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Três Combates da Fome no Brasil

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Três Combates da Fome no Brasil: Josué de Castro, Betinho e Dom Hélder Câmara
1 Cada setor de políticas públicas construiu seus ícones, personalidades que são referência para os gestores e pesquisadores que trabalham na área. Na saúde, por exemplo, temos Sergio Arouca, Osvaldo Cruz, Carlos Chagas, entre outros. Na educação temos Anísio Teixeira, Paulo Freire, Darcy Ribeiro e muito mais. E na área da segurança alimentar e nutricional1 , quais personalidades surgiram? O enfoque contemporâneo da segurança alimentar e nutricional desenvolvido no Brasil atribui a essa noção o estatuto de um objetivo público, estratégico e permanente, característica que a coloca entre as categorias nucleares para a formulação das opções de desenvolvimento de um país (Maluf, 2007). Para se chegar a noção atual2 o Brasil passou por uma longa história de ações voltadas para a questão do abastecimento e do combate à fome. Uma história marcada por indivíduos que lutaram em prol dessa causa. Hoje estamos em plena construção da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que visa promover a intersetorialidade das ações e programas públicos e a participação social. Construção também do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que se compõe das três esferas do governo (federal, estadual e municipal), das conferências também nacionais, estaduais e municipais, pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – CONSEA e, mais recentemente, pela Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional – CAISAN. Tanto o Sistema como a Política estão previstos no principal marco legal, a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional – LOSAN, Lei nº 11.346 de 2006. 1 Um setor de políticas ainda em formação no Brasil e muito relacionada a problemática da fome, um termo com um apelo político muito forte. 2 A definição em uso diz que: “Segurança alimentar e nutricional é a realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde, que respeitem a diversidade cultural e que sejam social, econômica e ambientalmente sustentáveis” (II Conferência Nacional de SAN, Olinda, 2004). 2 Essa construção é fruto de um processo históri co que vem desde o século passado, quando o fenômeno da fome é percebido pela sociedade brasileira como um problema social e político a ser resolvido, que consta na agenda pública. Mas essa percepção nem sempre foi assim e Josué de Castro tem um papel fund amental nessa nova concepção, de um fenômeno estritamente biológico e nutricional para social e político (MAGALHÃES, 1997). Grande parte do que se faz atualmente nas políticas públicas em relação à fome tem a assinatura de três personalidades, isto é, as políticas que são implementadas hoje no Brasil em matéria de SAN tem nas formulações de Josué de Castro, Dom Hélder Câmara e Betinho referências, percepções e idéias que se refletem no problema alimentar e nutricional de nossa população . Quando se fala de fome e insegurança alimentar e nutricional no Brasil esses três nomes merecem atenção: Josué Apolônio de Castro (1908-1973), nascido no Recife, médico, cientista social, professor, geógrafo, deputado federal, diplomata; Herbert José de Souza (1935-1997), sociólogo, marxista e hemofílico, como gostava de se identificar, e Hélder Pessoa Câmara (1909-1999), escritor, bispo e defensor dos pobres. O presente artigo, portanto, pretende demonstrar que eles contribuíram decisivamente para o desenho das políticas públicas na área da segurança alimentar e nutricional – SAN. É notável o legado que essas três personalidades deixaram para o Sistema e a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, atualmente em construção. Para estudar essas personalidades que marcaram essa área no País se faz necessário utilizar dois conceitos que perpassam todo o texto: o primeiro, trajetória de vida e o segundo, path dependency. Na acepção mais simples e corrente do termo, trajetória de vida é comumente chamado de biografia, a descrição da vida de uma pessoa, dos principais acontecimentos e fatos da vida de alguém, já que descrever tudo é meramente impossível. 3 Pierre Bourdieu, em seu artigo denominado A Ilusão Biográfica (1998) faz uma importante ressalva, segundo ele produzir uma história de vida, tratar a vida como uma história, isto é, como o relato coerente de uma seqüência de acontecimentos com significado e direção, talvez seja conformar-se com uma ilusão retórica. Para escapar desta ilusão Bourdieu propõe a noção de trajetória, como “uma série de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo grupo) num espaço que é ele próprio um devir, estando sujeito a incessantes transformações” (BOURDIEU, in AMADO e FERREIRA, 1998: 186). Ou seja, uma trajetória – noção que substituiria a idéia de história de vida – só pode ser compreendida a partir de um quadro de interações sociais. A trajetória de um indivíduo é avaliada a partir do confronto com outros indivíduos num determinado momento e contexto. A biografia com fins sociológicos, portanto, nunca deve ser um fim em si mesma, deve vir sempre aliada a outras técnicas e métodos, já que o objetivo da Sociologia é entender menos o indivíduo e mais a sociedade, que tem como único substrato concreto o próprio indivíduo e suas interrelações. Outro conceito importante para se compreender uma política pública é o de path dependency (Mahoney, 2001). Algumas escolhas e decisões são tomadas em certos momentos históricos que demarcam futuras ações e instituições. De acordo com Mahoney (2001) as políticas públicas são produtos de lutas políticas e processos temporais concretos, o que remete ao conceito de dependência de trajetória. Escolhas são feitas em determinadas conjunturas e restringem as chances de trajetórias alternativas em políticas públicas. Tanto as instituições quanto os indivíduos são diretamente influenciados por essa trajetória da prática das políticas públicas, de uma sociabilidade entre os atores envolvidos. Existiria uma causalidade social dependente da trajetória percorrida observada no tempo, na história (Mahoney, 2001). 4 Nesse sentido, os nomes de Josué de Castro, Dom Hélder Câmara e Herbert de Souza são referências, pois foram verdadeiros semeadores de instituições gove rnamentais e da sociedade civil que caracterizam as ações públicas nessa área. O que vale dizer que na Política e no Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional as escolhas das ações, projetos e programas adotados muito dependeram da longa tradição brasileira nesse setor, da trajetória das instituições e da influência da prática e do pensamento dos três combatentes da fome. O caráter sistêmico, intersetorial e participativo na área de SAN – princípios que conformam a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN) – é prova desse legado. Esses personagens não estão renegados ao passado, o presente se impregna dos referenciais que apontaram os futuros caminhos das políticas públicas de combate à fome no Brasil. É o que mostraremos a seguir. Trajetórias de vida e história das políticas de combate à fome Os três nomes da fome no Brasil tiveram suas trajetórias de vida que se confundem com a história da política de abastecimen to e de combate à fome no País, que se juntou com a saúde e assistência social para compor o que é hoje a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Até a virada do século XIX a questão da fome não era percebida e analisada como um fenômeno social e político, como fenômeno provocado pelo homem contra o próprio homem, como afirmava Josué de Castro (1992). O Brasil colônia e o Brasil monárquico não tiveram ações efetivas de combate à fome (Villa, 2000). A percepção sobre o fenômeno da fome como uma questão e um problema social passível de se intervir só surgiu na agenda pública brasileira no início do século XX. A fome é encarada não mais sob o ponto de vista médico-patológicoe nutricional ou encarada de forma natural, como no caso das secas, mas de forma contínua e social (NASCIMENTO, 2009). 5 Nessa trajetória muito contribuíram essas três personalidades, que tiveram no início da vida grandes dificuldades de sobrevivência. Josué Apolônio de Castro, o mais velho dos três, nasceu em Recife no dia 05 de setembro de 1908. De origem sertaneja, cujo avô paterno foi retirante da forte seca de 1877, qu e assolou terrivelmente o Nordeste, Josué de Castro era filho único de Manuel Apolônio de Castro (mercador de gado e leite e proprietário de terras) e de Josefa de Castro (professora primária). O fenômeno da fome se revelou espontaneamente aos seus olhos de criança nos mangues do Capibaribe, nos bairros pobres da cidade do Recife. Nunca mais esqueceria estas imagens da infância, povoada de miséria e pobreza. Percebendo mais tarde que o mangue era apenas mais uma área, dentre outras, que perecia de fome. Por ordem cronológica, temos Hélder Pessoa Câmara que nasceu em 7 de fevereiro de 1909 em Fortaleza, Ceará. Nasceu franzino, filho de João Eduardo Torres Câmara Filho (maçom, jornalista, crítico teatral e funcionário de uma firma comercial) e de Adelaide Pessoa Câmara (professora primária). Formaram uma família simples e tiveram treze filhos, dos quais somente oito conseguiram sobreviver, os demais morreram vítimas de uma epidemia de gripe, que assolou a região no ano de 1905. O décimo primeiro filho do casal recebeu o nome de Hélder, por escolha do pai, que é a denominação de um pequeno porto, situado na Holanda. A sua tendência religiosa veio a florescer a partir dos quatro anos de idade, devido a influência dos padres lazaristas, que atuavam na Arquidiocese de Fortaleza, conhecido por Seminário da Prainha. Também desde cedo conheceu a pobreza e a miséria nos bairros de Fortaleza. Já Herbert José de Souza, conhecido como Betinho, viveu uma trajetória incomum desde que nasceu, em 3 de novembro de 1935, na pequena cidade de Bocaiúva (MG), marcada pela hemofilia e pelos poucos recursos do pai, passando oito anos 6 morando com a família numa penitenciária onde trabalhava. Parte da infância e da adolescência vive num outro ambiente inusitado, uma funerária. Terceiro de oito irmãos, entre os quais o cartunista Henfil e o músico Chico Mário, Betinho passou de 15 a 18 anos em reclusão, por conta de uma outra doença grave, a tuberculose. A pobreza, a miséria e a fome não são lhes são alheios, são temas que perpassam, portanto, a infância desses três nomes. É uma paisagem não muito distante do cotidiano de suas brincadeiras. Seguindo a trilha histórica da política de abastecimento e combate à fome no Brasil, o ano 1932 é expressivo, com o estudo pioneiro do jovem pernambucano Josué de Castro que, após se formar em Medicina no Rio de Janeiro, é contratado por dois anos como médico em uma fábrica do Recife para aumentar a produtividade dos operários. Castro, então, constata o estado de penúria em que viviam, concluindo que o trabalhador habitava precariamente, se vestia mal e se alimentava pior ainda. Ampliando o estudo, surge daí o inquérito denominado “As Condições de Vida das Classes Operárias do Recife” 3 . Esse inquérito representou o primeiro desta natureza levado a efeit o no País. Logo foram realizados estudos semelhantes em São Paulo, pela Escola Livre de Sociologia e Política, Rio de Janeiro e em outros locais, todos sob os auspícios do Departamento Nacional de Saúde, que procurava estudar a alimentação do povo brasileiro. Partindo desses inquéritos o governo Vargas institucionalizou o salário mínimo4 no Brasil mediante seu diploma normativo, o Decreto nº 2.162 de maio de 1940 (NASCIMENTO, 2002: 47). 3 Publicado no livro “Alimentação e Raça” em 1935, o inquérito foi construído por uma metodologia que empregou cerca de 500 questionários sobre habitação, alimentação e vestuário com famílias operárias de três bairros da capital pernambucana: Santo Amaro, Encruzilhada e Torre. 4 Certamente a história desse importante instrumento de política pública registra uma acentuada queda de seu valor de compra, principalmente nos anos 1970, em que o achatamento do salário mínimo era uma estratégia econômica para alavancar o crescimento do Brasil. Em todo caso, a concepção do salário mínimo como garantidor das condições mínimas de sobrevivência de um indivíduo, como pensado por Josué de Castro, ainda permanece. 7 O Governo Vargas deu início a vários programas que encontramos hoje, é a origem de muitas de nossas políticas. Em 1935 Josué de Castro é nomeado para chefiar o Serviço Central de Alimentação do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários, considerado um marco na assistência alimentar ao trabalhador. Transformando-se no futuro Serviço de Alimentação da Previdência Social – SAPS, ligado ao Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, criado para cumprir com um decreto-lei que estabelecia a obrigatoriedade das empresas com mais de 500 empregados a instalarem refeitórios para os trabalhadores (L’Abbate, 1982 e Anna Castro, 1977). O Serviço tem vigência até 1967, experiência que inspirou o que é hoje o Programa de Alimentação ao Trabalhador do Ministério do Trabalho e Emprego e mesmo ao Restaurante Popular do atual Minis tério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Importante mencionar nos anos 30, particularmente em 1937, o lançamento da cartilha sobre educação alimentar, outro vértice de SAN, elaborada por Josué de Castro juntamente com Cecília Meireles, denominado A Festa das Letras. Apesar de a cartilha ser bastante datada com um tipo de linguajar característico da educação dos anos 1930, ela serve para expressar a preocupação do teórico pernambucano com a questão da difusão de boas práticas de alimentação. O que hoje se observa com os guias alimentares lançados pela Coordenação Geral da Política de Alimentação e Nutrição do Ministério da Saúde, guias que prezam por uma alimentação saudável 5 . Um ano antes, em 1936, após ordenar-se sacerdote aos 22 anos6 , ser nomeado diretor do Departamento de Educação do Estado do Ceará, cargo que exerceu por cinco anos, e de ter ingressado na Ação Integralista Brasileira, Dom Hélder Câmara 5 Conceito que se encontra na Política Nacional de Alimentação e Nutrição lançada pelo Ministério da Saúde em 1999. Consultar http://nutricao.saude.gov.br. 6 Em 1931 ordena-se sacerdote por especial autorização da Santa Sé, em virtude de ainda não ter completado a idade mínima exigida para ordenação, que era a de 24 anos. A precocidade não foi apenas característica de Dom Hélder, mas também de Josué de Castro, medico aos 21 anos, e de Betinho, que já na juventude se interessou pelos problemas sociais e politicos do Brasil. 8 muda-se para o Rio de Janeiro. Vai morar em Botafogo, bairro que por tantos anos acolheu o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas – IBASE, criado por Herbert de Souza, Carlos Afonso e Marcos Arruda. Em 1943, Josué de Castro idealiza e é designado Diretor do Serviço Técnico de Alimentação Nacional – STAN7 que surge nesse contexto de estruturação da economia mundial bastante prejudicada com as duas guerras mundiais. Em 1945, O STAN é substituído pela Comissão Nacional de Alimentação – CNA, que Josué de Castro passa também a dirigir até 1954. Era um órgão do Conselho Federal de Comércio Exterior que tratava de dar um caráter mais permanente às atividades iniciadas pelo STAN: educação alimentar e assistência à indústria nacional de alimentos. O CNA tinha como objetivo estudar os hábitos alimentares e o estado nutricional da população bras ileira; estudar e propor normas da política nacional de alimentação; e acompanhar e estimular as pesquisas relativas às questões e problemas de alimentação (NASCIMENTO, 2002). Entretanto, a CNA criada em 1945 só será regulamentada em 19518 , pois perde importância no governo Dutra (1946-1951), sendo transferida para o âmbito do Ministério da Educação e Saúde, com menor poder de atuação. No ano de sua regulamentação lhe é atribuída a função de Comitê Nacional da Organização das NaçõesUnidas para Agricultura e Alimentação – FAO9 , passando a atuar de acordo com as recomendações desse órgão da Organização das Nações Unidas – ONU. Em 1946 Josué de Castro escrevia sua célebre obra Geografia da Fome, com grande repercussão nacional e internacional, mudando a forma de compreensão sobre o 7 O STAN realizou pesquisas e experimentos na área de tecnologia alimentar e publicou o periódico Arquivos Brasileiros de Nutrição, a partir de 1944. 8 Além da regulamentação, ao órgão também é atribuída funções no sentido de transformá-la em Comitê Nacional de Organização e Alimentação e Agricultura das Nações Unidas, seguindo recomendações da FAO para todos os países membros. 9 Em inglês Food and Agriculture Organization. Atualmente a FAO no Brasil encontra-se legalmente vinculada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. 9 fenômeno da fome, tornando-o definitivamente multidisciplinar10 (idem). Em 1948 é convidado a participar da Primeira Conferência Latino-Americana de Nutrição promovida pela FAO11, ocorrida em Montevidéu, onde foi recomendada a organi zação da assistência alimentar ao escolar para os países participantes. Josué de Castro era delegado do Brasil nesta conferência e, devido ao seu reconhecimento, foi escolhido membro do Comitê Consultivo Permanente de Nutrição da ONU. O mesmo que realizou em 2005 em Brasília sua 32ª. sessão. Também é nos anos 1940 que Dom Hélder consolida uma profunda mudança nas suas idéias que se reflete em suas ações, de integralista e conservador para humanista e esquerdista. Algo que já vinha ocorrendo desde os anos 1930 quando chegou ao Rio de Janeiro, onde morou e trabalhou entre 1936 e 1964. Em 1946 Dom Hélder recebe convite para assessorar o arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Jaime, o que lhe permitiu grande visibilidade pública desde então. Entre suas atividades, colaborou com revistas católicas, organizou o XXXVI Congresso Eucarístico Internacional, exerceu funções na Secretaria de Educação do Rio de Janeiro e no Conselho Nacional de Educação. Nesse sentido, não só Dom Hélder, como Josué de Castro e Betinho tiveram uma relação muito próxima com a educação. Josué de Castro foi durante muito tempo professor e Betinho exerceu funções de coordenação e assessoria no Ministério da Educação e Cultura no Governo João Goulart, onde articulou a favor do projeto de alfabetização de adultos do então jovem professor pernambucano Paulo Freire. Contudo, aprofundar essas relações com a educação ultrapassa os objetivos deste artigo, o que mais nos interessa aqui 10 Usando uma metodologia que mescla a Geografia, a Nutrição, a Sociologia, a História, a Antropologia e a Ecologia, Josué de Castro analisou as características físico-naturais e econômico-sociais desta calamidade que ganhava particularidades em cada uma das cinco regiões que dividiu o País, em termos alimentares. 11 Três anos depois da primeira conferência mundial ocorrida no Canadá, também promovida pela FAO. 10 é destacar as realizações em torno da questão do problema alimentar brasileiro. Os anos 1950 foi de intenso trabalho para os três combatentes da fome, Josué de Castro torna-se deputado federal por duas vezes, encara a presidência do Conselho Executivo da FAO em Roma, além de publicar vários livros e de ter criado após saída da FAO, se não a primeira, uma das primeiras organizações da sociedade civil com o objetivo específico de combater a fome, a Associação Mundial de Luta Contra a Fome – ASCOFAM12 em 1957. Torna-se presidente da associação que não consegue sobreviver aos tempos da ditadura. Para Dom Hélder é a década das realizações e da virada da Igreja Católica para uma inclinação para os pobres e para o estímulo a criação de inúmeras associações e organizações da sociedade civil em torno de questões cruciais para o desenvolvimento do País, como reforma agrária, fome, urbanização e democracia. Com grande liderança de Dom Hélder, na época viceassistente nacional da Ação Católica Brasileira13, a Igreja Católica, com o apoio de vários bispos, defende uma maior responsabilidade social do catolicismo. Nesse âmbito, em 1950, Padre Helder consegue obter apoio para criação da Juventude Estudantil Católica – JEC, de atuação entre os estudantes secundaristas, a Juventude Universitária Católica – JUC, a Juventude Agrária Católica – JAC e a Juventude Independente Católica – JIC (PILETTI e PRAXEDES, 2008: 143). É nesse meio de intervenção na realidade, de busca da justiça social que Herbert de Souza se interessa, logo depois da 12 Faziam parte desta associação Padre Pire, Padre Joseph Lebret, os ministros Paul-Henri Spaak e Maurice Schumann, René Dumont, entre outros. No comitê brasileiro fazia parte Osvaldo Aranha. Nessa associação foram realizados importantes projetos, como um plano nacional de complementação protéica das populações mais vulneráveis, um filme sobre o drama das secas na região Nordeste, um projeto de enriquecimento da farinha de mandioca também no Nordeste. O tema da ASCOFAM ainda carece de mais de estudos. Ela foi mesmo pouco desenvolvida nos escritos sobre o autor pernambucano. 13 É um movimento fundado pelo cardeal Leme em 1935, por orientação do Papa Pio XI, para formar leigos que colaborassem na missão da Igreja de salvar pela cristianização dos indivíduos, da família e da sociedade (PILETTI e PRAXEDES, 2008: 131). 11 maioridade. Flerta com a JEC, influenciado por sua irmã Zilá que já participava. Aliás essas organizações de cunho católico tiveram grande importância nessa época para toda uma geração que no futuro combateram o problema da fome e da insegurança alimentar e nutricional no Brasil, como por exemplo com a criação de organizações da sociedade civil. Interessante observar a escolha por estudar sociologia de Betinho, que se deu por suas irmãs Vanda e Zilá serem bandeirantes, e a primeira assistente social. “Um dia, quando ainda era menino, fomos visitar um lixão em Belo Horizon te. As pessoas dividiam restos de comida com os urubus. Aquilo me marcou muito” (Estado de SP, 14/12/1996 in PANDOLFI e HEYMANN, 2005). Em 1958 Betinho entra na JUC e em 1961 viaja como líder estudantil para a Rússia. No ano seguinte chega ao Rio de Janeiro. Ainda nos anos 1950, Dom Hélder se lança com entusiasmo ao trabalho assistencial, criando a Cruzada São Sebastião em 1955, que procurava interferir na dura realidade das já existentes favelas cariocas 14 . Resulta também de seu empenho um banco para os pobres. Em função do grande número de pessoas que o procuravam para todo tipo de auxílio emergencial nasceu a idéia da criação de uma instituição que centralizasse a obtenção de recursos e donativos (serviço ou dinheiro) dos ricos, dos organismos internacionais e do Estado. Uma espécie de superentidade filantrópica para manter outras entidades menores e socorrer pessoas em situação de risco. Era o Banco da Providência, criado em 1959. Vale citar também a criação da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil em 1952 que além de Dom Hélder também contou 14 A favela da Praia dos Pintos foi a primeira experiência que os “cruzados” enfrentaram, tratava-se de uma proposta polêmica devido à localização da favela, bem no meio do Leblon, zona sul carioca. Em um balanço das ações 1963, a Cruzada contabilizou 910 apartamentos construídos na Praia do Pinto e 46 no Morro Azul, além de construção de escolas com alfabetização, supletivos e cursos profissionalizantes, grande número de serviços e obras essenciais como caixas d’água no Morro Santa Marta, redes de luz e de esgoto, farmácia e atendimento preventivo em várias favelas (PILETTI e PRAXEDES, 2008: 207). 12 com a colaboração de dom José Távora, outra importante personalidade que ajuda a levar a Igreja católica brasileira a ter uma feição menos conservadora. As atividades da CNBB em muito contribuíram para a inserção do tema da fome na agenda pública brasileira. Ligada a ela foi criada em 1982 a Pastoral da Criança, que tem como fundadora a médica sanitarista Zilda Arns, outra grande personalidade no setor. Milhões de vidas foram salvas pelo trabalho dessaorganização desde a sua criação. Faleceu este ano no Haiti, quando estava em missão de paz e reconstrução do país abalado pelo terremoto. Voltando a trajetória de Josué de Castro, em 1950 é escolhido para organizar a Segunda Conferência Latino -Americana de Nutrição da FAO, articulando o encontro em Petrópolis , no Estado do Rio de Janeiro. Como resultado dessa conferência, Josué de Castro consolida sua ida à FAO dois anos mais tarde, passando a dirigir o Conselho Executivo da organização como Presidente (Chairman), permanecendo dois mandatos, de 1952 até 1956. Foi nesse organismo internacional que Castro estimula ainda mais, como já vinha fazendo, a realização de conferências latino - americanas sobre Nutrição. É o que acontece em Caracas, em outubro de 1953, com a Terceira Conferência Latino-Americana sobre Nutrição. É nessa conferência que Josué de Castro apresenta o Plano Nacional de Alimentação e Nutri ção, referindose à necessidade de melhorar a situação alimentar do País de maneira geral, sem mencionar especificamente a necessidade de cuidar da desnutrição somente. No Plano Nacional de Alimentação e Nutrição se estruturou diversas ações de combate à fome, mas pouco foi aplicado na prática. Dentre essas ações, pela primeira vez, aparece exposto um programa de alimentação escolar em âmbito nacional, sob responsabilidade pública. Com grande empenho de Josué de Castro, é implantado em março de 1955 a Campanha de Merenda 13 Escolar e em 1956, a Campanha Nacional de Merenda Escolar 15 , subordinada ao então Ministério da Educação e Cultura. Transformando-se no que é hoje o Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE16 do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – FNDE do Ministério da Educação. Ainda no início dos anos 1950, Josué de Castro é nomeado para a Comissão Nacional de Política Agrária, criada por Vargas em julho de 1951. O intelectual pernambucano juntava, assim, ações da educação alimentar e nutricional com ações na área da agricultura. Os temas da agricultura, como a reforma agrária, tornavam-se cada vez mais presentes na obra e na vida do teórico da fome, algo que já vinha ocorrendo nos anos 1940, principalmente com a obra Geografia da Fome, publicada em 1946. Tanto é assim que em 1958 chega a ser nomeado Ministro da Agricultura por Kubitschek, mas o Partido Trabalhista Brasileiro – PTB, do qual fazia parte e que possuía em seus quadros as mais diversas tendências, pressionou e desfez o ato. Fato semelhante ocorreu no governo Jânio Quadros e no governo João Goulart. No Ministério da Agricultura pretendia articular todas as ações de combate à fome do Governo Federal, algo que se faz atualmente com o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome – MDS. Muitos dos programas relativos à segurança alimentar e nutricional atualmente têm interface com as questões agrícolas, basta verificar o que ocorre com o Programa de Aquisição de 15 A Campanha tinha como objetivo geral proporcionar suplementação e educação alimentar, nutricional e para o consumo aos escolares do primeiro grau, tendo como objetivos gerais: (a) estabelecer hábitos alimentares corretos; (b) conscientizar sobre a importância da nutrição para manter a saúde; (c) ensinar os princípios de boa nutrição e a aplicação dos mesmos na vida diária; (d) transmitir noções de produção, estocagem, seleção, preservação e preparação de alimentos, a fim de obter uma alimentação adequada; (e) ensinar a utilizar, adequadamente os recursos financeiros disponíveis, para assegurar uma dieta suficiente para a família (PELIANO, 2001). 16 Um dos maiores programas de SAN que o Estado possui. É o programa mais antigo do Governo Federal nessa área. Atualmente, o Programa repassa recursos para alimentar cerca de 37 milhões de estudantes do Ensino Fundamental por dia, durante os 200 dias do ano letivo, com uma programação para ampliar essa alimentação para o Ensino Médio. Vale citar a recente Lei 11.947/ 2009 que determina a “aquisição de gêneros alimentícios diretamente da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural ou de suas organizações, priorizando-se os assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e comunidades quilombolas” (art. 14). 14 Alimentos da Agricultura Familiar – PAA, em que há a co-gestão entre o MDS, a Companhia Nacional de Abastecimento – CONAB e o Ministério do Desenvolvimento Agrário. Os anos 1950 também marcam a trajetória de Josué de Castro como político, deputado federal. Na eleição der 1954 Josué fez dobradinha com Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas e que se orgulhou muito de ter transferido votos para Josué de Castro. A partir dessa parceria a questão agrária recebe uma maior atenção por parte de Josué de Castro. Logo no início do segundo mandato, em 1958, propõe o Cupão Alimentação, baseado na experiência americana de 1939 do Food Stamp Plan, um programa que visava a distribuição de um vale para famílias carentes para ser trocado por alimentos. Josué de Castro avalia como positiva a experiência America e propõe um projeto de lei – consultar anexo – para a criação desse mecanismo de combate à fome, mas a proposta não foi à frente. A constr ução de Brasília e outros projetos da época eram prioritários, o combate à fome ficou em segundo plano. Em relação a Betinho foi nessa década, em Belo Horizonte, que entrou em contato com o grupo de religiosos que iria mudar sua vida: os padres dominicanos, que exerceram grande influência na Ação Católica e particularmente dentro da Juventude Estudantil Católica – JEC, onde sua militância começou. A vocação intelectual indissociada da militância vem dessa época. Já na Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), ele fez parte do núcleo que gerou o pensamento político da JUC e depois o da AP, articulando -se posteriormente com o grupo de cristãos progressistas da PUC do Rio. Anos 1960: três exílios Durante muito tempo a cidade do Rio de Janeiro foi uma cidade em comum na vida desse três forasteiros. Josué de Castro, recifense, que chega no Rio nos anos 1920 formando-se em Medicina, volta para a então capital federal em 1935, só saindo em 15 função do exílio, a partir de 1964. Dom Hélder que chega ao Rio de Janeiro vindo do Ceará em 1936 vai sair também em 1964 para Recife. Uma espécie de exílio interno, quando se pensava em enviá-lo para São Luís do Maranhão. Com o advento da ditadura e divergências com Dom Jaime, autoridade máx ima da Igreja na época, não conseguiu mais viver no Rio de Janeiro (PILETTI e PRAXEDES, 2008). Já Betinho, que chega à cidade em 1962, quando participa da fundação e torna-se dirigente nacional da Ação Popular 17, também é atingido pelo novo regime. Depois de ser assessor do então ministro da Educação Paulo de Tarso, quando ia e voltava de Brasília, empenhando-se na campanha de alfabetização de Paulo Freire, é transferido para a Superintendência de Política Agrária, quando então é demitido pelo golpe militar. A partir do golpe entra na clandestinidade18 e anos mais tarde é preso e sai do País. Com o advento do regime militar em 1964 as políticas públicas deixam de ter impressas as idéias de Josué de Castro. O teórico da fome é então exilado e escolhe Paris como cidade para viver. Desta forma, demite-se do cargo de representação junto aos órgãos da ONU em Genebra, e logo depois, em 9 de abril do mesmo ano, tem seus direitos políticos oficialmente cassados por dez anos. Mas não se afasta completamente da ONU, pois torna-se membro do Instituto de Formação Humana e Pesquisa dessa organização para tratar de assuntos sobre a fome. Dando continuidade à sua obra, passa a dirigir o Centro Internacional para o Desenvolvimento – CID, entre 1965 e 1973, que assessorava os países subdesenvolvidos, principalmente africanos. Também dá aulas na Universidade de Paris VIII – Vincennes e participa da Conferência Mundial sobre o Homem e o Meio Ambiente em 1972, em Estocolmo. 17 Organização política criada por militantes católicos oriundos da JUC e da JEC que rompem com a hierarquia da Igreja.18 “Tive vários exílios. O exílio interno foi uma esquiofrenia: estar em seu aís e ser estrangeiro” (Isto É, julho de 1993. In PANDOLFI e HEYMANN, 2005: 27). 16 Em 1973, aos 65 anos de idade e proibido de voltar ao seu País, falece Josué de Castro. É a primeira grande perda que o setor de segurança alimentar e nutricional teve. O ano de 1964 também é marcante para Dom Hélder. Quando tinha 55 anos, Dom Hélder é empossado arcebispo de Olinda e Recife. Assumiu a Arquidiocese, em março de 1964, permanecendo neste cargo durante vinte anos. No final dos anos 1960 e início da década de 1970, quando o Brasil vive o período mais repressivo da ditadura militar, o padre Antônio Henrique, assessor de Dom Hélder, é preso, torturado e morto. Outros vinte colaboradores de sua arquidiocese são presos e torturados. Dom Hélder Câmara, assim como Dom Paulo Evaristo Arns e muitos outros, representou um contra poder do regime militar. Foi dessa ação de vários padres e bispos católicos que muitos militantes sobreviveram ao forte aparelho repressor. Como costumava dizer: “se eu dou comida aos pobres eles me chamam de santo. Se eu pergunto por que os pobres não têm comida, eles me chamam de comunista” (in SANTANA, s./d). Com a abertura política de 1979, que resultou na volta de vários intelectuais, militantes e ativistas de esquerda , são criadas algumas organizações não governamentais fundamentais para a construção da política atual de combate à fome, como o Centro de Estudos e Pesquisas Josué de Castro – CJC em 1980 e oInstituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas – IBASE em 1981. Durante o exílio, Betinho exerceu cargos de direção e consultoria em organizações como o Conselho Latinoamericano de Pesquisa para a Paz – Ipra, a FAO e o Latin American Research Unit – Laru. Com a anistia o “irmão do Henfil" tornou-se um dos símbolos da campanha pelo retorno dos cassados e exilados políticos. De sua experiência no exterior Betinho trouxe a idéia de um novo modo de organização da sociedade civil que não passava pelos partidos políticos nem pelos sindicatos. Eram as chamadas organizações sem fins lucrativos, mais tarde notabilizadas pela 17 sigla ONG. No início dos anos 1980, ajudou a fundar o Instituto de Estudos da Religião – ISER e logo depois o IBASE, este último com grande importância para a dinamização do tema da SAN na agenda pública brasileira até hoje. Desde então passou a recusar qualquer enquadramento no tradicional mundo da política, mesmo no campo da esquerda. A fome e outros problemas do País seriam corrigidos se houvesse a transformação não do Estado, mas da sociedade. Como dizia: “para mim mais importante que o Estado é a sociedade” e “não quero o Estado no planalto, mas na planície” (in PANDOLFI e HEYMANN, 2005: 216). Nos anos 1980 destaca-se também o encontro entre Betinho e Dom Hélder quando da Campanha Nacional pela Reforma Agrária, que tiveram papel decisivo de fundadores e principais articuladores, congregando entidades de trabalhadores rurais em busca de uma solução para a grave questão da distribuição, posse e uso da terra. Em 1985, Betinho soube que havia contraído o vírus HIV numa das transfusões de sangue que precisava fazer periodicamente, em função da hemofilia. A inevitabilidade da doença sem cura o estimulou a abrir uma nova frente de luta, a defesa dos direitos das pessoas portadoras do HIV ou doentes com Aids. Foi no mesmo ano que Dom Hélder se vê obrigado a se aposentar e, mais que isso, a se calar. Deixa mais de quinhentas comunidades de base organizadas, que reúnem operários, trabalhadores rurais, retirantes e pescadores, em luta por melhores condições de vida. Por decisão de Roma é orientado a se retirar da vida pública. Se as idéias de Josué de Castro foram apagadas pelo Estado as de Dom Hélder foram pela Igreja, cada vez mais conservadora desde João Paulo II (Papa de 1978 a 2005). Da construção da segurança alimentar como política pública iniciada no início do século XX com forte contribuição de Josué de Castro até o final dos anos 1980 a política pública de SAN tem u m significado restrito e uma dimensão menor. A partir do final dos 18 anos 1980 e início dos 1990 essa política recebe outro sentido, uma outra dinâmica é manifestada. Em relação a Betinho, ele integrou em 1992 uma das maiores conquistas da sociedade civil na história brasileira. Ele fazia parte da liderança do Movimento Pela Ética na Política, que culminou no impeachment do então presidente Fernando Collor de Mello, em setembro do mesmo ano, que resultou na criação da Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida. A pedido do Betinho foi realizado o estudo chamado O Mapa da Fome, organizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, que divulgou a existência de 32 milhões de pessoas que não dispunham de renda sequer para se alimentar. Esse número, que, na ocasião, correspondia à população da Argentina, foi um importante instrumento de mobilização da sociedade para inserir as temáticas da fome e da segurança alimentar na agenda pública do país. Betinho se tornaria a grande mola propulsora de uma das maiores mobilizações populares contra a fome jamais vistas no Brasil. A ação da Cidadania contra a Fome e a Miséria e pela Vida teve seu auge entre junho de 1993 e junho de 1994. Neste período, o Brasil viveu um dos movimentos mais solidários de s ua história: 25 milhões de pessoas contribuíram de alguma forma – com doação de dinheiro, de alimentos e roupas – e outras 2,8 milhões se engajaram diretamente na campanha, metendo a mão na massa em um dos 4 mil comitês da Ação da Cidadania que foram criados em todo o país. Betinho já tinha alguma experiência com o tema da fome desde 1983, em plena seca no Nordeste que durou de 1979 a 1983, quando o IBASE, junto com a Igreja, fez uma pesquisa sobre quantas pessoas tinham morrido naquele período em conseqüên cia da fome. Mas Betinho queria o nome dessas pessoas. E o IBASE levou para ciência do Governo Federal 5 mil nomes de crianças de 0 a 1 ano que morreram, por depoimento das famílias, em conseqüência da fome sob forma de uma publicação que chamava 19 a atenção para o “genocídio no Nordeste”. Uma ação que não andou por falta de decisão política do então ministro Delfim Neto (SOUZA, 1992). Fruto dessa época surge a proposta da Política Nacional de Segurança Alimentar, produzida em 1991 pelo Governo Paralelo – oposição ao governo Collor, principalmente o Partido dos Trabalhadores liderado por Lula – que preconizava medidas de combate à fome e defendo a institucionalização da parceria entre Estado e sociedade, concretizando-se com a criação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar – CONSEA19 . Em 1997 temos mais uma grande perda, Herbert de Souza morre aos 61 anos, em decorrência da AIDS. Tentando retomar essa mobilização social em torno da fome no final da década de 90, com o apoio de outras instituições filantrópicas, Dom Hélder lançou oficialmente, na Fundação Joaquim Nabuco, a campanha Ano 2000 Sem Miséria. Observava que tínhamos uma obrigação moral e espiritual de e ntrarmos no Terceiro Milênio “sentados à mesa, comendo, saudáveis, fraternos” (SANTANA, s./d.). Mas a Igreja já não era a mesma dos anos 1960 e 1970 que conseguia congregar em torno de si uma grande mobilização social. Em agosto de 1999, vem a falecer a última personalidade de nossa história, a figura do grande peregrino do povo, com sua aparência frágil e a palavra forte, vitimada por uma parada cárdiorespiratória. A Estratégia Fome Zero e os três combatentes da fome A Estratégia Fome Zero possui algumas das idéias de Josué de Castro, Dom Hélder e Betinho. A começar pela população alvo das políticas de combate à fome que atualmente se ampliou para a população indígena e dos quilombolas, mas continua a população 19 Atualmente Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que tem como patronos Josué de Castro e Herbert de Souza. Na tarde de 11 de fevereiro de 1993, o presidente Itamar Franco anunciava o programa de combate à fome, e o convidava para coordenar o Conselho Nacionalde Segurança Alimentar. Alegando limitações físicas, Betinho recusou o convite. 20 rural nordestina e a população da periferia urbana como principal problema, como bem elucidado pelos três. Interessante observar que a experiência americana do Food Stamp Plan e a tentativa de Josué de Castro implementar no Brasil é retomada no Governo Lula quando da criação do Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome – MESA em 2003, atual Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome – MDS. O MESA criou o Cartão Alimentação, depois reformulado para o Programa Bolsa Família, que também agregou o Bolsa Escola do Ministério da Educação e o Bolsa Alimentação do Ministério da Saúde. Além disso, o Governo Lula procurou realizar o que já preconizava Josué de Castro quando iria assumir o Ministério da Agricultura por duas ocasiões, no governo de JK e no de Jango. Isto é, o ministério serviria para criar programas que articulassem outros ministérios, entes federados e a sociedade civil para construir políticas públicas voltadas para o combate à fome, assim como ocorre hoje com o MDS. Josué de Castro tinha em mente articular uma política nacional de combate à fome com ações intersetoriais, o que significa articular ações de vários ministérios, de diferentes esferas de governo local, estadual e nacional, além de contar com a sociedade civil e com as organizações internacionais (MALUF, 2009). Algo que também pensava Betinho quando criou o IBASE (PANDOLFI e HEYMANN, 2005). O que Betinho conseguiu no Brasil, Josué de Castro tentou internacionalmente quando do lançamento da Campanha Mundial Contra a Fome20 de 1960 pela FAO, tornando-se diretor do comitê de organização desta campanha no mesmo ano. A idéia não seguiu adiante, o desinteresse dos países mais desenvolvidos sobre a causa se impôs, 20 Agregou diferentes setores do Estado e da sociedade civil, passando pelas organizações internacionais e o mercado, para angariar fundos e ações em prol do combate à fome. A idéia não seguiu adiante, o desinteresse dos países mais desenvolvidos sobre a causa se impôs. 21 Por fim, e não menos importante, as diretrizes da intersetorialidade e da participação social, além da forma sistêmica em que as política públicas de combate à fome no Brasil tomam corpo atualmente não surgiram por acaso. Essas três personalidades deram sentido a cada um desses termos. Os autores confluíram para uma concepção de democracia participativa, Josué com a experiência da ASCOFAM, Dom Hélder com a CNBB estimulando os movimentos sociais e a criação de organizações da sociedade civil, por fim, Betinho vivenciando um dos períodos mais ricos para o setor de SAN no Brasil. Cidadania, para os combatentes da fome, portanto, é uma condição para a democracia. Para Betinho o “poder democrático é aquele que tem gestão, controle, mas não tem domínio nem subordinação, não tem superioridade nem inferioridade. Uma sociedade democrática é uma relação entre cidadãos e cidadãs. É aquela que se constrói da sociedade para o Estado, de baixo para cima, que estimula e se fundamenta na autonomia, independência, diversidade de pontos de vista e, sobretudo, na ética (...). Um cidadão com sentido ético forte e consciência de cidadania não abre mão desse poder de participação” (SOUZA, 1995). Infelizmente não há muita bibliografia sobre os encontros que estas personalidades tiveram entre si, mas certamente são indivíduos que marcaram a história. Claro que o contexto nacional e internacional atual é outro bem diferente. Mas Betinho, Josué de Castro e Dom Hélder não estão renegados ao passado, o presente se impregna das idéias e ações desses combatentes da fome que, de certa forma, contribuíram com a construção atual do Sistema e da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, conforme consta na Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional – LOSAN. Os desafios para implementar esse Sistema e essa Política ainda são enormes, mas muito maior foi a tarefa iniciada por eles.

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