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ANTOLOGIA DE POEMAS TEORIA DA LITERATURA II PROF. WALTENCIR ALVES DE OLIVEIRA Sapho de Mytilene de Lesbos 1. Aphrodite em trono de cores e brilhos, Imortal filha de Zeus, urdidora de tramas! eu te imploro: a dores e mágoas não dobres, Soberana, meu coração; mas vem até mim, se jamais no passado ouviste ao longe, meu grito, e atendeste, e o palácio do pai abandonado, áureo, tu vieste, no carro atrelado: conduziram-te, rápidos, lindos pardais sobre a terra sombria, lado a lado num bater de asas, do céu, através dos ares, e pronto chegaram; e tu, Bem-Aventurada, com um sorriso no teu rosto imortal, perguntaste por que de novo eu sofria, e por que de novo eu suplicava; (Tradução de Joaquim Brasil Fontes) CATULO V (Poemas do Ciclo de Lésbia) Vivamos, minha Lésbia, e amemos, E as censuras desses velhos tão severos, Todas valham pra nós um só centavo. Os sóis podem morrer e renascer; Nós, uma vez que morre nossa breve luz, Devemos dormir uma só noite eterna. Dá-me mil beijos, depois cem, Então mil outros, então outros cem, Depois, sem parar, outros mil, depois cem. Então, quando somarmos muitos milhares, Misturaremos todos, para não sabermos, Ou para nenhum invejoso possa pôr mau-olhado, Ao saber quantos foram os beijos. (Tradução de Paulo Sérgio de Vasconcelos) HORÁCIO Ode 1, 11 Não indagues, Leucónoe, ímpio é saber, a duração da vida que os deuses decidiram conceder-nos, nem consultes os astros babilônios: melhor é suportar tudo o que acontecer. Quer Júpiter te dê muitos invernos, quer seja o derradeiro este que vem fazendo o mar Tirreno cansar-se contra as rochas, mostra-te sábia, clarifica os vinhos, corta a longa esperança, que é breve nosso prazo de existência. Enquanto conversamos, foge o tempo invejoso. Desfruta o dia de hoje, acreditando o mínimo possível no amanhã. ( Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos) FRANÇOIS VILLON Balada das damas dos tempos idos Dizei-me em que terra ou país Está Flora, a bela romana; Onde Arquipíada ou Taís, que foi sua prima germana; Eco, a imitar na água que mana de rio ou lago, a voz que a aflora, E de beleza sobre-humana? Mas onde estais, neves de outrora? E Heloísa, a mui sábia e infeliz Pela qual foi enclausurado Pedro Abelardo em São Denis, por seu amor sacrificado? Onde, igualmente, a soberana Que a Buridan mandou pôr fora Num saco ao Sena arremessado? Mas onde estais, neves de outrora? Branca, a rainha, mãe de Luís Que com voz divina cantava; Berta Pé-Grande, Alix, Beatriz E a que no Maine dominava; E a boa lorena Joana, Queimada em Ruão? Nossa Senhora! Onde estão, Virgem soberana? Mas onde estais, neves de outrora? Príncipe, vede, o caso é urgente: Onde estão elas, vede-o agora; Que este refrão guardeis em mente: Onde estão as neves de outrora? (Tradução de Modesto de Abreu) Ballade des dames du temps jadis Dites-moi où, n'en quel pays, Est Flora la belle Romaine, Archipiades, ni Thais, Qui fut sa cousine germaine, Écho parlant quand bruit on mène Dessus rivière ou sus étang, Qui beauté eut trop plus qu'humaine. Mais où sont les neiges d'antan ? Où est la très sage Hélois, Pour qui châtré fut et puis moine Pierre Esbaillart à Saint Denis ? Pour son amour eut cette essoyne. Semblablement où est la reine Qui commanda que Buridan Fut jeté en un sac en Seine ? Mais où sont les neiges d'antan ? La reine Blanche comme lys Qui chantait à voix de sirène, Berthe au grand pied, Bietris, Alis, Haremburgis qui tint le Maine, Et Jeanne la bonne Lorraine Qu'Anglais brulèrent à Rouen ; Où sont-ils, où, Vierge souv'raine ? Mais où sont les neiges d'antan ? Prince, n'enquerrez de semaine Où elles sont, ni de cet an, Qu'à ce refrain ne vous ramène : Mais où sont les neiges d'antan ? ARNAUT DANIEL L’AURA AMARA L’aura amara fa•ls bruoills brancutz clarzir que•l doutz espeissa ab fuoills, el•s letz becs dels auzels ramencs ten balps e mutz, pars e non pars; por qu’eu m’esfortz de far e dir plazers a mains, per liei que m’a virat bas d’aut, don tem morir si•ls afans no m’asoma. Tant fo clara ma prima lutz d’eslir lieis don cre•l cors los huoills, non pretz necs mans dos aguilencs; d’autra s’es dutz rars mos preiars: pero deportz m’es ad auzir volers, bos motz ses grei de liei, don tant m’azaut qu’al sieu servir sui del pe tro c’al coma. Amors, gara, sui ben vencutz, c’auzir tem far, si•m desacuoills, tals d’etz pecs que t’es mieills que•t trencs; qu’ieu soi fis drutz, cars e non vars, ma•l cors ferms fortz mi fai cobrir mains vers; c’ab tot lo nei m’agr’ ops us bais al chaut cor refrezir, que no•i vai autra groma. Si m’ampara cill cui•m trahutz, d’aizir, si qu’es de pretz capduoills, dels quetz precs c’ai dedinz a rencs, l’er fors rendutz clars mos pensars: qu’eu fora mortz, mas fa•m sofrir l’espers que•ill prec que•m brei, c’aisso•m ten let e baut; que d’als jauzir no•m val jois una poma. Doussa car’, a toit aips volgutz, sofrir m’er per vos mainz orguoills, car etz decs de totz mos fadencs, don ai mains brutz pars, e gabars; de vos no•m tortz ni•m fai partir avers, c’anc non amei ren tan ab meins d’ufaut, anz vos desir plus que Dieu cill de Doma. Era•t para, chans e condutz, formir al rei qui t’er escuoills; car Pretz, secs sai, lai es doblencs, e mantengutz dars e manjars: de joi la•t portz, son anel mir, si•l ders, c’anc non estei jorn de’Aragon qu’el saut no•i volgues ir, mas sai m’a clamat Roma. Faitz es l’acortz, qu’el cor remir totz sers lieis cui dompnei ses parsonier, Arnaut, qu’en autr’albir n’es for m’entent’a soma. AURA AMARA Transcriação de Augusto de Campos Aura amara branqueia os bosques, car- come a cor da espessa folhagem. Os bicos dos passarinhos ficam mudos, pares e ímpares. E eu sofro a sorte: dizer louvor em verso só por aquela que me lançou do alto abaixo, em dor — má dama que me doma. Foi tão clara a luz do seu olhar que em meu cor- ação gravou a imagem. Dos ricos rio, seus vinhos, damas e ludos parec- em-me vulgares. Só tenho um norte: morrer de amor imerso no olhar da bela que me tomou de assalto, seu servidor ser, dos pés até a coma. Amor, para! Que queres mais provar? Por que tor- turares o teu pajem, só os picos dos teus espinhos pontiagudos dares, flores negares? A alma é forte, mas o cor- po inverso já se rebela e quer de um salto colher a flor de boca, beijo e aroma. Se me ampara essa a quem vivo a orar, no calor da sua hospedagem, jus- tifica os meus descaminhos, muda os pesares dos meus pensares. Mas antes morte contrapor adverso do que perdê-la, só meu sobressalto. Que o seu valor é mais que qualquer soma. Face cara que me faz pervagar sem temor atrás de uma miragem, nos becos, pelos caminhos mais desnudos, por ares e por mares, em louco esporte. Surdo ao rumor perverso, somente a ela sobreamo, falto de senso, amor maior que a Deus tem Doma*. Vai, prepara canções para doar, trovador, ao rei em homenagem. Rús- ticos pães, duros linhos serão veludos, rarís- simos manjares. Parte com porte. Embora em dor subverso, venera o anel**. A Aragon, baldo, vai teu ardor, pois quem comanda é Roma***. Ei-la em seu forte. Combatedor converso, em sua cela sou prisioneiro, Arnaldo. Esse sabor de amor ninguém me toma. PETRARCA Amor, comigo noutro tempo estavas Entre estas margens do pensar amigas E p'ra saldar nossas razões antigas Comigo e o rio arrazoando andavas: Flor's, frondes, sombras, ondas, antros, cavas, Profundos vales, altos montes, sigas, Que repouso me foram das fadigas E hoje o não são de tantas mágoas bravas. Ó vós que os ermos habitais do bosco, Ó ninfas, e quem mais do fresco fundo Do líquido cristal se alberga e pasce: Tão claro foi meu dia, ora é tão fosco Como aMorte que o faz. Assim no mundo Ventura vem do dia em que se nasce. (Tradução de Jorge de Sena) CAMÕES Transforma-se o amador na cousa amada, Por virtude do muito imaginar; Não tenho logo mais que desejar, Pois em mim tenho a parte desejada. Se nela está minha alma transformada, Que mais deseja o corpo de alcançar? Em si sómente pode descansar, Pois consigo tal alma está liada. Mas esta linda e pura semideia, Que, como o acidente em seu sujeito, Assim co'a alma minha se conforma, Está no pensamento como ideia; [E] o vivo e puro amor de que sou feito, Como matéria simples busca a forma. SHAKESPEARE Soneto XVIII Se te comparo a um dia de verão És por certo mais belo e mais ameno O vento espalha as folhas pelo chão E o tempo do verão é bem pequeno. Às vezes brilha o Sol em demasia Outras vezes desmaia com frieza; O que é belo declina num só dia, Na eterna mutação da natureza. Mas em ti o verão será eterno, E a beleza que tens não perderás; Nem chegarás da morte ao triste inverno: Nestas linhas com o tempo crescerás. E enquanto nesta terra houver um ser, Meus versos vivos te farão viver. (Tradução de Bárbara Heliodora) JOHN DONNE ELEGIA: INDO PARA O LEITO Vem, Dama, vem, que eu desafio a paz; Até que eu lute, em luta o corpo jaz. Como o inimigo diante do inimigo, Canso-me de esperar se nunca brigo. Solta esse cinto sideral que vela, Céu cintilante, uma área ainda mais bela. Desata esse corpete constelado, Feito para deter o olhar ousado. Entrega-te ao torpor que se derrama De ti a mim, dizendo: hora da cama. Tira o espartilho, quero descoberto O que ele guarda, quieto, tão de perto. O corpo que de tuas saias sai É um campo em flor quando a sombra se esvai. Arranca essa grinalda armada e deixa Que cresça o diadema da madeixa. Tira os sapatos e entra sem receio Nesse templo de amor que é o nosso leito. Os anjos mostram-se num branco véu Aos homens. Tu, meu anjo, és como o céu De Maomé. E se no branco têm contigo Semelhança os espíritos, distingo: O que o meu anjo branco põe não é O cabelo mas sim a carne em pé. Deixa que a minha mão errante adentre Atrás, na frente, em cima, em baixo, entre. Minha América! Minha terra à vista, Reino de paz, se um homem só a conquista, Minha mina preciosa, meu Império, Feliz de quem penetre o teu mistério! Liberto-me ficando teu escravo; Onde cai minha mão, meu selo gravo. Nudez total! Todo o prazer provém De um corpo (como a alma sem corpo) sem Vestes. As jóias que a mulher ostenta São como as bolas de ouro de Atalanta: O olho do tolo que uma gema inflama Ilude-se com ela e perde a dama. Como encadernação vistosa, feita Para iletrados, a mulher se enfeita; Mas ela é um livro místico e somente A alguns (a que tal graça se consente) É dado lê-la. Eu sou um que sabe; Como se diante da parteira, abre- Te: atira, sim, o linho branco fora, Nem penitência nem decência agora. Para ensinar-te eu me desnudo antes: A coberta de um homem te é bastante. (Tradução: Augusto de Campos) SAN JUAN DE LA CRUZ Esposa Onde é que te escondeste, Amado, e me deixaste com gemido? Como o cervo correste, havendo-me ferido; saí, clamei por ti, havias partido. Pastores que subirdes, além pelas malhadas ao outeiro, se porventura, virdes aquele a quem mais quero, dizei-lhe que agonizo enquanto espero. Buscando meus amores, irei por esses montes e ribeiras; não colherei as flores, nem temerei as feras, e passarei os fortes e as fronteiras. (Tradução de Marco Lucchesi) LUÍS DE GONGORA Y ARGOTE Soneto 228 Ora que a competir com teu cabelo ouro brunhido ao sol reluz em vão, e com desprezo, no relvoso chão, vê tua branca fronte o lírio belo; ora que ao lábio teu, para colhê-lo, se olha mais do que ao cravo temporão, e ora que triunfa com desdém loução teu colo de cristal, que luz com zelo; colo, cabelo, fronte, lábio ardente goza, enquanto o que foi na hora dourada ouro, lírio, cristal, cravo luzente não só em prata ou víola cortada se torna, mas tu e isso juntamente em terra, em fumo, em pó, em sombra, em nada ( Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos) HÖLDERLIN Metade da vida Peras amarelas E rosas silvestres Da paisagem sobre a Lagoa. Ó cisnes graciosos, Bêbedos de beijos, Enfiando a cabeça Na água santa e sóbria! Ai de mim, aonde, se É inverno agora, achar as Flores? E aonde O calor do sol E a sombra da terra? Os muros avultam Mudos e frios; à fria nortada Rangem os cata-ventos. (Tradução de José Paulo Paes) ALFRED DE MUSSET Tristeza Minha vida e minhas energias dissipei Minhas alegrias, minhas amizades Até no próprio orgulho, que me fez crer ser gênio, naufraguei. Quando a Verdade conheci, Ganhar julguei uma amiga Quando aquela compreendi e a percebi, Conheci com ela a decepção No entanto, sendo ela eterna, Aqueles que a conhecem Cá na Terra a esqueceram por completo. Deus fala. Urge que se Lhe responda. - O único bem que do mundo sei É algumas vezes chorado haver. (Trad. de Cunha e Silva Filho) WALT WHITMAN A UM ESTRANHO Estranho que passa! você não sabe com quanta saudade eu lhe olho, Você deve ser aquele a quem procuro, ou aquela a quem procuro, (isso me vem, como em um sonho,) Vivi com certeza uma vida alegre com você em algum lugar, Tudo é relembrado neste relance, fluído, afeiçoado, casto, maduro, Você cresceu comigo, foi um menino comigo, ou uma menina comigo, Eu comi com você e dormi com você – seu corpo se tornou não apenas seu, nem deixou o meu corpo somente meu, Você me deu o prazer de seus olhos, rosto, carne, enquanto passamos – você tomou de minha barba, peito, mãos, em retorno, Eu não devo falar com você – devo pensar em você quando sentar-me sozinho, ou acordar sozinho à noite, Eu devo esperar – não duvido que lhe reencontrarei, Eu devo garantir que não irei lhe perder. (Tradução de Adriano Scandolara) EDGAR ALLAN POE O Corvo Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste, Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais, E já quase adormecia, ouvi o que parecia O som de alguém que batia levemente a meus umbrais. "Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais. É só isto, e nada mais." Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro, E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais. Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais - Essa cujo nome sabem as hostes celestiais, Mas sem nome aqui jamais! Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais! Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo, "É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais; Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais. É só isto, e nada mais". E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante, "Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me desculpais; Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo, Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais, Que mal ouvi..." E abri largos, franqueando-os, meus umbrais. Noite, noite e nada mais. A treva enorme fitando, fiquei perdido receando, Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais. Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita, E a única palavra dita foi um nome cheio de ais - Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais. Isso só e nada mais. Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo, Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais. "Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela. Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais." Meu coração se distraía pesquisando estes sinais. "É o vento, e nada mais." Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça, Entrou grave e nobreum corvo dos bons tempos ancestrais. Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento, Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais, Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais, Foi, pousou, e nada mais. E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura Com o solene decoro de seus ares rituais. "Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado, Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais! Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais." Disse o corvo, "Nunca mais". Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro, Inda que pouco sentido tivessem palavras tais. Mas deve ser concedido que ninguém terá havido Que uma ave tenha tido pousada nos seus umbrais, Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais, Com o nome "Nunca mais". Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto, Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais. Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento Perdido, murmurei lento, "Amigos, sonhos - mortais Todos - todos já se foram. Amanhã também te vais". Disse o corvo, "Nunca mais". A alma súbito movida por frase tão bem cabida, "Por certo", disse eu, "são estas vozes usuais, Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais, E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais Era este "Nunca mais". Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura, Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais; E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira Que qu'ria esta ave agoureira dos maus tempos ancestrais, Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais, Com aquele "Nunca mais". Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo À ave que na minha alma cravava os olhos fatais, Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando No veludo onde a luz punha vagas sombras desiguais, Naquele veludo onde ela, entre as sombras desiguais, Reclinar-se-á nunca mais! Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais. "Maldito!", a mim disse, "deu-te Deus, por anjos concedeu-te O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais, O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!" Disse o corvo, "Nunca mais". "Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta! Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais, A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo, A esta casa de ânsia e medo, dize a esta alma a quem atrais Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais! Disse o corvo, "Nunca mais". "Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta! Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais. Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais, Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!" Disse o corvo, "Nunca mais". "Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse. "Parte! Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais! Não deixes pena que ateste a mentira que disseste! Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais! Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!" Disse o corvo, "Nunca mais". E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais. Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha, E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais, E a minhalma dessa sombra que no chão há mais e mais, Libertar-se-á... nunca mais! (Tradução de Fernando Pessoa) CHARLES BAUDELAIRE Poemas condenados II Lesbos Mãe dos jogos do Lácio e das gregas orgias, Lesbos, ilha onde os beijos, meigos e ditosos, Ardentes como os sóis, frescos quais melancias, Emolduram as noites e os dias gloriosos; Mãe dos jogos do Lácio e das gregas orgias; Lesbos, ilha onde os beijos são como as cascatas, Que desabam sem medo em pélagos profundos, E correm, soluçando, em maio às colunatas, Secretos e febris, copiosos e infecundos, Lesbos, ilha onde os beijos são como as cascatas! Lesbos, onde as Frinéias uma à outra esperam, Onde jamais ficou sem eco um só queixume, Tal como Pafos as estrelas te veneram, E Safo a Vênus , com razão, inspira ciúme! Lesbos, onde as Frinéias uma à outra esperam, Lesbos, terra das quentes noites voluptuosas, Onde, diante do espelho, ó volúpia maldita! Donzelas de ermo olhar, dos corpos amorosas, Roçam de leve o tenro pomo que as excita; Lesbos, terra das quentes noites voluptuosas, Deixa o velho Platão franzir seu olho sério; Consegues teu perdão dos beijos incontáveis, Soberana sensual de um doce e nobre império, Cujos requintes serão sempre inesgotáveis. Deixa o velho Platão franzir seu olho sério. Arrancas teu perdão ao martírio infinito, Imposto sem descanso aos corações sedentos, Que atrai, longe de nós, o sorriso bendito Vagamente entrevisto em outros firmamentos! Arrancas teu perdão ao martírio infinito! Que Deus, ó Lesbos, teu juiz ousara ser? Ou condenar-te a fronte exausta de extravios, Se nenhum deles o dilúvio pôde ver Das lágrimas que ao mar lançaram os teus rios? Que Deus, ó Lesbos, teu juiz ousara ser? De que valem as leis do que é justo ou injusto? Virgens de alma sutil, do Egeu orgulho eterno, O vosso credo, assim como os demais, é augusto, E o amor rirá tanto do Céu quanto do Inferno! De que valem as leis do que é justo ou injusto? Pois Lesbos me escolheu entre todos no mundo Para cantar de tais donzelas os encantos, E cedo eu me iniciei no mistério profundo Dos risos dissolutos e dos turvos prantos; Pois Lesbos me escolheu entre todos no mundo. E desde então do alto da Lêucade eu vigio, Qual sentinela de olho atento e indagador, Que espreita sem cessar barco, escuna ou navio, Cujas formas ao longe o azul faz supor; E desde então do alto da Lêucade eu vigio Para saber se a onda do mar é meiga e boa, E entre os soluços, retinindo no rochedo, Enfim trará de volta a Lesbos, que perdoa, O cadáver de Safo, a que partiu tão cedo, Para sabe se a onda do mar é meiga e boa! Desta Safo viril, que foi amante e poeta, Mais bela do que Vênus pelas tristes cores! - O olho do azul sucumbe ao olho que marcheta O círculo de treva estriado pelas dores Desta Safo viril, que foi amante e poeta! - Mais bela do que Vênus sobre o mundo erguida, A derramar os dons da paz de que partilha E a flama de uma idade em áurea luz tecida No velho Oceano pasmo aos pés de sua filha; Mais bela do que Vênus sobre o mundo erguida! - De Safo que morreu ao blasfemar um dia, Quando, trocando o rito e o culto por luxúria, Seu belo corpo ofereceu como iguaria A um bruto cujo orgulho atormentou a injúria Daquela que morreu ao blasfemar um dia. E desde então Lesbos em pranto lamenta, E, embora o mundo lhe consagre honras e ofertas, Se embriaga toda noite aos uivos da tormenta Que lançam para os céus suas praias desertas! E desde então Lesbos em pranto lamenta! (Tradução de Ivan Junqueira) STÉPHANE MALLARMÉ BRINDE Nada, esta espuma, virgem verso A não designar mais que a copa; Ao longe se afoga uma tropa De sereias vária ao inverso. Navegamos, ó meus fraternos Amigos, eu já sobre a popa Vós a proa em pompa que topa A onda de raios e de invernos; Uma embriaguez me faz arauto, Sem medo ao jogo do mar alto, Para erguer, de pé, este brinde Solitude, recife, estrela A não importa o que há no fim de um branco afã de nossa vela. (Tradução de Augusto de Campos) ARTHUR RIMBAUD Vogais A negro, E branco, I rubro, U verde, O azul: vogais, Um dia hei de dizer vossas fontes latentes: A, negro e veludoso enxame de esplendentes Moscas a varejar em torno aos chavascais, Golfos de sombra; E, alvor de tendas tumescentes, Lanças de gelo altivo, arfar de umbelas reais; I, púrpuras, cuspir de sangue, arcos labiais Sorrindo em fúria ou nos transportes penitentes; U, ciclos, vibrações dos mares verdes, montesSemeados de animais pastando, paz das frontes Rugosas de buscar alquímicos refolhos; O, supremo Clarin de estridores profundos, Silêncios a esperar pelos Anjos e os Mundos: - O, o Ômega, clarão violáceo de Seus Olhos! ... A estrela chorou rosa ao fundo de tua orelha, O espaço rolou branco entre a nuca e o quadril O mar perolou ruivo a mamila vermelha E o homem sangrou negro o flanco senhoril. (Tradução de Ivo Barroso) T S ELLIOT A canção de amor de J. Alfred Prufrock S'io credesse che mia risposta fosse A persona che mai tornasse al mondo, Questa fiamma staria senza piu scosse. Ma perciocche giammai di questo fondo Non torno vivo alcun, s'i'odo il vero, Senza tema d'infamia ti rispondo. Dante Alighieri. La divina Commedia Inferno, XXVII, 61-66 (N. do T.) Sigamos então, tu e eu, Enquanto o poente no céu se estende Como um paciente anestesiado sobre a mesa; Sigamos por certas ruas quase ermas, Através dos sussurrantes refúgios De noites indormidas em hotéis baratos, Ao lado de botequins onde a serragem Às conchas das ostras se entrelaça: Ruas que se alongam como um tedioso argumento Cujo insidioso intento É atrair-te a uma angustiante questão . . . Oh, não perguntes: "Qual?" Sigamos a cumprir nossa visita. No saguão as mulheres vêm e vão A falar de Miguel Ângelo. A fulva neblina que roça na vidraça suas espáduas, A fumaça amarela que na vidraça seu focinho esfrega E cuja língua resvala nas esquinas do crepúsculo, Pousou sobre as poças aninhadas na sarjeta, Deixou cair sobre seu dorso a fuligem das chaminés, Deslizou furtiva no terraço, um repentino salto alçou, E ao perceber que era uma tenra noite de outubro, Enrodilhou-se ao redor da casa e adormeceu. E na verdade tempo haverá Para que ao longo das ruas flua a parda fumaça, Roçando suas espáduas na vidraça; Tempo haverá, tempo haverá Para moldar um rosto com que enfrentar Os rostos que encontrares; Tempo para matar e criar, E tempo para todos os trabalhos e os dias em que mãos Sobre teu prato erguem, mas depois deixam cair uma questão; Tempo para ti e tempo para mim, E tempo ainda para uma centena de indecisões, E uma centena de visões e revisões, Antes do chá com torradas. No saguão as mulheres vêm e vão A falar de Miguel Ângelo. E na verdade tempo haverá Para dar rédeas à imaginação. "Ousarei" E . . "Ousarei?" Tempo para voltar e descer os degraus, Com uma calva entreaberta em meus cabelos (Dirão eles: "Como andam ralos seus cabelos!") - Meu fraque, meu colarinho a empinar-me com firmeza o queixo, Minha soberba e modesta gravata, mas que um singelo alfinete apruma (Dirão eles: "Mas como estão finos seus braços e pernas! ") - Ousarei Perturbar o universo? Em um minuto apenas há tempo Para decisões e revisões que um minuto revoga. Pois já conheci a todos, a todos conheci - Sei dos crepúsculos, das manhãs, das tardes, Medi minha vida em colherinhas de café; Percebo vozes que fenecem com uma agonia de outono Sob a música de um quarto longínquo. Como então me atreveria? E já conheci os olhos, a todos conheci - Os olhos que te fixam na fórmula de uma frase; Mas se a fórmulas me confino, gingando sobre um alfinete, Ou se alfinetado me sinto a colear rente à parede, Como então começaria eu a cuspir Todo o bagaço de meus dias e caminhos? E como iria atrever-me? E já conheci também os braços, a todos conheci - Alvos e desnudos braços ou de braceletes anelados (Mas à luz de uma lâmpada, lânguidos se quedam Com sua leve penugem castanha!) Será o perfume de um vestido Que me faz divagar tanto? Braços que sobre a mesa repousam, ou num xale se enredam. E ainda assim me atreveria? E como o iniciaria? ....... Diria eu que muito caminhei sob a penumbra das vielas E vi a fumaça a desprender-se dos cachimbos De homens solitários em mangas de camisa, à janela debruçados? Eu teria sido um par de espedaçadas garras A esgueirar-me pelo fundo de silentes mares. ....... E a tarde e o crepúsculo tão .docemente adormecem! Por longos dedos acariciados, Entorpecidos . . . exangues . . . ou a fingir-se de enfermos, Lá no fundo estirados, aqui, ao nosso lado. Após o chá, os biscoitos, os sorvetes, Teria eu forças para enervar o instante e induzi-lo à sua crise? Embora já tenha chorado e jejuado, chorado e rezado, Embora já tenha visto minha cabeça (a calva mais cavada) servida numa travessa, Não sou profeta - mas isso pouco importa; Percebi quando titubeou minha grandeza, E vi o eterno Lacaio a reprimir o riso, tendo nas mãos meu sobretudo. Enfim, tive medo. E valeria a pena, afinal, Após as chávenas, a geléia, o chá, Entre porcelanas e algumas palavras que disseste, Teria valido a pena Cortar o assunto com um sorriso, Comprimir todo o universo numa bola E arremessá-la ao vértice de uma suprema indagação, Dizer: "Sou Lázaro, venho de entre os mortos, Retorno para tudo vos contar, tudo vos contarei." - Se alguém, ao colocar sob a cabeça um travesseiro, Dissesse: "Não é absolutamente isso o que quis dizer Não é nada disso, em absoluto." E valeria a pena, afinal, Teria valido a pena, Após os poentes, as ruas e os quintais polvilhados de rocio, Após as novelas, as chávenas de chá, após O arrastar das saias no assoalho - Tudo isso, e tanto mais ainda? - Impossível exprimir exatamente o que penso! Mas se uma lanterna mágica projetasse Na tela os nervos em retalhos . . . Teria valido a pena, Se alguém, ao colocar um travesseiro ou ao tirar seu xale às pressas, E ao voltar em direção à janela, dissesse: "Não é absolutamente isso, Não é isso o que quis dizer, em absoluto." Não! Não sou o Príncipe Hamlet, nem pretendi sê-lo. Sou um lorde assistente, o que tudo fará Por ver surgir algum progresso, iniciar uma ou duas cenas, Aconselhar o príncipe; enfim, um instrumento de fácil manuseio, Respeitoso, contente de ser útil, Político, prudente e meticuloso; Cheio de máximas e aforismos, mas algo obtuso; As vezes, de fato, quase ridículo Quase o Idiota, às vezes. Envelheci . . . envelheci . . . Andarei com os fundilhos das calças amarrotados. Repartirei ao meio meus cabelos? Ousarei comer um pêssego? Vestirei brancas calças de flanela, e pelas praias andarei. Ouvi cantar as sereias, umas para as outras. Não creio que um dia elas cantem para mim. Vi-as cavalgando rumo ao largo, A pentear as brancas crinas das ondas que refluem Quando o vento um claro-escuro abre nas águas. Tardamos nas câmaras do mar Junto às ondinas com sua grinalda de algas rubras e castanhas Até sermos acordados por vozes humanas. E nos afogarmos. (Tradução de Ivan Junqueira) MANUEL BANDEIRA Poema de Finados Amanhã que é dia dos mortos Vai ao cemitério. Vai E procura entre as sepulturas A sepultura de meu pai. Leva três rosas bem bonitas. Ajoelha e reza uma oração. Não pelo pai, mas pelo filho: O filho tem mais precisão. O que resta de mim na vida É a amargura do que sofri. Pois nada quero, nada espero. E em verdade estou morto ali. CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE Tarde de Maio Como esses primitivos que carregam por toda parte o maxilar inferior de seus mortos, assim te levo comigo, tarde de maio, quando, ao rubor dos incêndios que consumiam a terra, outra chama, não perceptível, e tão mais devastadora, surdamente lavrava sob meus traços cômicos, e uma a uma, disjecta membra, deixava ainda palpitantes e condenadas, no solo ardente, porções de minh'alma nunca antes nem nunca mais aferidas em sua nobreza sem fruto. Mas os primitivos imploram à relíquia saúde e chuva, colheita, fim do inimigo, não sei que portentos. Eu nada te peço a ti, tarde de maio, senão que continues, no tempo e fora dele, irreversível, sinal de derrota que se vai consumindo a ponto de converter-se em sinal de beleza no rosto de alguém que, precisamente, volve o rosto, e passa... Outono é a estação em que ocorrem tais crises,e em maio, tantas vezes, morremos. Para renascer, eu sei, numa fictícia primavera, já então espectrais sob o aveludado da casca, trazendo na sombra a aderência das resinas fúnebres com que nos ungiram, e nas vestes a poeira do carro fúnebre, tarde de maio, em que desaparecemos, sem que ninguém, o amor inclusive, pusesse reparo. E os que o vissem não saberiam dizer: se era um préstito lutuoso, arrastado, poeirento, ou um desfile carnavalesco. Nem houve testemunha. Não há nunca testemunhas. Há desatentos. Curiosos, muitos. Quem reconhece o drama, quando se precipita, sem máscara? Se morro de amor, todos o ignoram e negam. O próprio amor se desconhece e maltrata. O próprio amor se esconde, ao jeito dos bichos caçados; não está certo de ser amor, há tanto lavou a memória das impurezas de barro e folha em que repousava. E resta, perdida no ar, por que melhor se conserve, uma particular tristeza, a imprimir seu selo nas nuvens. JOÃO CABRAL DE MELO NETO Estudos para uma bailadora andaluza 1 Dir-se-ia, quando aparece dançando por siguiriyas, que com a imagem do fogo inteira se identifica. Todos os gestos do fogo que então possui dir-se-ia: gestos das folhas do fogo, de seu cabelo, sua língua; gestos do corpo do fogo, de sua carne em agonia, carne de fogo, só nervos, carne toda em carne viva. Então, o caráter do fogo nela também se adivinha: mesmo gosto dos extremos, de natureza faminta, gosto de chegar ao fim do que dele se aproxima, gosto de chegar-se ao fim, de atingir a própria cinza. Porém a imagem do fogo é num ponto desmentida: que o fogo não é capaz como ela é, nas siguiriyas, de arrancar-se de si mesmo numa primeira faísca, nessa que, quando ela quer, vem e acende-a fibra a fibra, que somente ela é capaz de acender-se estando fria, de incendiar-se com nada, de incendiar-se sozinha. 2 Subida ao dorso da dança (vai carregada ou a carrega?) é impossível se dizer se é a cavaleira ou a égua. Ela tem na sua dança toda a energia retesa e todo o nervo de quando algum cavalo se encrespa. Isto é: tanto a tensão de quem vai montado em sela, de quem monta um animal e só a custo o debela, como a tensão do animal dominado sob a rédea, que ressente ser mandado e obedecendo protesta. Então, como declarar se ela é égua ou cavaleira: há uma tal conformidade entre o que é animal e é ela, entre a parte que domina e a parte que se rebela, entre o que nela cavalga e o que é cavalgado nela, que o melhor será dizer de ambas, cavaleira e égua, que são de uma mesma coisa e que um só nervo as inerva, e que é impossível traçar nenhuma linha fronteira entre ela e a montaria: ela é a égua e a cavaleira. 3 Quando está taconeando a cabeça, atenta, inclina, como se buscasse ouvir alguma voz indistinta. Há nessa atenção curvada muito de telegrafista, atento para não perder a mensagem transmitida. Mas o que faz duvidar possa ser telegrafia aquelas respostas que suas pernas pronunciam é que a mensagem de quem lá do outro lado da linha ela responde tão séria nos passa despercebida. Mas depois já não há dúvida: é mesmo telegrafia: mesmo que não se perceba a mensagem recebida, se vem de um ponto no fundo do tablado ou de sua vida, se a linguagem do diálogo é em código ou ostensiva, já não cabe duvidar: deve ser telegrafia: basta escutar a dicção tão morse e tão desflorida, linear, numa só corda, em ponto e traço, concisa, a dicção em preto e branco de sua perna polida. 4 Ela não pisa na terra como quem a propicia para que lhe seja leve quando se enterre, num dia. Ela a trata com a dura e muscular energia do camponês que cavando sabe que a terra amacia. Do camponês de quem tem sotaque andaluz caipira e o tornozelo robusto que mais se planta que pisa. Assim, em vez dessa ave assexuada e mofina, coisa a que parece sempre aspirar a bailarina, esta se quer uma árvore firme na terra, nativa, que não quer negar a terra nem, como ave, fugi-la. Árvore que estima a terra de que se sabe família e por isso trata a terra com tanta dureza íntima. Mais: que ao se saber da terra não só na terra se afinca pelos troncos dessas pernas fortes, terrenas, maciças, mas se orgulha de ser terra e dela se reafirma, batendo-a enquanto dança, para vencer quem duvida. 5. Sua dança sempre acaba igual como começa, tal esses livros de iguais coberta e contra-coberta: com a mesma posição como que talhada em pedra: um momento está estátua, desafiante, à espera. Mas se essas duas estátuas mesma atitude observam, aquilo que desafiam parece coisas diversas. A primeira das estátuas que ela é, quando começa, parece desafiar alguma presença interna que no fundo dela própria, fluindo, informe e sem regra, por sua vez a desafia a ver quem é que a modela. Enquanto a estátua final, por igual que ela pareça, que ela é, quando um estilo já impôs à íntima presa, parece mais desafio a quem está na assistência, como para indagar quem a mesma façanha tenta. O livro de sua dança capas iguais o encerram: com a figura desafiante de suas estátuas acesas. 6. Na sua dança se assiste como ao processo da espiga: verde, envolvida de palha; madura, quase despida. Parece que sua dança ao ser dançada, à medida que avança, a vai despojando da folhagem que a vestia. Não só da vegetação de que ela dança vestida (saias folhudas e crespas do que no Brasil é chita) mas também dessa outra flora a que seus braços dão vida, densa floresta de gestos a que dão vida a agonia. Na verdade, embora tudo aquilo que ela leva em cima, embora, de fato, sempre, continue nela a vesti-la, parece que vai perdendo a opacidade que tinha e, como a palha que seca, vai aos poucos entreabrindo-a. Ou então é que essa folhagem vai ficando impercebida: porque terminada a dança embora a roupa persista, a imagem que a memória conservará em sua vista é a espiga, nua e espigada, rompente e esbelta, em espiga.
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