................................................145 8.3 A contribuição da Antropologia para a formação do professor .....................................147 7 Re vi sã o: G io va nn a - Di ag ra m aç ão : M ár ci o- 2 3/ 05 /2 01 4 APreSentAção A disciplina História da Antropologia, do curso de Licenciatura em Ciências Sociais procura trazer ao graduando os elementos básicos da história dessa disciplina tendo como horizonte a compreensão da natureza humana. Entendemos que um maior entendimento sobre o que é o ser humano nos torna mais conscientes de nossa posição no planeta. De nenhuma forma essa questão se distancia das premissas básicas que norteiam a missão da universidade, no que concerne a atuar para que haja o progresso da comunidade, o fortalecimento da solidariedade entre os homens e a contribuição com o desenvolvimento da ciência e do país. O objetivo da disciplina é habilitar o licenciado em Ciências Sociais para o exercício da docência no que se refere a ser capaz de analisar e compreender a realidade cultural em seus múltiplos aspectos. Procura-se, para isso, preparar profissionais éticos e competentes, com sólida formação teórica e metodológica, além de contribuir com o desenvolvimento das seguintes competências: • senso crítico e capacidade de contextualização; • consciência ética e social; • compreensão da diversidade humana; • respeito às diferenças; • autonomia afetiva e cognitiva. Os objetivos específicos podem ser assim resumidos: • Fornecer aos alunos uma introdução à Antropologia e, em especial, ao conceito de cultura, bem como relacionar a disciplina à sua área de formação. • Superar as concepções do senso comum sobre a origem do ser humano e sobre a dicotomia entre natureza e cultura. • Operacionalizar os conceitos e as teorias, mostrando como discussões clássicas formam as bases do pensamento antropológico contemporâneo. • Sensibilizar o aluno para perceber e valorizar a diversidade cultural, afirmando o sentido positivo da diferença e da identidade cultural, contribuindo para evitar manifestações etnocêntricas, racistas e/ou discriminatórias. Além disso, por meio das estratégias de trabalho e de avaliação, os alunos deverão ter a oportunidade de desenvolver as seguintes competências: 8 Re vi sã o: G io va nn a - Di ag ra m aç ão : M ár ci o- 2 3/ 05 /2 01 4 • senso crítico e capacidade de contextualização; • comunicação e expressão; • desenvolvimento social e pessoal; • trabalho em equipe. A Antropologia, uma das Ciências Sociais, busca o entendimento do ser humano como uma espécie. Não uma espécie peculiar em relação às demais, mas uma espécie única que comporta algumas características diferenciadas. Dentre estas, destacamos a cultura e a simbolização. Nesse sentido, buscamos compreender como o comportamento humano baseado na cultura influencia fortemente nossas relações sociais. O ser humano é um ser social e que vive em coletividades. Porém, os grupos sociais tendem a ser enormemente diferenciados. Isso leva, muitas vezes, a conflitos, desentendimentos e discriminações. Compreender a natureza humana nos permite ser mais cientes desse mecanismo e melhor nos posicionar para a construção de uma sociedade mais harmoniosa, não mediante o aniquilamento das diversidades, mas, pelo contrário, por meio da possibilidade da convivência com o outro, com o diferente. Compreender a natureza humana e sua diversidade possibilita o desenvolvimento de habilidades como a capacidade comunicativa, o trabalho em equipe e a desenvoltura social. Nesta disciplina, conheceremos as características básicas da natureza humana estudadas pela Antropologia. Para tanto, é de fundamental importância a compreensão histórica dessa disciplina: como se formou, quais foram suas preocupações iniciais e como se desenvolveu ao longo do tempo. Introdução O objetivo deste livro-texto é fornecer ao graduando do curso de Licenciatura em Ciências Sociais material de apoio para o acompanhamento da disciplina História da Antropologia. Você terá acesso a uma série de informações que aprofundarão as aulas em vídeo e também terá indicações de onde recolher material adicional para que seus estudos sejam ainda mais proveitosos. Na primeira parte do nosso curso, veremos as origens da preocupação do ser humano em pensar a si mesmo. Notaremos que, muito antes da própria Antropologia como ciência, já havia uma preocupação em compreender o que é o ser humano. Procuraremos perceber que a nossa ciência é uma construção ocidental que se fez à medida que os países europeus avançavam no processo colonizador sobre os continentes habitados por povos indígenas. Em seguida, analisaremos as teorias mais atuais sobre as origens do ser humano. Utilizaremos, então, alguns recursos da Antropologia Biológica. O olhar sobre as nossas origens permite uma compreensão mais aprimorada da nossa própria natureza. A seguir, trataremos da noção de cultura, para muitos, o objeto maior da Antropologia. Analisaremos as inter‑relações de cultura e natureza e até aonde chegam os instintos no caso do animal humano. Por 9 Re vi sã o: G io va nn a - Di ag ra m aç ão : M ár ci o- 2 3/ 05 /2 01 4 fim, veremos algumas das teorias sobre a cultura. Além disso, veremos também a questão da diversidade cultural e da chamada identidade étnica, ou simplesmente etnicidade, um dos pontos-chave do estudo antropológico. Na segunda parte do nosso curso, analisaremos os fundadores da disciplina, aqueles que deram os passos iniciais na ciência do antropos. Depois, lidaremos com o trabalho antropológico visando levantar os elementos centrais do método dessa ciência, desde a Etnografia até as técnicas de pesquisa e trabalho de campo. Traremos à luz, ainda, alguns dos temas centrais estudados pela Antropologia, como sistemas de parentesco, sistemas políticos, religião, mitos e ritos, além de, por fim, sugerir uma discussão sobre o futuro da Antropologia e como esta área pode ser importante na formação de um professor de Ciências Sociais. Esperamos, dessa forma, que este seja um proveitoso curso de introdução à ciência da Antropologia. Bons estudos! 11 Re vi sã o: G io va nn a - Di ag ra m aç ão : M ár ci o- 2 3/ 05 /2 01 4 História da antropologiaUnidade I 1 A formAção dA cIêncIA do AntroPoS A ciência da Antropologia é uma das três grandes ciências sociais, que são três disciplinas básicas: a Sociologia, que lida com as relações sociais das grandes sociedades industrializadas e das relações destas com os grupos sociais mais diversos; a Ciência Política, que trata das relações de poder entre os grupos sociais; e a Antropologia, que lida com as relações simbólicas e culturais. A Antropologia teve início, como veremos mais adiante, quando se buscou dar conta da compreensão das sociedades tidas então como primitivas, ou seja, as sociedades indígenas. Nisso ela se diferenciaria da Sociologia, sua prima-irmã, que procurava compreender as sociedades modernas ocidentais, industrializadas e complexas. Atualmente essa separação não faz mais sentido, mas isso será compreendido no decorrer do curso. Convém ressaltar que existem várias outras ciências sociais, denominadas ciências sociais aplicadas. São elas as disciplinas que lidam com aspectos bastante específicos das sociedades humanas, como o Direito, a Economia, a Administração, a Comunicação, o Serviço Social e várias outras. A distinção básica entre a Antropologia e as demais é a preocupação com o entendimento da dimensão simbólica do ser humano. É essa capacidade humana, a de produzir simbologias, que nos torna um animal tão diferenciado de todos os outros. Já estamos apontando, portanto, para o fato de que a nossa disciplina lida com o animal humano. Nisso se encontra uma das definições clássicas da Antropologia, ou seja, a ciência do ser humano como espécie. observação Espécie é um conceito da Biologia que designa a unidade básica da classificação dos seres vivos. A palavra tem origem no latim species, que significa aparência. Falar do ser humano como espécie implica designá-lo como pertencente ao Reino Animal, ou seja, implica reconhecer que estamos junto aos demais animais no processo de evolução da vida. Há, ainda hoje, muita resistência a nos vermos lado a lado ou junto dos demais animais. Afinal, para muitos que norteiam sua concepção de mundo por uma perspectiva religiosa, o ser humano é especial e feito “à imagem e semelhança de Deus”. Longe de querer criar uma polêmica desnecessária nesse momento, convém ressaltar que a Antropologia não pretende e nunca pretendeu colocar-se como antirreligiosa. Sua preocupação básica sempre foi compreender a natureza do ser humano, que, se de um lado está junto a todos os demais seres vivos do planeta, de outro lhe atribui características muitos distintas. Afinal, não custa lembrar que somos um dos animais mais bem-sucedidos da face da Terra. Conseguimos 12 Re vi sã o: G io va nn a - Di ag ra m aç ão : M ár ci o- 2 3/ 05 /2 01 4 Unidade I nos adaptar às condições mais inóspitas e extremas, graças, em última instância, à nossa capacidade de simbolização e de construção cultural, mas veremos isso mais demoradamente mais adiante. Figura 1 – Habitação indígena O nome da nossa disciplina, Antropologia, vem do grego logia (estudo) e antropos (do ser humano). Assim, tudo o que diz respeito ao ser humano interessa à Antropologia. Contudo, há várias outras ciências que o têm como objeto de estudo. A própria Medicina pode ser assim entendida, uma vez que lida com a saúde do indivíduo. A Economia, que lida com a produção, a distribuição e o consumo de bens e serviços entre os grupos humanos. Até mesmo a História pode sê-lo, afinal, estuda o ser humano e sua ação ao longo do tempo. No entanto, em que a Antropologia seria diferente de todas as demais ciências que lidam com o ser humano? A grande diferença está em sua maneira de olhar para esse humano, ou seja, dizemos que o que caracteriza a Antropologia não é tanto seu objeto, o antropos, mas o olhar antropológico. Como acontece em qualquer outra ciência, mas especialmente nas denominadas ciências humanas, na Antropologia não há um consenso sobre o método a ser adotado, ou seja, sobre o olhar antropológico. A história dessa disciplina foi sendo moldada por caminhos um tanto diferentes e, por vezes, contrários. O importante é perceber que todos eles procuram compreender a espécie humana na sua peculiaridade, como uma espécie que produz instâncias socioculturais detentoras de significados simbólicos compartilhados pelos indivíduos que as formam. Antes de nos aventurarmos no conhecimento dessa disciplina, convém destacar alguns pontos sobre a terminologia empregada nos estudos antropológicos, muitas vezes, de forma diferenciada, o que pode provocar algumas confusões. É comum ouvirmos a palavra Etnologia no lugar de Antropologia. Será que ambas têm o mesmo significado? Quais são as diferenças entre Etnologia e Etnografia? Há, além disso, uma enorme confusão entre Antropologia Biológica e Antropologia Cultural. Na área forense e mesmo na área da Medicina, é comum encontrarmos a utilização da palavra Antropologia no sentido biométrico, ou seja, na questão da medição das dimensões físicas humanas e nas diferenças entre os tipos físicos característicos de seres humanos, como cor da pele, 13 Re vi sã o: G io va nn a - Di ag ra m aç ão : M ár ci o- 2 3/ 05 /2 01 4 História da antropologia proporções do rosto e tipos de cabelo, entre outros. Tendo em vista essas considerações, vamos tentar esclarecer alguns parâmetros. Ainda no início da Antropologia, o grande antropólogo alemão radicado nos Estados Unidos Franz Boas definiu quatro campos de atuação da Antropologia. observação Franz Boas (1858-1942), geógrafo de formação, aproximou-se da Antropologia ao estudar o povo inuit (esquimó). Estabeleceu-se nos EUA no final do século XIX e formou, na Universidade Columbia, uma importante geração de antropólogos. Para Boas (2004, p. 30–4), a Antropologia poderia ser dividida da seguinte maneira: • Arqueologia: estudo dos povos já desaparecidos a partir de tudo aquilo que eles deixaram materialmente. O diálogo com a História é evidente. Procuram-se, nos registros antigos, as pistas para a compreensão de quem foram e como viveram esses grupos humanos. Os arqueólogos estudam restos materiais para compreender a cultura de povos que não podem mais contar por eles mesmos as suas histórias. Nos restos materiais, podemos incluir artefatos de cerâmica, objetos entalhados em madeira ou esculpidos em pedra, ferramentas e vários outros artefatos, bem como os próprios restos humanos, em forma de ossos fossilizados. • Antropologia Física ou Biológica: estuda a evolução e as origens biológicas humanas. Aqui o diálogo se dá fundamentalmente com a Biologia, a Psicologia Evolutiva e as Ciências Cognitivas. Um dos ramos da Antropologia Biológica é a Primatologia, ou seja, o estudo dos primatas. Por meio desse estudo comparativo com os demais primatas, podem ser percebidas as características que nos aproximam e nos distanciam dos nossos parentes mais próximos. Figura 2 – Macacos 14 Re vi sã o: G io va nn a - Di ag ra m aç ão : M ár ci o- 2 3/ 05 /2 01 4 Unidade I • Linguística: é o estudo das línguas e da linguagem. Trata-se de perceber como a linguagem interage com a cultura e se relaciona com a cognição humana. No estudo dos povos autóctones, ou indígenas, é tradição da Antropologia classificá-los a partir dos troncos linguísticos e perceber as distinções entre os povos a partir das diferenciações linguísticas. Assim, a linguística é um campo importante para o estudo dos diferentes povos. • Antropologia Cultural (ou Social): este é o campo mais conhecido e, muitas vezes, tido como sinônimo da ciência Antropologia em sua totalidade. A Antropologia Cultural (ou Social) estuda os padrões internos de uma comunidade ou gruposocial. Busca‑se a compreensão desses povos a partir das lógicas simbólicas de cada cultura. Estudam-se os fatores que propiciam a formação de uma cultura específica, incluindo elementos como religião, dança, arte, economia, parentesco etc. O termo Antropologia Cultural, cunhado por Boas, é mais usado nos EUA, já a expressão Antropologia Social é mais comum na Inglaterra e nos demais países de língua anglo-saxônica. No Brasil, as duas denominações são igualmente utilizadas. Esse campo da Antropologia é o que mais nos interessa estudar para os objetivos de nosso curso. Figura 3 – Indígena brasileiro Além dessa clássica divisão feita por Boas, outro grande antropólogo, o francês Claude Lévi-Strauss, também estabeleceu uma classificação dos momentos da realização antropológica. observação Lévi-Strauss (1908-2009) é considerado um dos maiores antropólogos de todos os tempos. Ele iniciou sua carreira acadêmica em nosso país estudando os índios do Brasil Central e dedicou-se intensamente ao estudo dos mitos e de suas estruturas. Para Lévi-Strauss (1975, p. 28–41), haveria três níveis da pesquisa antropológica, assim distribuídos: 15 Re vi sã o: G io va nn a - Di ag ra m aç ão : M ár ci o- 2 3/ 05 /2 01 4 História da antropologia • Etnografia: é o primeiro estágio da pesquisa, que se inicia com a coleta do material de campo a partir da observação e da descrição. Trata-se do momento em que o antropólogo colhe todo registro cultural de um determinado povo, seja material, como utensílios, roupas e ferramentas, seja imaterial, como cantos, mitos e danças. • Etnologia: é um prolongamento da fase anterior. Representa um momento de reflexão que o antropólogo faz sobre o material coletado na Etnografia. Busca-se estabelecer uma reflexão sobre aquele povo observado ou sobre um conjunto de povos vizinhos ou assemelhados. • Antropologia: segundo Lévi-Strauss, refere-se ao momento culminante em que o antropólogo está distante dos dados coletados ou de um grupo específico e se preocupa com as grandes sínteses teóricas. Trata-se, portanto, da elaboração das teorias sobre o ser humano, a sociedade e a cultura. O próprio Lévi-Strauss teria realizado essa dimensão ao estabelecer aquilo que ele denominou de estruturas culturais. Essa classificação de Lévi-Strauss é bastante diferente daquela de Boas. Isso demonstra que, na Antropologia, assim como em qualquer ciência, não há um dogma conceitual fechado e absoluto. Saiba mais Para se aprofundar um pouco mais, procure os textos: DA MATTA, R. Relativizando: uma introdução à Antropologia Social. Rio de Janeiro: Rocco, 2010. LARAIA, R. B. Cultura: um conceito antropológico. 19. ed. Rio de Janeiro: Jorge zahar, 2005. MERCIER, P. História da Antropologia. São Paulo: Centauro, 2012. Os termos das atividades antropológicas da Etnografia e da Etnologia têm como base a palavra etnia. Cabe aqui fazer um primeiro esclarecimento sobre o significado dessa categoria tão importante para o estudo da Antropologia e que aparecerá em muitos momentos do nosso curso. Etnia deriva do termo ethnos, que, em grego, significa povo e também está na raiz de ethos, que significa costumes. Observe que é a mesma raiz que origina a palavra ética. Contudo, para além da etimologia, é importante compreender o sentido usado, pela Antropologia, da palavra etnia, pois esse termo ainda é mencionado muitas vezes de forma errônea, como sinônimo de raça. Convém ressaltar que a Antropologia não lida com o conceito de raça e que, mesmo na Biologia, não há clareza se raça existe de fato ou não. De toda forma, etnia não significa raça. A confusão pode ter origem na ideia de que, quando dizemos raça, estamos pensando nas diferenças físicas e 16 Re vi sã o: G io va nn a - Di ag ra m aç ão : M ár ci o- 2 3/ 05 /2 01 4 Unidade I comportamentais entre os diferentes grupos. Mas raça, nesse caso, teria uma conotação biológica. Etnia, que também está ligada às diferenças de costumes, nada tem a ver com a Biologia, pois está vinculada à ideia de comportamentos culturais. Etnia designa um determinado grupo humano, um grupo étnico, que se diferencia de outros grupos humanos. Como, em geral, entre um grupo e outro há diferenças de aparência física, pode estar aí a raiz da confusão entre etnia e o que seria raça. A título de exemplo, pense nas diferenças físicas entre um guarani, da região Sudeste do Brasil, e um sueco, da região nórdica da Europa. Portanto, quando falamos em etnia, estamos nos referindo a uma comunidade humana, definida por uma história comum, que partilha um território e tem afinidades linguísticas, políticas, religiosas e culturais, além de vários outros costumes em comum. Em geral, essas características são reivindicadas pelo próprio grupo como marcas identitárias que o compõem. Chamamos isso de identidade étnica. Outro termo que também é empregado como sinônimo da palavra Antropologia é Etnologia, principalmente, nos países de língua francesa. Entre nós, brasileiros, é muito mais corriqueiro falar em Antropologia num sentido mais amplo e abrangente, e em Etnologia, no caso do estudo mais específico dos grupos indígenas. Aqui, quando se fala que um antropólogo é etnólogo ou faz Etnologia, deseja-se dizer que ele é especialista no estudo das sociedades indígenas. Embora a Antropologia tenha começado a partir do estudo dessas sociedades, já há muito tempo deixou de estudar somente os indígenas e se preocupa, de maneira contundente, com o estudo das sociedades modernas. Como vemos, a questão da terminologia não é, até hoje, definitiva. Entre os usos mais frequentes dos autores contemporâneos, o termo Antropologia simplesmente se refere à Antropologia Cultural ou Social, e Antropologia Biológica quer especificar o trato dos aspectos físicos e biológicos do ser humano. Ressaltamos que a Antropologia Biológica é bem pouco difundida no Brasil. Assim, quando se fala Antropologia, subentende-se a Antropologia Cultural ou Social. A ABA (Associação Brasileira de Antropologia), associação que congrega os antropólogos brasileiros, não comporta uma divisão relativa à Antropologia Biológica, entendendo a Antropologia como aquela ciência que estuda a cultura. Saiba mais Procure mais informações sobre a ABA e sobre o que fazem os antropólogos brasileiros no site: <http://www.portal.abant.org.br/> 17 Re vi sã o: G io va nn a - Di ag ra m aç ão : M ár ci o- 2 3/ 05 /2 01 4 História da antropologia Lembrete Não confunda os termos: • etnia (agrupamento) e raça (termo discutível que teria uma conotação biológica). • Etnografia e Antropologia: Antropologia (Cultural ou Social) e Antropologia Biológica (aspectos biológicos e evolutivos do ser humano). Saiba mais Para uma introdução ao campo de estudo da Antropologia, nada melhor do que assistir a alguns filmes que lidam com a diversidade humana e refletir sobre eles. Isso nos faz pensar na nossa própria natureza. Sobre as peculiaridades da vida dos inuítes (esquimós), assista ao filme baseado no livro No país das sombras longas, de Hans Ruesch (São Paulo: Record, 1996): SANGUE sobre a neve. Direção: Nicholas Ray. Itália, França e Reino Unido: Gray Films/Joseph Janni/Appia Films/Magic Film/Play Art/Société Nouvelle Pathé Cinéma, 1960. 110 minutos. Já o filme de Werner Herzog retrata o contato dos aborígines australianos com a sociedade moderna: ONDE sonham as formigas verdes. Direção: Werner Herzog. Alemanha: Pro-ject Filmproduktion/Werner Herzog Filmproduktion/zweites Deutsches Fernsehen, 1984. 100 minutos. Para entender a luta dos irmãos indigenistas Villas-Boas e a construção do Parque Indígena do Xingu, local onde vivemaproximadamente quatorze etnias indígenas, é recomendável ver: XINGU. Direção: Cao Hamburguer. Brasil: Globo Filmes, O2 filmes, 2012. 102 minutos. Por fim, recomendamos também o filme de 2006 que mostra a complexa trama da multiculturalidade contemporânea e as dificuldades daí advindas. BABEL. Direção: Alejandro González Iñárritu. México; EUA: Paramount Pictures/Paramount Vantage/Anonymous Content/zeta Film/Central Films/ Media Rights Capital, 2006. 143 minutos. 18 Re vi sã o: G io va nn a - Di ag ra m aç ão : M ár ci o- 2 3/ 05 /2 01 4 Unidade I 1.1 A pré‑história da Antropologia É preciso refletir sobre como e quando esse olhar sobre o humano teve início. Nosso objeto de estudo é a Antropologia, a ciência que estuda o ser humano e sua relação consigo e com o outro, com a natureza e com o que dela se tira, bem como a integração dele com tudo o que o cerca e que ele produz ou extrai, ou mesmo de que se apropria. Não é novidade o fato de que o homem pensa em si. Também não é recente a ideia de que o ser humano, ao olhar para um semelhante, de outro grupo social, faz comparações sobre as igualdades e diferenças existentes entre ambos. Registros antigos mostram que observar o outro e refletir sobre ele ocorre há muito tempo e que, embora não tenha havido constante preocupação em formalizar, organizar e guardar história dessa relação, é possível encontrar no passado elementos que dão base à afirmação de que o homem sempre – ou desde muito tempo – se estudou. É válido lembrar que uma ciência somente se prova como tal a partir de princípios que recorrem à experiência ou aos registros encontrados por aquele que estuda determinado tema. Indícios analisados pelo estudioso servem para comprovar suas teses e afirmações. No nosso caso, queremos exemplificar a questão da preocupação do ser humano com o seu “igual-diferente”. Remontam a séculos atrás os primeiros relatos dessas observações. As questões sociais e o resultado de suas interações são tratados como “capricho dos deuses”, ainda que de forma poética, já na Odisseia de Homero, que cuja data é estimada por volta do século IX a.C. Heródoto (484-424 a.C.), o grande historiador grego, já se ocupava do tema quando, ao observar o sistema social dos lícios, notou o quanto eles se diferenciavam de modo singular, por meio de seus costumes, de “todas as outras nações do mundo” (HERÓDOTO apud LARAIA, 2005, p. 10–1). Assim descreveu Heródoto: “pergunte a um lício quem ele é, e ele responde dando o seu próprio nome e o de sua mãe, e assim por diante, na linha feminina” (ibidem, p. 10–1). Ao se referir ao sistema social adotado por outra cultura como diferente de todas as demais, “Heródoto estava tomando como referência a sua própria sociedade pratilineal” (LARAIA, 2005, p. 11). Ele, que é considerado o pai da História, fez roteiros sobre cidades gregas por onde viajou e descreveu festivais atléticos e religiosos desses povos. Além disso, revelou, em sua obra Histórias, as guerras médicas entre gregos e persas, fruto de sua observação sobre o comportamento do humano. Assim como Heródoto, os filósofos pré‑socráticos, à sua maneira, questionaram o impacto das relações sociais sobre o comportamento humano. Para eles, as construções racionais eram resultantes da apreensão da realidade no dia a dia, ou seja, da experiência humana. Mas foi, sem dúvida, na Antiguidade Clássica que a medida humana tornou se centro da discussão a respeito do mundo. 19 Re vi sã o: G io va nn a - Di ag ra m aç ão : M ár ci o- 2 3/ 05 /2 01 4 História da antropologia observação Antiguidade Clássica – período da história da Europa que se estende do século VIII a.C. (com o surgimento da poesia grega de Homero) à queda do Império Romano do Ocidente, no século V d.C., (ano 476). No eixo da discussão estavam Roma e Grécia. Gregos, chineses e romanos fizeram muitos registros e relatos sobre culturas diferentes das suas desde a Antiguidade, portanto podemos dizer que, na Grécia, a “Antropologia” no século V a.C. se revela na obra de Heródoto, ao lado da de Aristóteles (384–322 a.C.), que trata, em seus escritos, sobre as cidades gregas e de Xenofonte (430‑355 a.C.), que escreve suas observações a respeito da Índia. Simultaneamente, Lucrécio (99-55 a.C.) dá sua contribuição, entre os romanos, ao estudar as origens da religião, das artes e do discurso. O mesmo ocorreu com Tácito (55‑120 a.C.), cidadão romano, em suas observações de tribos germânicas, baseando-se nos relatos de soldados e viajantes. Ele comparou e contrastou o vigor germânico com o dos romanos da sua época. Não foi de outra forma com Marco Polo, o famoso viajante italiano que, ao visitar a Ásia, no século XIII, descreveu os costumes dos chineses tártaros, diferenciando-os dos seus próprios costumes. Para ele, houve estranheza quanto ao padrão circular das casas, à relação entre maridos e esposas e também à não objeção ao consumo de carnes de cavalos e de cachorros na alimentação. Dando um salto no tempo e no espaço, apenas para reconhecer a permanente preocupação do ser humano com o seu semelhante, ainda que de modo diferente, os relatos de José de Anchieta (1534-1597) servem também como um exemplo do que chamamos, até o momento, de Pré-Antropologia, que, como se pode perceber, também foi encontrada no território sul-americano. Anchieta, ao contrário de Heródoto, ao deparar com os índios tupinambás, que tinham costumes muito diferentes dos de sua cultura, descreveu sua surpresa ou espanto em seus relatos a seus superiores. Figura 4 – Primeira missa no Brasil 20 Re vi sã o: G io va nn a - Di ag ra m aç ão : M ár ci o- 2 3/ 05 /2 01 4 Unidade I Nesse ponto, precisamos observar que a preocupação do ser humano com o outro decorre do fato de que esse outro é, ao mesmo tempo, um semelhante e um diferente. Não se trata de um outro qualquer, como um animal de espécie simplesmente distinta da sua. O objeto da curiosidade permanente do ser humano se dá em relação ao outro que é igual, em termos biológicos, mas ao mesmo tempo extremamente diferente de si em termos de comportamento. Trata-se do enigma da igualdade na diversidade. Figura 5 – Diversidade 1.1.1 Por que há essa preocupação do ser humano com o outro? Para que se torne mais claro o objeto a que nos referimos, sugerimos pensar na questão da expansão colonial, que mais adiante será também objeto de nosso estudo. A imagem que temos em mente é a do colonizador que, ao chegar a terras desconhecidas, não encontra apenas um meio ambiente distinto, plantas e animais de espécies nunca antes vistas, mas depara com outro ser humano, o “igual-diferente”. Não se trata, portanto, de encontrar um novo exemplar felino ou uma ave com características diferentes das suas conhecidas. Trata-se, de fato, de reconhecer ou não como potencialmente igual aquele que guarda semelhanças tão evidentes, mas que não fala a mesma língua, não se veste do mesmo modo, não come o mesmo tipo de alimento, não vive em condições semelhantes, não tem o mesmo deus, enfim, que é evidentemente igual, mas completamente diferente. Para que nos fixemos no assunto que ora propomos tratar, a Pré-História antropológica, dita como a história que antecede a Antropologia como ciência, dá-se desde que o ser humano observa o outro e toma a si, sua cultura, seu meio social, sua própria experiência como referência. É esse o princípio que sustenta a Antropologia reconhecida muito mais recentemente como ciência, como veremos oportunamente. Para François Laplantine: A gênese da reflexão antropológica é contemporânea à descoberta do Novo Mundo. O Renascimento explora espaços até entãodesconhecidos e começa a elaborar discursos sobre os habitantes que povoam aqueles espaços. A grande questão que é então colocada e que nasce desse primeiro confronto visual com a alteridade é a seguinte: aqueles que acabaram de ser descobertos pertencem à humanidade? (LAPLANTINE, 1988, p. 37). 21 Re vi sã o: G io va nn a - Di ag ra m aç ão : M ár ci o- 2 3/ 05 /2 01 4 História da antropologia observação Alteridade: relação com o diferente; percepção de que nenhum ser humano é isolado e, apesar de indivíduo único, faz-se em constante relação com o outro. Ao observar o outro, o homem olha para si e se compara, garantindo a si e ao seu próprio grupo a legitimidade da razão. A curiosidade do humano para com o outro traz consigo uma lógica peculiar e comparativa com a sua própria realidade, ou seja, o olhar para aquilo que já lhe é conhecido concedendo a si o benefício da racionalidade, enquanto o que é observado é visto como irracional. Todo sistema cultural tem a sua própria lógica, e não passa de um ato primário de etnocentrismo tentar transferir a lógica de um sistema para outro. Infelizmente a tendência mais comum é a de considerar lógico apenas o próprio sistema e atribuir aos demais um alto grau de irracionalismo (LARAIA, 2005, p. 90). Esperamos que não seja novidade para o estudante que os momentos de expansão territorial que se dão a partir das grandes descobertas europeias trazem à tona a questão do igual‑ diferente. Isso ocorre porque há o encontro do europeu, seus usos e costumes, com o outro, reconhecidamente, o estranho indígena americano, que também pode ser o aborígine da Oceania ou o negro africano. Saiba mais O fato de termos chegado tão rapidamente aos anos próximos de 1450-1500 não deve ser motivo para que você, estudante, deixe sua curiosidade de lado a respeito dessa discussão no período de quase mil anos. Para que possa aprofundar seus conhecimentos sobre o assunto, destacamos a contribuição de Santo Agostinho (séculos IV e V), um dos pilares teológicos do catolicismo, sobre as civilizações greco‑romanas “pagãs, as quais ele considerava moralmente inferiores às sociedades cristãs. Além dele, é de relevante importância o papel dos filósofos para o saber antropológico. Como já dito, mesmo não existindo como disciplina específica, a Antropologia foi constantemente discutida no decorrer dos séculos pela Filosofia. Durante a Idade Média, muitos escritos também contribuíram para a formação de um pensamento racional, aplicado ao estudo da experiência humana. Sobre esse pensador, um dos pais da teologia cristã, ver: SANTO AGOSTINHO. A doutrina cristã: manual de exegese e formação cristã. São Paulo: Paulus, 2002. 22 Re vi sã o: G io va nn a - Di ag ra m aç ão : M ár ci o- 2 3/ 05 /2 01 4 Unidade I observação A Idade Média inicia-se com a queda do Império Romano do Ocidente (476 d.C.) e termina na transição para a Idade Moderna (fim do século XV). É o período intermediário da divisão clássica da História ocidental, que é contada em 3 períodos: Antiguidade, Idade Média (Alta e Baixa) e Idade Moderna. A partir do final do século XV e no decorrer do século XVI, o contato entre povos iguais–diferentes, a que nos referimos antes, coloca em evidência a necessidade de conhecer o outro. É essa mesma necessidade que vai alimentar, três séculos mais tarde, a criação da Antropologia como uma ciência. Atenhamo‑nos, então, à construção dessa concepção de ser humano que começava a ficar cada vez mais premente à medida que avançava a civilização europeia sobre os povos colonizados. O encontro com esse outro, descoberto pelas grandes navegações, exigia uma explicação coerente sobre os nativos serem ou não seres humanos tais quais os europeus. 1.2 A invenção do conceito de ser humano – século XVI a século XVIII O antropólogo François Laplantine (1988) defende a ideia de que a gênese da reflexão antropológica é contemporânea à descoberta do Novo Mundo. Embora isso possa ser contraditório com relação à nossa afirmação de que essa reflexão “antropológica” é anterior a esse período, podemos compreender a posição desse autor pelo fato de que é a partir do século XVI e, portanto, contemporaneamente às grandes navegações, que a ciência moderna começa a despontar como uma maneira de compreensão da realidade. Mesmo antes da formação da Antropologia como ciência, já havia a necessidade de uma reflexão mais sistemática sobre os nativos dos territórios colonizados. Figura 6 – Indígenas 23 Re vi sã o: G io va nn a - Di ag ra m aç ão : M ár ci o- 2 3/ 05 /2 01 4 História da antropologia Uma questão relevante para os desbravadores era classificar os habitantes dos novos mundos como humanos ou não. Até esse primeiro momento, a noção de ser humano era religiosa, ou seja, a questão tratava de perceber se os indígenas possuíam ou não uma alma. O ser humano, tido como criatura divina, possuía um corpo e uma alma. “Mas os índios, aparentemente, não tinham nem Deus e, provavelmente, nem alma!” Uma vez sendo seres sem alma, seriam eles passíveis de ser convertidos ao cristianismo? As posições não eram unânimes. Havia todo um conjunto de pensadores, juristas, missionários, viajantes e filósofos que deram encaminhamentos diferentes a esses termos e diferentes respostas para o encontro com a diferença. Laplantine (1988) chama a atenção para o debate entre o filósofo e jurista Ginés de Sepúlveda e o missionário dominicano Bartolomé de Las Casas, a partir dos anos 1550. Sepúlveda queria imprimir um tratado que mostrasse as razões pelas quais os espanhóis deveriam dominar os índios. O frei Bartolomé de Las Casas, rebatendo as ideias do filósofo, promoveu uma discussão em público que durou vários dias, na qual afirmava que “àqueles que pretendem que os índios são bárbaros, responderemos que essas pessoas têm aldeias, vilas, cidades, reis, senhores e uma ordem política que, em alguns reinos, é melhor que a nossa” (LAS CASAS apud LAPLANTINE, 1988, p. 38). Para Sepúlveda, “tais nações são bárbaras e desumanas, estranhas à vida civil e aos costumes pacíficos” (SEPÚLVEDA apud LAPLANTINE, 1988, p. 39). Las Casas dizia que os índios não possuíam uma diferença de natureza em relação aos europeus e que todos eles poderiam tornar-se cristãos. Sepúlveda tratava-os como infiéis que praticavam o canibalismo e ignoravam a religião cristã. Deveriam, a seu ver, ser dominados pelo homem branco. Começa a surgir, a partir de então, a visão de que esses indígenas eram primitivos e selvagens, não sendo, portanto, seres humanos em sua integralidade. Surgem, inclusive, explicações de ordem geográfica, atribuindo ao clima tropical a inferioridade e a incapacidade do indígena. observação Até hoje ouvimos ecos dessa visão altamente discriminatória, o que torna evidente como é difícil eliminar esses preconceitos. O nativo é visto, assim, como o inverso do civilizado. É tido como mau por natureza e, por consequência, a sua conquista ou o seu massacre estavam justificados. Embora houvesse algumas posições minoritárias que afirmassem ser esse nativo “natural” um bom elemento, visto que ainda não tocado pela maldade, essa visão só seria sistematizada muitos anos depois, com Jean-Jacques Rousseau (1712–1778), no século XVIII. Antes disso, ainda existia a visão racionalista do século XVII, na qual o pensar era o fundamento da existência. Nessa visão, o nativo também era considerado alheio à humanidade, pois não raciocinava como o europeu. 24 Re vi sã o: G io va nn a - Di ag ra m aç ão : M ár ci o- 2 3/ 05 /2 01 4 Unidade I Figura 7 – Pinturade Oscar Pereira da Silva, Desembarque de Cabral em Porto Seguro, Museu Paulista, São Paulo No século XVIII, surgiu um saber que não era mais somente especulativo, mas sim positivo, sobre o ser humano. O pensamento filosófico de então propunha um projeto de compreensão do ser humano que envolvia o seu reconhecimento como objeto e sujeito do conhecimento, além da possibilidade da observação e do olhar empírico sobre a sociedade humana (LAPLANTINE, 1988, p. 55). O nativo passou, naquele momento, a ser pensado em termos cada vez mais racionais e naturalizantes. O selvagem era tido como aquele que ainda estaria na infância da humanidade, vivendo ainda num estado de natureza. Rousseau, com o seu conceito de “bom selvagem”, procurou elementos positivos e pregou, em seu livro Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, uma distinção entre o estado de natureza e o estado civil. No estado de natureza, o ser humano seria somente um ser de sensações e não pensante. Seria, portanto, desprovido da imaginação necessária para almejar outras coisas. Desse modo, para o filósofo, o estado de natureza não caracterizaria um período da história humana marcado por inconveniências a serem superadas pela constituição da sociedade civil. Os homens nesse estado [de natureza], não tendo entre si nenhuma espécie de relação moral, nem deveres conhecidos, não poderiam ser bons nem maus e não tinham vícios nem virtudes [...]. Não vamos, sobretudo, concluir com Hobbes que, por não ter a menor ideia da bondade, o homem seja naturalmente mau; [...] de sorte que se poderia dizer que os selvagens não são maus justamente por não saberem o que é serem bons, pois não é nem o desenvolvimento das luzes, nem o freio da lei, mas sim a calma das paixões e a ignorância dos vícios que os impedem de proceder mal (ROUSSEAU, 1993, p. 169). Em sua famosa Teoria do Bom Selvagem, Rousseau diz que o homem é, por natureza, bom; que nasce livre, mas sua maldade advém da sociedade, que, em sua presunçosa organização, não só permite, mas também impõe a servidão, a escravidão, a tirania e inúmeras outras leis, em detrimento dos mais fracos, firmando, assim, a desigualdade entre os homens ou seres que vivem em sociedade. De certa forma, essa posição acabou marcando uma visão idílica do índio que muitos ainda têm até os dias atuais. Mesmo na Antropologia, essa visão romanceada do bom selvagem teve fortes ecos. 25 Re vi sã o: G io va nn a - Di ag ra m aç ão : M ár ci o- 2 3/ 05 /2 01 4 História da antropologia Para Lévi-Strauss, Rousseau foi um dos precursores da ciência do antropos, pois tentou estabelecer as bases de uma Etnologia e colocá-la ao lado do pensamento filosófico sobre a sociedade humana. [Rousseau] havia concebido, querido e anunciado a Etnologia um século inteiro antes que ela fizesse a sua aparição, colocando-a, de pronto, entre as ciências naturais e humanas já constituídas. [...] Rousseau não se limitou a prever a Etnologia: ele a fundou. Inicialmente de modo prático, escrevendo este Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes. Nele se pode ver o primeiro tratado de Etnologia Geral, no qual se coloca o problema das relações entre a natureza e a cultura (LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 41-2). O século XVIII representou um enorme avanço no pensamento filosófico racional, abrindo caminho para o estabelecimento definitivo do pensamento científico, que floresceria no século seguinte. Em relação à Antropologia, como visto, significou a possibilidade de se pensar a natureza humana em bases racionais. O questionamento feito por Rousseau sobre a separação entre natureza e cultura, então denominada simplesmente de civilização, foi marcante para se estabelecer uma nova conceituação sobre o que é um ser humano. Desse modo, o conceito de humano forjado no Século das Luzes emancipou o ser de uma criação religiosa e o colocou num outro patamar. Pensado então em termos naturais, esse humano passou a ser visto a partir de sua própria constituição. Essa autonomia representa, em última instância, a consolidação de um conceito de ser humano, passo fundamental para a criação da ciência do antropos no século seguinte. 1.3 os viajantes do século XIX e o sistema colonial O século XIX significou o estabelecimento de uma nova ordem social nos países europeus. A revolução do pensamento iniciada com o Renascimento e plenamente realizada com o racionalismo iluminista do século XVIII juntou‑se às revoluções políticas burguesas, como a Revolução Francesa e a Independência norte‑americana. Contígua a essas transformações, ocorreu a radical modificação no campo da economia e da produção de bens. Tudo isso resultou num século XIX absolutamente marcado pela ideia de progresso, de civilização, de avanço e de novidades. A Revolução Industrial trouxe mudanças profundas na vida das pessoas e exigiu que esses países expandissem suas atuações por outros continentes, fosse para buscar matéria-prima, fosse para o estabelecimento de novos comércios. Como resultado, houve a consolidação do sistema colonial, principalmente, sobre o continente africano. As potências europeias, por meio de acordos entre si, definiram a partilha da África, não respeitando nenhuma possibilidade de soberania dos povos africanos. As metrópoles forneciam produtos manufaturados às colônias e estabeleciam a exclusividade da produção colonial e do comércio. Uma colônia não tinha possibilidade de comercializar com qualquer outro país por outro meio que não sua metrópole. Isso garantia o acúmulo de capital necessário para os países europeus empreenderem seu desenvolvimento e financiarem a nova ordem social. 26 Re vi sã o: G io va nn a - Di ag ra m aç ão : M ár ci o- 2 3/ 05 /2 01 4 Unidade I Para tanto, era fundamental que a metrópole estabelecesse um sistema na colônia por meios legais ou, em última instância, até pelo uso de força militar, para que a colônia não saísse de seu controle. No continente americano, as colônias já funcionavam há mais tempo e eram centradas na produção especializada de gêneros do mercado, como o açúcar e a borracha, no caso do Brasil. As colônias na África e na Ásia seguiam o modelo de feitorias e operavam na área de trocas de mercadorias. observação Feitoria era o nome dos entrepostos em territórios coloniais. Podia ser desde um simples armazém de entrepostos até um complexo conjunto de equipamentos e estruturas militares, edifícios administrativos e aparatos jurídicos e, além disso, funcionava como sede do governo. As colônias complementavam a economia europeia e concentravam sua produção em alguns produtos altamente lucrativos, como algodão, açúcar e minérios. Em síntese, cabia à colônia apenas produzir e, ainda assim, sob o mando da metrópole, aquilo que interessava aos países europeus. Para a produção, era utilizada a mão de obra local, mas não a remunerada, como já era estabelecido na Europa; em vez disso, nas colônias, a mão de obra era escrava. Para tanto, era importante que fosse estabelecido um sistema de domínio sobre os escravos e também de captação de novos trabalhadores. No caso das colônias em solo americano, essa mão de obra era importada da África, via tráfico negreiro. Com isso, as metrópoles tinham um rico comércio à sua disposição. No continente africano, o sistema funcionava de forma um pouco diferente. Era preciso que a feitoria garantisse a captura de novos escravos que seriam utilizados não apenas na produção local, mas também no comércio com as colônias americanas. Mas o trabalho de captura e de dominação dos povos negros não era feito diretamente pelos europeus brancos. Formou-se nas feitorias um complexo sistema de dominação. O administrador branco se aliavaa algum grupo étnico ou a governantes locais, e estes faziam a captura de novos escravos entre etnias rivais. Lembrete Etnia refere-se a uma comunidade humana definida por uma história comum, que partilha um território e tem afinidades linguísticas, políticas, religiosas e culturais, além de vários outros costumes em comum. Esse sistema colonial não levava em consideração as particularidades étnicas, sociais e políticas dos diferentes povos conquistados. Assim, foram reunidas, num mesmo território, etnias rivais, ao mesmo tempo em que nações inteiras foram desagregadas ao se tornarem parte de diferentes países, subordinadas a metrópoles distintas. A expansão do sistema colonial levou à partilha do conjunto de todo o território africano pelas metrópoles europeias, principalmente, Inglaterra, França, Portugal, Espanha, Bélgica e Holanda. Essa partilha foi concretizada na Conferência de Berlim, em 1884-1885. As fronteiras entre os novos países africanos não respeitavam nem a verdadeira ocupação de povos tradicionais ali estabelecidos, nem os contornos geográficos. 27 Re vi sã o: G io va nn a - Di ag ra m aç ão : M ár ci o- 2 3/ 05 /2 01 4 História da antropologia Podemos verificar isso num mapa da África, ao olhar as linhas retilíneas que dividem os países africanos. O êxito de toda essa operação estava fortemente calcado na superioridade técnica e no uso de armamentos bélicos por parte dos europeus. Todo o sistema colonial só começou a ser desmantelado a partir das guerras de independência dos países africanos, após a Segunda Guerra Mundial. Até hoje, contudo, o continente africano sofre profundamente as consequências desse terrível sistema. À parte de todo esse sistema político e econômico, a nova situação das colônias africanas, bem como daquelas de outras localidades, como Ásia, Oceania e América, trazia ao europeu uma enorme curiosidade sobre a vida exótica desses locais tão diferentes. A presença de povos diferentes, com hábitos extremamente diferentes, aliada à ideia da existência do “bom selvagem” (aquele ainda não corrompido pela civilização), despertou o interesse de muitos aventureiros. Formou-se um conjunto de homens aventureiros que pretendiam “desbravar” esses novos territórios. Eles não eram diretamente ligados ao sistema colonial, mas dele se aproveitaram para viajar por essas terras tão inóspitas. Cria-se a literatura etnográfica, que procurava descrever os hábitos dos nativos aos europeus cada vez mais curiosos quanto à vida “selvagem”. Lembramos que é dessa época a criação dos jardins zoológicos modernos, que procuravam reproduzir para o cidadão europeu um pouco da vida selvagem das terras coloniais. Mas é a literatura etnográfica que verdadeiramente nos coloca diante da formação da ciência antropológica. Nesta, os escritores viajantes descreviam aquilo que presenciavam, contavam suas aventuras e perigos, mas, principalmente, mencionavam as características dos povos coloniais, descrevendo suas línguas, crenças, magias, rituais e sistemas de parentesco. As descrições eram feitas geralmente por missionários, viajantes ou exploradores. Viajávamos pela Terra pré-histórica, uma Terra que tinha o aspecto de um planeta desconhecido. Era possível nos imaginarmos como os primeiros homens tomando posse de uma herança maldita, uma herança que precisavam domar ao preço de uma angústia profunda e de um labor infindável (CONRAD, 2008, p. 58). Na passagem anterior, retirada desse livro clássico, Joseph Conrad narra a experiência de um viajante fictício a bordo de uma embarcação em direção ao Congo, verdadeiro coração das trevas, no seu entender. Esse viajante fictício era inspirado na própria experiência do autor, polonês, que viajou pela África no final do século XIX. Talvez o mais famoso desses viajantes tenha sido Richard Francis Burton, que foi nomeado sir pela rainha Vitória da Inglaterra. Ele percorreu enormes distâncias entre vários continentes, não apenas na África, mas também na Ásia e no Brasil, onde foi cônsul inglês, em 1865. Conrad falava 29 idiomas, tinha a capacidade de interagir com a população local sem ser percebido como um estrangeiro e estudou ainda os usos e costumes de povos asiáticos e africanos, sendo pioneiro em estudos etnológicos. 28 Re vi sã o: G io va nn a - Di ag ra m aç ão : M ár ci o- 2 3/ 05 /2 01 4 Unidade I Saiba mais Para saber mais sobre esse período e sobre a vida desses viajantes, convém ler o livro de Joseph Conrad e a biografia de Richard F. Burton, bem como assistir a alguns filmes. RICE, E. Sir Richard Francis Burton: o agente secreto que fez a peregrinação a Meca, descobriu o Kama Sutra e trouxe As Mil e Uma Noites para o Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. CONRAD, J. Coração das trevas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. Filmes indicados: ÁFRICA dos meus sonhos. Direção: Hugh Hudson. EUA: Columbia Pictures Cooperation/Jaffilms, 2000. 114 minutos. O ELO perdido. Direção: Régis Wargnier. África do Sul; França; Reino Unido: Vertigo Productions/Skyline Films/France 2 Cinéma/France 3 Cinéma/Boréales/TPS Star/The Imaginarium/zenHQ Films/zenHQ, 2005. 122 minutos. ENTRE dois amores (Out of Africa). Direção: Sydney Pollack. EUA: Mirage Enterprises/Universal Pictures, 1985. 161 minutos. Esses relatos de viajantes serviram de base para a constituição de estratégias políticas dos grupos econômicos e dos governos das metrópoles. Conhecer melhor os povos colonizados era fator fundamental para melhor dominá‑los – e isso acabou dando base ao início da Antropologia, como veremos mais à frente em nosso curso. Toda essa nova conjuntura europeia do século XIX, com a consolidação da indústria, o avanço da ciência e o progresso tecnológico, fez que se desenvolvesse, no século XIX, uma forte visão evolucionista. A noção de progresso estava muito presente. As ciências (inicialmente, as ciências naturais) caminhavam para a ampla consolidação e formulação de seus métodos próprios. A tecnologia, impulsionada pelo enorme avanço industrial, trazia a sensação de que todos os problemas da sociedade seriam resolvidos em pouco tempo. A máquina seria capaz de substituir o ser humano nos trabalhos mais pesados e traria o excesso de produção, o que possibilitaria o fim da escassez de produtos ou alimentos. Esse espírito otimista dominava o imaginário europeu. Foi nesse cenário que se desenvolveu o pensamento de Auguste Comte (1996), que estabeleceu o que seria a Ciência Positiva e defendeu que o mundo poderia ser compreendido e ordenado. O positivismo comteano pregava que o conhecimento científico seria a única forma de conhecimento correta. 29 Re vi sã o: G io va nn a - Di ag ra m aç ão : M ár ci o- 2 3/ 05 /2 01 4 História da antropologia Assim, essa filosofia desprezava todo conhecimento especulativo, que não pudesse ser comprovado cientificamente. Comte falava na Lei dos Três Estados, que definia a evolução do espírito humano pela passagem necessária por três estágios distintos. Toda forma de concepção da realidade, portanto todo conhecimento, passaria, num primeiro momento, pelo estado teológico – quando os fenômenos seriam explicados a partir de seres sobrenaturais, como deuses e espíritos. Esse estado religioso seria substituído, à medida que o pensamento evoluísse, pelo estado metafísico, no qual as explicações já seriam racionais e especulativas, mas não de ordem científica. Por fim, o pensamento chegaria ao seu estado final, o positivo, quando a busca de explicações dos fenômenos deixaria de ser especulativa e passaria a ter cunho científico. Buscam-se, nesse último estágio, as leis naturais que possam explicar como os fenômenos ocorrem. Além do pensamentode Comte, convém lembrar outras teorias desse período que carregavam fortemente a noção de progresso. O materialismo histórico e dialético, de Karl Marx e Friedrich Engels, também falava num determinado progresso das forças produtivas, levando a perceber o encadeamento histórico das sociedades humanas a partir do desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção. Na Biologia, era cada vez mais crescente a noção de evolução da vida, como veremos a seguir. Em outras áreas, como no pensamento espírita de Alan Kardec, aparece a noção de evolução dos espíritos. Em outras palavras, esse foi um período fortemente impregnado pela noção de progresso. Não é de outra forma que podemos compreender o surgimento do cientificismo, na segunda metade do século XIX, que pode ser entendido até como uma espécie de religião, na qual as crenças religiosas seriam substituídas pela ciência, e isso levaria à solução de todos os problemas humanos, como uma espécie de salvação. observação O cientificismo foi uma corrente de pensamento surgida na segunda metade do século XIX que procurava contrapor‑se às ideias religiosas. No entanto, ele mesmo acabou se tornando uma espécie de religião, pois crê que a ciência proveria resposta para todas as questões humanas. Não é difícil compreender como pensavam os europeus da época. Senhores do mundo e assentados naquilo que acreditavam ser o auge da civilização, olhavam para os outros povos convictos de sua total superioridade. A dominação sobre os povos nativos era não apenas uma consequência dessa superioridade, mas um bem que os europeus faziam aos povos ditos primitivos e selvagens. Estava, assim, justificada a dominação do branco europeu cristão sobre todo outro povo que não compartilhasse seus valores morais, seu progresso científico e suas crenças religiosas. É necessário frisar que, em razão das diferenças de aparência e de cor da pele, a superioridade do europeu era delegada à falsa ideia de que a raça branca seria superior às demais. Assim, esse outro, habitante dos territórios conquistados pelos europeus, estava classificado numa escala de um ideal de progresso, na qual o europeu estaria no topo da evolução e o indígena seria colocado no estágio mais primitivo e inicial. 30 Re vi sã o: G io va nn a - Di ag ra m aç ão : M ár ci o- 2 3/ 05 /2 01 4 Unidade I Veremos, adiante, como a ideia de evolução como progresso é totalmente falsa. Contudo, naquele momento do século XIX, era essa a visão preponderante e que veio a marcar fortemente o início da nossa disciplina. 2 o SurGImento do Ser HumAno O ponto central da nossa discussão é compreender o ser humano visto como espécie. Olhar para nós mesmos como uma espécie do Reino Animal implica nos reconhecer como animais que não se diferenciam, por princípio, de qualquer outro ser vivo do planeta. As diferenças, como já pudemos notar, estão relacionadas às características específicas do ser humano, como a simbolização e a produção de cultura. Para compreender melhor o ser humano, é fundamental olhar para as nossas origens. Vamos tratar do que a ciência fala sobre o surgimento da nossa espécie, pois olhar para as origens permite perceber não apenas aquilo que nos aproxima dos demais seres vivos, mas também o que nos diferencia deles e, portanto, nos caracteriza como humanos. Figura 8 – Crânio humano Sabemos que há outras maneiras de entender as origens humanas, principalmente, as de cunho religioso. Sendo o Brasil um país de formação cristã, embora essa não seja a religião da totalidade dos brasileiros, as ideias cristãs sobre a origem do ser humano estão profundamente arraigadas em nossa população. Para muitas pessoas, a explicação científica da evolução invalida a fé das pessoas na crença da concepção do ser humano por um Deus criador. O importante, entretanto, é perceber que as explicações científica e religiosa são de naturezas diferentes e não devem ser encaradas de maneira excludente. Para muitos teólogos cristãos, a Teoria da Evolução não elimina a fé na criação divina. Isso significa dizer que, para muitos cristãos, o conhecimento científico não elimina a fé religiosa. Além dessa visão bíblica, convém lembrar que existem outras religiões, inclusive, no Brasil, que compreendem a formação e o surgimento do ser humano de maneira diferente. Muitos se perguntam qual está mais correta, mas essa não é uma pergunta cabível para os pensamentos religiosos. Dependendo de a qual crença uma pessoa se apega, a visão mais correta será sempre aquela que estiver de acordo com sua religião. 31 Re vi sã o: G io va nn a - Di ag ra m aç ão : M ár ci o- 2 3/ 05 /2 01 4 História da antropologia Com relação ao conhecimento científico, contudo, ocorre de outra forma. A ciência não trabalha com a ideia de uma verdade única, absoluta. As verdades científicas são sempre históricas e contextualizadas. Nenhum cientista terá sua teoria aceita se não houver a concordância da comunidade científica, ou seja, do grupo de cientistas, independentemente das nacionalidades ou crenças de cada um deles. É isso que faz os conhecimentos científicos caminharem e avançarem tão rapidamente. O campo das origens humanas é propício para perceber esses embates. Não somente a discussão sobre as “verdades” religiosa e científica se dá de maneira muito calorosa, mas também no próprio campo da ciência, há múltiplas interpretações sobre o que teria ocorrido no nosso passado para possibilitar a formação dessa espécie única que é a humana, o que não invalida as descobertas científicas, pelo contrário. Não é pela coexistência de diferentes visões que podemos afirmar que a ciência esteja errada. O importante é que uma teoria ou outra estejam sempre baseadas em evidências e não sejam resultantes de mera elucubração de um indivíduo. Para a comunidade científica aceitar uma teoria, é preciso que seu(s) autor(es) demonstre(m) claramente quais são as bases que fundamentam suas afirmações. É possível termos concomitantemente duas ou mais teorias que procuram dar conta de um mesmo fenômeno? Sim. A comunidade científica não é um bloco homogêneo. Felizmente não o é, pois, do contrário, não haveria embate entre os cientistas, e a ciência não avançaria. No caso específico das origens humanas, é bom ter em mente que os cientistas trabalham com evidências bastante raras e dispersas (até recentemente, utilizavam os registros fósseis de nossos antepassados). Atualmente, além dessas evidências, eles utilizam elementos que vêm da Biologia, como os estudos do ADN (mais conhecido pela sigla em língua inglesa – DNA) e a comparação com outras espécies, como os chimpanzés. O importante é sabermos que se trata de bem poucas evidências. Podemos imaginar o cenário como um enorme quebra-cabeça, em que não dispomos do modelo original (a foto da capa do quebra-cabeça) e temos pouquíssimas peças para compor nosso quadro. Assim, preenchemos os espaços vazios com nossa imaginação, procurando, por meio de teorias, completar o máximo possível o que falta. Quando surge uma nova peça, como um novo fóssil, o quadro pode ser recomposto, e a teoria, modificada. Isso dá margem para que surjam diferentes hipóteses, das quais algumas vão se fortalecendo e outras vão sendo rechaçadas e abandonadas ao longo do avanço científico. Como já dito, isso tudo faz parte do processo científico. observação ADN ou ácido desoxirribonucleico (DNA, em inglês, de deoxyribonucleic acid) é um composto orgânico cujas moléculas contêm as instruções genéticas que coordenam o desenvolvimento e o funcionamento de todos os seres vivos e que transmitem as características hereditárias de todos os seres vivos a seus descendentes. 32 Re vi sã o: G io va nn a -Di ag ra m aç ão : M ár ci o- 2 3/ 05 /2 01 4 Unidade I Figura 9 – DNA Outra coisa importante é observar que o fato de poder haver duas ou mais teorias concomitantes e que elas possam ser questionadas não leva à eliminação da teoria em sua totalidade. Nenhum cientista acredita que um novo achado vá, um dia, eliminar a Teoria da Evolução e provar a criação do ser humano por um deus. Os novos achados arqueológicos podem aperfeiçoar as teorias sobre a evolução, possibilitando novas visões mais aprofundadas, mas não colocam em xeque o fato de o ser humano fazer parte de uma evolução. Em síntese, estudar as origens humanas não significa ser contra a religião, bem como ser religioso não implica a não aceitação da Teoria da Evolução. As pessoas que pensam o contrário acabam por ter visões fundamentalistas, tanto religiosas quanto científicas. 33 Re vi sã o: G io va nn a - Di ag ra m aç ão : M ár ci o- 2 3/ 05 /2 01 4 História da antropologia observação O termo fundamentalismo teve origem em correntes protestantes estadunidenses entre o final do século XIX e o começo do XX e denominou um movimento que buscava voltar aos princípios bíblicos considerados fundamentais. O sentido mais genérico costuma atribuir o termo a todo grupo religioso que se apega a seus dogmas como verdade absoluta sem abrir-se a um diálogo. Isso pode ser estendido também a alguns grupos científicos. Partindo desse preâmbulo, vamos agora nos aventurar na questão do surgimento do ser humano. Num primeiro momento, vamos nos deter nos pensadores que abriram novos horizontes nessa busca, principalmente, o naturalista inglês Charles Darwin. Em seguida, vamos procurar as bases da compreensão do ser humano como espécie. Por fim, olharemos para as teorias mais atuais sobre o surgimento do homem. 2.1 charles darwin e a teoria da evolução Figura 10 – Charles Robert Darwin A partir do incremento do pensamento científico, principalmente, após o século XVII, começaram a surgir várias indagações sobre os mais diferentes campos da natureza. Uma das grandes consequências da Revolução Científica foi a possibilidade de estudar as causas naturais de maneira separada das crenças e concepções religiosas. observação Por Revolução Científica entendemos as grandes transformações no pensamento ocidental que começaram no século XVI e se prolongaram até culminar na consolidação da ciência, ocorrida no século XIX. 34 Re vi sã o: G io va nn a - Di ag ra m aç ão : M ár ci o- 2 3/ 05 /2 01 4 Unidade I Até o século XIX, a natureza era vista como obra de Deus. Não havia preocupação nem necessidade de se buscarem outras causas para os fenômenos que rodeavam as sociedades humanas. A partir do Renascimento, entretanto, tudo mudou. A natureza passou a ser vista como um artefato independente e passível de ser estudado pelo ser humano – logo, as causas dos fenômenos naturais poderiam ser encontradas na própria natureza, e não nos textos sagrados. Isso fez o processo de conhecimento começar a mudar enormemente. No lugar da fé, aperfeiçoou-se o uso da razão investigativa. Longe de basear as conclusões nas palavras sagradas e na fé professada, os primeiros cientistas começaram a fundamentar suas ideias em pressupostos advindos da observação dos fatos empíricos. A natureza passou a ser vista como um mecanismo a ser desvendado. Contudo, vale notar que não se tratava de oposição à ideia de Deus, pois esse início da ciência tinha exatamente a intenção de conhecer a própria obra de Deus, a natureza. Isso não significava simplesmente aceitar o que falava a Sagrada Escritura, mas conhecer os mecanismos implícitos nessa natureza. Foi assim com o movimento celeste e com os processos físicos e químicos. Com o passar do tempo, esse processo científico de compreensão da realidade chegou também aos processos da vida, dando origem aos primeiros pensamentos da Biologia. Vários foram os pensadores preocupados com as transformações dos seres vivos. Um deles foi Charles Darwin, que foi, sem dúvida, um grande gênio. Contudo, é bom lembrar que nenhum gênio da ciência age isoladamente. O pensamento de um grande cientista é fruto de sua época, uma vez que cada pensador está sempre em constante troca de ideias com seus companheiros. O que faz a diferença é que um grande gênio consegue catalisar todo o pensamento existente em seu período e dar um salto qualitativo, propondo algo original, uma nova teoria e uma nova visão sobre o tema em questão. Darwin foi um desses casos, mas, antes dele, outros também o fizeram. Jean-Baptiste de Lamarck (1744-1829), naturalista francês, foi um dos primeiros cientistas a propor uma teoria sistemática da evolução. Já em 1809, no livro intitulado Philosophie zoologique, sem tradução para o português, apresentava sua hipótese, que consistia basicamente na ideia de que os organismos vivos se transformavam pelo uso ou desuso de determinadas partes do corpo, dada uma maior ou menor exigência delas. O uso constante de um membro e o esforço despendido, como as pernas saltadoras de uma rã, fariam, segundo sua teoria, que esse membro se desenvolvesse. No caso, a rã adquiriria pernas maiores, e essa característica seria passada a seus descendentes. Hoje sabemos que Lamarck não estava correto, pois o uso ou o desuso de partes de um corpo não é hereditário nem transmitido aos descendentes. Em outras palavras, não basta a um indivíduo exercitar seus músculos e formar um corpo de atleta para que seus filhos nasçam atletas musculosos. De mesmo modo, não basta praticar arte pianística para que seu filho nasça virtuoso no piano. No entanto, o pensamento de Lamarck foi fundamental para a compreensão da evolução dos organismos vivos. Charles Darwin (1809-1882) veio um pouco depois de Lamarck e desenvolveu uma teoria radicalmente diferente. Muito embora na época ainda não houvesse as descobertas da Genética e da transmissão hereditária, Darwin não aceitou a teoria de Lamarck e propôs a Teoria da Seleção Natural. Essa é a base da Biologia moderna e permite compreender que o surgimento do ser humano e sua evolução ao longo do tempo (até chegar ao humano moderno) não foi uma simples obra do acaso ou um acontecimento metafísico. 35 Re vi sã o: G io va nn a - Di ag ra m aç ão : M ár ci o- 2 3/ 05 /2 01 4 História da antropologia Para Darwin, os indivíduos de uma mesma espécie sempre apresentam pequenas variações entre si. Lembre-se de que apenas os gêmeos univitelinos têm um mesmo código genético. Todos os demais indivíduos são (alguns um pouco e outros mais) diferentes de seus irmãos, parentes ou demais seres humanos. Os indivíduos mais bem-adaptados ao meio têm mais chances de sobrevivência do que os menos adaptados, deixando, assim, um número maior de descendentes, e nisso está a chave para a compreensão da evolução: na adaptação. Os organismos mais bem-adaptados serão aqueles que sobreviverão e passarão seus genes aos seus descendentes. Pensemos, como exemplo, na postura ereta do ser humano. Esse talvez seja um dos elementos-chave para entender nossa diferenciação com relação aos demais primatas. observação Nossos parentes mais próximos, os chimpanzés e os bonobos, não têm a capacidade de se colocar e permanecer na postura ereta. Ao longo do processo evolutivo, alguns indivíduos tinham mais habilidade para ficar de pé do que outros. Se, em seu ambiente, essa posição significasse um ganho, esses indivíduos teriam maior chance de permanecer vivos por mais tempo e, assim, teriam mais descendentes do que aqueles que não ficassem em pé. Ao longo de muitas gerações, isso fez toda a diferença, e começaram a surgir cada vez mais indivíduos
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