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tranfução de sangue

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O profissional de saúde diante da recusa de transfusão sanguinea por pacientes Testemunhas de Jeová
25 DE OUTUBRO DE 2015 - 29 MINUTES READ
Um dos assuntos que mais despertam dúvidas de profissionais de saúde diz respeito à conduta profissional diante da recusa pelo paciente de transfusão sanguínea, por razões religiosas.
É preciso deixar claro que a relação entre pacientes e profissionais de saúde é hoje amplamente respaldada pelo princípio da autonomia privada, ou seja, pelo respeito à vontade do paciente. Essa vontade sofre limitações apenas em casos específicos, como por exemplo, diante do risco iminente de morte. Entretanto, quando, mesmo diante desse risco, o paciente sustenta a sua vontade em virtude de suas convicções religiosas, o assunto torna-se complexo e necessita de uma análise criteriosa e fundamentada.
A situação mais conhecida é a das Testemunhas de Jeová, segundo as quais transfusões de sangue são condenadas pelos textos religiosos a que se vinculam. Diante do fato de a recusa à transfusão sanguínea ter o potencial de ocasionar o óbito do paciente, sob certas condições, o Conselho Federal de Medicina, já em 1980, editou a Resolução 1021, cuja conclusão se transcreve: “Em caso de haver recusa em permitir a transfusão de sangue, o médico, obedecendo a seu Código de Ética Médica, deverá observar a seguinte conduta: 1º – Se não houver iminente perigo de vida, o médico respeitará a vontade do paciente ou de seus responsáveis. 2º – Se houver iminente perigo de vida, o médico praticará a transfusão de sangue, independentemente de consentimento do paciente ou de seus responsáveis.”
Sustentando haver incompatibilidade entre o texto da mencionada resolução e normas de hierarquia superior editadas posteriormente, notadamente a Constituição de 1988 e o Código de Ética Médica, a Associação das Testemunhas de Jeová solicitou ao Conselho Federal de Medicina em 2014 a revogação daquela. No Parecer 12/14, de 26.09.2014, o CFM reconheceu que a resolução “tornou-se temerária aos conceitos morais e éticos contemporâneos e inconsistente com o progresso científico da medicina”, conferindo prazo de seis meses para que nova resolução fosse elaborada. O prazo, contudo, já se escoou sem que o CFM tenha elaborado uma nova resolução, deixando a situação num vazio normativo que tira a segurança dos profissionais em torno de seus deveres e condutas éticas.
Sob a perspectiva jurídica, a recusa de transfusão sanguínea pelos adeptos da Testemunhas de Jeová deve ser respeitada quando feita por paciente adulto não interditado, no pleno gozo de suas faculdades mentais, especialmente porque, conforme preceitua a Constituição e o Código Civil, o paciente adulto e capaz tem o direito de recusar um determinado tratamento médico, inclusive transfusão de sangue, com base no princípio da dignidade da pessoa humana. Reconhece-se ao paciente capaz, assim, sua liberdade de agir no que diz respeito à escolha do tratamento que melhor lhe aprouver, ainda que motivado pela sua crença religiosa, recebendo também esta última proteção constitucional.
A mesma regra não se aplica, contudo, ao paciente incapaz, que não apresenta discernimento suficiente para a tomada de decisões, principalmente as que tem consequências sobre a sua saúde e vida. Sendo o incapaz representado em suas decisões pelos pais, tutores ou curadores, surge a questão espinhosa de definir se os representantes teriam o poder para, em seu nome, manifestar a recusa de tratamento com base em convicções religiosas.
Os tribunais brasileiros são constantemente instados a se manifestar sobre a questão, e recentemente o STJ se posicionou em caso que fixa importantes premissas para a orientação da análise jurisprudencial ( HC n. 268.459 – SP), por afirmar que em se tratando de paciente incapaz, em que pese o respeito pela liberdade de crença religiosa e pela decisão dos representantes, aos médicos se impõe a realização do procedimento urgente e necessário para o resguardo do bem jurídico da vida. A decisão indica haver uma diferença de análise conforme a autonomia seja exercida diretamente por sujeito capaz ou dependa de representante, sugerindo que na ausência de vontade autônoma e personalíssima do próprio sujeito capaz, deverão os médicos realizar o tratamento, independentemente da invocação por terceiros de argumentos religiosos. A contrario sensu, conclui-se que manifestando pessoalmente o sujeito capaz sua vontade a liberdade de crença poderia ser invocada para impedir a realização do procedimento.
“O presente caso trata de temática que suscita discussão que extravasa os lindes estritamente jurídicos, desaguando em debate de colorido filosófico, moral e religioso. Daí, acredito que, corporificando verdadeiro hard case, por mais completa e profunda que seja a saída alcançada, sempre haverá quem da solução discorde. […] Incursiono, neste passo, em conceitos de bioética, a fim de melhor estruturar o raciocínio que, ao cabo, pretendo se cristalize em um juízo de biodireito. O primeiro princípio tradicionalmente fixado pelos estudos de bioética é o da beneficência, normalmente aliado ao da não-maleficência. Trata-se de deontologia ligada à tradicional visão hipocrática, de que ao médico incumbe o dever de fazer o bem e não causar danos. Outro primado fundamental, na matéria, é o princípio da autonomia, pelo qual é de se respeitar as decisões do paciente, concernentes ao tratamento a ser manejado. O consentimento informado é considerado, hoje, um dos grandes temas da bioética. Esclarecem os especialistas no tema que o “princípio da autonomia não deve ser confundido com o princípio do respeito da autonomia de outra pessoa. Respeitar a autonomia é reconhecer que ao indivíduo cabe possuir certos pontos de vista e que é ele quem deve deliberar e tomar decisões segundo seu próprio plano de vida e ação, embasado em crenças, aspirações e valores próprios, mesmo quando divirjam daqueles dominantes na sociedade ou daqueles aceitos pelos profissionais de saúde. O respeito à autonomia requer que se tolerem crenças inusuais e escolhas das pessoas desde que não constituam ameaça a outras pessoas ou à coletividade. Afinal, cabe sempre lembrar que o corpo, a dor, o sofrimento, a doença são da própria pessoa” (Iniciação à bioética . Sergio Ibiapina Ferreira Costa, Gabriel Oselka, Volnei Garrafa, coordenadores. Brasília : Conselho Federal de Medicina, 1998. p. 58). De toda sorte, é crucial ter em mente que os próprios monografistas advertem que não é possível proceder à absolutização do princípio da autonomia (Op. cit., p. 60). Daí, a “ação dos profissionais de saúde nas situações de emergência, em que os indivíduos não conseguem exprimir suas preferências ou dar seu consentimento, fundamentam-se no princípio da beneficência, assumindo o papel de protetor natural do paciente por meio de ações positivas em favor da vida e da saúde” (Op cit., p. 68). E, mais adiante, assinalam que a “compreensão jurídica prevalente e as normas de ética profissional dos médicos e dos profissionais de enfermagem apontam que no caso de iminente perigo de vida o valor da vida humana possa se sobrepor ao requerimento do consentimento e do esclarecimento do paciente (CEM, arts. 46 e 56)” (Op. cit., loc. cit.). Lembro, também, que, recentemente, o Conselho Federal de Medicina baixou a Resolução 1.995/2012, que trata das “diretivas antecipadas de vontade dos pacientes”, que são definidas como “o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade”. A despeito de, à época do fatos, não se encontrar em vigor tal diretriz, presta-se ela como subsídio exegético. Ocorre que, o próprio documento reza no § 2o do artigo 2o, que o “médico deixará de levar em consideração as diretivas antecipadas de vontade do paciente ou representante que, em sua análise, estiverem em desacordo com os preceitos ditados pelo Código de Ética Médica”. Nesse cenário,
é fundamental não descurar de comando do Código de Ética Médica, já multicitado no feito em apreço. Refere-se ao artigo 22 do CEM (com redação atual conferida pela Res. CFM 1931/2009), pelo qual em situação de risco iminente de morte, o consentimento do paciente e/ou familiares é prescindível, sobrelevando-se o valor-matriz vida. […] Nesse panorama, ausente alternativa que pudesse tempestivamente colocar a vida da filha dos pacientes a salvo, impenderia aos médicos do hospital, passando por cima de qualquer obstáculo, materializar a intervenção que restasse. Caso assim agissem, de uma só vez, estariam dando concreção ao exercício profissional que abraçaram, ao princípio da beneficência, e, justificando a impossibilidade de aplicação tratamento alternativo, no contexto, teriam respeitado, na medida do possível, o primado da autonomia (em relação à concepção religiosa dos pais). (STJ, sexta turma, HC n. 268.459 – SP, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe 18.10.2014).”
A jurisprudência dos tribunais inferiores é farta no que diz respeito ao assunto, apresentando, todavia, posicionamento controverso.
A liberdade religiosa é garantia fundamental, estampada no art. 5º, VI da Constituição da República, de modo que a legislação infraconstitucional não crie embaraços ao exercício de determinada crença. Ocorre, porém, que tal garantia não pode se contrapor à vida, bem indisponível e de valor maior, sem a qual não existe qualquer credo ou crença religiosa. Não cabe, aqui, adentrar os motivos que norteiam a referida crença. A questão é que a Constituição Brasileira, apesar de resguardar a liberdade de convicção religiosa, apenas relativiza o direito à vida na circunstância de atividade terrorista ou caracterizadora de traição à Pátria, consubstanciando-se como um Estado laico, portanto neutro, quanto à perspectiva religiosa. Deve, por conseguinte, prevalecer a proteção à vida sobre a liberdade de convicção religiosa. (26a Vara Federal do Rio de Janeiro.Ação de obrigação de não fazer cumulada com pedido de antecipação de tutela nº 0014859-61.2014.402.5101. Juiza Federal Frana Elizabeth Mendes. Decisão liminar proferida em 27.11.2014)
PROCESSO CIVIL. CONSTITUCIONAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TUTELA ANTECIPADA. CASO DAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. PACIENTE EM TRATAMENTO QUIMIOTERÁPICO. TRANSFUSÃO DE SANGUE. DIREITO À VIDA. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA E DE CRENÇA. – No contexto do confronto entre o postulado da dignidade humana, o direito à vida, à liberdade de consciência e de crença, é possível que aquele que professa a religião denominada Testemunhas de Jeová não seja judicialmente compelido pelo Estado a realizar transfusão de sangue em tratamento quimioterápico, especialmente quando existem outras técnicas alternativas a serem exauridas para a preservação do sistema imunológico. – Hipótese na qual o paciente é pessoa lúcida, capaz e tem condições de autodeterminar-se, estando em alta hospitalar. (TJMG – Agravo de Instrumento 1.0701.07.191519-6/001, Relator(a): Des.(a) Alberto Vilas Boas , 1ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 14/08/2007, publicação da súmula em 04/09/2007) APELAÇÃO CÍVEL. TRANSFUSÃO DE SANGUE. TESTEMUNHA DE JEOVÁ. RECUSA DE TRATAMENTO. INTERESSE EM AGIR. Carece de interesse processual o hospital ao ajuizar demanda no intuito de obter provimento jurisdicional que determine à paciente que se submeta à transfusão de sangue. Não há necessidade de intervenção judicial, pois o profissional de saúde tem o dever de, havendo iminente perigo de vida, empreender todas as diligências necessárias ao tratamento da paciente, independentemente do consentimento dela ou de seus familiares. Recurso desprovido. (Apelação Cível Nº 70020868162, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Umberto Guaspari Sudbrack, Julgado em 22/08/2007)
AGRAVO DE INSTRUMENTO. MEDIDA CAUTELAR INOMINADA. DEFERIMENTO DE LIMINAR. AUTORIZAÇÃO PARA REALIZAÇÃO DE TRANSFUSÃO DE SANGUE. MANUTENÇÃO. Agravo de Instrumento interposto contra decisão que deferiu liminar para o fim de autorizar ao nosocômio autor, caso haja necessidade, a proceder a hemotransfusão, devendo apresentar, no prazo de 5 (cinco) dias, relatório da cirurgia. Norma constitucional garante a inviolabilidade do direito fundamental à vida e prestigia a saúde, como direito de todos e dever do Estado, conforme teor dos artigos 5º, caput e 196. A inclusão da garantia do direito à vida no texto constitucional evidencia a incumbência do dever positivo do Estado de agir para o fim de preservá-la, dever este estendido para o fim de alcançar o direito à saúde. Obtenção da garantia a vida e a saúde, no caso, somente pode ser alcançada com a realização de tratamento eficiente e adequado, prescrito por aqueles que possuem formação profissional para tanto e não com o tratamento que entende o paciente conveniente. Médico que asseverou que diante da cirurgia a ser realizada no paciente poderá haver a necessidade de hemotransfusão para o fim de preservar a sua vida. Manutenção da decisão. RECURSO AO QUAL SE NEGA SEGUIMENTO. (TJRJ, Ag. Inst. 0056515-70.2011.8.19.0000. Des. Rel. Elisabete Filizzola Assunção, DJ 27/10/2011).
É preciso frisar que, apesar da jurisprudência ainda apresentar posicionamento contraditório, há uma tendência doutrinária em reconhecer que a recusa de transfusão sanguínea em pacientes capazes é válida, quando comprovado que essa vontade é livre, consciente e autônoma, não podendo o profissional de saúde agir contra a vontade do paciente. A eventual atuação profissional contrária à vontade claramente manifestada do paciente capaz pode, inclusive, configurar ato ilícito, punível nas esferas civil, penal e ética (CFM).
O atual ministro do STF, Luis Roberto Barroso, já se manifestou nesse sentido:
É legítima a recusa de tratamento que envolva a transfusão de sangue, por parte das testemunhas de Jeová. Tal decisão funda-se no exercício de liberdade religiosa, direito fundamental emanado da dignidade da pessoa humana, que assegura a todos o direito de fazer suas escolhas existenciais. Prevalece, assim, nesse caso, a dignidade como expressão da autonomia privada, não sendo permitido ao Estado impor procedimento médico recusado pelo paciente. Em nome do direito à saúde ou do direito à vida, o Poder Público não pode destituir o indivíduo de uma liberdade básica, por ele compreendida como expressão de sua dignidade. Tendo em vista a gravidade da decisão de recusa de tratamento, quando presente o risco de morte, a aferição da vontade real do paciente deve estar cercada de cautelas. Para que o consentimento seja genuíno, ele deve ser válido, inequívoco e produto de uma escolha livre e informada. (BARROSO, Luis Roberto. Legitimidade da recusa de tranfusao de sangue por Testemunhas de Jeová: dignidade, liberdade religiosa e escolhas existenciais. Disponível em: <http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/themes/LRB/pdf/testemunhas_de_jeova.pdf >. Acesso em 21 out. 2015).
Conclusão diversa se estabelece, contudo, nas situações em que o paciente é menor. Se no mundo contemporâneo tende-se a não mais se questionar o direito do paciente capaz a manifestar sua vontade no âmbito da relação médico-paciente, a discussão sobre a autonomia do incapaz apresenta contornos mais controversos, diante do questionamento sobre a sua capacidade para decidir e da capacidade de seus representantes legais em decidir em seu nome, especialmente diante de um possível resultado morte.
É juridicamente incapaz a pessoa que perdeu, ou ainda não adquiriu – como é o caso dos menores – a capacidade para exercer os atos da vida civil, entendida como a capacidade de realizar escolhas que tenham impactos sobre seu acervo jurídico. Nesses casos, questiona-se se o incapaz, apesar de não ter a capacidade de fato, possui a capacidade para consentir, nomeada pelos portugueses como competência.
Especificamente em relação à autonomia do menor, ventila-se a aplicação da teoria do menor maduro, segundo a qual na constância de um tratamento médico, um menor considerado
maduro seria capaz de decidir, sem qualquer interferência do poder familiar ou de outro responsável legal, sobre os procedimentos médicos indicados para o tratamento de sua saúde. Seria assim possível defender que determinados incapazes, com discernimento atestado, poderiam fazer escolhas autônomas em questões relativas a saúde. Em que pese a validade e o suporte doutrinário do argumento, o mesmo ainda carece de sustentação legal e jurisprudencial – considerando-se inclusive a decisão do HC 268.459 / SP – que permita afirmá-lo com segurança.
Verifica-se, nesse caso, um entendimento substancial no sentido de que a religião tem ligação com a personalidade do indivíduo, não podendo os pais escolhe-la para seu filho. Somada à insegurança jurídica em torno da questão da aplicabilidade da teoria do menor maduro, a jurisprudência tem se posicionado no sentido de que, em sendo o paciente menor de idade, o profissional deve realizar a transfusão de sangue mesmo que à revelia dos genitores.
Ação civil julgada procedente, impondo à genitora o dever de ministrar à filha medicamentos prescritos por médico, sob pena de multa Apelante que alega convicção religiosa e escusa de consciência Direitos inaplicáveis em relação à criança, porque pessoa incapaz – Medicamentos capazes de trazer conforto e diminuição dos sintomas da doença Ausência de elementos capazes de afastar a indicação médica, de modo técnico – Princípio da proporcionalidade – Entre o direito à crença religiosa da genitora e o direito da criança de acesso à saúde, prevalece a garantia do último – Fé professada pelos pais não deve por em risco a integridade física e psíquica do filho incapaz, que não é apto a decidir por si Vida que é o bem maior tutelado pela Constituição – Prioridade absoluta no tratamento de doenças às crianças e adolescentes (artigos 227 da CF e 4º do ECA) – Afronta ao princípio da dignidade humana e desrespeito à saúde física e moral da infante que não podem ser admitidas Recurso ao qual se nega provimento. (TJSP, AP. CIV., 0015879-15.2011.8.26.0664, Des. Rel. Claudia Grieco Tabosa Pessoa, DJ 22/10/2012)
Enunciado 403, CJF O direito à inviolabilidade de consciência e de crença, previsto no art. 5º, VI, da CF, aplica-se também à pessoa que se nega a tratamento médico, inclusive transfusão de sangue, com ou sem risco de morte, em razão de tratamento ou da falta dele, desde que observado os seguintes critérios: a) capacidade civil plena, excluído o suprimento pelo representante ou assistente; b) manifestação de vontade livre, consciente e informada; e c) oposição que diga respeito à própria pessoa do declarante.
Por fim, é importante ressaltar que, no caso do paciente menor, maior celeuma ocorre quando o profissional de saúde procurado também professe da mesma fé dos genitores do menor, concordando com a não realização do procedimento com base nos preceitos da religião, apesar de a conclusão baseada nos conhecimentos médicos se dar pela necessidade do procedimento. Frise-se que o médico tem resguardado no Código de Ética Médica a sua faculdade de manifestar objeção de consciência, não sendo obrigado, em princípio, a atuar contrariamente às suas convicções íntimas e pessoas. No mencionado HC 268.459 / SP, a questão é inclusive enfrentada indiretamente, já que o médico responsável pelo caso é adepto à crença das Testemunhas de Jeová. Deve-se ressaltar, contudo, que o exercício da objeção de consciência não pode privar o paciente menor do necessário tratamento de saúde, devendo o caso ser transferido a outro profissional apto e disposto a realizar o procedimento.
Desta feita, firmamos o entendimento de que, caso o profissional de saúde esteja diante de um paciente adulto e capaz que recuse transfusão sanguínea por razões religiosas, deve ele respeitar a vontade do paciente, tomando a precaução de documentar essa recusa, com a comprovação da manifestação de vontade do paciente, em estado de lucidez, seja pelo próprio depoimento deste, anotado em prontuário, seja pela anexação ao prontuário de documento comprobatório dessa vontade. Nesse caso, entendemos que o médico estará agindo em conformidade com os ditames éticos e jurídicos que envolvem o caso.
Caso o paciente seja menor e sua família manifeste oposição à realização da transfusão, deve o profissional esclarecer aos familiares quanto ao fato de, nesse caso, ele estar obrigado pelos ditames éticos e jurídicos a preservar a vida do paciente, uma vez que ele é incapaz para tomar decisões, em virtude da idade, anotando essa conversa em prontuário. Caso a família se manifeste de forma contrária e tente impedir a ação do profissional, a melhor conduta é o ajuizamento de uma ação judicial, em caráter de urgência, solicitando autorização para a realização da transfusão. O Ministério Público pode ser acionado para tanto, tendo dever legal de agir em defesa do incapaz. Se não houver tempo hábil para uma decisão judicial, deve o profissional realizar o procedimento, mesmo contra a vontade da família, certo de que, caso a família recorra ao Poder Judiciário, existem fundamentos suficientes para defender sua conduta profissional, desde que ele tenha documentado a ação. 
Recusa às transfusões de sangue por convicções religiosas: apontamentos sobre a efetiva tutela dos Direitos Fundamentais
Nisnet Feliciano dos Santos, Hugo Garcez Duarte
 
 
 
 
Resumo: O presente ensaio analisa o problema que envolve a colisão entre direitos fundamentais proporcionado pela recusa às transfusões de sangue por Testemunhas de Jeová. Mais precisamente, discutir que o direito à vida biológica e à liberdade religiosa, ambos consagrados no artigo 5º da nossa Constituição Federal entram em choque no momento da recusa, cabendo ao aplicador do direito analisar tal conflito, de modo a apresentar uma solução ao caso concreto.
Palavras-chave: Transfusão sanguínea; testemunhas de Jeová; colisão de direitos fundamentais.
Abstract: This essay examines the problem involving the collision of fundamental rights provided by refusing blood transfusions for Jehovah's Witnesses. More precisely, argue that the right to biological life and religious freedom, both enshrined in Article 5 of the Federal Constitution clash at the time of refusal, leaving the investor the right to analyze this conflict so as to present a solution to this case .
Keywords: Blood transfusion, Jehovah's Witnesses; collision of fundamental rights.
Sumário: 1 Introdução; 2 A importância das transfusões sanguíneas; 3 As testemunhas de Jeová e a recusa às transfusões de sangue; 4 Dos que defendem a recusa à transfusão sanguínea; 5 Dos que repelem a recusa ao tratamento com sangue; 6 Da colisão entre direitos fundamentais; 6.1 Princípios e regras; 6.2 A solução para colisão entre direitos fundamentais; 7 Considerações finais; 8 Referências.
1. Introdução
O artigo faz menção à recusa às transfusões de sangue, manifestada pelos adeptos à religião Testemunhas de Jeová, por suposto mandamento bíblico.
Primeiramente, discorremos de forma sucinta sobre a história das Testemunhas de Jeová e sua fundamentação para a proibição ao tratamento com sangue.
Nesse segmento, abordamos as divergências que envolvem o tema, demonstrando serem pautadas em direitos fundamentais, igualmente protegidos pela nossa Constituição Federal: o direito à vida e o direito à liberdade de crença.
Posteriormente, analisamos a possibilidade ou não da existência de hierarquia entre os direitos fundamentais, sobretudo, quando da colisão entre eles. Posto isto, falamos sobre os princípios, distinguindo-os das regras dentro do contexto jurídico.
Ademais, enfrentamos algumas questões atinentes às técnicas utilizadas para a solução de conflitos entre direitos fundamentais, apontando a possibilidade de ponderação de valores envolvidos, no sentido de solucionar a questão em dado caso.
Destarte, opinamos sobre o tema apontando ser a escolha mais razoável que se preserve a vida biológica quando de cotejo um com qualquer outro direito.
2. A importância
das transfusões sanguíneas 
O sangue tem uma importância enorme na vida humana, tanto que pesquisas relativas a este e seus componentes podem salvar vidas ou, pelo menos, melhorar a qualidade de vida de quem sofre com certas doenças. Atualmente, já se pode usufruir de hemoterapias (tratamento com sangue ou derivados) eficazes, em que muitos pacientes se beneficiam com uma única doação de sangue, a partir do uso seletivo dos seus componentes.
Contudo, a ciência médica tem apresentado tratamentos e cirurgias sem a utilização de sangue, devido à grande preocupação quanto ao seu uso, como constata Mariane Cristine Tokarski citando Celso Ribeiro Bastos:
“Há sim outros tratamentos alternativos – desenvolvidos e utilizados por médicos alopatas, e não por sectários de uma religião específica – que atingem o mesmo resultado. São eles: os expansores do volume do plasma, os fatores de crescimento hematopoéticos, a recuperação intra-operatória do sangue no campo cirúrgico, a hemostadia meticulosa etc. O fato de se ter mais de um tratamento em substituição à transfusão de sangue já nos leva logo a concluir que este não é o único modo de salvar a vida do paciente. Pode-se, portanto, prescindir dele por outras formas alternativas de tratamento” (BASTOS apud TOKARSKI, 2003, p. 2).
A transfusão sanguínea trata-se de um tratamento médico que não é isento de complicações, entretanto, por mais que detenha perigo, é tão importante quanto a um transplante de órgãos, que, igualmente, embora tenha seus benefícios, traz consigo alguns riscos[1].
Por mais que existam outros tratamentos alternativos, há que se considerar sua inaplicabilidade a todos os casos, como fomenta Aldir Guedes Soriano:
“[...] remanesce o problema, especialmente nos casos em que há uma grande perda de sangue, e o tratamento, chamado alternativo, não é suficiente, para se manter a vida do paciente. Assim sendo, salienta-se que, apesar da evolução da ciência, a terapia transfusional, continua sendo imprescindível nos casos de hemorragias agudas [...]” (SORIANO, 2001, p. 01).
Portanto, há terapias sem utilização de sangue que não podem ser ministradas em todos os casos, havendo situações nas quais só o tratamento hemoterápico (com sangue ou derivados) será realmente eficaz.
Posta nestas breves linhas a importância da transfusão sanguínea e sua relatividade em determinados casos, passaremos ao objeto de discussão do presente trabalho, qual seja, a recusa à transfusão de sangue por parte dos adeptos da religião Testemunhas de Jeová.
3 As testemunhas de Jeová e a recusa às transfusões de sangue
A comunidade religiosa conhecida por Testemunhas de Jeová iniciou suas atividades em 1870, em Alleghny, Pensilvânia, Estados Unidos da América, quando Charles Taze Russell publicou a revista A Sentinela[2], com o fim de expor suas ideias sobre o que considerava como verdade bíblica em contraste com erros doutrinários atribuidos a outras denominações religiosas. A partir do referido, pessoas que recebiam a revista começaram a reunir-se em grupos para estudo da Bíblia, tornando-se conhecidos por “Estudantes da Bíblia” e mais tarde por “Testemunhas de Jeová” (MARTINEZ, 2007, p. 01).
Posteriormente, “visando uma maior divulgação pela página impressa, Russell fundou a Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados da Pensilvânia, a qual se tornou o principal instrumento norteador desse grupo religioso” (MARTINEZ, 2007, p. 01).
“As Testemunhas de Jeová são conhecidas mundialmente pela obra de evangelização realizada voluntariamente de casa em casa e também nas ruas, bem como por recusarem muitas das doutrinas centrais das demais religiões cristãs, pelo apego a fortes valores, tais como a neutralidade política, moralidade sexual, honestidade e a recusa em aceitar transfusões de sangue” (MARTINEZ, 2007, p. 01).
Atualmente, há grande divergência acerca da recusa à terapia transfusional por motivação religiosa. Defensores de tal possibilidade sustentam que a recusa é base de um dogma religioso que deve ser respeitado e admitido pelo mundo jurídico.
Todavia, correntes contrárias vêem a vida biológica[3] como interesse preponderante, sob a alegação de tratar-se a vida “[...] de um valor supremo na ordem constitucional, que orienta, informa e dá sentido último a todos os demais direitos fundamentais” (MENDES; COELHO; BRANCO, 2009, p. 394).
Delineadas as premissas básicas do trabalho, passemos a uma análise mais profunda dos principais argumentos que envolvem a discussão.
4 Dos que defendem a recusa à transfusão sanguínea
A Constituição Federal preceitua em seu art. 5º, VI a inviolabilidade à liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias.
Além disso, o inciso VIII do mesmo dispositivo Constitucional declara que ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.
Seguindo esses ditames, observa-se assegurar a Carta Magna que ninguém será obrigado a recusar suas crenças por imposição do Estado, pois “[...] a liberdade de crença abrange não apenas a liberdade de cultos, alcançando também a possibilidade do indivíduo adepto à determinada religião orientar-se segundo as posições por ela estabelecidas” (GOIÁS, 2009, p. 03).
Nesse sentido discorre João Rodholfo:
“A Constituição ao consagrar a inviolabilidade de crença religiosa, não está dizendo somente que a pessoa está autorizada a acreditar em alguma coisa, antes inclui o direito de exercer os dogmas de sua fé. Isto inclui os cultos religiosos e suas liturgias. Consequentemente, ela também tutela a garantia de expressar sua fé em todos os aspectos de sua vida, como no comportamento, na música ou na decisão sobre tratamentos médicos [...]” (RODHOLFO, 2008, p. 01).
Pode-se ressaltar tratarem-se estes mandamentos constitucionais, da base de fundamentação jurídica para a recusa à terapia transfusional por parte dos adeptos à religião Testemunhas de Jeová.
As Testemunhas de Jeová sustentam não terem o objetivo de renunciar à vida, quando recusam o tratamento com sangue, desejando, unicamente, serem submetidos a um tratamento alternativo, uma vez que existem, cada vez mais, tratamentos sem a utilização de sangue.
Sustentam ainda que tal recusa fundamenta-se no direito a uma vida digna, tendo como base o princípio da dignidade da pessoa humana[4] garantido pela nossa Constituição[5], pois, recebendo o sangue as Testemunhas de Jeová seriam consideradas impuras em seu meio social, sob interpretação feita dos textos bíblicos de Gênesis, 9: 3 – 4, Levítico, 17: 10 – 14 e Atos, 15: 28 – 29. 
Outro fundamento utilizado por seguidores dessa religião para a recusa em submeter-se a determinado tratamento médico reside no art. 5º, inciso II, da Constituição Federal, o qual deixa claro que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo, senão em virtude de lei.
Enfim, para esta corrente de pensamento, os adeptos desta religião podem recusar-se ou desautorizar a terapia transfusional. Para tanto, portam, normalmente, um documento identificando-as, com o intuito de não serem submetidas a transfusões de sangue.
Ademais, conforme Ana Carolina Reis Paes Leme “[...] o direito fundamental à liberdade, em acepção ampla, engloba direitos fundamentais a liberdades específicas, sendo uma delas: a liberdade de religião” (LEME, 2004, p. 01).
Seguindo o raciocínio, a mesma autora aduz que:
“A garantia de liberdade, no aspecto da religião, consiste na possibilidade de livre escolha pelo indivíduo da sua orientação religiosa e não se esgota no plano da crença individual, meramente subjetiva, de foro íntimo, mas abarca a prática religiosa, também denominada de liberdade de culto” (LEME, 2004, p. 01).
Assim sendo, à luz dos argumentos expostos, as Testemunhas de
Jeová defendem deterem o direito de manifestarem sua orientação religiosa, sendo-lhes assegurado o direito de recusa à prática de atos que atentem contra as suas convicções pessoais.
5 Dos que repelem a recusa ao tratamento com sangue
Corrente contrária à recusa de transfusão sanguínea por motivação religiosa, argumenta tratar-se o direito à vida biológica irrenunciável sob qualquer aspecto, sendo a base para a existência de todos os outros direitos, como se depreende nas palavras de Alexandre de Moraes quando defende que “[...] o direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que se constitui em pré-requisito à existência e exercício de todos os demais direitos” (MORAES, 2005, p. 31).
José Afonso da Silva assevera ainda, que a vida é a “[...] fonte primária de todos os outros bens jurídicos” (SILVA, 2005, p. 198).
Neste diapasão Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco, afirmam que:
“Sendo um direito, e não se confundindo com uma mera liberdade, não se inclui no direito à vida a opção por não viver. Na medida em que os poderes públicos devem proteger esse bem, a vida há de ser preservada, apesar da vontade em contrário do seu titular” (MENDES; COELHO; BRANCO, 2009, p. 398).
Os mesmos autores concluem que:
“Assim, nos casos em que a vida se vê mais suscetível de ser agredida, não será de surpreender que, para defendê-la, o Estado se valha de medidas que atingem a liberdade de outros sujeitos de direitos fundamentais” (MENDES; COELHO; BRANCO, 2009, p. 400).
Nesses termos, fazendo uso mais uma vez das ponderações de Ana Carolina Reis Paes Leme, pode-se afirmar que:
“A vida é um direito fundamental, garantida constitucionalmente como bem inviolável, máxime do nosso ordenamento e protegida pelo Estado com prioridade, uma vez que constitui suporte indispensável para o exercício de todos os demais direitos” (LEME, 2004, p. 01).
Seguindo o raciocínio, o Código Penal em seu art. 146, § 3º inciso I, prescreve que não configura o delito de constrangimento ilegal a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou representante legal, se justificada por iminente perigo de vida.
Relativamente ao assunto, complementa Pedro Lenza que:
“[...] se estiver o médico diante de urgência ou perigo iminente, ou se o paciente for menor de idade, pois, fazendo uma ponderação de interesses, não pode o direito à vida ser suplantado diante da liberdade de crença, até porque, a Constituição não ampara ou incentiva atos contrários à vida” (LENZA, 2009, p. 01).
No que tange à postura do médico, vale frisar, se não prestar a devida assistência, pode incorrer no delito de omissão de socorro, descrito no Art. 135 do Código Penal[6].
O Conselho Federal de Medicina, por meio da Resolução 1.931/2009[7], veda ao médico (Art. 22) deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte, além de (Art. 31) desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte.
Vários Tribunais de Justiça já se posicionaram a respeito. Dentre eles, destacamos um do Rio Grande do Sul (AC 70020868162 - 5ª C. Cível - rel. Des. Umberto Guaspari Sudbrack - j. 22.08.2007):
“APELAÇÃO CÍVEL. TRANSFUSÃO DE SANGUE. TESTEMUNHA DE JEOVÁ. RECUSA DE TRATAMENTO. INTERESSE EM AGIR. [...] Não há necessidade de intervenção judicial, pois o profissional de saúde tem o dever de, havendo iminente perigo de vida, empreender todas as diligências necessárias ao tratamento da paciente, independentemente do consentimento dela ou de seus familiares” (RIO GRANDE DO SUL, 2007, p. 01).
No caso, o Hospital alegou que se faz necessária ordem judicial determinando a realização de transfusão de sangue, imprescindível para a continuação do tratamento médico na paciente, ora apelada, a qual se recusa a submeter-se ao referido procedimento, por ser Testemunha de Jeová.
Entendeu o Tribunal supramencionado, ao negar provimento ao recurso, que “No caso dos autos, revela-se desnecessária a intervenção judicial, pois o médico e a instituição hospitalar, ao prestarem seus serviços aos pacientes, têm o dever de realizar todo e qualquer procedimento técnico necessário para a manutenção da vida” (RIO GRANDE DO SUL, 2007, p. 03).
Nesse contexto, não há necessidade nem utilidade da intervenção jurisdicional, pois o médico é obrigado a empregar todos os meios disponíveis para salvar a vida dos pacientes. Portanto, diversamente do alegado nas razões recursais, a manifestação judicial não é imprescindível, porquanto o profissional da medicina tem o dever de tratar o internado, em caso de risco de vida, independentemente de seu consentimento (RIO GRANDE DO SUL, 2007, p. 03-04).
De mais a mais Pedro Lenza apregoa que:
“Conforme noticiado pela Assessoria de Comunicação Social do TRF1, no julgamento do Agravo de Instrumento 2009.01.00.010855-6/GO (26/02/2009), o desembargador federal Fagundes de Deus registrou que no confronto entre os princípios constitucionais do direito à vida e do direito à crença religiosa importa considerar que atitudes de repúdio ao direito à própria vida vão de encontro à ordem constitucional - interpretada na sua visão teleológica. Isso posto, exemplificou o magistrado que a legislação infraconstitucional não admite a prática de eutanásia e reprime o induzimento ou auxílio ao suicídio. Dessa forma, entende o magistrado que deve prevalecer 'o direito à vida, porquanto o direito de nascer, crescer e prolongar a sua existência advém do próprio direito natural, inerente aos seres humanos, sendo este, sem sombra de dúvida, primário e antecedente a todos os demais direitos” (LENZA, 2009, p. 01).
Essa corrente defende a necessidade de tratamento hemoterápico em respeito à própria vida biológica. Sustenta não haver alternativas à transfusão sanguínea para todos os casos que dela necessite, principalmente, naqueles casos em que o tratamento (chamado alternativo), não é suficiente para manter a vida do paciente, como quando há grande perda de sangue.
Destarte, vislumbrados os principais argumentos que sufragam ou não pela recusa à transfusão sanguínea por adeptos da religião Testemunhas de Jeová, nota-se existir um conflito entre bens jurídicos consagrados na Constituição (direito à vida biológica e a liberdade de crença).
Posto inexistir hierarquia entre os direitos fundamentais, discutir como se resolve a celeuma que envolve a colisão entre referidos direitos é o principal alvo do nosso estudo, conforme investigaremos a seguir.
6 Da colisão entre direitos fundamentais
A colisão de direitos fundamentais ocorre quando um direito fundamental interfere diretamente no âmbito de proteção de outro, ou seja, quando dois ou mais direitos consagrados na Constituição encontram-se em contradição no caso concreto.
A solução para tais conflitos fica a cargo do julgador, que para resolver a colisão, deve buscar o sacrifício mínimo dos direitos em “jogo”, realizando a ponderação dos bens envolvidos, conforme observamos na lição de Robert Alexy:
“Se dois princípios colidem – o que ocorre, por exemplo, quando algo é proibido de acordo com um princípio e, de acordo com outro, permitido –, um dos princípios terá que ceder. Isso não significa, contudo, nem que o princípio cedente deva ser declarado inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. Na verdade, o que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face do outro sob determinadas condições. Sob outras condições a questão da precedência pode ser resolvida de forma oposta” (ALEXY, 2008, p. 93).
Vale ressaltar, nenhum princípio tem primazia sobre os demais. Ocorre, todavia, que dado princípio deverá ser aplicado ao caso concreto em determinadas circunstâncias, por ser mais viável do que o outro, sem invalidar o que não foi aplicado.
Antes de apresentarmos como isso se realiza, convém tecer comentários acerca da diferença entre duas espécies de normas: os princípios e as regras.
6.1 Princípios e regras
O ordenamento jurídico deve ser compreendido e interpretado como um sistema de normas, cujas espécies são os princípios e as regras. Importante enfatizar as distinções existentes entre referidas espécies normativas, para que possamos entender a chamada “colisão de princípios”.
No entendimento de a aplicação de uma regra se opera na modalidade do “tudo ou nada”, ou seja, se uma regra é válida, então é obrigatório fazer precisamente o que se ordena, nem mais nem menos[8]. Diante de um conflito entre regras apenas uma delas será considerada válida e como conseqüência, a outra regra deverá ser retirada do ordenamento jurídico, pois será sempre inválida, a menos que seja estabelecido que essa regra encontra-se em uma situação que excepcione a outra.
Os princípios, diferentemente das regras, são mandados de otimização que se caracterizam por poderem ser cumpridos em diferentes graus. São normas que ordenam que algo se realize na maior medida possível, dependendo não só das possibilidades fáticas como das jurídicas (ALEXY, 2008). Em se tratando de uma colisão entre princípios, Alexy[9] esclarece que:
“Em face de uma colisão entre princípios, o valor decisório será dado àquele que tiver maior peso relativo no caso concreto, sem que isso signifique a invalidação do princípio compreendido como de peso menor. Em face de um outro caso, portanto, o peso dos princípios poderá ser redistribuído de maneira diversa, pois nenhum princípio goza antecipadamente de primazia sobre os demais” (ALEXY apud PEDRON, 2005, p. 71). 
Ademais, os princípios contêm uma carga valorativa maior, um fundamento ético, indicando uma determinada direção a seguir.
Conforme Alexy “os princípios não são valores, mas podem ser equiparados a estes. Mesmo os princípios tendo uma operacionalização idêntica aos valores, existe uma diferença básica entre eles. Os valores apontam para o que pode ser considerado melhor, ao passo que os princípios, como normas, apontam para o que se considera devido” (ALEXY, 2008, p. 144-145).
Segundo Barroso “[...] há pelo menos um consenso sobre o qual trabalha a doutrina em geral: princípios e regras desfrutam igualmente do status de norma jurídica e integram, sem hierarquia, o sistema referencial do intérprete” (BARROSO, 2006, p. 340). Que, além disso, “embora os princípios e regras tenham uma existência autônoma, em tese, no mundo abstrato dos enunciados normativos, é no momento em que entram em contato com as situações concretas que seu conteúdo se preencherá de real sentido” (BARROSO, 2006, p. 348).
Os princípios são tidos como normas de um grau de generalidade relativamente alto, enquanto as regras seriam dotadas de menor generalidade. As regras são normas que exigem um cumprimento pleno, ao passo que os princípios não são determinantes para uma decisão. Portanto, as regras são aplicadas de maneira silogística, enquanto os princípios por meio de ponderação ou balanceamento. E embora os princípios possam ser aplicados com maior ou menor intensidade, à vista de circunstâncias jurídicas ou fáticas, isso não afeta sua validade (PEDRON, 2010).
6.2 A solução para colisão entre direitos fundamentais
Frequentemente os princípios entram em rota de colisão e apontam direções diversas. A colisão de princípios tanto é possível, como faz parte da lógica do sistema, que é dialético, uma vez que tutela valores e interesses potencialmente conflitantes. Por essa razão, o aplicador do direito, com base no caso concreto, “[...] irá aferir o peso que cada princípio deverá desempenhar na hipótese, mediante concessões recíprocas, e preservando o máximo de cada um, na medida do possível” (BARROSO, 2006, p. 339).
Neste viés Paulo Bonavides diz que “em determinadas circunstâncias, um princípio cede ao outro, sendo que [...] os princípios têm um peso diferente nos casos concretos, o princípio de maior peso é o que prepondera” (BONAVIDES, 2006, p. 280). 
Frisa-se que se algo é vedado por um princípio, mas permitido por outro, um dos princípios deve recuar. Entretanto, vale insistir, isso não significa que o princípio do qual se abdica seja declarado nulo, nem que tenha que se introduzir nele uma cláusula de exceção.
Ocorrendo a colisão entre direitos fundamentais surge um problema bastante discutido, que é saber qual direito deve prevalecer, levando-se em conta que nenhum direito é absoluto.
A colisão será solucionada levando-se em conta o peso ou importância relativa de cada princípio, a fim de escolher qual deles prevalecerá ou sofrerá menos constrição do que o outro dentro do caso concreto.
O intérprete deverá fazer escolhas fundamentadas, à vista dos elementos do caso concreto, quando se defronte com antagonismos inevitáveis, tais como os que fazem parte do nosso tema, ou seja, relativamente ao direito à vida e a liberdade de crença. Notemos que predominantemente, a aplicação dos princípios nesses casos se dá mediante ponderação.
No entendimento de Barroso:
“A ponderação consiste, portanto, em uma técnica de decisão jurídica aplicável a casos difíceis, em relação aos quais a subsunção se mostrou insuficiente, especialmente quando uma situação concreta dá ensejo à aplicação de normas de mesma hierarquia que indicam soluções diferenciadas” (BARROSO, 2006, p. 346-347).
Conclui o mesmo autor “que o raciocínio ponderativo está sempre associado às noções difusas de balanceamento e sopesamento de interesses, bens, valores ou normas” (BARROSO, 2006, p. 347).
Esse procedimento de ponderação é descrito por Barroso “como um processo de três etapas, das quais na primeira é feita a identificação das normas aplicáveis, enquanto na segunda é feita a compreensão dos fatos relevantes. Ultrapassados estes momentos, parte-se para a terceira etapa, condizente à atribuição geral de pesos, donde se possibilita uma conclusão” (BARROSO, 2006, p. 346-347).
Portanto, para transpor o conflito causado pela recusa às transfusões de sangue por parte das Testemunhas de Jeová, o intérprete utilizará a técnica da ponderação, pautado no princípio da proporcionalidade e razoabilidade. Ressaltando-se que o juízo de ponderação deve sempre visar o sacrifício mínimo dos direitos contrapostos.
Em grande parte da doutrina e jurisprudência brasileiras, “os termos proporcionalidade e razoabilidade são tratados como equivalentes” (NOVELINO, 2009, p. 170).
O princípio da proporcionalidade pode ser melhor compreendido pela análise de três requisitos: a adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Adequação significa que as medidas tomadas sejam aptas a atingir o fim desejado. Necessidade significa verificar, se a medida tomada é a menos gravosa para alcançar os fins desejados, e a proporcionalidade em sentido estrito é a análise se as vantagens superam as desvantagens, “[...] aferida por meio de uma ponderação entre os danos causados e os resultados a serem obtidos.” (NOVELINO, 2009, p. 174).
7 Considerações finais
Podemos afirmar inexistirem soluções prontas para os conflitos de direitos fundamentais, por envolverem valores contrapostos.
A recusa a tratamento médico, pautada em convicção religiosa, busca guarida na inviolabilidade à liberdade de consciência e de crença, nos princípios da dignidade da pessoa humana e, ainda, no princípio da legalidade.
O conflito entre a irrenunciabilidade do direito à vida e a liberdade religiosa, como em toda colisão de direitos fundamentais, deve ser solucionado por meio da análise das peculiaridades do caso concreto, para que se possa chegar ao resultado constitucionalmente desejado.
No que tange a nossa proposta (discutir a recusa a transfusão sanguínea por adeptos da religião Testemunhas de Jeová) casos em que o paciente seja absolutamente capaz e esteja consciente para manifestar sua decisão, desde que exista algum tratamento alternativo ou este não corra risco
de morte, grande parte da doutrina inclina-se para o entendimento de que a vontade do paciente deve ser respeitada. Com base no Parecer 1.931/2009, este também é o posicionamento do Conselho Federal de Medicina Medicina ao conceder ao paciente o direito de decisão sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas e ao estabelecer que o médico, após esclarecer ao paciente sobre o procedimento a ser realizado, deve obter seu consentimento ou de seu representante legal, desde que o paciente não se encontre em risco iminente de morte.[10]
“Entretanto, nos casos em que exista um risco iminente de morte, depois de esgotados todos os meios alternativos, e sendo a transfusão de sangue imprescindível, esta deve ser concretizada, ainda que contra a vontade do paciente, não podendo, o médico ser responsabilizado, pois sua conduta é pautada em normas jurídicas.Em se tratando de paciente incapaz ou inconsciente, a manifestação de vontade não pode ser suprida ou substituída pela dos pais ou responsáveis. A vida do incapaz deverá ser sempre primada e garantida até o momento em que ele possa, conscientemente, usufruir os seus direitos individuais, incluindo seu direito à liberdade religiosa. Se iminente o perigo de vida, é direito e também dever do médico a utilização terapêutica indicada, conforme sólida literatura médico-científica, não importando naturais divergências, sob pena de responsabilização tanto dos médicos, quanto dos responsáveis” (NOVELINO, 2009, p. 180).
É possível notar que o Estado, ao apreciar o caso, tende a colocar-se como maior interessado na vida do paciente, autorizando a transfusão de sangue contra a vontade do paciente, desde que, em iminente risco de vida e ainda, não havendo tratamento alternativo que substitua o procedimento indicado pelo médico.
Ademais, caso o aplicador do Direito vislumbre uma possível colisão entre dois ou mais princípios, deve-se analisar o caso concreto em face dos postulados normativos, fazendo-se necessária a ponderação dos valores envolvidos, com aplicação dos princípios específicos da proporcionalidade e razoabilidade.
Importante observação a ser feita, reside no fato de que não existe lei proibitiva, no sistema jurídico, da opção pela recusa à transfusão de sangue. Mas, ainda não é pacífico o entendimento quanto à questão. Todavia, como forma para solução deste conflito, a técnica de ponderação de interesses, a qual é atribuída pesos a princípios conflitantes, é a que merece melhor destaque ao nosso sentir.
Concluímos, por derradeiro, ser a escolha mais razoável que se preserve a vida biológica quando de cotejo um com qualquer outro direito. Não resta dúvida para nós, que a transfusão de sangue deve ser feita pelo médico caso o paciente se encontre em iminente risco de morte, pois para salvaguardar o direito à vida biológica é tolerável sua preponderância sob o direito à liberdade, aqui incluída a liberdade religiosa, pois não existe ideologia que seja forte suficiente para se sobrepor à preservação do bem maior que é a defesa do direito à vida biológica.
 
Referências bibliográficas:
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Uso ‘não bíblico’ de sangue em transfusões opõe Testemunhas de Jeová e médicos
Inquérito do Ministério Público Federal revela casos controversos e levanta questões sobre necessidade real do tratamento. 
Uma menina de 9 anos, com leucemia aguda, precisa de uma transfusão de sangue. Mas os pais, adeptos da religião Testemunhas de Jeová, não autorizam o procedimento. Um aposentado de 84 anos, com pneumonia grave e também testemunha de Jeová, necessita de transfusão, mas, do mesmo modo, a família não dá o aval.
Casos assim são mais comuns do que se pensa no Brasil, e o de Armando Wolff, o aposentado em questão, é o ponto de partida de um inquérito no Ministério Público Federal
(MPF) no Rio de Janeiro – em uma investigação que traz à tona o embate entre fé e ciência, o papel do Estado na proteção do cidadão, o dilema moral de médicos e o conflito entre dois direitos fundamentais do homem: à vida e à liberdade de escolha.
'Novelo'
Armando Wolff foi internado em 25 de julho de 2010 na Clínica São Lucas, em Macaé, no Norte fluminense. Segundo o prontuário médico, tinha dispneia (falta de ar), arteriosclerose e infecção urinária de repetição, além de anemia crônica. O quadro evoluiu para pneumonia gravíssima. Anêmico e inconsciente, não reagia aos medicamentos, e o hospital tentou que seu filho, Aldo, autorizasse a transfusão de sangue.
Sem autorização do filho, o hospital de Macaé foi à Justiça, argumentando que tinha o dever de salvar o paciente. A transfusão foi autorizada pela Justiça e realizada em 18 de agosto de 2010. Armando Wolff morreu 11 dias depois.
Aldo iniciou, a partir daí, o périplo que deságua no inquérito do MPF. Na ação, ele alega desrespeito à vontade do paciente e cobra "reforço no ensino de medidas alternativas à transfusão de sangue". Wolff não quis dar entrevista. Procurado pela BBC Brasil, seu advogado também não se manifestou.
Ler o inquérito é desenrolar um novelo em um labirinto de fatos e nomes e perceber de que modo se relacionam. Anexado ao inquérito sobre o caso Wolff está o de Luis Augusto do Nascimento, internado em novembro de 2011 no Instituto Nacional de Traumato-Ortopedia (Into), no Rio, para uma cirurgia na coluna. Cardiopata e usuário de marca-passo, Nascimento, testemunha de Jeová, não autorizou a transfusão caso ela fosse necessária. 
O Into lhe deu alta, argumentando que a cirurgia oferecia risco de sangramento e que necessitava da autorização para eventual transfusão. Um amigo de Nascimento, Washington Salvioli Salgado, procurou o MPF, que abriu investigação.
Em 2013, o Into informou ao MPF que ofereceu a Nascimento a possibilidade de autotransfusão, ou seja, retirar o próprio sangue do paciente, armazená-lo e usá-lo na cirurgia. Mas Nascimento não foi mais localizado, e o inquérito foi arquivado.
À BBC Brasil, Salvioli disse que o amigo morreu há cerca de um ano, sem ter feito nem a transfusão nem a cirurgia.
Em nota, o o Into informou que realiza de 45 a 55 cirurgias de média e alta complexidade por dia e que 10% delas exigem transfusões de sangue, sendo oferecida a autotransfusão. Mas que é necessário que o paciente ou seu responsável legal autorize o procedimento.
Pela vida de Luana
Do novelo do inquérito do caso Wolff surgem outros casos pelo país. Aos 9 anos, Luana Manske foi internada em 2014 no Cias, hospital da Unimed em Vitória, para se tratar de leucemia linfoide aguda.
Seus pais, testemunhas de Jeová, não assinaram a autorização para a transfusão de sangue, e a Unimed entrou na Justiça. "Como a menina era menor de idade, a Justiça autorizou sem dificuldades", lembra o advogado da Unimed Vitória, Marcelo Devens.
Os médicos me garantiram que não foi transfusão. Não aceitaria pertencer a uma religião que teria que deixar um filho morrer para agradar a um ser num universo que a gente nunca viu. Não sou um fanático. Quem é pai sabe"
Evanildo Manske, empresário
O pai de Luana, o empresário Evanildo Manske, disse que conversou com os médicos sobre os impedimentos que sua religião impõe. Segundo ele, os médicos utilizaram no tratamento hemoderivados fracionados do sangue, ou seja, pequenas quantidades de elementos do sangue.
Este tipo de procedimento é considerado pelas testemunhas de Jeová como "uma questão de consciência", ou seja, o fiel decide se quer ou não aceitar. Para salvar a filha, ele aceitou.
"Os médicos me garantiram que não foi transfusão. Não aceitaria pertencer a uma religião que teria que deixar um filho morrer para agradar a um ser num universo que a gente nunca viu. Não sou um fanático. Quem é pai sabe", afirma.
Luana, aos 10 anos, está quase concluindo o tratamento. Seus pais criaram uma página no Facebook para que amigos possam acompanhar sua recuperação. A família segue como testemunha de Jeová e Luana foi batizada na religião. No ano que vem voltará para a escola.
Questões bíblicas
Criada nos Estados Unidos no fim do século 19, a organização religiosa Testemunhas de Jeová tem 8 milhões de adeptos em 239 países, segundo seu site oficial, e 800 mil no Brasil. Deus recebe o nome de Jeová, e os adeptos seguem a Bíblia, mas não acreditam no princípio da Santíssima Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo unidos num só Deus Todo Poderoso).
Entre suas práticas religiosas está a proibição de que os fiéis se submetam a transfusões de sangue, graças à interpretação que fazem da Bíblia a partir de versículos de vários livros, como Gênesis e Atos dos Apóstolos. Neste último, recomenda-se que o homem se abstenha "de coisas sacrificadas a ídolos, de sangue, do que foi estrangulado e de imoralidade sexual".
A gente não fala em punição para quem descumpre. Mas é a integridade de um princípio que deve ser preservada. A Bíblia não fala em exceção"
Guilherme Rabello, representante das testemunhas de Jeová
O sangue é entendido como sinônimo de vida e a transfusão, como um pecado que corrompe sua pureza.
"A gente não fala em punição para quem descumpre. Mas é a integridade de um princípio que deve ser preservada. A Bíblia não fala em exceção", afirma o engenheiro Guilherme Rabello, membro da Colih (Comissão de Ligação com Hospitais), órgão que a Associação Torre de Vigia, que reúne as testemunhas de Jeová, mantém para acompanhar casos médicos.
Segundo Rabello, estão barradas a transfusão de sangue total e a de qualquer um de seus quatro principais componentes (glóbulos vermelhos, glóbulos brancos, plaquetas e plasma), porque eles mantêm a simbologia bíblica do sangue. Quanto à terapia com hemoderivados fracionados (receber só a proteína albumina ou o fator Rh, por exemplo), cabe ao fiel decidir.
É a questão de consciência de que falou o empresário Evanildo Manske, pai de Luana. Rabello destaca, no entanto, que a literatura médica mostra procedimentos capazes de reduzir o uso de transfusões.
Resolução
A resolução 1.201/80 do Conselho Federal de Medicina estabelece que, se houver recusa de permitir a transfusão de sangue, o médico, obedecendo ao Código de Ética Médica, deve agir da seguinte forma: se não houver iminente perigo de vida, respeitará a vontade do paciente ou dos responsáveis; se houver iminente perigo de vida, praticará a transfusão mesmo sem consentimento do paciente ou de seus responsáveis.
Em agosto de 2014, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) absolveu da acusação de homicídio um casal de testemunhas de Jeová que proibiu a transfusão de sangue na filha de 13 anos, com grave anemia.
Para os magistrados, os pais não poderiam ser responsabilizados pela morte e os médicos deveriam ter cumprido seu dever apesar da resistência da família. Pela decisão, a invocação religiosa deve ser indiferente aos médicos, que têm o dever de salvar vidas.
O direito à vida inclui uma vida digna, conforme seus princípios. A gente pode achar absurdo abrir mão da possibilidade de viver, mas, para analisar um caso assim, é preciso se despir de conceitos e preconceitos"
Ana Padilha Luciano de Oliveira,
procuradora da República
O tema segue longe da unanimidade, o que deixa mais difícil o trabalho da procuradora da República Ana Padilha Luciano de Oliveira, da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão no Rio de Janeiro, onde está hoje o inquérito do caso de Aldo Wolff. Uma audiência pública foi convocada para ouvir as partes.
"O direito à vida inclui uma vida digna, conforme seus princípios. A gente pode achar absurdo abrir mão da possibilidade de viver, mas, para analisar um caso assim, é preciso se despir de conceitos e preconceitos", afirma ela.
Chamado a se pronunciar, o Conselho Federal de Medicina (CFM) informa, em ofício datado de 30 de setembro, que a resolução 1.201 caminha para ser alterada. Foi aprovado em 2014 um parecer do conselheiro Carlos Vital propondo a revogação da 1.201,
mas não há prazo para isso. "O CFM aguarda as conclusões das diretrizes orientadoras de seguras indicações de transfusões de sangue."
Tais diretrizes estão sendo elaboradas sob responsabilidade da sua Câmara Técnica de Hematologia e abrangerão todas as circunstâncias de transfusões sanguíneas, inclusive aquelas nas quais estarão envolvidas as questões dogmáticas.
"Após as conclusões, a plenária do CFM fará suas avaliações e emitirá uma pertinente resolução sobre as seguras indicações das transfusões de sangue", afirmou Carlos Vital em e-mail enviado pela assessoria do CFM.
 
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O inquérito do caso Wolff havia sido arquivado em 2013 pelo procurador Alexandre Ribeiro Chaves, sob a argumentação de que o direito à vida deve prevalecer sobre a liberdade religiosa.
Na segunda instância, o procurador regional Rogério Nascimento desarquivou o caso em fevereiro deste ano citando, entre outros argumentos, um emitido em abril de 2010 pelo hoje ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso, a pedido da Procuradoria do Estado do Rio de Janeiro. Barroso considerou legítima a recusa de transfusão de sangue por parte das testemunhas de Jeová, entendendo que a decisão se funda no exercício de liberdade religiosa.
Nascimento alerta ainda para um ponto crucial, o inútil debate sobre a crença: "Não cabe análise sobre a razoabilidade da crença. Fosse assim, acabariam protegidas apenas as convicções religiosas mais ajustadas à conduta social dominante".
Para José Francisco Marques Júnior, médico do Hemocentro da Unicamp e integrante da Comissão de Hematologia do CFM, é necessário também que médicos avaliam a necessidade de transfusões. Ele cita estudos mostrando que 40% das transfusões feitas nos Estados Unidos são desnecessárias – não há dados do Brasil.
"Costumo recomendar uma conversa com o paciente, longe de parentes e líderes religiosos, para que ele entenda as consequências da decisão. O médico existe para salvar vidas. A melhor atitude é a que a consciência indica", afirma.

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