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1 A Revolução Incompleta da Ordem Constitucional Global (Do original: ―Die unvollendete Revolution der globalen Verfassungsordnung‖ Texto da conferência para o programa de pós-graduação ―Constituição sem Estado‖ na Humboldt Universität, Berlin, apresentado em 2/5/2007) Prof. Hauke Brunkhorst 1 Tradução: Alexandre Krügner Constantino ―Revolução‖ é um termo essencial para se compreender a emergência da modernidade europeia. Na Europa Ocidental surge a sociedade moderna, mas sua origem não se deu pela diferenciação funcional, pela conversão da tradição no conhecimento discursivo especializado teórico e prático (Weber), e sim – apresento aqui minha primeira tese – pela diferenciação (em alto grau) da evolução social, em evolução e revolução. Na verdade, tudo é evolução 2 – até mesmo a revolução – mas somente separando a revolução do processo mais amplo da evolução, lograram os atores sociais compreender sua história como um processo de aprendizagem (Hesse) bem-sucedido ou não. Somente contra o pano de fundo da distinção entre revolução e evolução é possível a eles experimentar uma história objetiva e causal recontada como uma entidade própria e (pelo menos virtualmente) autogerada e, assim, uma história em transformação imputável às suas próprias ações 3 . 1 Hauke Brunkhorst é Professor Doutor na Universidade de Flensburg, Alemanha. De 1995 a 1997 foi professor convidado do Kulturwissenchaftlichen Institut des Wissenschaftszentrum NRW em Essen. Nos anos 90 publicou os seguintes livros: Der entzauberte Intellektuelle, 1990; Theodor W. Adorno. Dialetik der Moderne, 1990; Demokratie und Differenz, 1994; Solidarität unter Fremden, 1997; Adorno and Critical Theory, 1999; Hannah Arendt 1999; Einführung in die Geschichte politischer Ideen, 2000. Na presente década, publicou Solidarität: Von der Bürgerfreundschaft zur globalen Rechtsgenossenschaft, 2002, também traduzido para o inglês, Rückkehr der Folter: Der Rechtsstaat im Zwielicht, 2006, European Union as a Model for the Development of Mercorsur?: Transnational Orders between Economical Efficiency and Political Legitimacy e Rechts-Staat: Staat, interntionale Gemeinschaft und Völkerrecht bei Hans Kelsen, ambos de 2008. (Foi orientador do tradutor em seu período de pesquisas de doutorado na Alemanha entre 2006 e 2008. [N.T.]) 2 A palavra ―evolução‖ é empregada aqui em seu sentido literal, não naquele positivista, de que as etapas posteriores do processo histórico são ―superiores‖ ou ―melhores‖ do que as anteriores. O Positivismo, aliás, é criticado pela Teoria Crítica, da qual o próprio autor é um de seus expoentes contemporâneos. Para Brunkhorst, a revolução é apenas um momento da evolução social (―re-evolução‖), com a diferença de que a revolução é um momento de súbita lucidez dos processos sociais, enquanto a evolução social é um processo ―cego‖ e inercial. (N.T.) 3 Sobre a diferenciação entre evolução e revolução, ver: Hauke Brunkhorst, Einführung in die Geschichte politischer Ideen, München: Fink/ UTB 2000, 7ff; Brunkhorst, Evolution und Revolution – Hat die Evolution des politischen Systems eine normative Seite? In: K.-U. Hellmann/ K. Fischer/ H. Bluhm (ed.): Das System der Politik – Niklas Luhmanns politische Theorie, Wiesbaden: Westdeutscher Verlag, 326-335. Sobre a 2 Todas as grandes revoluções europeias e ocidentais – minha segunda tese – foram revoluções constitucionais e jurídicas 4 . Elas são, segundo Harold Berman, ―reconciliações dialéticas de opostos‖5. Nelas se combinam expectativas apocalípticas, propósitos escatológicos e esperanças utópicas com a análise científica sóbria das condições de sua realização e com o sentido jurídico de sua implementação institucional. Elas pretendem realizar, tanto em suas vertentes deístas quanto ateias, o reino de Deus na Terra, mas sabem que este objetivo não é realizável da noite para o dia, e sim somente através de um direito secular restrito e restritivo (begrenzendes und begrenztes irdisches Recht) 6 . As grandes revoluções possuem raízes religiosas e messiânicas, mas elas transformam o messianismo em uma prática institucional viável 7 . Não há revolução sem uma crítica radical da dominação, sem a expectativa de resgate de um mundo novo, uma nova Jerusalém, uma nova Roma, uma liberdade ilimitada, uma sociedade sem classes, uma paz eterna. Mas não há também qualquer revolução sem reformismo orientado por expectativas de êxito 8 . Não há revolução sem know-how jurídico, conhecimento profissional, inteligência organizacional e pragmatismo político 9 . A Carta das Nações Unidas promete a paz mundial, autodeterminação, igualdade e direitos humanos, mas também cria as sanções e os instrumentos jurídicos para implementá-los em condições de grande desequilíbrio de poder. Se existe uma unidade espiritual da Europa, então ela está na tensa e sempre precária unidade do direito e revolução. A revolução transformou o direito em um meio para a temporalização do eterno (Verzeitlichung des Ewigen). A revolução criou uma ordem jurídica cuja finalidade é o vir-a-ser imanente da transcendência (Immanentwerden der Transzendenz) 10 . A revolução é uma ruptura da Constituição e do terror apocalíptico, justificados por intenções duvidosas. Mas uma vez iniciada, ela embala em ―doces‖ sonhos mesmo o mais terreno dos filósofos, inspira um desejo de participação que beira a euforia. A doçura e o entusiasmo de diferenciação entre história e evolução: Jürgen Habermas, Geschichte und Evolution, in: Zur Rekonstruktion des Historischen Materialismus, Frankfurt: Suhrkamp 1976, 200-259. 4 Harold Berman, Recht und Revolution, Frankfurt 1991; Berman, Law and Revolution II: The Impact of the Protestant Reformation on the Western Legal Tradition, Cambridge MA 2006; a este respeito, finalmente também minhas próprias reflexões em: Brunkhorst, „Die Verrechtlichung des Sakralen: Webers Protestantismusstudie im Lichte der Studien Harold Bermans über die Bildung der westlichen Rechtstradition―, in: Leviathan 2/ 1997, 241-250. 5 Berman, Law and Revolution II, p.5 6 Berman, Recht und Revolution, p. 281, 296, 841 7 Berman, Recht und Revolution, p. 41, 50 8 Berman, Recht und Revolution, p. 530, 622, 649, 639, 790, 810 9 Berman, Recht und Revolution, p. 53. 10 Berman, Recht und Revolution, p. 262, 281, 296 3 que fala Kant, no final do século XVIII, entre 1795 e 1798, durante a Revolução Francesa, são sentimentos morais. Na verdade, a revolução não se constitui de nenhum ato moralmente justificado, mas ela é, enquanto revolução jurídica e constitucional – Kant assim se referiu a ela inúmeras vezes – um ―símbolo histórico‖ do progresso normativo ―para algo melhor‖11. O início da cadeia das grandes revoluções se dá entre os fins do séc. XI e começo do séc. XII, com a Revolução Papal 12 . A partir daí, a sociedade começa a ser ―moderna‖. Esta revolução, iniciada em 1075 com o dictatus papae, encerra-se em 1225 com o compromisso constitucional entre as partes papais e imperiais – a Concordata de Worms. Seu resultado intencional e, finalmente, consensual, era a constitucionalização e juridificação do reino de Deus e de seus corpos seculares. Aqui se inicia a história do direito constitucional ocidental moderno, cujo cerne é a normatização legal da relação entre poderes diversos, dos organismos políticos e jurídicos. Mas a revolução não é o mero resultado de ações planejadas, poder de açãocalculado e compromisso (mais ou menos) justo. Ela também sempre tem causas acidentais, episódios de variação evolutiva e seleção. Assim foi com a Revolução Papal, que dificilmente teria ocorrido sem a célebre descoberta casual, em 1050, em Pisa, do antigo e há muito tempo esquecido direito romano 13 . A revolução não tem apenas causas contingentes, tem também consequências imprevistas. Ela interrompe a história, mas não a evolução. Mais importante, a Revolução Papal não foi desejada e planejada por ninguém, e seu resultado – a diferenciação funcional do direito – não foi sequer percebida por seus contemporâneos como tal. O antigo 11 Kant, Streit 1977, p. 358 12 A seguir, concordarei em muito com Berman, especialmente em seu panorama sobre a sequência das grandes revoluções, com exceção da revolução do séc. XX, sobre a qual tenho divergências. Sobre a Revolução Papal: Heinrich Mitteis, Der Staat des hohen Mittelalters: Grundlinien einer vergleichenden Verfassungsgeschichte des Lehnzeitalters, Weimar 1962 (revolução constitucional); Norman F. Cantor, Medieval History, New York 1969; Berman, Recht und Revolution; Robert I. Moore, Die erste europäische Revolution. Gesellschaft und Kultur im Hochmittelalter, München: Beck 2001; Peter Brown, ―Society and the Supernatural: A medieval Change‖, in: Daedalus, Frühjahr 1975; Brian Stock, „Schriftgebrauch und Rationalität im Mittelalter―, in: Wolfgang Schluchter, Max Webers Sicht des okzidentalen Christentums, Frankfurt: Suhrkamp 1988, 165-183Guy Bois, Umbruch im Jahr 1000, Stuttgart: Klett-Cotta 1993; Wolfgang Schluchter, Religion und Lebensführung, Bd.2 Frankfurt: Suhrkamp 1991, 419ff. Knapp: Brunkhorst, Einführung in die Geschichte politischer Ideen, 88-157; Brunkhorst, Solidarität. Von der Bürgerfreundschaft zur globalen Rechtsgenossenschaft, Frankfurt: Suhrkamp 2002, Kap. I 13 É claro que poderia ter sido uma revolução com outro ponto de partida, pois a descoberta de Pisa não foi, é claro, o estopim e a causa da revolução. A revolução, via de regra, tem causas sociais, que são articuladas como uma experiência política fundamental de injustiça, a indicar negativamente a ausência de uma ordem jurídica consistente. 4 ordenamento jurídico (―Rechtsordnung‖) pré-moderno converteu-se, no séc. XII, em sistema jurídico (―Rechtssystem‖)14. A estabilização da Revolução Papal durante o séc. XII, em grande parte devido à nova autonomia do direito, assim prossegue nos 300 anos seguintes, quando do próximo grande abalo revolucionário, no séc. XVI. Mas a partir daí, os intervalos serão menores: mal os resultados de uma grande revolução se estabilizam, logo sucede outra, de forma que os intelectuais do séc. XIX se referem à sociedade moderna como uma sociedade em si mesma revolucionária. Marx afirmou, no período anterior a março de 1848, que a sociedade moderna não poderia existir ―sem (...) permanentemente revolucionar todas as relações sociais‖. Para Froebel Justus, na mesma época, a soberania parlamentar nada mais seria que uma ―revolução legal permanente‖. Em meados do séc. XX, o mais importante sociólogo americano, Talcott Parsons, descreve o desenvolvimento da sociedade como ―uma única cadeia de revoluções‖, e, no final do século, Niklas Luhmann assevera laconicamente que na sociedade moderna não é possível mais se distinguir ―estabilização evolutiva‖ e ―variação‖. Antes de abordar as revoluções legais do séc. XX, vamos dar uma rápida olhada na história subsequente das grandes revoluções. No séc. XVI, sucedendo a Revolução Papal, ocorre a primeira revolução no espaço alemão. Ela começa com as teses de Lutero de 1517 e termina com a Paz de Augsburg em 1555. Seus resultados foram estabilizados como o embrião do direito internacional em 1648 na Paz de Westphalia, em si mesma pouco inovadora. 15 Seus principais resultados foram assumidos, como nas revoluções posteriores inglesa e francesa, em toda a Europa, e mesmo lá onde a Contrarreforma (ou, mais tarde, a Restauração) havia triunfado. Marx falava, assim, de uma revolução de estilo europeu, e já Kant afirmara, a respeito da Revolução Francesa, que mesmo se ela fracassasse completamente, seria inesquecível. A Revolução Luterana ou Alemã do séc. XVI foi também uma revolução total, como a papal. Ela substitui o dogma das ―duas espadas de Deus‖ pela doutrina dos ―dois reinos‖, ―desjurisdificando o Céu‖ e transformando todo o direito canônico em direito secular do 14 Berman, Recht und Revolution, 129 15 Na Paz de Westphalia, a Paz de Augsburg, foi reiterada e, através da repetição, estabilizada, uma observação que já havia sido feita por Hegel: ―Em geral, uma revolução política é sancionada pela opinião das pessoas quando se repete. Assim, Napoleão foi por duas vezes preso, e por duas vezes expulsou os Bourbons. Através da repetição, o que de início parece aleatório e possível, converte-se em real e confirmado.‖ G.W.F. Hegel, Philosophie der Geschichte, p.323, o sublinhado é meu. Real (Wirkliches) e confirmado (Bestätigtes) possuem para Hegel, quando diferenciados de acaso, possibilidade ou (apenas) existente, sempre o sentido de realidade racional ou autêntica e também, portanto, de necessidade. Isso implica uma realidade e uma necessidade que incluem acaso e liberdade, despidas, porém, de sua cegueira e arbitrariedade pela suspensão (Aufhebung). 5 príncipe. Isto teve consequências jurídicas radicais. Elas vão desde o surgimento das monarquias constitucionais e a criação complementar de uma cidadania individualizada, não mediada pelo Estado, sobre a antiga unificação tópica de todo o corpus do direito em inúmeras Ordens, até a liberdade de consciência; além de um direito protetor (positivo) totalmente individualizado, e a transformação do direito internacional baseado na supremacia de alguma associações personalísticas num moderno sistema de Estados territoriais, com lei de imigração (cuius eius religio regional), lei da Reforma e, finalmente, a legalização da guerra. As revoluções jurídicas europeias são sempre revoluções do direito internacional ou então permanecem em estreita relação com seus novos desenvolvimentos, que mesmo ao deixar intacta a velha lei, preparam já os estopins das revoluções seguintes. Vejamos a Revolução Americana: produziu a autodeterminação dos povos, que apenas nas revoluções jurídicas do séc. XX seriam plenamente manifestas. Berman dá pouca atenção aos potenciais do direito internacional nas grandes revoluções europeias. Elas são, em particular no contexto das revoluções jurídicas do sec. XX, especialmente significativas. Assim, juntamente com a autodeterminação dos povos, a obra tardia de Kant Sobre a Paz Perpétua, um escrito do espírito da Revolução Francesa, constitui a base teórica, mais de um século depois, para a fundação da Liga das Nações. A segunda grande revolução protestante, a calvinista na Inglaterra (1640-1689), levou à abolição da supremacia do príncipe (luta de Locke contra a ―autoridade paterna‖). Seria o primeiro experimento em grande escala de uma república aristocrático-parlamentar (Cromwell), finalmente conduzindo a uma monarquia parlamentar constitucional e a um parlamentarismo aristocrático legislativo. O poder foi limitado, pela primeira vez, por um Parlamento soberano. A ele correspondeu a introdução dos direitos individuais igualitários (Bill of Rights), estritamente limitados aos ingleses (Rights of the Englishman). Foi introduzido um processo legal do Estado de direito, a unificação e codificação do direito contratual e a separação clara entre propriedade(Eigentum) e posse (Besitz). A revolução colocou também as ciências e a consciência política em movimento, e o ―povo escolhido‖ da Inglaterra inventou um direito historicizado e nacional (common law, doctrine of precedents) – e, assim, a primeira nação verdadeiramente moderna. A revolução protestante também teve causas acidentais que poderiam ter sido evitadas e produziu ―conquistas evolucionárias‖ (Luhman) não planejadas. Ela pretendia a 6 autoridade paternal ligada à Igreja do príncipe; foi-lhe dado o poder do Estado autointeressado – que assim, por muito tempo pareceu constituir o centro ―indestrutível‖ (Weber) do poder de conquista, conservação e desenvolvimento do sistema funcional político. Ela pretendia a ética protestante; foi-lhe dado o espírito do capitalismo, que, posteriormente, não mais precisaria dela. No final do séc. XVIII, seguiram-se à revolução inglesa duas outras grandes revoluções, a americana e a francesa. Elas tiveram também consequências previstas e imprevistas. Tais revoluções deram origem, pela primeira vez, a uma Constituição escrita baseada na autodeterminação igualitária e nos direitos humanos. Mas isso não impediu a ―evolução‖, o retrocesso dos direitos humanos a um direito burguês de homens brancos e abastados, e a constatação da aptidão funcional da Constituição para a estabilização de muitas formas de domínio hétero e autodeterminados. Os republicanos virtuosos da América e da França pretendiam a realização do Estado democrático de direito; receberam um Estado patife (Derrida). Pretendiam um Direito que fomentasse uma política democrática; receberam o acoplamento estrutural do direito e da política, que era, de toda forma, compatível com a dominação da classe burguesa e do bonapartismo, bem como com a democracia social. As revoluções do séc. XVIII foram, mesmo a americana, ainda revoluções europeias. Contudo, um legado efetivo onipresente da Revolução Francesa foi a teoria universal dos direitos humanos, que passa a exigir a exposição, plena de consequências, de uma justificação, ainda que precária (e no entanto, permanente e ―subversiva‖), para cada restrição decorrente de ―aperfeiçoamentos‖ jurídicos. Em contraste, a Revolução Americana desdobrou-se também, na praxis, rumo a um direito global, que se delinearia muito tempo depois. Sua mais importante inovação, a transpor pela primeira vez as fronteiras do Ocidente, foi seu caráter de direito internacional. A revolução americana introduz o direito igualitário dos Estados de conduzir guerras libertárias, segundo o já então democraticamente entendido direito de autodeterminação dos povos, uma protoforma, portanto, daquilo que é hoje conhecido como emerging rights to democratic government (Thomas Franck) ou inclusão democrática radical (Susan Marks), ambos discutidos no direito internacional. Não é a queda da Bastilha que está em suas origens, e sim aqueles direitos transnacionais expressos na Declaration of Independance. O presidente americano Wilson irá disseminá-la, mais tarde, como princípio jurídico internacional, e como tal consta até hoje na Carta das Nações Unidas 7 (Artigos 1° e 2°). Além disso, em complemento à separação funcional dos poderes, institui um federalismo democrático, um federalismo vindo de baixo, cujo poder sugestivo ainda não se perdeu mesmo na constelação pós-nacional dos séculos XX e XXI. Por fim, a revolução americana inaugura, ainda nos caminhos do Estado-nação, um continentalismo expansivo democrático, visando já, a princípio, à globalização da democracia num universo plural mais ou menos conciso de repúblicas unidas, possuindo ainda – da China até a União Europeia – a mesma aura exemplar. Isto posto, chegamos finalmente às revoluções jurídicas do séc. XX. No título desta apresentação, havia hesitado e deixado em aberto a questão de se a ―revolução incompleta‖ seria inacabada ou interrompida. Gostaria, agora, de negar ambas. O fato de o séc. XX ter vivenciado uma grande revolução jurídica parece-me pouco controverso. Comparando o atual sistema legal com o Estado legal parlamentarista burguês e com o direito internacional interestatal do séc. XIX, então as diferenças em todos os ramos do direito são pelo menos tão grandes como antes e depois da revolução protestante do séc. XVI ou de ambas as revoluções constitucionais do séc. XVIII, e a violência que criou uma nova ordem jurídica e social, no séc. XX, certamente não é menor do que nas revoluções passadas. Isto ensejou a ordem internacional atual, a proibição da guerra de agressão, a autodeterminação dos povos, os direitos humanos internacionais, aplicados somente após as terríveis guerras e conflitos civis 16 . Ainda que se suponha tudo isso mais estreitamente ligado à revolução jurídica do que usualmente se faz, e embora a implementação correlata (ver a seguir) do Estado de bem- estar social não tenha ocorrido por toda parte de forma violenta, ela assim de fato o foi pelas aguerridas lutas sociais, pelos inúmeros levantes sangrentos e por uma série de revoluções bem-sucedidas, bem como nos debates internacionais sobre as vias reformista ou revolucionária para a democracia social ou socialista, que acompanharam o séc. XX. Tais conflitos e debates foram semelhantes àqueles entre os jacobinos radicais e o partido moderado da Revolução Francesa, ou àqueles entre os líderes e porta-vozes intelectuais dos camponeses rebeldes e Lutero na época da Reforma. Com relação aos meios e estilo, a 16 A revolução não teria que, obviamente, correr de maneira violenta, e certamente percorreria um rumo diferente se ela não tivesse inimigos, como os nacional-socialistas alemães. 8 reforma republicana da Revolução Gloriosa de Cromwell, violenta e ditatorial, foi bem diferente e, no entanto, consistiu apenas de dois lados da mesma revolução. 17 Muito mais controversa do que os episódios violentos e as transformações decorrentes das revoluções é a questão de se, afinal, estamos lidando com uma única revolução ou uma série bem distinta delas, sendo assim, portanto, igualmente polêmica a questão da sua datação precisa. Harold Berman compreende, naquele sentido, as duas revoluções russas de 1905 e 1917, partir das quais se passou a operar, direta ou indiretamente, um padrão de transformação radical de todo ordenamento jurídico ocidental, por meio de normas sociais antidiscriminatórias e de bem-estar social. 18 No início do séc. XXI, sob o direito internacional e europeu, ninguém mais duvida (exceto alguns teimosos ―políticos da Realpolitik‖ e teóricos do imperialismo, para os quais nada em seu mundo mudou desde Tucídides), que ao longo do séc. XX houve uma completa ruptura com a ordem internacional da Pax Westphalia – em 1494 preparada, em 1555 estabelecida e em 1648 finalmente realizada, apenas modificada por conta dos grandes acordos posteriores (Congresso de Viena). Eu quero tentar, a seguir, sustentar que os dois lados da revolução jurídica, a social e a internacional, são dois lados de uma e mesma revolução, afirmando que ela, com a criação da Organização das Nações Unidas, foi completada. Mas nós estamos utilizando um espaço do desenvolvimento constitucional alternativo, negligenciado, que oscila – como depois da Revolução Francesa na Europa – entre os polos de um constitucionalismo não-democrático, constrangido pelo poder político, e um novo constitucionalismo fundado no poder democratizante da própria constituição. Este escopo alternativo foi negligenciado nas discussões políticas e jurídicas sobre direito mundial, governança supranacional e constitucionalismo global, e só recentementereapareceu de maneira mais contundente no centro do debate. 19 17 Berman, Law and Revolution II, p. 199 e 218. 18 Berman, Recht und Revolution, p. 46, 51, 57, 63, 66, 69; Berman, Law and Revolution II, p.16. 19 Christoph Möllers, Verfassungsgebende Gewalt—Verfassung—Konstitutionalisierung, in: Bogdandy, Europäisches Verfassungsrecht, Berlin, 2003, p.1; Jürgen Habermas, Der gespaltene Westen, Frankfurt 2004; Phillip Dann/ Zaid Ali-Ali, The International Pouvoir Constituant – Constitution-Making Under External Influence in Iraq, Sudan and East Timor, Max Planck UNYB 10/ 2006, 3ff; Nico Krisch, „Die Vielheit der Europäischen Verfassung, in: Die Europäische Verfassung – Verfassungen in Europa, Baden-baden: Nomos 2005; Ingeborg Maus, Die Errichtung Europas auf den Trümmern der Demokratie, in: Blätter für deutsche und internationale Politik 6/ 2005, 679-692; Brunkhorst, Globalising Democracy Without a State, in: Millenium 3/ 9 É possível datar a revolução jurídica mundial, como todos seus atos precursores, com alguma precisão. Em 1917, durante a Primeira Guerra Mundial, tiveram início as duas grandes revoluções jurídicas que, ao final, mas por um curto período de tempo, constituíram uma única revolução mundial, pelo menos na forma de uma coalizão de guerra. Ambas as revoluções, a russa em fevereiro e outubro de 1917, e a norte-americana, com sua entrada na guerra em abril desse ano, ocorreram de forma totalmente independente uma da outra, um ―acidente evolutivo‖, e seus líderes, protagonistas e partidos não poderiam ter procedido de maneira diferente. Seus interesses coincidiam em algumas áreas, mas eram hostis em outras. No entanto, ao final, deu-se uma revolução. Ela terminou em 26 de junho de 1945 com a fundação da Organização das Nações Unidas em São Francisco. Gostaria de tecer alguns breves comentários sobre as semelhanças entre o início simultâneo e curso inicial das revoluções: (1) primeiramente, a revolução russa e sua expansão intencional e não intencional rumo a uma revolução mundial socialista; (2) em seguida, a revolução jurídica internacional, cada vez mais ligada à questão social, que ao fim da Segunda Guerra Mundial, em poucos anos, (3) ensejou a criação de todas as instituições constitucionais dos países democráticos, fundamentais para o êxito da criação de um direito e cidadania globais, de uma política global e de um processo de estatização (incluindo a socialização da política e disseminação do Estado de bem-estar social globais) sem precedentes. (1) O sucesso dos bolcheviques em outubro de 1917 está intimamente relacionado ao curso da Primeira Guerra Mundial, com o qual o longo séc. XIX termina e se inicia o séc. XX. Mas a Revolução Russa era ainda uma revolução jurídica europeia, desde o início planejada, porém, como uma revolução mundial e organizada para este fim, mesmo quando, mais tarde, teve de recuar em face da persistência dos Estados-nação quanto ao plano de um modelo de socialismo único e de uma revolução mundial, que deveria decompor-se numa série de revoluções nacionais. A Revolução Russa tinha primeiramente objetivos de política social, econômica e pedagógica, as quais, porém, como todas as grandes revoluções, 2002, 675-690; Brunkhorst, Demokratie in der globalen Rechtsgenossenschaft, in: Zeitschrift für Soziologie. Sonderheft Weltgesellschaft 2005, 330-348. 10 acabaram por englobar a totalidade das relações da vida social. 20 Ela provavelmente foi responsável pelo maior número de vítimas do que qualquer revolução anterior. Mesmo os Estados Unidos, quando declararam guerra à Alemanha em 1917, tinham em vista uma revolução jurídica global. Seu foco estava no direito internacional, mas não se restringia a isso, e a revolução por eles desencadeada e levada a cabo deveria rapidamente se espalhar por todas as esferas da vida e também absorver a provocação sócio-política e econômica da revolução russa. A entrada dos Estados Unidos na I Guerra não apenas determinou o fim do império alemão, mas imprimiu à guerra, como um todo, uma mudança revolucionária em sua direção. Do lado dos poderes ocidentais, a entrada dos EUA na guerra significou não mais apenas a sobrevivência e vitória das nações envolvidas, mas, relacionada a isto, a concretização dos objetivos revolucionários globais de distribuição e expansão da democracia, da autodeterminação jurídica dos povos, da proscrição da guerra de agressão e da fundação da Liga das Nações. A I Guerra Mundial foi compreendida, pelo presidente americano, o kantiano Wilson, e pelo líder da Revolução de Outubro, o marxista Lenin, sob perspectivas distintas, como o início de uma revolução mundial. Kantianismo no direito internacional e marxismo na política econômica e social eram, ao tempo da I Guerra, as ideologias correntes, e a prevalência dos escritos sobre a paz de Kant, de 1798, no direito internacional da época da guerra foi quase a mesma, em significado, que O Capital de Marx para a política econômica e social.21 Wilson pretendia transformar o direito internacional conforme o plano de Kant nos escritos sobre a paz e unificar os povos, sob o signo da autodeterminação jurídica, numa 20 Acerca do caráter totalitário da revolução americana (também enquanto revolução cultural total,), ver a obra, concisa e instrutiva de Gordon S. Wood: The American Revolution, London 2003. 21 Mais recentes: Oliver Eberl, Demokratie und Frieden. Kants Friedensschrift in den Kontroversen über die Gestaltung globaler Ordnung, Diss. Univ. Bremen 2007, 7ff, 73ff.; Peter Hoeres, Kants Friedensidee in der deutschen Kriegsphilosophie des Ersten Weltkrieges, in: Kant-Studien 93, 2002, 84-112. Sobre os debates daquele tempo: Ludwig Stein, Das Ideal des „ewigen Friedens― und die soziale Frage, Berlin 1896; F(ranz). Staudinger, Kants Traktat: Zum ewigen Frieden. Ein Jubiläums-Epilog, in: Kant-Studien 1, 1897, 301-314; Hans Vaihinger, Eine französische Kontroverse über Kants Ansicht vom Kriege, Kant-Studien 4, 1900, 50-60; August Messer, Krieg und Menschheitsidee, in: Die Tat 7:2, 1915/16, 779-783; Moritz Kronenberg, Zum Thema ‚Kant und der ewige Friede’, in: Das Freie Wort 15, 1915, 271-278; Hermann Cohen, Vom ewigen Frieden (1914), in: Werke, Bd. 16, Hildesheim/Zürich/New York 1997, 311-318; Leonard Nelson, Vom Staatenbund, in: Leonard Nelson/Heinz-Joachim Heydorn (Hg.), Ausgewählte Schriften, Frankfurt/Main 1992, 158-168; Karl Vorländer, Kant und der Gedanke des Völkerbundes. Mit einem Anhange: Kant und Wilson, Leipzig 1919; A. C. Armstrong, Kant’s Philosphy of Peace and War, in: The Journal of Philosophy, 28:8, April1931, 197-204. 11 grande liga de Estados democráticos. 22 Lenin pretendia revolucionar as relações sociais e erguer um império global social-democrata, primeiramente na forma de Estados ditatoriais, para em seguida aboli-los. A Liga das Nações de Wilson fracassou, mesmo obtendo algum êxito, e suas inovações jurídicas lograram alguma eficácia instrutiva. Somente com o Pacto Briand-Kellog, ao final dos anos 20, foi dado um passo realmente importante para a instauração de uma nova ordem jurídica internacional, e a guerra de agressão, pela primeira vez, foi de fato proscrita (e não apenas como no caso específico do Tratado de Versailles). Mas no lugar de novas democracias, entraram em cena novos regimes autoritários e fascistas, que geraram outra guerramundial. Por esses idos a Rússia afundava no totalitarismo stalinista, mas na América vivia-se a expansão de uma democracia de massas sem precedentes em sua história. Sob a batuta do presidente social-democrata Franklin D. Roosevelt, completou-se a maior reforma revolucionária desde a guerra civil e a abolição da escravidão, o New Deal dos anos 30, pelo qual os EUA se converteram num Estado burocrático social fortemente centralizado, com uma política interna suportada pelo direito administrativo.23 Roosevelt pretendia conduzir, da mesmíssima forma que seu predecessor na I Guerra (contra uma maioria inicial de políticos contrários à guerra, em seu país), a guerra enquanto guerra revolucionária; unificar a comunidade dos povos, em ruínas, sob o signo da democracia, num só mundo (One World). Com a entrada americana na II Guerra, o objetivo revolucionário de guerra tornou-se, em nome da democracia e dos direitos humanos, e em prol da criação de uma ordem jurídica mundial completamente nova, o tema central da ordem mundial pós-guerra. A fundação deste novo mundo teve início já durante a Guerra. (2) Também os objetivos do projeto leninista, a princípio, não puderam realizar-se. Ele logo foi sucedido pelo terror totalitário de Stalin, no qual os direitos e a reforma social praticamente não desempenharam nenhum papel. Mas após a morte de Stalin, o impulso constitucionalista dos primeiros 12 anos da Revolução Russa tornou-se eficaz na União 22 Sobre Wilson e Kant: Gerhard Beestermöller, Die Völkerbundidee, Stuttgart 1995 23 W. Seagle: The Quest of Law, New York 1941. 12 Soviética. Nos 50 anos seguintes, as três principais inovações legais da revolução foram implementadas em uma ampla frente24: a) Os direitos civis de igualdade foram amplamente reinterpretados como direitos antidiscriminatórios (igualdade de tratamento independentemente de classe, raça, etnia, nacionalidade, gênero, idade, etc.). b) O planejamento, gestão e regulação centralizados, conhecidos da economia de guerra da I Guerra Mundial, serviram para a construção de um Estado social economicamente planificado. c) Um direito paternalista-pedagógico de socialização e controle de comportamentos igualmente inovador, visando uma ―alteração de personalidades‖ (Luhmann), foi aprimorado. Berman fala de um ―direito paternalista‖, do papel ―acolhedor‖ e ―educacional‖ da lei. Ela serviu para transformar a União Soviética em um Estado de socialização e de formação educacional. 25 Estes direitos, leis e instrumentos legais foram, frequentemente, implementados por meio do terror, e, em larga escala, fez o Direito ser reinterpretado na forma de deveres oficiais. A revolução ditatorial organizada se impôs sobre o princípio constitucional do centralismo democrático após os primeiros experimentos fracassados e reprimidos de democracia popular. Estes apenas serviram de fachada retórica e propagandística de legitimação, através da ―vontade popular‖, não de um ―Estado de Direito‖ (Herrschaft des Rechts), mas de um ―domínio por meio do Direito‖ (Herrschaft durch Recht ) – mesmo em seu período não-totalitário antes de 1930 e depois de 1950 26 – em todo o continente 24 Sobre o tema, a seguir, o curto esboço de Berman, Law and Revolution II, 16ff. Ausführlicher: Berman, Justice in the USSR, Cambridge MA: Harvard Univ. Press 1963, bes. 277ff. 25 Para um surpreendente paralelo entre o direito educacional soviético e o código puritano Bay Colony de Massachussets ―Corpo de Liberdades‖ de 1641: Berman, Recht und Revolution, 64f. 26 Para uma nítida demarcação da pré- e pós-União Soviética totalitária: Hannah Arendt, Die Ungarische Revolution und der totalitäre Imperialismus, München: Piper, 1958, 20; ver o prefácio de Arendt em: Elemente und Ursprünge totaler Herrschaft, München 1991. Sobre a diferença entre Lenin e Stalin, Arendt enfatiza: ―Quando Lenin morreu, muitos caminhos ainda estavam abertos. As novas formações de classe não precisavam necessariamente conduzir a Europa a uma luta de classes característica e a um desenvolvimento claramente capitalista, como a extrema-esquerda temia; o sistema burocrático de partido único, por sua vez, também não precisava conduzir automaticamente para o socialismo. A agricultura, em particular, teria provavelmente ido tão 13 eurasiano, e que com este propósito produziria um vasto exército de advogados de formação acadêmica que criaram inúmeras jurisdições inéditas e inovadoras, em seu mau sentido. A terrível ausência do Estado de Direito, que parece persistir ainda hoje na Rússia, de fato conduziu a uma aplicação altamente desigual e arbitrária de novas normas e instrumentos legais, mas isso não alterou em nada – para melhor ou para pior – a eficácia dessas normas e instrumentos jurídicos. Eles foram implementados desigualmente e distorcidos sistematicamente através dos privilégios do partido (Nomenklatura), da arbitrariedade e da corrupção generalizada. Entretanto, foram efetivos como instrumentos de transformação da realidade soviética, pela industrialização, pelo fomento de novas tecnologias, pelo pleno emprego, pela criação de um sistema amplo e livre de ensino, bem como pelo acesso gratuito à saúde, pelo amparo aos idosos e por outras melhorias sociais. Acima de tudo, porém, a revolução social não se limitou à Rússia, mas estendeu-se lentamente, posteriormente com crescente sucesso, como uma revolução mundial, com e contra a União Soviética. Esta verdadeira revolução ocidental, comunista ou socialista, foi copiada em muitos países da Ásia, América do Sul e África. Foi particularmente bem- sucedida e plena de consequências na Ásia e, na imensa China parece, como hoje se vê, muito mais eficiente e com maiores potenciais de aprendizagem do que na antiga União Soviética.27 bem seja na forma coletiva, cooperativa ou privada, e nada foi acordado se a economia global do país seguiria uma via socialista, estatal-capitalista ou de livre iniciativa. Nenhum desses desenvolvimentos destruiria a nova estruturação do país.‖(Elemente und Ursprünge, 516p.). O que teria acontecido se a Nova Política Econômica de Bukharin não tive sido finalizada por Stalin, e sim efetivada, é mera especulação, mas consistia uma possibilidade muito real de ação política. 27 A gigante China, que pôde cada vez mais fazer frente às tentativas de colonização ocidental dos séculos passados, foi ocidentalizada internamente a partir de sua própria revolução comunista. Somente hoje se mostra o quão profunda ela foi, uma vez que o Partido Comunista do Estado apresenta-se como uma organização, sempre reavivada depois da morte de Mao, que opera no âmbito das instituições constitucionais revolucionárias e, obviamente, mentora de um dos mais rápidos desenvolvimentos que o capitalismo moderno produziu, com aparente capacidade de implementação, controle e orientação políticas. A China possui o quadro constitucional e as instituições constitucionais, que haviam perdido seu sentido normativo nos tempos totalitários da Revolução Cultural, tornando-se cascas vazias. Hoje, renovaram-se com sucesso e adaptaram-se ao ritmo vertiginoso de desenvolvimento do país. Desde 1988, não mais cessou a série de alterações à Constituição chinesa, realizaram- se profundas reformas institucionais, os direitos individuais e o estado de direito, concretizados nas inúmeras emendas, acentuaram-sefortemente, idem para a lei ordinária – por meio da reforma penal ainda em curso, do fortalecimento do Supremo Tribunal Federal e do restabelecimento das vias jurisdicionais, por fim, pela modificação legal do direito da propriedade e dos contratos e pelo fim simultâneo de clientelismos muito bem- vindos para os investidores estrangeiros. Devido à frequente e continuada aplicação da lei (em vez de coação simples), por meio de reformas legais e crescente abertura ao direito internacional, e finalmente pela gradual 14 Igualmente significativa, se não mais importante, foi o efeito indireto da Revolução Russa no Ocidente e no mundo não-comunista (pelo menos, seguindo um mesmo padrão de desenvolvimento paralelo). Normas igualitárias antidiscriminatórias foram implementadas somente com as reformas jurídico-sociais, nos anos de 1960 e 70 em grande parte do Ocidente, um processo que é chamado pelos americanos de Rights Revolution. 28 No período após a Revolução Russa implanta-se também o americano New Deal, e a ideia de transformar planejadamente a sociedade e as pessoas pelo direito, de modo a converter o Estado num Estado social e de socialização, fincou suas raízes nos anos de 1930. Tal como na União Soviética, por toda parte, no Ocidente, o crime perdeu qualquer fundamento moral (e somente nos últimos tempos, passa por uma forte ―remoralização‖, em parte, impelido pelo fundamentalismo religioso). Em parte por seu próprio impulso, em parte encorajado e inspirado pela experiência soviética, o Estado social e de socialização é de início eficaz não apenas nos Estados Unidos, liberais e democráticos, como também nos países com regimes autoritário-fascistas 29 . Por esses idos, o teórico do direito Franz Neumann escreveu seu mais célebre ensaio sociológico sobre a mudança funcional da lei, no qual descreve e analisa o fim da época dos direitos negativos do período liberal da sociedade burguesa e sua vigorosa substituição por um direito administrativo orientado por objetivos e exemplos concretos. 30 Após a Segunda Guerra Mundial, implementa-se também em toda a Europa Ocidental, por quase todas as áreas do direito, o primado do direito administrativo e social, incluindo todo o direito penal, que se tornou um direito de ressocialização e de segurança. Os social-democratas ocidentais, que tinham acabado de se separar dos comunistas após a Revolução Russa, experimentaram com êxito, assim como o movimento anticomunista dos sindicatos e do Partido Democrata da América, alternativas à via autoritária soviética para o Estado social e de socialização – alternativas muito mais democráticas e potenciais. Mesmo transição do ―domínio pelo direito‖ (Herrschaft durch Recht) ao ―Estado de Direito‖ (Herrschaft des Rechts), o terrível período autodestrutivo do totalitarismo pôde ser superado mais rapidamente que o esperado, e agora a China mais do que nunca clama pela hegemonia dos Estados Unidos, até mesmo mais que a antiga União Soviética, que tentou, em vão, enquadrar seu grande e hostil irmão. 28 Cass Sunstein, After the Rights Revolution, Cambridge: Harvard 1993. 29 Muito instrutivas as publicações: Christian Joerges / Navraj Singh Ghaleigh , Hg., Darker Legacies of Law in Europe. The Shadow of National Socialism and Facism over Europe and its Legal Traditions, Oxford / Portland, Oregon 2003. 30 Franz Neumann, „Der Funktionswandel des Gesetzes im Recht der bürgerlichen Gesellschaft―, in: Zeitschift für Sozialforschung 6/ 1937, 542-596. 15 na época do New Deal, tinha-se tornado claro que a teoria de Keynes era melhor e mais eficaz, para efeitos de planejamento econômico global e para a realização do projeto socialista e social-democrata, que aquele de Marx. (3) O sociólogo americano Talcott Parsons descreveu o séc. XX como o século da Revolução Educacional e, sem negar o papel importante da Revolução Russa, situou, sem rodeios, seu epicentro nos EUA. Com este conceito, ele não se refere tanto às reformas fundamentais e à vigorosa expansão mundial do sistema educacional, mas à sua estreita conexão causal com o estabelecimento da economia e do Estado social e à emergência de uma nova cidadania mundial com orientações de valor cosmopolitas. 31 Parsons, porém, não compreendeu a revolução educacional como parte de uma abrangente revolução jurídica global. A revolução educacional teria, sim, uma conexão interna com a revolução democrática e de direitos humanos no direito internacional, levada adiante em abril de 1917 pelos Estados Unidos e pelas potências ocidentais. 32 Nas ciências jurídicas, ela foi antecipada por uma ―revolução espiritual‖ (Marx), na qual surgiu a moderna ciência do direito internacional como disciplina especializada. Tudo começou com a primeira reunião do Institut de droit internacional (Instituto de Direito 31 Talcott Parsons, The System of Modern Societies, Englewood Cliffs: Prentice Hall 1972; Parsons/ Gerald Platt, Die amerikanische Universität: Ein Beitrag zur Soziologie der Erkenntnis, Frankfurt 1990. 32 Da mesma forma que os sociólogos observaram uma revolução educacional no séc. XX, muitos juristas, políticos, cientistas políticos e filósofos perceberam, sob diferentes pretextos, uma revolução no direito internacional. Controversa, na verdade, é apenas sua datação exata e raramente é vista a relação das várias revoluções do século 20, que poderia justificar o discurso de uma revolução jurídica mundial única: imediatamente após a guerra do Iraque, de 1990, o então presidente americano falou de uma ―Nova Ordem Mundial‖. Presidentes da América conjuraram periodicamente a retórica revolucionária de seu país, mas raramente remontam à Carta das Nações Unidas e à retórica One World de Franklin D. Roosevelt. Vai nesta linha o discurso limitado de Fukujama, em 1989, sobre uma ―revolução liberal‖ incompleta: Francis Fukuyama, The End of History and the Last Man, New York: Avon 1992, Kapitel 4; kritisch: Susan Marks, The Riddle of all Constitutions, Oxford: Oxford Univ. Press 2000, 30ff; também Kriele fala de uma ―revolução mundial democrática‖ (1991, 201): Martin Kriele, Die demokratische Weltrevolution, in: ARSP, Beiheft 44, 1991, 201- 211; acerca de um disgnóstico atual da situação revolucionária do direito internacional: Philip Allott, Re- thinking the Good Life in the 21st Century, Vortrag auf der Konferenz: Towards a New World Order, Kopenhagen 3.3.2006; Allott, The Emerging International Aristocracy, in: NYU-Journal of International Law and Politics 35, 2/ 2003; Bogdandy, Supranationaler Föderalismus, Baden-Baden 1999. O debate completo acerca de um conceito de constituição pós-nacional circunscreve-se na questão da evolução ou da revolução? Christoph Möllers, Verfassungsgebende Gewalt—Verfassung—Konstitutionalisierung, in: Bogdandy, Europäisches Verfassungsrecht, Berlin, 2003, 1ff. Acima de tudo e amiúde é entendida a fundação das Nações Unidas, às vezes também a Declaração Universal, como uma revolução no direito internacional.: Bardo Fassbender, ―The United Nations Charter as Constitution of the International Community‖, in: Columbia Journal of Transnational Law 1998, 529-619. 16 Internacional) em Ghent, na Holanda, em setembro de 1873, e com primeira edição da Revue de droit international et de législation comparée (Revista de Direito Internacional e de Legislação Comparada), que aparece no final de 1868, atingindo seu ponto alto ainda na Primeira Guerra Mundiale no entreguerras. O impacto da revolução educacional em todos os campos do direito e da teoria constitucional foi tão produtivo quanto àquele gerado pelas grandes revoluções anteriores. Por esses idos, surgia o revolucionário tratado de direito internacional de Hans Kelsen e de seus alunos Alfred Verdross, Georges Scelle e Hersch Lauterbach, que fundaram um direito internacional totalmente novo. Esta revolução foi concluída em 1945 com sua realização na Carta das Nações Unidas, com o Julgamento de Nuremberg e com a Declaração Universal Direitos do Homem. 33 Naqueles anos, o direito europeu ocidental foi completamente descentrado e descolado de suas origens, na forma de um direito global e uma política mundial não mais europeus e ocidentais. Com o ano de 1945 se encerram (pelo menos numa retrospectiva sob a óptica dos direitos humanos) não só os terrores das guerras, mas também a maior revolução no direito internacional desde a Pax Westfalia. Os vencedores da Segunda Guerra Mundial foram os Estados Unidos e a União Soviética. Aliados na guerra contra as potências do Eixo e do Japão, eles se tornaram no pós-guerra superpotências operantes em escala global. Pela primeira vez, existiam forças políticas em condições de controlar, em conjunto, todo o planeta e exercer uma espécie de monopólio global de violência, exibido logo em seguida na composição dos diversos direitos e deveres dos Estados no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Os EUA e a URSS emergiram como potências iguais no pós-guerra e moveram-se numa batalha ideológica por décadas. Pelo equilíbrio do terror forçado por canais pacíficos, fortificaram sua rivalidade e seus papéis como superpotências monopolizadoras da violência. Com o colapso interno da União Soviética, os Estados Unidos passaram a exercer sozinho este papel de superpotência. 34 Mas tudo isso já configura desenvolvimentos pós-revolucionários. Ao fim da primeira revolução jurídica global, com a nova ordem mundial e a completa transformação do Direito Internacional entre 1944 e 1948, a então ainda totalitária União Soviética e os Estados Unidos liberais ainda eram, em grande medida, unidos. Os EUA foram, na verdade, o ator 33 Abrangente, mesmo quando num corte teórico anacrônico: Martti Koskenniemi, The Gentle Civilizer of Nations, 11-413. 34 Sobre o papel dos EUA como detentor do monopólio global da força: Michael Hardt / Antoni Negri, Empire. Die neue Weltordnung. Frankfurt am Main 2002. 17 principal e o grande poder de iniciativa das reformas revolucionárias de 1945, mas a União Soviética determinou a direção das reformas de maneira decisiva, em conjunto a uma série de países não-europeus, por meio de um forte componente sócio-político claramente reforçando o impulso anticolonialista das novas instituições. Entre 1944 e 1948 foram alteradas todas as normas fundamentais do direito internacional e criada a primeira ordem constitucional e um sistema de instituições inter, trans e supranacionais. Desde então, elas passaram não apenas a existir – apesar do longo período de latência da guerra fria – mas também se tornaram cada vez mais poderosas e influentes e se aperfeiçoaram numa densa rede de novas instituições e organizações regionais e globais. A revolução jurídica internacional proclamou, a partir dos princípios fundamentais do antigo direito internacional, da igualdade de direitos dos Estados (―europeus‖, ―cristãos‖ e ―civilizados‖), sob a observância (jus ad bellum) da condução de guerras (jus in bellum)35, a igualdade de todos os Estados perante as leis da comunidade internacional (Art. 2° §1° da Carta da ONU); a ilegalidade das guerras de agressão e anexação (Art. 2° §4°); e o direito de autodeterminação dos povos (art.1° §2°), ao lado da subsunção da igualdade dos Estados aos princípios do direito internacional e de sua conversão numa via global de descolonização e ―dessovietização‖. Como consequência da revolução e com o auxílio das instituições e organizações criadas pelos Estados, em pouco tempo, a massa continental dos países do planeta converteu-se em Estados-nação juridicamente iguais, e estes, por sua vez, em ―Estados abertos‖36 regidos pelo direito internacional. A revolução deslegitimou, no direito constitucional dos Estados, toda alternativa à democracia. Hoje, discute-se mesmo uma quarta geração de direitos humanos, os já mencionados direitos emergentes de governança democrática 37 e um princípio internacional de inclusão democrática, que poderiam deixar de lado o princípio da igualdade dos Estados (igualdade de soberania) – algo como o modelo da União Europeia – como uma vertente secundária de legitimação dos direitos internacionais igualitários 38 . A revolução criou pela primeira vez um direito superestatal, e exatamente no 35 Jus ad bellum refere-se às ―leis da guerra‖, ao passo que jus in bellum diz respeito à condução da mesma, se é justa ou não. (NT) 36 Sobre o conceito de „Estado aberto―: Rainer Wahl, Verfassungsstaat, Europäisierung, Internationalisierung, Frankfurt 2003; Udo Di Fabio, Das Recht offener Staaten, Tübingen 1998. 37 Thomas Franck, The Emerging Right to Democratic Governance, in: American Journal of International Law 86/1992: 46.91.; C. Cerna, Universal Democracy, in: New York University Journal of International Law and Politics, 86/ 1995, 289ff; Friedrich Müller, Demokratie zwischen Staatsrecht und Weltrecht, Berlin 2003, 52 38 Susan Marks, The Riddle of all Constitutions. 18 primeiro ato da nova fundação – seu momento constituinte de 26 de junho de 1945 – subordinou às normas jus cogens 39 dos direitos internacionais e humanos o direito internacional dos tratados 40 e mesmo disposições das constituições nacionais (Art.103 ONU). Sobre esta base, o Conselho de Segurança mais tarde declarou até mesmo uma Constituição nacional, a saber, a Constituição-apartheid da África do Sul, ―nula e sem efeito‖. 41 Por último, mas não menos importante, a revolução, que desde a revolução francesa tem identificado os direitos humanos aos direitos civis 42 , transformou aqueles em direitos civis globais e reconheceu a personalidade jurídica internacional de cada indivíduo humano. O lado bom: a Carta das Nações Unidas (Preâmbulo, Artigo 1°, Parágrafo 3°) requer mesmo a aplicação dos direitos humanos nos textos e normas legais dos próprios países – na Declaração Universal de 1948, enunciado sem obrigação; nos pactos dos anos 1960 e em inúmeros instrumentos regionais eficazes, positivados supranacionalmente. As intervenções dos direitos humanos ―não podem mais ser descartadas como uma interferência ilegítima (...) por ninguém, a começar pelos países do G7/G8. (...) Desde a Segunda Guerra Mundial (...), os direitos dos indivíduos são cada vez mais protegidos pelo direito internacional, na medida em que eles também são o tema da política internacional, e os Estados não podem mais evocar apenas a sua competência interna‖43. O lado mau: como sujeitos do direito 39 Jus cogens são as normas peremptórias gerais do direito internacional, inderrogáveis pela vontade das partes.(NT) 40 Ver Convenção de Viena, 1969 sobre o direito dos tratados. (NT) 41 Christian Tomuschat, ―Die internationale Gemeinschaft‖, in: Archiv des Völkerrechts 1/ 7, 1995, 1-20, hier: 18. 42 Isso não significa que não-cidadãos podiam ser tratados perante a lei como estrangeiros sem direitos, como insinua Hannah Arendt em sua famosa crítica aos direitos humanos. O núcleo dos direitos civisvale para todas as leis, e pelo menos desde o Código Napoleônico, os não-cidadãos estão contemplados. Mesmo que a Constituição de Weimar afirme que todos os alemães são iguais perante a lei (Art. 109 parágrafo 1), já estava implícito, apesar da redação ambígua, que todas as pessoas que entrassem em contato com a lei alemã seriam tratadas como iguais perante ela. Sobre o debate de Weimar: o direito apolítico não só regula a relação entre ―Estado e cidadãos‖, mas de maneira abrangente ―Estado e indivíduo‖ sob a óptica dos direitos humanos: Georg Anschütz: Die Verfassung des Deutschen Reiches vom 11. August 1919, Berlin: Stilke 1926, 300 p; semelhante, mas com a restrição de que os direitos de que falam os alemães valem num primeiro momento apenas para os alemães: Richard Thoma, „Die juristische Bedeutung der grundrechtlichen Sätze der deutschen Reichsverfassung im allgemeinen―, in: Hans Carl Nipperdey, Hg., Die Grundrechte und Grundpflichten der Reichsverfassung, Bd. 1, Berlin: Hobbing 1929. Aliás, é incontestável que os princípios do Estado de Direito, garantidos pelo Artigo 109, Parágrafo 1 da Constituição de Weimar, não poderiam limitar-se aos seus próprios cidadãos. 43 Müller, Demokratie zwischen Staatsrecht und Weltrecht, 55; com maiores informações: Juliane Kokott, Der Schutz der Menschenrechte im Völkerrecht, in: Brunkhorst/ Wolfgang R. Köhler/ Lutz-Bachmann,, Recht auf Menschenrechte, Frankfurt 1999, 177ff 19 internacional, os indivíduos tornam-se sujet, sujeitos do direito hobbesiano, não como um Estado (relativamente) forte, como uma poderosa organização (empresas multinacionais), mas como, de fato, indivíduos humanos sem amparo legal, diretamente confrontados e entregues. Em nenhum lugar isso se tornou tão evidente como nas listas individuais de suspeitos de terrorismo, que o Conselho de Segurança publica e executa imediatamente com sanções diretas (congelamento de contas, etc.) Elas devem ser aplicadas e executadas por todos os Estados e organizações internacionais e supranacionais (como a UE). Através deste ato, pleno de consequências, cada indivíduo humano se torna sujeito do direito internacional, e assim, encarado como um perigo potencial à paz mundial, sujeito às medidas previstas no Capítulo VII da ONU. O Estado acusado pelo Conselho de Segurança possui pelo menos um assento e voto na Assembleia Geral; o indivíduo acusado, jamais. Até agora não existe sequer uma proteção mínima legal, o que parece ser verdade face ao lento acúmulo de uma série de processos perante o Tribunal Europeu de Justiça. Finalmente, a revolução, entre 1944 e 1948, criou também todos os direitos constitucionais e todos os pressupostos institucionais para uma globalização da política social e de socialização e, talvez, também, o Estado social e de socialização global, colocando sob responsabilidade do Estado a questão social e os meios de socialização: pode-se mencionar aqui a internacionalização do bem-estar (welfare internationalism), a importante Carta do Atlântico de 1941; a Declaração de Filadélfia da OIT de 1944, bem como a Carta da ONU de 1945, prenhe de preceitos sociais legais; e a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948. ―Os fundamentos ideais de uma política social global, portanto, já parte do documento fundador do direito internacional da sociedade global, ocorreram na forma dos direitos humanos socais.‖44. Logo depois da II Guerra Mundial, disseminou-se pelos países, hoje, da OCDE, os Estados de bem-estar sociais nacionais dentro de um capitalismo democrático de bem-estar. Mas logo antes do desenvolvimento do movimento pró-Estado de bem-estar nacional, formulou-se a programática da internacionalização do bem-estar. Paralelamente a este desenvolvimento global do Estado de 44 Lutz Leisering, „Gibt es einen Weltwohlfahrtsstaat?― in: Matthias Albert/ Rudolf Stichweh, Hg., Weltstaat und Weltstaatlichkeit, Wiesbaden: VS 2007, 185-205, hier 189. Sobre a tese do Estado mundial: Müller, Demokratie zwischen Staatsrecht und Weltrecht, 119; Matthias Lutz-Bachmann/ James Bohman, Weltstaat oder Staatenwelt, Frankfurt 2002; B. S. Chimni, International Institutions today: An Imperial Global State in the making, in: European Journal of International Law vol. 15, 1/ 2004, 1-37. 20 bem-estar, salta à vista ―o papel fundamental do direito: a política social global é, mais do que uma questão no plano nacional, uma questão de direito social global.‖45 Finalizando, uniformizou-se amplamente a política de formação educacional dos Estados na esteira da revolução, através de um efeito soft-law decorrente das instituições globais por eles criadas. Desde o começo convencionou-se um currículo escolar com o mesmo número de etapas, que remonta à publicação de um estudo da UNESCO de 1948. Isso foi, em pouco tempo, adotado por toda parte – com exceção de alguns poucos países ricos como a Alemanha – bem como, mais tarde, o modelo de ensino centralizado na escola, seguido por inúmeras inovações curriculares de orientação semelhante. Um controle soft-law do sistema mundial de ensino, através de institutos como os estudos da PISA 46 , ajustam ano a ano novas normas. Simultaneamente às enormes transformações no direito e às fundações das organizações frutos da revolução, surgiu – em estreita conexão à revolução educacional global – uma nova cultura mundial impregnada de direitos humanos, moldando atores pessoais, estatais e coletivos (organizações, empresas, etc.) em suas motivações fundamentais 47 . Ninguém mais pode prometer conquistas a seus compatriotas na frente das câmeras nem ricas pilhagens nos países vizinhos ou em continentes distantes; ninguém mais pode bradar por vingança na próxima campanha de guerra, nem mesmo o mais sanguinário ditador. Mesmo a revolução mundial dos direitos internacionais, sociais e de socialização, necessária para a sua re-estabilização em mecanismos funcionais, que ela própria não tinha planejado, foi alcançada por lutas ou selada em compromissos. A contrapartida das conquistas da revolução social, socializante e educacional do século foi o surgimento de uma vasta burocracia administrativa, máquinas partidárias poderosas, sindicatos hipertrofiados e conglomerados de seguridade social, através de várias corporações intrincadas e sistemas de parceria público-privada complexos, em suma: pelos sistemas de negociação e pelas organizações formais, apenas parcialmente sob o controle dos Estados e muitas vezes tão poderosas ou mais que os próprios Estados. 45 Leisering, 200. 46 PISA (Programa Internacional de Avaliação de Alunos). A prova é aplicada a cada três anos pela OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). (NT) 47 John W. Meyer, Weltkultur, Frankfurt: Suhrkamp 2005. 21 O sistema jurídico global desprendeu-se, em seguida à revolução da comunidade internacional, de sua ligação exclusiva com as formas de organização estatais (e, com isso, também democráticas e legais), na esteira da rápida globalização e da desestatização crescente de quase todos os sistemas funcionais, cobrindo sua ―enorme necessidade de normas‖ (Teubner). No centro dos sistemas funcionais globais operam hoje organizações regionais e mundiais trans- e supranacionais, não-governamentais e não mais intergovernamentais, que ao longo das décadas se tornaram cada vez mais influentes e poderosas, não apenas complementando, mas em muitos âmbitos já substituindo as funções estatais que vão da política de saúde à paz mundial. 48 Estas mudanças dramáticas e imprevistas não apenasconduziram a um Estado de direito (Herrschaft des Rechts) global – exatamente como ansiava o doutrinador mais importante da revolução jurídica global, Hans Kelsen, no início da revolução nos anos 1920. Elas também produziram um crescimento global do domínio informal, já não mais garantido, como na organização formal clássica, pelas normas legais podem ser evocadas em caso de conflito. 49 A re-estabilização evolucionária da revolução tornou possível uma nova ordem hegemônica pós-imperial e a formação e estabilização de um novo domínio de classe transnacional. 50 O direito também mostra, nessa revolução, a sua face de Janus. Trata-se, como Gustav Radbruch escreveu na década de 1920, ainda (ou mais) do direito de classe (Klassenrecht), que estabilizou um domínio injusto e não-democrático, e do direito de classe (Klassenrecht), que como direito igualitário serve também ao interesse de emancipação dos dominados. A revolução jurídica global do séc. XX trouxe novas alternativas e novos 48 Sobre a tese da substituição: Albert, Politik der Weltgesellschaft und Politik der Globalisierung: Überlegungen zur Emergenz von Weltstaatlichkeit, in: Zeitschrift für Soziologie. Sonderheft Weltgesellschaft 2005. Brunkhorst, „Die Legitimationskrise der Weltgesellschaft―, in: Albert/ Stichweh, Weltstaat und Weltstaatlichkeit; Stichweh, Weltstaatlichkeit, in: Albert/ Stichweh, Weltstaat und Weltstaatlichkeit. 49 Sobre o tema: Brunkhorst, „Unbezähmbare Öffentlichkeit – Europa zwischen transnationaler Klassenherrschaft und egalitärer Konstitutionalisierung―, in: Leviathan 1/ 2007, 12-29. Sobre o equilíbrio precário da administração formal e informal nas organizações formais: Luhmann, Funktion und Folgen formaler Organisation, Berlin 1999. 50 Sobre o tema: Chimni, International Institutions today; Anghie, Imperialism ; Koskenniemi, The Gentle Civilizer of Nations; Marks, The Riddle of all Constitutions; Hardt/ Negri, Empire; Sonja Buckel/Andreas Fischer-Lescano (Hrsg.), Die Organisation der Hegemonie, Baden-Baden: Nomos 2007; Brunkhorst, Unbezähmbare Öffentlichkeit. 22 problemas de legitimação 51 , que oscilam nas lutas constitucionais presentes entre a dominação de classe transnacional e a constitucionalização igualitária do direito mundial. Resta, por fim, mencionar: as mudanças normativas fundamentais da ordem constitucional e do conjunto da vida societária são, após a conclusão da revolução, o resultado inalterável da ação revolucionária. Ela enraizou-se de tal forma, que só poderia ser revogada por uma revolução posterior ou bloqueada pelos efeitos do progresso da evolução. Nisto é visível o vigoroso poder comunicativo da nova união, liberado pela Grande Revolução, de modo a se condensar nas instituições constitucionais como espírito objetivo. Após as revoluções jurídicas dos séculos XI e XII, o césaro-papismo e a teocracia não mais encontrariam legitimidade e respaldo legal, não mais seriam possíveis no espaço europeu, como um reino constituído não sob, mas sobre as leis. As conquistas normativas irreversíveis da revolução, daqui em diante no máximo vulneráveis, são sempre o signo esperançoso de uma ―progressão (da raça humana), a partir daqui irreversível para o melhor.‖52 O mesmo vale para a última Grande Revolução: a revolução jurídica do séc.XX concebe a soberania do Estado somente enquanto soberania igualitária de todos os Estados sob o direito internacional e obstrui o recuo para a exclusão da desigualdade nacional e regional (pelo menos na Europa Ocidental). A abolição (e não a violação) destes princípios jurídicos fundamentais da sociedade mundial hoje está excluída, da mesma forma que a fundação de colônias, a abolição do direito dos indivíduos e dos povos, a reintrodução da escravatura ou a derrogação dos direitos humanos globais. A consciência de sua contínua lesão tornou-se precisamente o conhecimento básico de sua validade positiva. Este é o progresso. 51 A respeito, ver: Brunkhorst, Demokratie in der globalen Rechtsgenossenschaft, in: Zeitschrift für Soziologie. Sonderheft Weltgesellschaft 2005, 330-348; Brunkhorst, „Die Legitimationskrise der Weltgesellschaft―, in: Albert/ Stichweh, Weltstaat und Weltstaatlichkeit, 63-109. 52 Kant, Streit der Fakultäten, 361.
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