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E a Gestalt emerge

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E A GESTALT EMERGE
Vida e Obra de Frederick Perls
Ana Maria Mezzarana Kyian
Editora Altana – São Paulo 2001
Este livro foi digitalizado sem fins comerciais para uso exclusivo de pessoas com deficiência que necessitem de leitores de tela para aceder ao seu conteúdo, não devendo ser distribuído com outra finalidade, mesmo de forma gratuita.
AGRADECIMENTOS
Viver é processo; o que faz desse processo um privilégio é a possibilidade de encontros genuínos, nos quais cada um de nós toca e é tocado pelo outro, naquilo que é mais sagrado... o coração.
Pela vida de abundância nos privilégios destes encontros, agradeço, agora e sempre...
Aos meus pais, Gaetano e Nair, e a vocês Vagner e Cláudia, que na entrega verdadeira configuraram minha existência com muito amor.
À Dra. Mitsuko Makino Antunes, mestra querida, referência de sabedoria, dignidade e respeito.
Ao Dr. Liomar Quinto de Andrade, pelo apoio incondicional, por acreditar em mim, por todas as oportunidades de crescimento, sempre no afeto.
Ao Xico Santos, editor e amigo querido, por tornar o sonho deste livro realidade.
A todos os clientes, pessoas queridas que num processo mútuo de escolha me tocaram e foram por mim tocados.
A todas as pessoas que de alguma forma habitam meu coração.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO	13
A PESQUISA
Método	17
Análise das articulações entre
a vida e a obra de Frederick Peris	21
A VIDA DE PERLS	23
Cronologia	32
A HISTÓRIA
OS PRESSUPOSTOS	101
Pressupostos filosóficos	103
Teorias de base	117
Experiências pessoais	134
A GESTALT-TERAPIA	149
O que é a Gestalt-terapia	
Conceitos centrais	
O funcionamento organísmico
O self em Gestalt-terapia	167
A neurose	174
Técnicas e “regras” em Gestalt-terapia	183
A CONFIGURAÇÃO	203
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS	211
APRESENTAÇÃO
É óbvio que o potencial de uma águia será realizado no vagar pelo céu, no mergulho para caçar pequenos animais, na construção dos ninhos.
É óbvio que o potencial de um elefante será realizado através do tamanho, força e desajeitamento.
Nenhuma águia quer ser elefante, nenhum elefante quer ser águia.
Eles “aceitam” a si mesmos, aceitam o seu ‘
Não, nem mesmo aceitam a si mesmos, pois isso poderia significar uma possível rejeição.
Eles se assumem por princípio. Não, nem mesmo se assumem por princípio, pois isso implicaria a possibilidade de serem d
Eles apenas são, eles são o que são, o que são...
Que isto fique para o homem: tentar ser algo que não o é — ter ideais que não são atingíveis, ter a praga do pe para estar livre de críticas, e abrir a fenda infinita da tortura mental.
Frederick Peris
APRESENTAÇÃO
Este livro constitui-se em relevante e preciosa contribuição à psicologia. Seu conteúdo está agora disponível a um público bem mais amplo que aquele que freqüenta a universidade e tem acesso ás pesquisas, dissertações e teses nela produzidas. Tantos trabalhos, de excepcional qualidade, são às vezes condenados às prateleiras das bibliotecas, quando deveriam correr o mundo e ser objeto de reflexão e discussão. Eis aqui o que deve ser comemorado com a publicação deste livro.
Será um privilégio para todos aqueles que se interessam pela psicologia ter acesso a este trabalho primoroso de Ana Kiyan. Todos indubitavelmente farão uma viagem inesquecível pelo mundo de Fritz, sendo ou não psicólogos ou estudantes de psicologia, profissionais que se dedicam ao estudo e à prática da psicologia fundamentada na Gestalt-terapia ou historiadores da psicologia.
Essa viagem, complexa e ousada, foi construída paciente e tenazmente pela autora que, agora, como guia, proporciona que nós mll os caminhos — nada convencionais e nem um pouco retos — da existência turbulenta e profunda de FerIs, articulada ponto-a-ponto com sua prática psicológica e sua obra escrita. Corno se isso só não bastasse, o leitor fará sua “trilha”; pisará com seus próprios pés o caminho e seus olhos terão à disposição 1 A PESQUISA toda a paisagem do mundo no qual Perls viveu.
Além disso, esta obra é necessária para que sejam compreendidos a envergadura e os fundamentos teóricos e, sobretudo, vivenciais da obra psicológica e humana de Perls, forjada na dor, na ousadia e na coragem de enfrentar o mundo e todas as suas convenções.
É importante ressaltar também que a pesquisa que forneceu os conteúdos para este livro foi calcada numa cuidadosa coerência com os pressupostos teóricos da Gestalt-terapia, constituindo-se numa belíssima exposição “ao vivo” do modo como essa abordagem concebe e trabalha o fenômeno psicológico. Mais que isso, ou por isso mesmo, os leitores poderão vivenciar a paixão da autora pelo personagem, pela obra e pelas idéias do também apaixonado Fritz.
Enfim, espero que muitos leiam este livro. Que muitos “vivam” este livro. Tenho a certeza de que aqueles que o lerem, por minha sugestão, virão me agradecer, assim como agradeço publicamente à competente pesquisadora e psicóloga e, principalmente, ao ser humano Ana Kiyan, o privilégio de ter ouvido a narrativa de sua viagem quase em tempo real. Há vivências que se perdem nas profundezas da memória, mas há outras tantas que certamente nos tornam seres mais humanos. Essa viagem promete (e cumpre) que não sairemos os mesmos.
Dra. Mitsuko Makino Antunes
MÉTODO
Esta pesquisa se justifica pela concepção de historiografia da psicologia proposta por Brozck, o qual nos fala da importância da sistematização do processo de estudo em história:
ao empreender a reconstrução do passado, o historiador identifica os vestígios para poder coletá-los, organizá-los, analisá-los e interpretá-los. Como não se pode registrar todos os acontecimentos, é indispensável a escolha das fontes relevantes para o estudo aprofundado. A arte do historiador manifesta-se precisamente nesse processo de identificação das fontes apropriadas para a reconstrução e a interpretação históricas, essência da historiografia. Por outro lado, apenas a crônica dos acontecimentos não é suficiente para fazer história. E preciso saber distinguir os indícios significativos , interpretando-os a partir de sua importância como registro da emergência de concepções teóricas duradouras. Assim, parte-se de uma hipótese que poderá vir a ser comprovada ou rejeitada à luz da evidência disponível é preciso levantar uma questão ao passado e buscar respondê-la, mesmo que seja pela negativa.” (Brozek, apud Brozek e Massimi, 1998, p.l
O referencial teórico adotado para a leitura da vida e da obra de Perls são os próprios conceitos da Gestalt-terapia; nesse sentido, é interessante notar que nessa abordagem existe a prevalência do presente sobre o passado, uma vez que tudo que há para ser trabalhado e conhecido em termos do funcionamento psicológico está disponível no agora. Esse aspecto não se relaciona a uma abordagem presentista em historiografia (Campos, apud Brozek e Massimi, 1998). Essa “presentificação” geralmente é apoiada no pedido do terapeuta para que o cliente fale de suas experiências passadas ou de sonhos no presente. Polster afirma:
As dimensões do passado e futuro dão reconhecimento àquilo que um dia foi e que algum dia será, formando assim limites psicológicos para a experiência presente, e um contexto psicológico que proporciona ao presente simbólico um fundo sobre o qual ele possa existir. O paradoxo é que ao mesmo tempo que uma preocupação com o passado e com o futuro é obviamente central para o funcionamento psicológico, comportar-se como se se estivesse realmente no passado ou no futuro, como o fazem muitas pessoas, poluem as possibilidades vivas da existência. (1979, p. 27)
É por esse motivo que Peris muitas vezes utiliza-se da narrativa no presente, pois o torna consoante com o pressuposto acima (o que a priori faz do relato um “relato gestáltico”), o que pode auxiliar na busca de um resgate histórico que contribua de alguma maneira para configurar nitidamente aquilo que ainda é Gestalt inacabada. Assim, pode haver
a presentificação do passado, e por conseqüência a conscientização do ocorrido, e não meramente a obtenção de dados que por si só não expressam todas as nuanças do contexto.
Acredito ser possível estabelecer uma relação dialética entre Peris, sua história e sua abordagem. Sua vida nos mostrará o movimento de construção de sua própria identidade e a retirada de subsídios, dela mesma, para a formação daquele que é o objeto primeiro dessa pesquisa: a Gestalt-terapia e seu criador.
Sobre a importância da relação do autor com sua obra, é Dunlap quem nos esclarece:
Que os conceitos psicológicos possam ser estudados em abstração das vidas daqueles que defendem os conceitos, e no entanto, os resultados do estudo terem algum significado sério, é uma idéia da qual devemos nos desiludir de uma vez por todas. Quando falo em “vidas” aqui, não me refiro aos dados biológicos abstratos, que muitas vezes passam como história de vida; falo das vidas no sentido da expressão grega Bios, que significa vida social. As Vitae abstratas dos indivíduos não têm significado em si mesmas, mas adquirem significado apenas no cenário social, econômico, religioso e de todas as outras características da cultura em que os indivíduos têm participado. (apud Brozek e Massimi, 1998, pp. 57- 8)
Para que este estudo seja possível, será utilizada a abordagem social, pois é nela que há “o pressuposto de que a compreensão histórica dessa área de conhecimento [ psicologia], implica em captá-la no bojo das relações que estabelece com o todo do qual faz parte, na dinâmica do movimento realizado no fluxo do tempo”. (Antunes, apud Brozek e Massirni, 1998, p. 363)
De fato essa abordagem pode se integrar à gestáltica, pois para ela há o pressuposto de que o todo é diferente da soma de suas partes, fazendo parte desse todo o campo onde o fenômeno está inserido.
Antunes segue explicando que a psicologia (e sua história) também é uma área de conhecimento produzida historicamente, “que expressa uma leitura da realidade, concretizada nas e pelas relações que estabelece com os fatores de natureza social, política econômica, cultural e científica, em geral”. (p. 363)
Como veremos, a vida de Perls transcorreu em um tempo histórico bastante conturbado. Devido à localização geográfica, viveu momentos sociais, culturais e políticos que certamente contribuíram amplamente para que sua vida se configurasse do modo como apresentamos durante o livro.
A relação dialética estabelecida com o mundo provocou mudanças marcantes em sua história pessoal, e assim ele também e.’
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pôde provocar no campo onde estava inserido mudanças que repercutem até hoje, ao menos para aqueles que escolhem essa abordagem como caminho profissional ou como psicoterapia. Antunes faz ainda um comentário acerca do homem Perls como, produtor de conhecimento (especialmente na psicologia) e sua relação com o meio: “Não se encontram as psicologias, seus produtores e reprodutores isolados temporal e espacialmente, e longe estão de qualquer neutralidade, ou acima das idéias e práticas que permeiam a sociedade da qual fazem parte”. (apud Brozek e Massimi, 1998, p. 366)
Muitas vezes foi possível que Perls ressignificasse o todo no qual se inseria, ao negar valores ou transgredir normas, mas ainda assim, sempre em relação ao que era dado pelo contexto histórico.
Parece haver uma dinâmica estabelecida que, antes de ser determinista, é determinada pela atuação existencial de cada ser, ou seja, uma gama de muitas possibilidades de atuação dentro do que é dado pelo contexto, seja ele de caráter mais amplo ou mais restrito.
Analisar assim a questão, parece trazer uma amplitude que por si só situa a análise em uma teia de fatos que não podem ser divididos e analisados separadamente, sem que haja prejuízo da compreensão do todo formado por essas mesmas partes. Um evento isolado torna-se, pois, uma possibilidade de restrita compreensão, à medida que carece de informações, ou melhor, de fundo contra o qual a figura a ser estudada possa delinear-se claramente.
Em Gestalt-terapia (novamente herança da psicologia da Gestalt!), a dinâmica estabelecida entre figura e fundo é que possibilita nitidez fenomenológica do olhar, permitindo um destaque daquilo que é mais importante no momento. Mas, ao recortarmos um fato, isolando-o, não corremos o risco de obter então uma figura “solta”, sem um fundo contra o qual se destaque ou delincie?
Essa é uma premissa utilizada no processo psicoterapêutico de abordagem gestáltica, mas por analogia, podemos aplicar esse mesmo processo para a compreensão de outros fatos, pois cada um de nós não deixa de ser história viva e em processo, que só pode ser apreendida integralmente em seu final, a partir das configurações que ela assumiu durante todo o período:
[ concebendo a história como produção humana coletiva, que se processa objetiva e dinamicamente no fluxo do tempo, cabe ao estudo histórico a compreensão e a explicitação do movimento e das relações travadas no interior da realidade que se busca conhecer [ (Antunes, apud Brozek e Massimi, 1998, p. 371)
As demandas sociais de determinada época são fatores relevantes para o surgimento de novas propostas e possibilidades. Esse aspecto torna-se bastante claro quando olhamos, por exemplo, para o momento histórico no qual a Gestalt-terapia foi finalmente reconhecida a despeito de décadas de tentativas mal-sucedidas para que ela fosse reconhecida tanto no meio da psicologia como no contexto mais amplo, Perls só pôde realizar seu sonho quando o contexto histórico e social o favoreceu, conforme veremos no desenrolar de sua história e da história da Gestalt-terapia como abordagem cm psicologia.
ANÁLISE DAS ARTICULAÇÕES ENTRE A VIDA E A OBRA DE FREDERICK PERLS
A fim de estabelecer uma inter-relação entre os fatos biográficos, suas conseqüências para a construção da Gestalt-terapia e, enfim, a trama tecida por Perls e seus desdobramentos, no contexto histórico em que foi inserido, utilizarei sempre que possível, três enfoques distintos:
• Vivência do fato por Fritz Perls, seus sentimentos e reflexões, relatados predominantemente em seu livro autobiográfico.
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• Referências bibliográficas, sobretudo Ginger e Shepard (dentre outros autores) que, além do fato em si, tecem comentários.
• Minha análise gestáltica do ocorrido, buscando compreender as articulações estabelecidas por Perls para a formação da Gestalt-terapia.
Para que o trabalho possa configurar-se da maneira mais clara possível ao leitor, será utilizado o seguinte recurso: corpo redondo para os fatos relatados à luz de Ginger, Shepard ou outro autor, e também para minha análise dos fatos e suas implicações; itálico para a narração de Perls.
Nosso ponto de partida para os fatos e sua análise estará calcado sobre a cronologia de Ginger. Não é uma escolha aleatória; deve-se a alguns fatos que considero importante registrar aqui.
Inicialmente, temos como material de estudo a vida conturbada e pouco registrada de um homem que viveu por muito tempo à margem da sociedade e à frente de seu tempo. Mesmo o material autobiográfico deixa ao leitor uma sensação de “vazio” entre um fato e outro ou sobre os motivos que o teriam levado a tomar determinada decisão.
Ginger e Shepard, num trabalho consistente, buscam completar as lacunas existentes nos relatos de Perls e, por meio de uma pesquisa aprofundada, procuram esclarecer ao leitor fatos que, juntos, configuraram sua vida.
Por isso, existem controvérsias em relação a algumas datas e acontecimentos, tendo Ginger optado pelos “recortes mais verossímeis [ do itinerário atormentado desse personagem fora do comum”. (1987, p. 46).
Como ponto de partida utilizarei o quadro cronológico de Ginger (1987, p. 47), que para efeitos didáticos subdivide a vida de Perls em sete períodos definidos conforme as localizações geográficas predominantes durante sua vida.
A VIDA DE PERLS
Não há ponte entre homem e homem... Pois estranhos somos e estranhos ficamos
Exceto algumas
identidades Em que eu e você nos juntamos.
Ou melhor ainda, onde você me toca
E eu toco você
Quando a estranhe se faz familiar.
Frederick Perls
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A narrativa abaixo baseia-se no livro Gestalt: Uma terapia de contato, de Ginger (1985).
Nasceu em Berlim, em 1893, num gueto judeu, Friedrich Salomon Perls, terceiro e último filho (único homem) de um casal judeu, “emocionalmente desajustado”.
Durante toda sua infância, o pai esteve muito ausente devido às constantes viagens a trabalho; tinha ele como características notórias “sedução, infidelidade, agressividade e soberba”. Sua mãe era judia praticante e nutria forte paixão pelo teatro e ópera; paixão essa que passou a ser de Fritz também.
A irmã mais velha, Else, era quase cega, e por isso bastante protegida pela mãe, o que gerou em Perls um ressentimento que iria perdurar por toda a vida. Anos mais tarde, a mãe e essa irmã morreram em um campo de concentração, e Fritz, segundo seu próprio relato, não derramou uma lágrima sequer. A segunda irmã, Grete, era um perfeito “menino” e manteve com o irmão uma relação mais próxima, chegando a morar com ele durante dez anos, após seu casamento.
Em 1906 (aos treze anos), foi expulso da escola por “conduta inqualificável” e passou então a vagar pelas ruas com um colega que o iniciou nas experiências sexuais com prostitutas; depois de um ano, voltou a estudar por vontade própria e na nova escola aumentou seu gosto pelo teatro, paixão que manteria por toda a vida e que influenciaria mais tarde a Gestalt-terapia.
Em 1916, outra experiência que marcou todo o seu modo de pensar: foi enviado ao front na Bélgica, e por nove meses participou da guerra nas trincheiras, testemunhando uma ocasião em que seus camaradas mataram um a um, a golpes de martelo, soldados inimigos intoxicados. Por ser judeu, acabou sendo perseguido e enviado aos postos de guerra mais avançados; sofreu intoxicações e acabou ferido seriamente na testa pela explosão de um obus.
Concluiu o curso de medicina em 1920, com titulação em neuropsiquiatria, mas na verdade, seu interesse maior continuava a ser o teatro.
Perls sempre demonstrou afeição pelos marginalizados e esteve envolvido com grupos de esquerda, contracultura, movi mento hippie e beatnik.
Em 1923 Perls partiu para os Estados Unidos a fim de tentar obter a equivalência americana para seu diploma de doutor em medicina na Alemanha, mas não conseguiu a convalidação por dificuldade com a língua inglesa; esse episódio levou Perls a criticar ferrenhamente a cultura americana até o fim de sua vida. Retomou à Alemanha bastante frustrado.
Já com 32 anos, em 1925, Fritz ainda morava com a mãe; aparentava mais idade e estava deprimido; foi quando encontrou Lucy, uma jovem casada que se tornaria sua amante. Essa experiência reanimou Perls.
Aos 33 anos, confuso com o excitamento e a culpa que experimentava com suas experiências (especialmente as de caráter sexual), decidiu fazer psicanálise com Karen Horney; imediata mente interessou-se por psicanálise e, seguindo a sugestão de Horney, deixou Berlim e Lucy, mudando-se para Frankfurt.
Em Frankfurt, no ano de 1927, trabalhou como assistente de Kurt Goldstein, que trabalhava com psicologia da Gestalt e distúrbios perceptivos.
Encontrou Lore Posner, psicóloga da equipe de Goldstein, e com quem manteve um relacionamento de três anos.
Retomou seu processo psicanalítico com Clara Happel, que após um ano “declarou-o” psicanalista e sugeriu que fosse exercer essa função. Mudou-se para Viena, onde conseguiu seus primeiros clientes.
No ano de 1929, apesar da oposição da família de Lore, casaram-se. Ele com 36, e ela com 24 anos.
Entre os anos 1930 e 1933, Karen Horney aconselhou-o a fazer análise com Wilhelm Reich. Esse trabalho surtiu mais efeito que todos os outros, e Perls passou a tecer por Reich uma profunda admiração, que acabaria por influenciar toda a sua obra.
Foi nesse clima que, em 1931, nasceu sua primeira filha, Renate, e após quatro anos (já na Africa do Sul), o segundo filho, Steve.
Financeiramente estava cada vez melhor, pois sua clientela aumentava a cada dia, mas a tomada de poder pelos nazistas mudou a situação.
Perls foi obrigado a fugir para a Holanda; Emest Jones (amigo e biógrafo de Freud) ofereceu-lhe trabalho na África do Sul.
Em 1934, Perls instalou-se em Johannesburgo, onde fundou o Instituto Sul-Africano de Psicanálise. Iniciou-se um período de muito trabalho e prosperidade.
No ano de 1936, aconteceu aquilo que viria a ser decisivo para sua ruptura com a psicanálise e para a posterior e ferrenha crítica a seu criador e seus métodos: o encontro tão esperado com Freud, em um congresso de psicanálise em Praga.
A essa decepção vieram juntar-se outras duas: a fria acolhida dos amigos psicanalistas, e mais particularmente de Reich, que teve que se esforçar para lembrar-se dele.
Em 1940 terminou seu primeiro livro Ego, Hunger and Agression
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(publicado em 1942 em Durban, África do Sul), que já deixava entrever as primeiras noções da Gestalt-terapia que viria a surgir efetivamente nove anos depois.
Em 1942, Perls alistou-se no Exército, servindo na África do Sul durante quatro anos como psiquiatra; em 1946, quando regressou, decidiu novamente abandonar tudo, seguindo para Nova York, onde acabou por estabelecer-se com a família. Com a ajuda de alguns poucos amigos, prosseguiu até o final de sua carreira psicanalítica (que durou 23 anos). Nessa época conheceu Paul Goodman, poeta e escritor que teria grande importância na vida de Perls e no surgimento da Gestalt-terapia.
Em 1950, surgiu o Grupo dos Sete, composto por Peris, Lore, Goodman, Isadore From, Paul Weiz (a quem Perls deve sua iniciação no zen budismo), Elliot Shapiro e Sylvester Eastman. Esse grupo estudava a fenomenologia, o existen cialismo e o zen budismo, além de articular os pensamentos da Gestalt-terapia.
Em 1951 foi lançado o livro Gestalt Therapy, de Perls, cm co-autoria com Goodman e Hefferline.
Em 1952, Perls e Lore fundaram o primeiro Instituto de Gestalt-terapia, em Nova York. Perls deixou o instituto a cargo de seus companheiros (especialmente Lore e Goodman) e começou a peregrinar pelos Estados Unidos a fim de divulgar suas técnicas e teoria; conseguiu muito pouco, embora tivesse passado vários anos nessa tentativa.
Perls estava cansado; corria o ano de 1956. Cardíaco e aos 63 anos, sentia que acabaria na obscuridade; isolou-se então em um pequeno apartamento às margens do golfo do México.
Em 1957, surgiu inesperadamente uma mulher que mudaria totalmente sua vida sombria: Marty Fromm, uma mulher de 32 anos e casada, que havia procurado Perls para fazer terapia. Manteve com ela um tórrido relacionamento, e redescobriu seus desejos de viver “sem amarras”, entregando-se ao uso de drogas e a momentos de “viagens” psicóticas profundas; concomitantemente, passou por duas cirurgias: de hemorróidas e próstata; Marty finalmente deixou-o.
Até 1960 viveu errante, e nessa época Jim Simkin (um de seus primeiros clientes) conseguiu ajudá-lo, convencendo-o a largar as drogas.
Em 1962 já com quase setenta anos, iniciou um período de viagens que se estenderia por dezoito meses, vivendo alguns meses em Israel numa aldeia de beatniks e depois no Japão, num mosteiro zen, a fim de entender melhor a doutrina.
Ao retomar dessa viagem, Perls instalou-se em uma propriedade na Califórnia, a célebre Esalen, que viria a tornar-se o centro de desenvolvimento e treinamento em Gestalt-terapia. Durante bom tempo, porém, os seminários oferecidos tinham baixa freqüência e eram pouco conhecidos.
Em 1965, após dois anos, os seminários da Esalen continuavam com pouca freqüência e Perls estava bastante debilitado fisicamente e bastante desanimado com seu projeto; foi então que encontrou Ida Rolf, que lhe aplicou uma série de cinqüenta massagens que lhe restituiu as forças e o ânimo.
Em 1967 iniciou o livro autobiográfico In and O lhe Garbage Pai! [ Fritz Dentro e J da lata de lzxol (publicado
em 1969).
No ano de 1968, com a crise do Vietnã e o surgimento do movimento hippie, afloraram na sociedade discussões relacionadas à liberdade, queda de tabus e direito à sexualidade; foi nesse contexto que Perls e sua Gestalt-terapia finalmente ganharam reconhecimento mais amplo.
Após tanto tempo de obscuridade, Perls apareceu em revistas de peso — como na capa da L — e acabou sendo eleito “rei dos hippies”.
Em 1969 lançou o livro Gestalt-therapy Verbatim, no qual constam vários fragmentos de seus seminários, que foram gravados; Perls, não contente, acalentava o sonho de ter um Gestalt-kibutz, onde se pudesse viver gestalticamente.
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Foi por isso que, em junho de 1969, comprou um pequeno hotel à beira do lago Cowichan no Canadá e se mudou para lá com cerca de trinta discípulos fiéis — ou, segundo Stevens (1970), vinte discípulos —, todos trabalhando e vivendo em comunidade.
Em 1970, após retornar de uma viagem de lazer, parou em Chicago para dirigir alguns laboratórios, e no dia 14 de março faleceu ali, de infarto. Na autópsia foi também constatado um câncer no pâncreas. Perls tinha então 77 anos.
Todos esses dados biográficos servem certamente para apresentar ao leitor os fatos que marcaram a vida desse homem, influenciando, de certa forma, a criação da Gestalt-terapia, resultado da comunhão entre história pessoal e profissional.
Esses dados, porém, deixam a desejar no que concerne a uma amplitude maior de suas vivências concretas e psíquicas, sendo estas últimas relevantes para a configuração de sua teoria.
Tentemos então um maior aprofundamento desses dados, através do próprio relato do autor em seu já célebre e confuso livro In and Out the Garbage Pau
Antes, apenas uma breve explicação sobre aquilo que chamo de “célebre e confuso livro”. Célebre, porque tem sido por meio dele que a maioria das pessoas toma contato com a Gestalt-terapia, o que pode ter contribuído para formar a opinião, corrente entre muitos, de que não se trata de uma teoria e sim de um emaranhado de considerações gerais sobre a vida e o comportamento humano, uma vez que não é possível encontrar em sua estrutura uma continuidade formal, uma seqüência lógica. Além do mais, a teoria é entrecortada por relatos pessoais, experiências vividas e reflexões sobre as mesmas; isso certamente é suficiente para classificar o livro, a grosso modo, de confuso, pois, embora seu caráter seja autobiográfico, a abordagem e sua construção é encontrada por todo o livro.
Ainda assim, com uma leitura mais apurada e reflexiva, é perfeitamente possível apreender a teoria, muito embora seja necessária uma sistemática complementação de leitura e estudo para que seja possível uma visão mais ampla e coerente dos seus pressupostos e técnicas.
O livro data de 1969, um ano antes da morte de Perls; talvez pressentindo o fim, ele “batizara” essa última obra com o subtítulo Dentro e fora da lata de lixo, fazendo clara alusão metafórica a sua própria vida como lata de lixo, na qual caos e sujeira conviveram por muito tempo, muitas vezes sem fazer sentido.
Não é por acaso que o relato nos traz a sensação constante de uma tentativa muitas vezes até dolorosa de fechamento de Gestolten, de apreensão da própria existência, com a necessidade de atribuir-lhe um sentido, talvez apaziguador.
Não foi em absoluto uma existência consoante com os valores vigentes, e a transgressão de normas sociais e até mesmo morais foram constantes. Lembremos o trecho do poema que dá nome a seu livro: “...Já basta de caos e de sujeira! Em vez de confusão sentida, que se forme uma Gestalt inteira na conclusão da minha vida...”.
É interessante notar como em muitos trechos da obra, ao explanar sobre um aspecto teórico mais específico, Perls o entremeia com considerações pessoais, “viajando” em sua própria trajetória e distanciando-se do tema abordado, ainda que o leitor possa vislumbrar uma inter-relação no eixo central do discurso.
Vejamos um trecho no qual fica clara a necessidade da exposição pessoal do autor:
• .Preciso escrever sobre mim mesmo.
Eu sou o meu laboratório
A privacidade de sua existência
Não é minha conhecida
Exceto por revelações...
E mais:
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• . .Ainda sou um autor brincando Com o ritmo das palavras, Tentando voltar ao tema relevante ,Que des discutir: (p2
Em outro trecho, podemos observar claramente seu espírito inquieto e até mesmo torturante:
Fritz descanse.
Você sofre demais.
Achou seu Zen, achou seu Tao
Descobriu sua verdade
E também para os outros você deixou claro
O crescimento sem fim, na honestidade.
O que mais você quer?
Ainda não basta? (p. 26)
Contudo, este “fervilhar” de emoções não pode ser atribuído a um momento específico de sua vida; lembremos que Fritz já veio ao mundo em uma família “conturbada”, na qual desencontros e agressividade faziam parte de sua rotina.
E é por esse motivo que analisar sua vida sob um enfoque gestáltico pode contribuir para a apreensão da abordagem como um todo, configurando-se a partir daí uma visão condizente com um dos pressupostos da própria abordagem, no qual as inter-relações estabelecidas entre as partes configuram um todo de sentido diferente da soma de todas elas.
A história de vida contém em si partes da teoria por essa vida composta e retumbam na existência de quem a escreve, estabelecendo-se então um ciclo continuo entre as partes.
CRONOLOGIA
A cronologia seguinte consta do livro de Ginger Gestalt, terapia de contato(1987).
PRIMEIRO PERÍODO
Vai do nascimento de Perls até os quarenta anos, compreendendo os anos de 1893 a 1933, vividos na Alemanha, Austria, nas cidades de Berlim, Frankfurt, Viena etc. (duração de quarenta anos).
Principais acontecimentos
Infância e adolescência tumultuadas, estudo de medicina (psiquiatria); Primeira Guerra Mundial.
Passa por quatro processos de psicanálise sucessivos, casa com Lore Posner e se estabelece como psicanalista.
Em 1933, aos quarenta anos, foge da Alemanha nazista para Amsterdã.
SEGUNDO PERÍODO
Compreende os anos de 1934 a 1946, de seus 41 aos 53 anos, quando vive na África do Sul, com um breve período inicial vivido na Holanda (duração de doze anos).
Principais acontecimentos
Instala-se como psiquiatra e leva uma vida bem “burguesa” e “mundana” em Johannesburgo.
É realizado o congresso psicanalítico em Praga e ocorre seu encontro com Freud (1936).
Publica Ego, Hunger and Agression, em 1942.
TERCEIRO PERÍODO
Vai de 1946 a 1956, e compreende a década de vida entre os 53 e 63 anos de Perls (duração de dez anos).
Principais acontecimentos
Trabalha como psicanalista de 1946 a 1950.
Formação do Grupo dos Sete; publica Gestalt-Therapy, em 1951 (aos 58 anos).
Criação do primeiro Instituto de Gestalt (Nova York, em 1952). Inúmeras viagens para apresentar a Gestalt-terapia.
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QUARTO PERÍODO
Vai de 1956 a 1959, abrangendo dos 63 aos 67 anos devida de j Perls. Passa-se na Flórida, Maiami e Califórnia (duração de quatro anos).
Principais acontecimentos
Deprimido e doente, se “aposenta”. Encontra Martv Fromm e retoma o gosto pela vida. Promove alguns seminários na Califórnia.
QUINTO PERÍODO
De 1959 a 1963, compreende dos 67 aos 70 anos, nos Estados Unidos e ao redor do mundo (duração de quatro anos).
Principais acontecimentos
Vagueia pela Califórnia, Nova York, Israel, Japão...
Permanece numa comunidade de beatniks, cm Israel, e num mosteiro zen no Japão.
SEXTO PERÍODO
Compreende o período dc 1964 a 1969, dos 71 aos 76 anos de vida de Perls (duração de cinco anos).
Principais acontecimentos
Reside em Esalen, onde promove seminários de demonstração e de formação.
Torna-se célebre por volta de 1968, aos 75 anos.
Publica Gestalt-/herapy Verbatim (1969) e Ia and Out lhe Garbage Pai! (1969).
SÉTIMO PERÍODO
Vai de junho de 1969 a março de 1970, quando Perls tinha 76/77 anos (duração de um ano).
Principais acontecimentos
Funda uma comunidade Gestalt Kibutz, num lago
em Cowichan (ilha de Vancouver).
Morre em Chicago, em 14 de março de 1970, aos 77 anos.
A HISTÓRIA
Dentro e/ara da lata de lixo Ponho a minha criação
Cijeia de vida, ou podre com bichos, Tristeza ou exaltarão.
O que tive de alegria e desventura. Será reexaminado;
Sentir-se sadio e viver na loucura, Aceito ou rejeitado.
Já basta de caos e de si Em ve de como são sentidas,
Que seja uma Gestalt inteira Na conclusão da minha vida.
Frederick Perls
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torno pesquisa histórica, esta obra está subordinada a urna abordagern teórico metodológica social em história da psicologia, o que — conforme vimos em método — implica que a contextualização histórica é fundamental para a compreender as partes que, juntas, participam da construção do todo.
Por partes, quero dizer o contexto histórico-social mundial no qual Perls viveu e no qual floresceu sua Gestalt-terapia; além disso, as “partes” certamente também estão subordinadas à história da psicologia, tanto a geral, como a do período específico de sua vida, de 1839 a 1970.
Em relação aos dados históricos da vida de Perls, Shepard (1977) adverte que existem insuficiências históricas devido à sua personalidade e em grande medida também aos transtornos causados pela Segunda Guerra Mundial. Além do mais, geograficamente, como veremos, Perls, por sua característica irriquieta, foi um “andarilho”, o que certamente dificultou a configuração total dos fatos.
Em sua vida pessoal, raras vezes parece ter compartilhado com outras pessoas acontecimentos do passado. Só conversando com gente que
o conheceu durante períodos determinados, me foi possível reunir Impressões acerca deste homem, sempre em mudança... (Shepard, 1977, p.).
É esse “todo” que pretendo expor da maneira mais próxima possível da realidade. Por “todo” entendo, nesse contexto, a própria vida do autor, incluindo sua caminhada pessoal e teórica, que culminou por configurar toda sua existência e abordagem.
Este estudo não tem como objetivo um aprofundamento teórico do estudo da história mundial, sendo relevante apenas os dados históricos como indicadores do contexto geral.
PRIMEIRO PERÍODO
O mundo
A fim de que possamos localizar historicamente o contexto histórico a que Perls esteve subordinado, retomaremos os fatos significativos que ocorreram pouco antes de seu nascimento, mais especificamente na Europa.
Com base em Pazzinato e Senise (1997), que discorrem sobre a história da época, determinamos como ponto de partida para a contextualização a Grande Depressão (1873-96), a primeira grande crise do capitalismo na Europa.
É cm meio a esse momento de transição e grande conturbação social que Perls vem ao mundo. A crise que assolava a Europa encontrou uma Alemanha (local de seu nascimento) fortemente organizada, o que levaria este país a assumir posição de destaque em relação a toda Europa e ao mundo.
A Grande Depressão foi causada basicamente pela retração do mercado consumidor europeu e pela superprodução. Bismarck, aliado aos empresários alemães (que monopolizavam as empresas em trustes e concentravam seu capital), conseguiu obter apoio para seus planos colonialistas, até porque havia também um interesse por parte da burguesia de expandir mercados fora do continente e controlar as fontes de matéria-prima estratégicas, o que lançaria o Reich na corrida imperialista. No entanto, esse movimento não encontrou respaldo popular e Bismarck acabou sendo destituído do poder com a ascensão ao trono do imperador Guilherme II, em 1890, cuja política de expansão pela força se apoiava basicamente no desenvolvimento bélico acelerado. Esse é o período do poder do II Reich, comandado por Guilherme II.
A Europa atravessava um período (1870-1914) que ficou conhecido como Paz Armada, pois os países conviviam pacificamente, mas cada um, a seu modo, procurava invés em subsídios bélicos e fortalecer suas tropas armadas, criando então um equilíbrio precário de forças entre as nações do continente.
Por essa época, a conquista do Oeste nos Estados Unidos estava sendo muito bem-sucedida, e após sucessivas ocupações de terras indígenas o povo americano, representado pelos colonizadores do Oeste, começou a investir pesadamente na agricultura. O país inflou-se de poder e orgulho perante as novas conquistas. Os Estados Unidos também encontraram uma possibilidade de fortalecer a economia e prosperar mediante forte investimento na indústria bélica, a fim de fornecer arma mento para a Europa, que silenciosamente armava-se esperando e preparando-se para o que depois foi pouco a pouco sendo escrito: a Primeira Guerra Mundial.
A Europa assemelhava-se então a uma grande panela de pressão.Foi adotada a adoção do serviço militar obrigatório, o aumento da influência do Exército na sociedade e na política de Seus países, a exaltação patriótica e cívica, bem como vários pontos de tensão entre países. Estava configurada uma situação extremamente perigosa, na qual o equilíbrio obtido não poderia perdurar — e não perdurou.
A Alemanha, sob o controle de Guilherme II, prosperou rapidamente em diversos setores industriais, passando a ameaçar
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a Inglaterra — que até então possuía a confortável situação de detentora do poderio econômico —, estabelecendo-se uma disputa pelos mercados externos de consumo e de matéria-prima.
Essa foi apenas uma das situações de conflito que contribuíram de forma marcante para o início da Primeira Guerra Mundial.
Estabelecem-se, então, alianças entre países e a guerra propriamente dita, que pode ser dividida em duas fases distintas: a guerra de movimento (1914), caracterizada por ataques frontais, basicamente dos alemães contra franceses, russos e belgas, forçando a Inglaterra a entrar no conflito, apoiando os países atacados. A partir disso as forças se equilibraram, forçando cada um dos países envolvidos a adotar outra tática de guerra, com planos de ataque e construção de trincheiras; delineava-se então o início de uma grande guerra que se estenderia por quatro anos.
Segundo Pazzinato e Senize (1997), o ano de 1917 encontrou um Exército extenuado.
[ disso, o conflito dizimava grande parcela da população civil e esgotava importantes recursos dos países beligerantes, o que provocou a revolta dos operários das nações industrializadas. Ocorreram greves gerais nas indústrias de armamentos e revoltas contra o serviço militar obrigatório. Os partidos socialistas europeus, que desde o começo haviam se colocado contra a guerra, passaram a articular propostas de uma paz sem vencedores.., tais propostas foram sistematicamente recusadas pelas potências, que as consideravam uma demonstração de fraqueza.... os Estados Unidos uniram-se à Entente e declararam guerra à Alemanha em abril de 1917 (devido à guerra submarina alemã, que ameaçava paralisar suas exportações, e a intenção germânica de atrair o México, prometendo-lhe ajuda na reconquista dos territórios anteriormente perdido para os americanos.) (p222)
Completamente isolada, a Alemanha não agüentou a ofensiva dos exércitos aliados comandados pelo general Foch, e Guilherme II abdicou, fugindo para a Holanda; além disso, o triunfo da Revolução Socialista (1917) levou a Rússia a afastar-se da guerra. Terminou a guerra e o Segundo Reich foi substituído pela República de Weimar, que em 11 de novembro de 1918 assinou a rendição incondicional.
Surgiram então os tratados de paz, que deixaram a Alemanha com um pesado fardo em relação às imposições do mundo. Pazzinato e Senise (1997) explicam:
As duras imposições dos acordos de paz impostos aos povos vencidos intensificaram as diferenças entre as nações, não resolvendo a questão básica da disputa imperialista sobre colônias e mercados. A participação de nações não européias no conflito assinalou a perda da hegemonia da Europa sobre o mundo, acentuando o crescente poderio dos Estados Unidos e do Japão [ Assim, a Primeira Guerra Mundial, que enfraqueceu a Europa em população e influência econômica, acabou por ressaltar as contradições do capitalismo.
Essas divergências foram se acentuando e acabaram por originar uma crise que culminou na Segunda Guerra Mundial em 1939. (p. 224)
Perls
Foi nesse contexto que, em 8 de julho de 1893, nasceu Friedrich Salomon Perls (que posteriormente americanizou seu nome para Frederick Perls) — num gueto judeu naquela Alemanha detentora de poder, odiada, temida ou respeitada pelo resto do mundo.
Ao relatar essa fase inicial da vida de Perls considerando o contexto sócio-político mundial, Shepard (1977) lembra que, ao nascer, Perls encontra um mundo desafiante e de excepcional interesse.
Era o tempo do Kaiser, dc uma Alemanha construída sobre o respeito e a cultura, a educação, a autoridade e a disciplina. Era uma terra de cidadãos e aristocratas, onde imperava tradições de urbanidade, serviço ao Estado, austeridade pública e dignidade pessoal. A Revolução Industrial não havia despojado o país de seus valores e beleza.
As raízes do “espírito de busca” e a amplitude de critérios de Fritz coincidiram com as mesmas circunstâncias de seu nascimento, pois tanto ele como sua família exemplificavam o “moderno” judeu alemão. (p. 26)
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Por “moderno” judeu alemão, entendo uma busca étnica de aceitação e muitas vezes negação explícita dos valores e dogmas morais e religiosos, a fim de propiciar uma inclusão cm outra cultura. Tanto é verdade que muitos judeus “negaram” suas raízes na tentativa de uma inclusão na sociedade alemã. Outros resistiram bravamente, cultuando seus costumes e religião.
A família de Perls pode então ser considerada “moderna”, já que aderia aos novos valores, incorporando aquilo que não era originário de suas raízes. Porém, segundo Shepard (1977), esse modo “moderno” de viver escondia um paradoxo, posto que sua mãe era judia praticante e “discreta”, e seu pai, Nathan, embora ativo na franco-maçonaria, também participava secretamente de cerimônias judaicas. Acerca da questão racial, Perls esclarece:
A família de Perls pode então ser considerada “moderna”, já que aderia aos novos valores, incorporando aquilo que não era originário de suas raízes. Porém, segundo Shepard (1977), esse modo “moderno” de viver escondia um paradoxo, posto que sua mãe era judia praticante e “discreta”, e seu pai, Nathan, embora ativo na franco-maçonaria, também participava secretamente de cerimônias judaicas. Acerca da questão racial, Perls esclarece:
Quando criança, presenciei uma (/esui da religião judaica. Os pais de minha mãe seguiam os cosi//mês ortodoxos. Uma família com fatos estranhos, juntas ve quentes e bonitos. Meus pais, e o meu pai, eram judeus, assimilados, isto é, um meio-termo entre ter ver do passado e apegar-se a costumes como ir ao templo nas grandes festas, caso houvesse um Deus por perto. Eu não conseguia estar de acordo com essa ín e bem cedo me declarei ateu. Nem ciência, nem natureza nem filosofia, nem ma, cons preencher o vazio de um lar espiritual Hoje sei que esperava que a psicanálise fizesse isso por mim. (19 77)
Essa rebelação pôde ocorrer por meio do contato inicial (na infância) de Perls com a religião judaica. Neste trecho isso fica claro:
A rel e o que se passava no templo não produziu em mim qualquer temor re. Eu achava estranho e peculiar o que as pessoas faziam , tirando o rolo de orações pelo seu santuário, e lendo numa língua estrangeira, com movimentos e voc Tivemos que aprender hebraico. Tudo era impessoal, com algumas poucas exceções (1969, p. 286)
Sua família consistia nos pais e duas irmãs mais velhas. Else, a mais velha, nascera com uma deficiência visual e, em grande parte por esse problema, tinha atenção especial da mãe, fazendo Perls nutrir um ressentimento que perdurou por toda vida. Por Grete Perls, ao contrário, sempre nutrira um afeto manifesto.
Ao completar três anos, a família de Perls mudou-se para o centro de Berlim, assumindo então a “modernidade”: havia luz elétrica e o apartamento era elegante, como convinha a uma moderna família alemã. Possibilidades do mundo capitalista passaram a fazer parte do cotidiano familiar.
Você diria que teve uma infância /ili ‘Decididamente, até a l, boca elo imaginário; eu da escola e ele da patinação no “ 1969, p. 211)
A mãe de Perls, Ameia, com essa nova maneira de viver, assumiu seu gosto por ópera e teatro, frequentando o mundo artístico de Berlim junto com seus filhos. Segundo relatos do próprio Perls (1969), foram “anos bons”, caracterizados por alegria e tranqüilidade.
Veremos adiante que o teatro passou a ser também apreciado por Perls, o que provavelmente o fez incorporar à sua Gestalt terapia técnicas como o monodrama, variação utilizada por Moreno no psicodrama.
Seu pai, Nathan, era um homem de “boa aparência” e, segundo Ginger (1985), tinha como características a soberba a sedução. Como negociante de vinhos, passava boa parte do tempo fora de casa, em viagens de negócios — ocasião que aproveitava para manter vários relacionamentos extraconjugais. Era militante ativo da franco-maçonaria e comportava-se dc modo diverso fora e dentro de casa. Devido ao temperamento de seu pai e das constante infidelidade conjugal, havia na casa de Perls um clima tenso, chegando muitas vezes a ocorrer agressões físicas entre o casal; mesmo assim, os primeiros anos de vida de Perls parecem, segundo seus próprios relatos, terem se passado com alegria e tranqüilidade (o quanto isso possa ter sido possível!).
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Até os nove anos de idade, sempre recebi muito apreço. Meus avós costumavam dizer ‘Ele é feito de tal matéria, que recebe amor de Deus e do Homem’ Devo ter sido realmente lima criança adorável. Afetiva, ansiosa por agradar e aprender. Longos cabe/os ondulados, que foram sacrificados para a Escola, sob protestos e lágrimas... (Perls, 1969 p. 284)
Mas, e isso é realmente interessante, à medida que a situação de seu país se conturbava, ele parecia adquirir esse mesmo movi mento em sua vida privada. Aos treze anos já não havia vestígio daquela criança meiga, que acatava as ordens dos pais e tirava excelentes notas na escola; tanto é que por essa época foi expulso da escola e iniciou uma vida de pequenas transgressões e rebeldia. A situação familiar também foi se agravando, o que provavelmente contribuiu para a rebeldia que se seguiria.
No trecho seguinte, vemos uma alusão à invasão do quarto que seu pai mantinha trancado, onde guardava material e livros relativos à maçonaria:
Gosto de pensar que meus dias de ruindade começaram quando eu invadi o quarto, e é mais provável que teu/iam começado com a transição da acolhedora escola primária para a estranha e rígida atmosfera do ginásio. (Perls, 1969 p. 284)
Ao recordar-se de sua família — embora expresse ressenti mento também em maior intensidade de conflitos. Para Perls, o pai era uma figura ambígua, e em seus relatos pode-se perceber claramente as polaridades entre seus sentimentos:
E/e adorava ser chamado de “orador”, e com lima larga faixa ar cruzando o peito, lima impressionante barba, uma figura poderosa, a aparência dele era realmente magnífica. (1969, p287)
Vale dizer que nos últimos anos de sua existência, Perls usou uma “magnífica” barba; e que os cabelos longos e brancos, Juntamente com as roupas exóticas usadas pelos hippies, lhe conferiam aparência quase mística.
Em outro trecho, podemos observar o ressentimento e a admiração mesclados em uma só recordação:
Basicamente eu o odiava, com seu pomposo ‘ estou certo ‘ mas ele também sabia ser quente e afetivo. Não sei di quanto da minha atitude era influenciada pelo ódio que a minha mãe nutria contra ele, o quanto ela envenenou a nós, os filhos. (l969,p. 288)
Talvez essa ponderação evidencie o fechamento de uma Gestalt inacabada em relação ao seu pai, e que o acompanhou sob forma de ressentimento por muito tempo.
Quando retornou à escola, Peris escolheu, junto com seu amigo Ferdinand Knopf, uma instituição onde a disciplina era mais amena e havia espaço para o teatro, com peças encenadas pelos próprios alunos, o que lhe agradava muito.
Ferdinand Knopf
teve grande importância durante sua adolescência, pois parece ter exercido certo poder sobre Perls; as decisões que tomava geralmente eram orientadas pelo amigo. Foi Ferdinand quem o introduziu no sexo, com práticas masturbatórias em grupo e visitas às prostitutas; desde então, e por quase toda a vida, Perls demonstrou grande interesse por sexo, e teve inúmeras experiências sexuais, inclusive as de caráter grupal e pelo menos uma homossexual.
Assim passou sua adolescência, errante entre as ruas de Berlim e a família, que, conforme seu relato, já o tinha como ovelha negra.
A Primeira Guerra Mundial veio encontrar-lhe na faculdade, cursando medicina, ainda que seu interesse primeiro fosse o teatro.
De novo, encontramos nas palavras de Shepard um motivo também “histórico” para sua graduação em medicina:
Embora seu primeiro amor fosse o teatro, essa atividade não resultava ocupação adequada para um jovem judeu de classe média que procurava abrir caminho para o mundo. (1977, p. 34)
Em 1815, foi enviado para Mons, na fronteira com a Bélgica, e ficou profundamente impressionado com a proibição de tratar de feridos ingleses, podendo apenas dispensar cuidados aos alemães.
Em 1916, Perls e seu grande amigo Ferdinand Knopf resolveram se alistar antes de serem convocados, posto que esse fato era eminente. No front, testemunhou os horrores da guerra, que segundo seus relatos (1969) o marcariam para sempre.
Em suas memórias, assinala os momentos difíceis pelos quais passou durante nove meses, questionando-se algumas vezes se os inimigos eram os ingleses ou seus próprios compatriotas, que não poupavam os judeus, reservando-lhes a linha de batalha. Parece ter questionado pela primeira vez sua identidade, uma vez que não se considerava judeu por convicção, mas porque era assim considerado por seus compatriotas alemães.
Fisicamente também sofreu abalos: certa vez (1916) sofreu intoxicação por gases e acabou seriamente ferido por um estilhaço de granada na testa. Havia muitos soldados sendo mortos a marteladas, após serem intoxicados por gases.
Bem lentamente estou voltando c? i’ida, exposto, mas ainda não muito, a desistir da morte, a morte tão preferível aos horrores, que eu já tivera êxito em endurecer e dessensibilizar, mas havia dois tipos de morte que eu não podia encarar. Uma era a dos comandos pós-ataque. Eles saíam das trincheiras /o que a /11/vem de gás atravessava as linhas inimigas. Tinham como arma uma espécie ele martelo elástico, com o qual e matavam qualquer pessoa que mostrasse sinal de vida... a outra ocorreu apenas uma vez [ finalmente as condições do vento parecem estar propícias. Abrir as válvulas. A nuvem amarela avança. De repente, um n O vento mudou de direção [ Talvez o gás entre nas (nossas) trincheiras! Vivi o que aconteceu ali muitas máscaras falharam. E muitos, muitos soldados recebem uma. dose de veneno quase fatal, e eu sou o único médico, e tenho apenas quatro pequenos balões ele oxigênio e todo mundo está desesperado por oxigênio e agarra o balão, e eu tenho que arrancá-lo das mãos destes para dar conforto a outro soldado. Em mais de uma vez tive a tentação de arrancar a máscara do meu rosto suado. (1 969, p. 1 80—1)
Por essa época, Perls (1969) recorda-se de uma das duas crises de choro compulsivo que teve em toda a vida: de licença, Perls retornou a Berlim, onde foi assistir à ópera Fígaro, no Real Teatro. O contraste entre a beleza daquele momento e os momentos horríveis passados em meio à morte e destruição levaram-no a sair do teatro antes do final da ópera, chorando compulsivamente.
Perls foi considerado áspero e pouco acolhedor por muitos, mas podemos perceber muitas vezes em seu relato a manifestação cálida de um homem sensível e emotivo:
Não chorei para valer muitas vezes; talvez só uma ou duas dúzias de vezes na minha vida inteira. Essas ocasiões ficaram sempre e de au de profunda comoção de pesar, e pelo menos uma vez dor insuportável [ . .J Adoro o pranto suave que acompanha o derretime,ita Com muita, muita vi que /ltia o derretimento de uma couraça r/ja e o emeggimell/o de sentimentos autênticos no meu me levam a uma amorosa rendição. As vezes há uma reação em cadeia de todo o quando o pranto se torna tão contagioso quanto o riso. (1969, p. 267)
De fato, a vivência das duas guerras parece ter causado em Perls profundas marcas. No relato a seguir, Shepard esclarece as conseqüencias da guerra na vida de Perls:
Um dos resultados de sua vida de soldado foi um certo entumecimento mental; passou por períodos de grande desapego, de despersonalização e durante anos perdeu a capacidade de ter imagens e fantasias interiores. Empreendia suas tarefas como em transe, sem preocupar-se com sua sobrevivência [ Quando em 1918 a Alemanha rendeu-se (Perls, que por essa ocasião já havia obtido um posto de oficial-subtenente médico e gozava de melhores condições de vida), seu batalhão teve que retornar imediatamente à base. Obrigado a marchar vinte horas por dia, e com comida escassa, a penúria voltou à sua vida.
[ A guerra havia custado à Perls seu melhor e mais íntimo amigo — Ferdinand Knopf; seus próprios sofrimentos, e o que presenciou, destruíram toda estabilidade pessoal, que havia alcançado antes de participar da guerra. A barbárie, o autoritarismo, as injustiças raciais e a dor que experimentou haveriam de ter um profundo efeito como
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fatores que incidiram na formação de sua existência, e que explicam, em considerável medida, por um lado seu tremendo humanitarismo, e por outro, sua profunda descrença na natureza humana. (1977, p3).
A partir de seu reingresso na sociedade, após a guerra, Perls parece desenvolver uma aversão pelo estabelecido socialmente, buscando em bares freqüentados pela esquerda, modos alternativos de pensar a sociedade.
Em relação aos anos do pós-guerra, Perls relata em seu livro autobiográfico:
A inflação do marco alemão já estava aumentando rapidamente, embora ainda não houvesse disparado. Alimentos, especialmente a carne, eram escassos. Naquela e a mui/ia habilidade de enxergar com perspectivas era um trunfo; assim como mais tarde adivinhei os perigos do campo de concentração e o turbilhão da Segunda Guerra Mundial, adivinhei a inflação. Não sei direito se a inflação alemã foi produzida artificialmente para eliminar nossas dívidas de guerra, mas suspeito disso. O fato é que o dólar subiu rapidamente de quatro para vinte marcos, e então cem, e então mil, e finalmente para muitos milhares, e depois disparou para milhões de marcos e acabou com o preço de vários bilhões. O valor do marco chegou próximo a “nada “ Tenho uma coleção histórica de selos alemães, desde os remos fragmentados até o império, passando pelo Terceiro Reich até a separação Alemanha Ocidental/Berlim/Alemanha Oriental Os selos da inflação ocupam vá rias páginas.
O papel moeda precisava ser carregado em sacolas. As pessoas se apressavam em comprar algo com o dinheiro ganho no dia, ainda na mesma noite, porque na manhã seguinte o valor já estava pela metade. As hipotecas não valiam sequer o valor do papel onde estavam escritas. (1969, p. 92)
Em outubro de 1923, Perls resolveu partir para os Estados Unidos, em busca de melhores oportunidades profissionais, já que a situação na Alemanha era extremamente difícil. Chegando a Nova York, trabalhou no Departamento de Neurologia do Hospital de Enfermidades Articulares; paralelamente, continuou seus estudos na tentativa de validar seu diploma de médico (que não era reconhecido nos Estados Unidos).
Não conseguindo disciplinar-se o suficiente, e também sentindo-se solitário (pois, além de seu comportamento pouco aceito pelos colegas, ainda não dominava a língua inglesa suficientemente bem), retornou a Berlim em 1924. Lá permaneceu por cerca de um ano, e depois, devido a um conturbado caso amoroso que manteve com uma enfermeira de nome Lucy, partiu para Frankfurt.
Era um local de interesse para Perls, pois ele sabia que Kurt Goldstein trabalhava na cidade com lesões cerebrais sob a ótica
da psicologia da Gestalt (Peris já havia lido sobre a psicologia da Gestalt, e o assunto o atraía, especialmente o conceito de figura e fruído).
Em Frankfurt, Perls conseguiu um cargo de assistente de Goldstein, no Instituto para Soldados com Lesões Cerebrais.
Nesse período, num dos seminários coordenados por Goldstein, Peris conheceu Lore Posner, jovem de 21 anos que estudava psicologia da Gestalt; a família de Lore era muito unida e de posses financeiras.
Talvez devido à discrepância entre idade, aparência e modo de viver, ela sentiu-se imediatamente atraída por Perls, e embora ele não tivesse intenção de manter nada mais sério, aos poucos Lore foi aproximando-se. Essa aproximação resultaria em casamento, algum tempo depois.
Naquela época Lore me pressionava para nos casarmos. Eu sabia que não era do tipo para casamento. Não estava loucamente apaixonado por ela, mas tínhamos muitos interesses em comum, e freqüentemente passávamos bons momentos juntos... (1969,p. 65)
Em 23 de agosto de 1929, a despeito das restrições da família de Lore (que posteriormente passou a chamar-se Laura, pois “americanizou” seu nome quando se mudou para os Estados Unidos), os dois se casaram; ele com 36 e ela com 24 anos.
Nesse primeiro período vimos que Perls teve uma infância e adolescência conturbadas, formou-se em psiquiatria e lutou na Primeira Guerra Mundial; casou-se com Lore Posner e se estabeleceu como psicanalista.
SEGUNDO PERÍODO
O mundo
A crise do capitalismo assolou, sobretudo a Itália e a Alemanha, onde começou então um movimento por meio da fundação de partidos nacionalistas, cujo resultado
Durante os duros anos do pós-guerra, instalou-se por toda a Europa uma violenta crise econômica. Toda a estrutura do sistema capitalista foi colocada em xeque, levando o continente a uma crise social de imensas proporções, que culminaria com a Segunda Guerra Mundial. O mundo exigia da Alemanha uma “reparação da guerra”, ônus que o país não tinha condição de pagar.
Não recebendo a indenização combinada, Inglaterra e França não encontraram meios para honrar dívidas adquiridas com os Estados Unidos, seu principal credor.
Nesse contexto, os Estados Unidos encontravam-se cm situação invejável, uma vez que haviam adquirido poder financeiro e prestígio ao fornecer armas e alimentos durante a guerra. Resolveram investir na reconstrução da Alemanha, a fim de que ela se reabilitasse e pudesse pagar suas dívidas.
Devemos lembrar que, nesse momento, a Rússia estava vivendo o momento pós-revolução e pela primeira vez as pro postas do socialismo estavam sendo colocadas em prática. Toda a burguesia européia e norte-americana temia um avanço do socialismo, e por esse motivo acabaram ocorrendo algumas transformações sociais, como o reconhecimento da igualdade de direitos políticos por meio do sufrágio universal.
Ao contrário do que acontecia com a Europa, os Estados Unidos começavam a viver sua época de ouro, consolidado no padrão do “modo de vida americano”, no qual o consumo era desenfreado e a vida material muito boa.
Esse estado de coisas, porém, não perdurou, pois a Europa adotou tarifas protecionistas, fazendo com que a superprodução de grãos dos Estados Unidos não encontrasse mais mercado, o que culminou na quebra da Bolsa de Nova York, em 1929.
Foi um conjunto de idéias superficiais, tendenciosas, mal-alinhavadas, e incoerentes. Essa incoerência era disfarçada pela propaganda, por grandes desfiles militares e manifestações populares que apelavam aos sentimentos patrióticos da massa, em favor da recuperação interna e da expansão colonialista. (Pazzinato e Senise, 1997, p. 247)
A ideologia desses partidos era o fascismo, na Itália, com Mussolini, e o nazismo, na Alemanha, liderado por Hitler. Pouco a pouco, o parlamentarismo foi sendo eliminado e esses dois partidos foram conquistando o apoio de muitos setores da população, inclusive o da burguesia; assim, a crise do capitalismo foi sendo resolvida a partir da instalação de ditaduras de direita, o que acabou por reforçar o desenvolvimento armamentista, preparando as condições para o surgimento da Segunda Guerra Mundial, em 1939.
Em 1 de setembro de 1939, as tropas nazistas invadiram a Polônia, e França e Inglaterra agiram em socorro de seu aliado, desencadeando a Segunda Guerra Mundial. No princípio a Itália declarou-se neutra. Essa guerra durou seis anos, trazendo devastação pela Europa e Japão, com a ofensiva dos Estados Unidos em 6 de agosto de 1945, com as bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki.
Na Alemanha, a perseguição aos judeus tornou-se cada vez mais acirrada, gerando um massacre de milhares de pessoas, a maioria judeus, aprisionados em campo de concentração.
Pe
Em 1931, casado com Lora e já com sua primeira filha Renate, Perls estava bem estabelecido em Berlim, trabalhando como analista. Porém a pressão contra os judeus começou a aumentar, e em abril de 1933, bem antes do início da guerra, Perls fugiu da Alemanha para a Holanda, deixando para trás tudo que possuía, exceto uma nota de cem marcos, que conseguiu esconder em um isqueiro. Lora e Renate permaneceram na Alemanha, aguardando o chamado de Perls.
Embora menos perigosa, em Amsterdam a situação estava igualmente difícil, e os judeus percebiam que também não havia segurança para eles na Holanda. Perls instalou-se inicialmente em um abrigo para refugiados judeus. Viveu de “caridade” por algum tempo, e conseguiu terminar sua capacitação em psicanálise com Karl Landauer, um analista refugiado que havia dirigido com Frieda Fromm-Reichmann o Instituto de Psicanálise de Frankfurt.
Após seis meses, já clinicando, conseguiu alugar um aparta mento sem calefação e chamou a família. Segundo seu relato, foi um tempo duro em que o frio e a fome eram constantes.
A vida na Holanda foi difícil especialmente depois que a minha família chegou e moramos naquele apartamento gelado, mima temperatura abaixo de zero. Não tínhamos permissão de trabalho. A valiosa mobília que finalmente conseguimos trazer chegou num carro aberto, seriamente danificada pela chuva. O dinheiro que recebemos pela mobília e pela minha biblioteca não demorou muito Lore teve um aborto, e a subseqüente depressão... (1969, p. 56)
Sobre esse momento, Shepard (1977) esclarece:
A situação piorou cada vez mais; não era permitido nem a ele nem a Laura trabalhar. Fritz levantava-se às cinco ou seis da manhã e Laura esfregava o chão, coisa que nunca tinha feito até então, especial mente em temperaturas muito baixas.
Raras vezes podiam comprar a Renate uma banana, que era para ela um “máximo luxo” [ Fritz sabia que deviam partir, afastar-se o mais rápido possível do eminente holocausto. Ernest Jones, que trabalhava duro para ajudar os analistas refugiados, ofereceu a Fritz a possibilidade de ir para a África do Sul. (p. 46)
Perls relembra esse momento, demonstrando nunca ter superado os momentos difíceis por que passou:
Vivi os terrores de Flandres, vivi injúrias de sobra, vivi aquela época na Holanda {. . . e ainda não consigo ser racional a respeito disso. Ainda é o arrogante auto-conceito: “Você não pode fazer isso comigo!”(1969, p. 104)
Perls aceitou a proposta prontamente e mudou-se para a África com a família. Prosperou, assumindo o papel de psicanalista ortodoxo, juntamente com sua mulher, Lore, em Johannesburgo. Permaneceu na África doze anos. Perls escreve sobre o momento da decisão de partir para a África:
Ernest Jones, amigo e biógrafo de Freud, fez um magnífico trabalho pelos psicanalistas judeus perseguidos. Ele tinha um pedido para analista em treinamento, em Johannesburg, Africa do Sul, consegui o lugar. Não pedi nenhuma garantia. Não só queria me safar da desesperadora situação em Amsterdam, como também previa o futuro. Disse aos meus amigos: está chegando a maior guerra de todos os tempos. Nenhuma distância é suficiente entre a gente e a Europa ‘ Naquela época eles me julgaram louco, porém mais tarde, me cumprimentaram pela previsão... (1969, p. 57)
Ao partir
para a África, Perls levava na bagagem o sonho de uma vida na qual o perigo e a perseguição não fizessem parte de seu dia-a-dia; estaria salvo daquilo que havia previsto e que de fato aconteceu: a Segunda Guerra Mundial.
Na África, iniciou imediatamente sua atuação como psicanalista e, junto com Lore, os preparativos para a instalação do Instituto Sul-africano de Psicanálise, cujo objetivo seria basicamente constituir-se como centro de capacitação de futuros psicanalistas. A inauguração ocorreu em 1935.
No prazo de um ano Perls e Lore haviam construído uma mansão no estilo Bauhaus num bairro elegante de Johannesburgo.
A invasão e o domínio do solo africano pelos europeus teve seu início muito antes da estada de Perls . Na verdade, após a segunda Revolução Industrial (1830) surgira o capitalismo monopolista, que acabou por gerar a extinção do trabalho escravo; mas Portugal, França e Inglaterra mantiveram poder sobre a Africa, na tentativa dc obter outras fontes de riqueza que substituíssem o tráfico de escravos. Assim, cada país tentou obter o domínio de um território africano.
Na Conferência de Berlim, realizada em 1885-87, o chanceler alemão Bismarck tentou estabelecer com outras nações regras de partilha da África. A partilha, porém, não contentou a todos, produzindo então um verdadeiro campo de batalha no solo africano. Embora subjugadas, houve reação por parte das tribos, ocasionando muitas mortes.
Com a divisão, a África do Sul (então formada por quatro colônias britânicas: Cabo, Natal, Transvaal e Estado Livre de Orange), ficou sob domínio britânico, perdendo sua independência em 1902. Havia na região colonos irlandeses denominados bôeres, que também sofreram forte pressão por parte dos britânicos e acabaram subjugados.
O processo de descolonização da Africa só teria início a partir de 1945, e até os dias de hoje não está totalmente concluído, gerando os conflitos atuais, como por exemplo a luta pela independência do Saara Ocidental.
O mundo estava cm guerra, uma guerra como jamais se havia visto antes; o domínio alemão e o genocídio praticado contra os judeus assumiam proporções aterradoras.
A Alemanha, aliada à Itália e ao Japão, e sob o domínio de Hitler, buscava a supremacia do mundo.
Durante doze anos, Perls fixou residência cm Johannesburgo, onde pôde desfrutar de uma vida de luxo. Durante esse tempo Perls manteve estreita amizade com Jan Christiaan Smuts, que conhecera anos antes. Ele era primeiro ministro da África do Sul e autor da teoria holística que posteriormente viria a influenciar o pensamento de Perls. (Ginger, 1985)
Quando a guerra de Hitler eclodiu, eu estava bem estabelecido em Johannesburgo, isto e; nós estávamos, porque Lire também tinha uma clínica.
(.. .J O Àfrika Corps de EJi1/er perambulava livremente pela África [ Uma divisão sul-africana foi capturada em Tobruck. Eu não sabia o que fazer. Meu dz de médico não era válido [ depois foi passada uma lei que reconhecia os dez estrangeiros durante a guerra [ então,fui aceito como oficial médico (1969, p. 110)
Esse período na Africa teve especial importância na construção embrionária da Gestalt-terapia.
Perls atendia seus pacientes no modelo psicanalítico ortodoxo. Financeiramente, tanto ele como Lore prosperavam cada vez mais.
Em 1936, partiu para Praga com um trabalho dc caráter psicanalítico na bagagem; tinha a intenção de contribuir com Freud, com um estudo acerca das resistências orais. Esse encontro com Freud redundou numa grande decepção e, aliado às outras decepções que essa viagem lhe causou — como a fria acolhida de Reich, a quem Pcrls atribuiu até o final da vida o mérito de ter sido seu melhor analista —, parece tê-lo impulsionado (junto com estudos que já vinha realizando paralelamente, sobretudo nas áreas do holismo, existencialismo e psicologia da Gestalt), a escrever e publicar em 1942 o livro intitulado Ego, Hunger and Àgression.N essa obra de inicia-se a abordagem da Gestalt-terapia, pois embora o livro tenha caráter psicanalítico é possível perceber nitidamente as primeiras discordâncias de caráter teórico e técnico.
Perls relata o encontro com Freud de maneira emocional, deixando entrever seu ressentimento:
O mestre estava lá, em algum lugar, no fundo. Encontrá-lo teria sido algo muito presunçoso. Eu ainda não havia conquistado tamanho privilegio.
Em 1936, eu julgava já tê-lo conquistado. Não era eu a mola-mestra na fação de um de se/is institutos, e não tinha viajado 6.000 km, para participar um de seus congressos? (Sinto coceira ao escrever seus congressos)
Marquei uma hora, fui recebido por lima senhora idosa (creio que era irmã dele) e esperei. Então uma porta abriu-se cerca de 70 centímetros, e ali estava ‘e diante dos meus olhos. Pareceu-me estranho que não passasse do batente da porta, tas na e eu não sabia nada sobre as fobias dele. “Vim da A do Sulpara iruma palestra e para vê-lo “.
“Bem, e quando você volta?’ disse ele. Não me recordo do resto da inversa [ Eu esperava uma rápida reação de mágoa, mas fiquei mera é’ente entorpecido. Então, devagarinho, devagarinho, vieram as frases guardadas: “Você vai ver— você não pode fazer isso comigo. É isto que ganho em oca da minha lealdade nas discussões com Kurt Goldstein “. (1969, p. 74-5)
Vale ressaltar a importância da decepção de Perls com Freud ara o surgimento da Gestalt-terapia. Durante inúmeras passagens [ seu livro autobiográfico Perls explicita seus sentimentos em eelação ao ocorrido em Praga e também deixa claro as polaridades [ sentimentos em relação a Freud.
Muito embora tenha demonstrado a partir desse episódio oposição antagônica ao pensamento psicanalítico, a ruptura foi gradual e não houve em momento algum a invalidação da importância da psicanálise para Perls.
Assumiria inicialmente uma crítica em relação à prática psicanalítica, que considerava obsoleta e demorada; além disso, assou a questionar cada vez mais a validade da compreensão os sintomas, pois achava que a compreensão da causa de determinado comportamento neurótico, à medida que explicava o motivo, poderia “autorizar” a pessoa a permanecer dentro do quadro neurótico apresentado.
Daí a importância para a Gestalt-terapia da compreensão o processo (a prevalência do como sobre o porquê).
A maior influência pessoal encontrada no trabalho de Perls, e certamente também movida por grande ressentimento, Di a psicanálise, ou melhor, foi Freud, cuja figura inicialmente e suscitava profunda admiração e respeito. Após a célebre decepção, em que o tão esperado encontro com o mestre foi profundamente frustrante, Freud acabou por tornar-se seu ferrenho opositor.
E interessante notar que o ressentimento tem grande importância na Gestalt-terapia; Perls afirma que esse tipo de emoção reflete uma dificuldade de comunicar-se, o que por sua vez gera uma grande e difícil situação inacabada.
Segundo Perls (1969), o ressentimento é a expressão mais marcante do impasse, e para que ele possa ser resolvido é importante poder expressá-lo. Ora, é exatamente isso que percebemos em relação aos ressentimentos de Perls, quer pelos pais, pela sociedade ou por Freud. Talvez a resolução criativa desses impasses tenham contribuído na construção de sua teoria.
Com Freud, tal observação parece estar bastante implícita, uma vez que tanto o ressentimento como sua resolução tiveram para Perls desdobramentos dramáticos.
Foi a partir desse desencontro que Perls questionou frontalmente a psicanálise, muito mais em seus métodos do que em sua teoria, muito embora em relação à teoria também haja explícita discordância. Tomemos um trecho de seu livro no qual esse ressentimento é claro:
Estou realmente começando
A me divertir agora
Especialmente escrevendo
Este revide venenoso
Contra a psicanálise
Pois, afinal, Freud, eu lhe dei
Sete dos meus melhores anos. (1969, p. 36)
Na verdade, a referência que Perls faz à perda de “sete de seus melhores anos” está ligada ao período em que Perls se devotou totalmente a psicanálise,
pois na ocasião do encontro com Freud seu objetivo era mostrar ao mestre um trabalho relativo a resistências orais, contrapondo o pressuposto psicanalítico ligado à base das resistências humanas nas resistências anais. Vejamos as observações pessoais de Perls ligadas a esse episódio:
Eu quis contribuir com a teoria psicanalítica, mas não percebi, na época, quão revolucionária era a palestra, e quanto ela balançaria e até mesmo invalidaria alguns fundamentos básicos da teoria do Mestre.
Muitos dos meus amigos me criticaram pela minha relação polêmica com Freud “Você tem tanta coisa a dizer a sua posição seguramente está fundamentada na realidade. Porque essa contínua agressividade contra! ? Deixe-o em paz e trate de suas coisas.”
Não posso fazer isso. Freud, si/as teorias, si/a influência, são importantes demais para mim. À minha admiração, perplexidade e vingatividade são muito fortes. Fico profundamente comovido pelo sofrimento e pela coragem dele. Respeito profundamente o quanto e/e, praticamente só conseguiu dispondo das ferramentas inadequadas da psicologia-de-associação e da filosofia mecanicista. Sou profundamente grato pelo tanto que evoluí levantando-me contra ele. (1969, p. 61)
Podemos observar nitidamente uma tentativa de resolver esse forte ressentimento, ou seja, o fechamento dessa situação inacabada; porém a resolução jamais chegou a ser concluída, embora acredite que Perls possa ter ao longo de sua vida colocado essa questão central cm um lugar “psiquicamente mais confortável”.
Esse conflito certamente foi fundamental para gerar toda a proposta da Gestalt-terapia. Foi no ataque, no ressen timento e na reação que a Gestalt-terapia encontrou seu berço de origem. Perls afirma:
Freud foi um cientista sincero, um escritor brilhante e descobridor de muitos segredos da “mente” [ mas a psicanálise é um projeto de pesquisa. (l96 167)
É evidente que todo um conjunto de fatores de ordem histórica e social, bem como o próprio respaldo teórico e filosófico de Perls, contribuíram muito para que essa teoria fosse concebida tal como a conhecemos hoje.
Além do ressentimento pessoal , Shepard (1977) relata a importância do contexto histórico e geográfico na construção desse material:
[ decidiu desenrolar suas idéias terapêuticas. Liberado pela distância geográfica, e pelo isolamento cultural dos outros psicanalistas, seu estilo psicoterapêutico se flexibilizou, tornando-se mais experimental e aberto. Fritz ampliou o trabalho que apresentara no congresso (de Praga, em 1936, quando encontrou Freud), incorporou os elementos úteis de seu trabalho com Reich e incluiu algo que sabia sobre pensamento existencial, e assim completou seu primeiro livro Ego, Hunger and Agression. (p. 51)
De janeiro de 1942 até fevereiro de 1945, Perls esteve na guerra como voluntário. Vivia algo que já conhecia, porém com uma diferença radical: agora estava engajado no Exército inglês, que lutava contra seu país, aquele mesmo que havia defendido na guerra anterior.
Em maio de 1945 retornou a Johannesburgo como oficial médico. Já não havia motivo para permanecer na África; devido às dificuldades causadas pela guerra, os pacientes de Perls e Lore já não podiam locomover-se até a mansão dos Perls. Mesmo mudando de casa, e deixando para trás a suntuosa mansão de outrora, os motivos fundamentais para a permanência de Perls naquele lugar foram pouco a pouco se esgotando: Jan Smuts, seu grande amigo, estava morto; o fascismo sul-africano avançava e havia um distanciamento afetivo de Lore que pouco a pouco os filhos perceberam.
Neste trecho, Perls deixa clara a sua posição em relação a Lore e aos filhos:
Não me sinto bem escrevendo sobre Lore. Sempre sinto uma mistura de defensividade e agressividade. Quando nasceu Renate, a nossa filha mais velha, Lore e eu nos achegamos milito, e até comecei a me reconciliar um pouco com o falo de ser um homem casado. Mas quando depois passei a ser culpado por tudo de ruim que acontecia, comecei a me afastar mais e mais de meu papel de pater familias. Elas duas viviam, e talvez ainda vivam, numa simbiose intensa, muito peculiar.
Steve, o nosso filho, nasceu na Africa do Sul e sempre foi tratado como imbecil pela irmã. Evoluiu na direção contrária. Enquanto Renate é falsa, ele é real, lento, digno de confiança, bastante fóbico e resistente em pedir ou aceitar qualquer apoio. Fiquei comovido, quando no último natal, recebi dele a primeira carta quente, pessoal... (1969, p. 302-3)
O ressentimento, termo tantas vezes utilizado por Perls para explicar figuras inacabadas e, por conseqüência, um funcionamento neurótico, pode aqui ser claramente percebido em sua vivência familiar.
Perls, que não pôde obter suporte emocional suficiente de sua família durante sua formação, parece também não ter conseguido suportar a dinâmica familiar estabelecida na constituição de sua família, quando de filho passou a pai e marido.
De novo, a presentificação de suas mémorias parece trazer-lhe subsídios para o fechamento de figuras que durante muito tempo permaneceram abertas, cristalizadas e sem resolução.
Encerravam-se naquele momento doze anos de história de Perls; aos 53 anos, uma relação familiar abalada, uma grande decepção em relação à psicanálise e as idéias principais da Gestalt-terapia já alinhavadas. Foi nesse contexto que Perls resolveu partir para os Estados Unidos, sozinho, mas com a intenção de chamar sua família após a instalação no novo país.
A crise se deveu à paralisação das atividades produtivas, sobretudo agrícolas, e ao desmantelamento da rede ferroviária européia, o que dificultava a saída da pequena produção remanescente [ Ao mesmo tempo, a drástica redução da população economicamente ati va, pelo grande número de baixas civis e militares, colocou obstáculos ao programa de recuperação do continente.
Esse panorama sombrio era agravado pela incerteza política que se instalara nas relações entre Washington e Moscou, desde a conferência de Potsdam, realizada de 17 de julho a 2 de agosto de 1945. Eram evidentes o antagonismo político ideológico e a mútua desconfiança entre americanos e soviéticos, bem como as divergências sobre a partilha territorial e as áreas de influência [ Caberia aos Estados Unidos e à União Soviética, que haviam saído do conflito como superpotências, decidir os destinos da Europa. (Pazzinato e Senise, 1997, p. 281)
Os ânimos continuaram acirrados até que, através do célebre discurso de Harry Truman no Congresso Norte-Americano em março de 1947, ficou declarada a animosidade entre os dois países, iniciando-se formalmente aquilo que foi denominado de Guerra Fria. A fim de barrar a eminente expansão russa, os Estados Unidos passaram então a oferecer ajuda à Europa, especial mente à Alemanha Ocidental, considerada porta de entrada para a ascensão da Rússia. Nenhum país do bloco socialista aceitou ajuda dos americanos, estabelecendo-se uma clara cisão entre a Europa Ocidental apoiada pelos Estados Unidos e a Oriental, em que o poder da Rússia predominava. O mundo passou então a “funcionar” dividido em dois blocos distintos: um capitalista e outro, socialista.
Mas como se configurava a vida nos Estados Unidos desde o momento em que Perls chegou até quase o fim de sua vida? Lembremos que durante dez anos (1946-56), Perls permaneceu em Nova York, partindo depois para Miami e Califórnia e que entre a fixação de uma residência e outra “perambulou” por outras cidades dos Estados Unidos e pelo exterior também, como o Japão.
Devido à posição de provedor da guerra, especialmente.
TERCEIRO PERÍODO
O mundo
A época do pós-guerra foi conturbada, trazendo grandes modificações no contexto econômico e político mundial.
Após 1945, a Europa, que fora palco das operações militares durante a guerra, viveu um período de estagnação econômica. Essa
de armas e alimentos, o pós-guerra acabou sendo uma época de extremo progresso e poderio por parte dos Estados Unidos, que eram ameaçados apenas pela Rússia, mas ainda assim detinham

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