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CidadaniaCidad U3 Objetivo do estudo Nesta unidade vamos entender o processo histórico do Brasil e sua organização política. Conheceremos o que é cidadania e sua relação com os Direitos Humanos. A Cidadania no Brasil Apresentação Somos súditos ou cidadãos do Estado Brasileiro? O Estado existe para atender as demandas dos seus cidadãos ou os cidadãos somente devem trabalhar e pagar impostos para manter o Estado? O povo brasileiro é um povo pacífi co ou um povo violento? O que podemos aprender com nossa experiência histórica quando presenciamos cenas de abuso de autoridade da força policial, de violência doméstica ou violência contra minorias? Nesta Unidade 3, vamos estudar nossa formação sócio histórica para compreender os legados políticos e institucionais que conformam a cidadania no Brasil h t tp : / / up load .w ik imed ia .o rg /w ik iped ia / commons/3/3a/Oscar_Pereira_da_Silva_-_ Desembarque_de_Pedro_%C3%81lvares_ Cabral_em_Porto_Seguro_em_1500.jpg 2 A Cidadania no Brasil Cidadania | UNISUAM 3 T1 Formação sócio histórica e a cidadania no Brasil Introdução Vimos em módulos anteriores que quando a violência entra na esfera pública, política e cidadania desaparecem. É como se a selvageria fosse um reflexo de uma condição pré- política ou mesmo antissocial. Não existe a possibilidade da interação ou da convivência. É uma relação de dominação avessa a uma condição de igualdade entre cidadãos e mesmo entre seres humanos que possuem os mesmos direitos e deveres no convívio comunitário. Ainda assim, vivemos em uma sociedade extremamente violenta, perceptível nos altos índices de homicídios e casos de violência contra mulher, crianças e homossexuais. Violência também perceptível na relação entre o Estado e o cidadão. Ainda que seja correto afirmar que o Estado deva ter o direito do uso legitimo da força para impor e manter a ordem, presenciamos muitas vezes o abuso do poder ou a subordinação do cidadão que não pode nada em relação a um Estado que pode tudo. Desembarque de Cabral 3 A Cidadania no Brasil Cidadania | UNISUAM No Brasil primeiro veio o Estado e depois o povo Para saber um pouco mais sobre os índices de violência no país acesse: http://www.mapadaviolencia.org.br/ http://www.cartacapital.com.br/sociedade/ violencia-brasil-mata-82-jovens-por-dia-5716.html Saiba mais! Darcy Ribeiro (1995) dizia que o Brasil foi um país inventado pelos portugueses. De fato, o Brasil como território era ocupado por várias nações indígenas e existia muito tempo antes deles aqui chegarem. Existem indícios do conhecimento do nosso território mesmo antes da chegada dos Portugueses (uma terra Brasilis). Contudo, a chegada dos portugueses promoveu uma ruptura nesse fluxo histórico. A partir da sua chegada, temos uma data inicial para começar a contar a história do Brasil moderno, o país que conhecemos. País que surge a partir dos moldes e da imaginação do colonizador. Para ele: “No Brasil, de índios e negros, a obra colonial de Portugal foi também radical. Seu produto verdadeiro não foram os ouros afanosamente buscados e achados, nem as mercadorias produzidas e exportadas. Nem mesmo o que tantas riquezas permitiram erguer no Velho Mundo. Seu produto real foi um povo- nação, aqui plasmado principalmente pela mestiçagem, que se multiplica prodigiosamente como morena humanidade em fl or, à espera do seu destino. Claro destino, singelo, de simplesmente ser, entre os povos, e de existir para si mesmos. ” (Ibid. p.68) Raymundo Faoro (2000) reforça esta percepção quando argumenta que: No Brasil primeiro veio o Estado e depois o povo. Ao contrário dos outros povos que surgem de um processo histórico de construção de uma identidade nacional dentro de um território, no nosso país não foi desta maneira. Ou seja, o português conseguiu apagar a história anterior e fi rmar um novo marco político institucional no qual se construiu a história do Brasil moderno. “Tudo é tarefa do governo tutelando os indivíduos, eternamente menores, incapazes ou provocadores de catástrofes, se entregue a si mesmo. ” (p.85) Oscar Pereira da Silva, 1904 O Estado brasileiro não foi apenas copiado como diria Wanderley Guilherme dos Santos, “um Brasil réplica, duplicata, serigráfi co até” (1993: p.11), se erigiu também a partir de uma organização autoritária e centralizadora. Foi, portanto, uma réplica aos moldes da Europa e principalmente do Estado Português. Talvez, em razão desse “trauma” de origem até hoje buscamos nos modelos vindos de fora uma referência para construirmos nosso futuro. No conjunto dessa refl exão, como temos observado desde as primeiras páginas do nosso curso, a política é resultado da intervenção humana e se espera de nós é que a partir de agora nossa história seja construída de uma forma mais justa e democrática. Ou seja, se nossa história foi resultado da intervenção das pessoas que nos antecederam, nosso futuro enquanto país depende do que fazemos agora. 4 A Cidadania no Brasil Cidadania | UNISUAM Brasil colonial e a cidadania Ao analisar a formação sócio histórica brasileira em seu livro Donos do Poder, Raymundo Faoro, a partir de uma perspectiva weberiana, procurou destacar as estruturas de dominação que permitiram Portugal, mesmo sendo um país pequeno, controlar o vasto território brasileiro. Para ele a dominação portuguesa só foi possível com o desenvolvimento de uma estrutura estamental, burocrática e patrimonialista. Portugal na época era um país altamente avançado e sofisticado, ao contrário do que costumamos pensar, mas que para poder se tornar um império colonial teve de desenvolver um sistema de dominação que fosse capaz de controlar todas as suas colônias. Esse sistema político e administrativo e a organização da sociedade brasileira foi muito mais importante para moldar os padrões de exercício da cidadania no Brasil do que o modelo de exploração da nossa economia. Portugal possuía universidades e escolas de navegação que produziam conhecimentos avançados para sua época, mas politicamente vivia numa monarquia absolutista. Foi esse modelo excludente e hierarquizado que Portugal transplantou para o Brasil. Uma sociedade estamental na qual as pessoas se relacionavam entre si e com o Estado a partir do seu status social. Sua condição de representante da coroa, comerciante, escravo ou senhor seria determinante para distinguir o espaço e o poder de cada um. Talvez, por isso até hoje ouvimos um apelo por algum tipo de diferenciação social do tipo: “você sabe com quem está falando? ” . sabe com quem está falando? 5 A Cidadania no Brasil Cidadania | UNISUAM Somos todos iguais, mas gostamos de criar algum tipo de diferença e obter algum tipo de privilégio. Patrimonial porque não tendo condições de estar presente no território brasileiro e em outros domínios, Portugal delegou aos seus representantes e aos chefes do poder local o direito de administrar aquela região em seu nome. O patrimonialismo se dá quando esses interesses coletivos e privados se confundem. Representando a coroa portuguesa, se governa partindo do princípio de que o poder público é um patrimônio privado. “O Estado se confunde com o empresário, o empresário que especula, que manobra os cordéis do credito e do dinheiro para favorecimento dos seus associados e para desespero de pequena faixa, empolgada com o exemplo do Europeu.” (p.85) Portugal tinha de confi ar em seus representantes e nas elites políticas. Contudo, a possibilidade de fraude era grande e para se buscar uma administração mais efi ciente desenvolveu-se uma burocracia que se caracterizará pelo recurso do cartório para homologar e registrar todas as transações. O recurso não inviabiliza a corrupção, antes reforça o poder das pessoas que possuem este direitoe subordina o cidadão a boa vontade do servidor público que se confunde com aquele que se aproveita da coisa pública. Essa cultura cartorial valoriza o carimbo e a dependência estatal para iniciar e encerrar um negócio. O Estado tem de estar presente olhando, cobrando, regulando, participando do lucro e se isentando dos prejuízos. Enfi m, as raízes do mandonismo local, da burocracia e da elitização da política encontram-se sem dúvida na origem colonial do Brasil e que defi nirá o Estado brasileiro como autoritário e excludente segundo José Luiz Fiori (1992). Mesmo que registremos a história política e eleitoral do século XX, mesmo hoje com a participação efetiva do cidadão na vida política, assim como os serviços prestado por esse Estado aos cidadãos, a relação entre o cidadão e o Estado ainda é bastante problemática e desigual. 6 A Cidadania no Brasil Cidadania | UNISUAM Como característica geral do nosso processo de colonização prevaleceu portanto o dirigismo econômico e político que afastou qualquer possibilidade do desenvolvimento de uma economia verdadeiramente liberal e uma vida política efetivamente mais democrática. A presença do estado direta ou indiretamente, mesmo em termos econômicos se deu de forma elitizada e protegida pelo Donos do Poder político. Marquês de Pombal O leitor mais atento e mais exigente pode argumentar, com razão, que nossa realidade presente não é um desdobramento e continuidade direta do nosso passado. Isto porque, as reformas políticas e administrativas que ocorreram depois da fase colonial tinham cada qual sua própria lógica e contexto específico, mas culturalmente sobrevive uma dificuldade de garantir ao cidadão seus direitos e uma prevalência do Estado em detrimento do cidadão. 7 A Cidadania no Brasil Cidadania | UNISUAM T4 A Organização do Estado Nacional Brasileiro e a Cidadania A vinda da Coroa portuguesa representou uma nova fase na história da cidadania no Brasil. A independência do Brasil, a formação do Estado nacional e a organização e regularização das eleições legislativas deram uma nova dinâmica a vida política nacional. O voto não era universal, dependia da renda anual do eleitor, mas signifi cou um aumentou na atividade política. D. Pedro I http://en.wikipedia.org/wiki/Pedro_I_of_Brazil 8 A Cidadania no Brasil Cidadania | UNISUAM ausência de participação do povo nos acontecimentos políticos mais relevantes da nossa história Entretanto, a iconografia nacional nos chama atenção para um aspecto curioso do desenvolvimento da cidadania no Brasil, a ausência de participação do povo nos acontecimentos políticos mais relevantes da nossa história. Observem que no quadro que representa a independência do Brasil, Dom Pedro I encontra-se as margens do rio Ipiranga e com seu regimento declara a independência praticamente sem a presença do povo. Tela a óleo de Pedro Americo 1888 Nos Estados Unidos, a guerra de independência durou 8 anos de 1775 a 1783 e chegou ao fim após intensos conflitos. Mesmo após a vitória da Guerra de sete anos, a Inglaterra manteve restrições e controles sobre as Treze colônias americanas o que desencadeou a revolta contra o aumento dos impostos sobre o chá e posteriormente a própria Revolução Americana de 1776. Ressaltando, não apenas os conflitos que se estenderam nos anos seguintes, mas o processo de discussão sobre o jovem país que produziram um rico pensamento político que influenciou a Revolução Francesa, a Inconfidência Mineira e tantos outros acontecimentos posteriores. 9 A Cidadania no Brasil Cidadania | UNISUAM Mas, como é possível haver uma República sem cidadãos? Na Proclamação da República novamente percebemos a ausência do povo. Está certo que a cidade do Rio de Janeiro era palco de intensos debates políticos, principalmente em relação a escravidão e o republicanismo, mas a deposição da monarquia em si ocorreu via intervenção militar. Se olharmos o quadro da Praça Quinze e o regimento do Marechal Deodoro da Fonseca, mais uma vez não existe a presença do povo. Tela de Benedito Calixto de 1893 Jose Murilo de Carvalho (1987) nos adverte que estes fatos escondem uma cidadania “bilontra” (malandra). O brasileiro de um modo geral não acredita na política que sempre foi exercida pela elite e para a elite. A troca da monarquia para a República parecia ao cidadão comum uma disputa de poder que não dizia respeito a sua vida. Ele podia até participar do processo mas uma vez realizada a movimentação o povo era esquecido e a política passava a ser operada a partir das elites de maneira autoritária, excludente e sem participação popular. 10 A Cidadania no Brasil Cidadania | UNISUAM República do Café com Leite Entretanto, o povo tem consciência de que quando seus direitos e interesses são ameaçados é necessário a mobilização e ele age nem sempre de maneira tão cordial ou pacífi ca como se pensa. Nas suas palavras: “Bestializado era quem levasse a política a sério, era o que se prestasse a manipulação (...) Quem apenas assistia, como fazia o povo do Rio por ocasião das grandes transformações realizadas a sua revelia, estava longe de ser bestializado. Era bilontra [gozador, espertalhão].” (p. 160). Para provar sua teoria Jose Murilo de Carvalho cita a Revolta da Vacina em 1904. Para o brasileiro, de um modo geral, tanto a Independência do Brasil quanto a Proclamação da República foram movimentos elitistas. Porém, no início do Século XX, o então prefeito do Rio de Janeiro promove uma reforma urbana que moderniza a cidade mas acaba com os cortiços onde moravam milhares de cidadão na região que hoje conhecemos como avenida Presidente Vargas até quase a praça da Bandeira. Logo depois, quando Oswaldo Cruz iniciou sua campanha de vacinação a ameaça de novas desapropriações despertou a revolta da população. Contudo, a pratica política e o exercício da cidadania não mudou qualitativamente nos períodos seguintes. Victor Nunes Leal (1975) registrará no seu livro clássico, “Coronelismo, Enxada e Voto”, a continuidade autoritária e excludente do Estado brasileiro durante o período chamado de República do Café com Leite. O poder local, o mandonismo, alicerçado numa economia rural, diante da incapacidade da presença do Estado em todo o território, será o dono do voto em um país agora pretensamente republicano. Storni, Política Café-com-Leite, Revista Careta https://historiandonanet07.files.wordpress. com/2011/01/rep-velha-cafc3a9-com-leite- charge-do-desenhista-storni-revista-careta.jpg 11 A Cidadania no Brasil Cidadania | UNISUAM Se o aluno tiver oportunidade incentivamos o aprofundamento do estudo desses períodos. Acesse: http://www.ambito-juridico.com.br/site/index. php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_ id=10726 aprofundando Esse domínio será possível com práticas clientelística exercida pelos coronéis ora reforçadas pelo medo e ora barganhando favores numa relação de subordinação. Situação que será amenizada com o fi m do voto de cabresto e o começo do voto secreto com Getúlio Vargas e fortalecimento do governo federal com a Revolução de 1930. O padrão vai se repetir apesar dos diferentes contextos de cada época. Em 1930, a industrialização brasileira se amplia e a população urbana cresce. A insatisfação aumenta, principalmente em relação as classes médias urbanas levando Getúlio Vargas ao poder que apesar de governar de maneira populista exerceria o poder de maneira ditatorial neste primeiro momento. Depois teremos um período democrático-populista que vai de 1945 a 1964, quando assistiremos um afl oramento dos movimentos sindicais e sociais dentro do contexto da Guerra Fria que alimentou o debate político entre capitalismo e comunismo. As tensões sociais levaram a população às ruas defendendo os doisgrupos, mas quando os militares assumiram o poder a população mais uma vez volta as suas casas diante de um regime fechado e rígido que mantinha a democracia apenas a nível formal. Para nós, e do ponto de vista da cidadania, não é necessário nos limites dessa disciplina, entendermos e compreendermos cada especifi cidade da história brasileira, destacamos apenas que existe um movimento de maior ou menor participação popular em períodos democráticos e ditatoriais. Invariavelmente a população é chamada a participação política, mas o acesso ao poder e o seu exercício se mantem durante toda nossa história recente. Vale dizer que os desafi os para a efetivação de uma cultura democrática e a vigência de uma cidadania plena não se deve apenas a um político e cultural da nossa história colonial, mas também ao sistema político brasileiro que apesar de reformado nas sucessivas constituições mantem um poder executivo forte que não favorece os direitos individuais e as garantias do cidadão frente ao Estado. 12 A Cidadania no Brasil Cidadania | UNISUAM relação de dominação que não permite a contestação Vídeo: h t t p s : / / w w w . y o u t u b e . c o m / watch?v=Rpl87ML7WiQ Saiba mAIS https://politica3unifesp.wordpress. com/a-pr imeira-republ ica-e-a- revolucao-de-1930/ T3 Violência, cordialidade e Cidadania no Brasil Como vimos a relação entre o cidadão e o Estado sempre foi precária no Brasil. Mesmo compreendendo que a existência do cidadão pressupõe a existência de uma República, uma vez que na monarquia temos o súdito, a relação do Estado com a população em geral no Brasil sempre foi limitada pela sua própria estrutura organizacional e societária. Esta realidade em si indica a violência e a arbitrariedade que caracteriza a precariedade da nossa cultura cidadã. Mesmo se pensarmos a Inglaterra que é uma monarquia e pensarmos na condição dos súditos da coroa temos uma luta pela afi rmação dos direitos individuais. A teoria política de Locke no século XVII é um exemplo disso. Direitos Naturais aos quais o Estado não tem o direito de invadir como o trabalho, a vida e a propriedade. No caso brasileiro, ao contrário, desde o passado até o presente denúncias e manchetes de arbitrariedade são frequentes o que indica a necessidade de fazer valer os direitos do cidadão a saúde, educação, trabalho, moradia, a integridade da sua própria vida e outros direitos que se confundem muitas vezes com os direitos humanos. Constatamos uma estrutura estatal que de uma maneira geral se apresenta de maneira arbitrária e excludente na sua relação com o cidadão. Do ponto de vista societário, apesar da democracia, presenciamos uma estrutura estamental que resiste socialmente na mediada em que autoridades públicas como juízes e detentores de algum poder político ou econômico se prevalecem em detrimento da maioria da sociedade. Esse contexto nos leva a refl etir como a nossa cultura também traduz essa realidade perversa na violência cotidiana que estabelecemos entre nós e que restringe nossa experiência de cidadania. Sérgio Buarque de Holanda descreve o brasileiro como um homem cordial que foi assimilado pelo senso comum como sinônimo de passividade. De fato, referia-se o autor ao cordes, coração, o caráter afetivo do comportamento do brasileiro. Afetivo e inserido dentro de uma estrutura patriarcal que estabelece uma hierarquia que vai do senhor para os fi lhos, da esposa responsável pela reprodução, ama de leite e sua escrava até outros escravos e agregados como demonstra a tela pintada por Debret. Uma relação de dominação que não permite a contestação. Que pode ser carinhosa com as pessoas mais próximas e dura, ou mesmo cruel, com as pessoas mais distantes. Falta um caráter mais racional e democrático que considere o outro na mesma condição social que o agente. O “homem cordial” não pressupõe bondade, mas somente o predomínio dos comportamentos de aparência afetiva, inclusive suas manifestações externas, não necessariamente sinceras nem profundas, que se opõem aos ritualismos da polidez. O “homem cordial” é visceralmente inadequado às relações impessoais que decorrem da posição e da função do indivíduo, e não da sua marca pessoal e familiar, das afi nidades nascidas na intimidade dos grupos primários. (Candido: 1999, p.17) 13 A Cidadania no Brasil Cidadania | UNISUAM “aos amigos tudo; aos indiferentes a lei e aos inimigos nem isso” Família Patriarcal de Debret O ditado popular, “aos amigos tudo; aos indiferentes a lei e aos inimigos nem isso”, refl ete esta visão de mundo. Uma realidade social na qual a lei, pressuposto do Estado democrático de direito, é esquecida quando nos referimos aos amigos e aos inimigos e como a convivência social é colocada de lado diante do confl ito de interesses. Quando não se respeita a lei ou o indivíduo resta a violência como mecanismo de ordenamento social. A violência pode ser compreendida nas suas diferentes formas. Ela se apresenta frequentemente através da agressão física, mas pode ser verbal, psicológica e outras. Se perpetua nas relações familiares, na escola, no trabalho e em diferentes espaços sociais e de circunstancias de convivência humana. Esse é o sentimento que experimentamos no dia a dia quando percebemos que não estamos sendo respeitados, quando não estamos sendo tratados de uma maneira digna e justa. A revolta realimenta a violência no comportamento social e atinge com frequência o distante ou subalterno naquele modelo patriarcal apresentado. A violência contra a mulher, homossexuais, crianças, o trabalhador se justifi cam por estarem na hierarquia social em um degrau abaixo. Esta lógica permite perdoar uma infração cometida pelo fi lho do senhor e punir ferozmente o fi lho do escravo. Nada é mais contrário para a consolidação de uma sociedade democrática e cidadã que a vigência dessa cultura de violência que escolhe e seleciona suas vítimas de maneira arbitrária e pessoal. http://www12.senado.gov.br/jornal/edicoes/especiais/2013/07/04/ imagens/familia-brasileira-sec-19-xix-jean-baptiste-debret 14 A Cidadania no Brasil Cidadania | UNISUAM Uma cultura cidadã deve universalizar o respeito a pessoa humana em todas as relações sociais. Justifi ca-se, diante deste cenário de difi culdade, legislações especiais que procurem proteger um grupo social ou outro. Porém, o que se espera quando falamos em uma sociedade efetivamente democrática e cidadã é a garantia de os direitos iguais para todos, a certeza e o rigor de punição sufi ciente para inibir condutas violenta, de discriminação ou preconceito. Não se constrói a democracia criando uma disputa de forças entre maioria e minoria, mas criando condições de preservar o pluralismo. Possibilitar a convivência na diversidade. Toda realidade social que coloca uns contra outros inviabiliza a construção de outras alternativas possíveis que podem ser atingidas a partir do diálogo. A democracia surgiu não para rivalizar ideias ou grupos, mas para permitir sua convivência, por isso a máxima aristotélica que defi ne o fi m do direito de um indivíduo quando começa o direito do outro. Esse respeito ao outro é fundamental em qualquer situação que nos encontramos. Nisso temos muita para avançar. Mas não podemos desistir, não é mesmo? T4 Cidadania e Direitos HumanosQuando falamos em direitos humanos, em termos de senso comum, sempre associamos aos direitos dos criminosos como se os problemas sociais fossem da democracia ou das ciências sociais. Argumento fazendo uma analogia. Se não conseguimos curar uma doença é porque ela não tem cura ou o diagnóstico foi feito errado. Não é problema da pneumonia ou do câncer, mas é impossível tratar uma doença se o problema é outro. O remédio não funciona. Infelizmente, os problemas sociais não são tão facilmente resolvidos e normalmenterequerem um esforço coletivo muito maior. Em regra, o problema não é os direitos humanos, mas a realidade complexa que vivemos. Importante frisar que todos querem fazer valer seus direitos e se consideram cidadãos, defendem a cidadania, mas quando falamos em direitos humanos não existe consenso. Cidadania e direitos humanos parecem ser coisas completamente diferentes uma da outra. De um modo geral, falamos de cidadania quando pagamos impostos e não recebemos serviços públicos adequados como saúde e educação. Sempre que ouvimos algo sobre direitos humanos normalmente está associado a violência e criminalidade. Assim, percebemos como direitos que são naturais e universais são diferentes de direitos que fazem parte de um conjunto de direitos e deveres ligados às ideias de cidadão e cidadania. Um pequeno exemplo esclarece, penso eu, essa questão: uma criança não é cidadã, no sentido de que ela não tem certos direitos do adulto, responsável pelos seus atos, nem tem deveres em relação ao Estado, nem em relação aos outros; no entanto, ela tem integralmente o conjunto dos Direitos Humanos. (Benevides: sem data, p.6) De fato como ensina Benevides, os direitos humanos estão relacionados as necessidades mais básicas da nossa condição humana como a vida e a liberdade. Eles versam sobre direitos que devem ser universais e precisam ser respeitados independentemente da existência de uma legislação. O princípio é o da dignidade humana que observamos em todas as pessoas independentemente da origem, classe social ou opção sexual e devem prevalecer em qualquer país. Nesse sentido, preservar a integridade física, o combate da tortura, das práticas de violência ou da escravidão são desdobramentos lógicos dessas premissas. 15 A Cidadania no Brasil Cidadania | UNISUAM As diferenças regionais também são importantes na compreensão dos direitos humanos. Os direitos humanos são universais mas evoluem de acordo com a época e o lugar. Isto porque em época anterior a mulher era compreendida como inferior ao homem e em muitas sociedades ainda é assim. Considerar a mulher igual ao homem signifi ca transformar todas as dimensões da vida social, inclusive as afetivas. Padrões culturais e comportamentais são afetados e precisam mudar. Então, problemas que anteriormente fi cavam “escondidos” agora são debatidos. Aqueles que se benefi ciavam da realidade anterior reclamam sem considerar que a situação passada, de fato, favorecia apenas um lado da sociedade. As diferenças regionais também são importantes na compreensão dos direitos humanos. Temos um impasse importante, principalmente se considerarmos as diferenças entre o ocidente e o oriente, entre povos de diferentes culturas e religião. O esforço da UNESCO e da ONU é na difusão desses valores humanista que apesar de tudo encontram resistência em alguns países. Essas mudanças geram uma visão que se amplia da nossa condição humana e faz com que novos temas sejam inseridos na questão dos direitos humanos como o trabalho infantil, questões de gênero ou no que se refere a preservação do meio ambiente. A cidadania parte de uma outra perspectiva. Ela surge historicamente para identifi car a relação política e social que existia entre o cidadão e a cidade, entre ele e os outros cidadãos. Atualmente, essa relação se dá entre o cidadão e o Estado e como temos ressaltado neste curso a necessidade da convivência e da liberdade. http://www.saltoquantico.com.br/wp-content/uploads/Olhares1.jpg 16 A Cidadania no Brasil Cidadania | UNISUAM Segundo Benevides: Cidadania e direitos da cidadania dizem respeito a uma determinada ordem jurídico-política de um país, de um Estado, no qual uma Constituição defi ne e garante quem é cidadão, que direitos e deveres ele terá em função de uma série de variáveis tais como a idade, o estado civil, a condição de sanidade física e mental, o fato de estar ou não em dívida com a justiça penal etc. Os direitos do cidadão e a própria ideia (sic) de cidadania não são universais no sentido de que eles estão fi xos a uma específi ca e determinada ordem jurídico-política. Daí, identifi camos cidadãos brasileiros, cidadãos norte-americanos e cidadãos argentinos, e sabemos que variam os direitos e deveres dos cidadãos de um país para outro. (Ibid. p.5) Mesmo que se considere as diferenças entre cidadania e direitos humanos defendemos que esses dois temas são muito próximos um do outro e na verdade são difíceis de serem separados na prática. Se analisarmos a história da cidadania moderna, ela está inserida na formação dos Estados nacionais e na conquista de direitos do povo em relação ao poder estatal. O mesmo contexto histórico e político no qual se desenvolve a ideia de direitos humanos. Ambos são herdeiros da Declaração de Direito na Inglaterra em 1689 e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 na França. Em certo sentido, os direitos humanos são os mais básicos e vem primeiro, mas na medida em que falamos de dignidade ele se amplia e só pode se justifi car, se efetivar uma condição de vida que em última instancia equivale a do cidadão. A dignidade da vida humana pressupõe acesso a moradia, educação, trabalho e outros recursos sem os quais uma pessoa normal, em pleno século XXI, não pode se considerar pleno. Cidadania, como temos visto desde o primeiro módulo, depende da democracia para que as pessoas possam conviver, com liberdade e respeito ao outro. Ela só pode exercer plenamente seus direitos se os direitos humanos existirem de fato. Não se concebe a vigência da cidadania sem que tenhamos o respeito da individualidade humana e as condições mínimas da sua sobrevivência e coexistência. Nessa perspectiva uma sociedade democrática verdadeiramente, não apenas do ponto de vista formal de eleições e leis, requer a convergência da cidadania e dos direitos humanos. Colaboram para que esse cenário não prospere os problemas sociais como a desigualdade social, o desemprego, a criminalidade, tráfi co de drogas assim como a defi ciência das nossas instituições políticas e sociais expressas na corrupção, no acesso à justiça, saúde pública e outros. Uma sociedade complexa com fortes demandas em todos esses segmentos enfrenta sem dúvida um desafi o sério na universalização dos direitos humanos e na efetivação da cidadania. Em certo sentido, as difi culdades apontadas são faces de um Estado autoritário e excludente que desde de sua origem se organiza de maneira elitista e distante da população. Vale ressaltar que não se trata de uma elite no sentido de um grupo específi co ou em razão de um critério econômico, mas daqueles que ocupam o governo em qualquer tempo. O fato é que não se democratiza o poder executivo, não se limita o poder do Estado para que o cidadão tenha seus direitos assegurados. Ao contrário, observa-se a ampliação do poder Estatal como um agente civilizador no qual devemos confi ar na boa vontade do governante. 17 A Cidadania no Brasil Cidadania | UNISUAM Vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=CpsGlcptwFU São vários os problemas e muitos espaços para intervenção, então a questão é por onde começar? aprofundando pare e reflita as dificuldades apontadas são faces de um Estado autoritário e excludente problemas sociais 18 A Cidadania no Brasil Cidadania | UNISUAM Bibliografia BENEVIDES, Maria Victoria. Cidadania e direitos humanos. São Paulo,Instituto de Estudos Avançados/USP, (Sem data). Texto disponível no site: www.iea.usp.br/artigos CANDIDO, Antonio. “Prefácio”. In HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. CURI, Isadora Volpato. A Construção da Cidadania: poder públicoe poder privado. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC n. 13 – jan./jun. 2009 DUARTE, Nestor. Ordem Privada e Organização Política Nacional: contribuição à sociologia brasileira. São Paulo: Editora Nacional, 1966. FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. V. 1 e 2/ 10 ed. São Paulo: Globo; Publifolha, 2000. FIORI, José Luiz. “Economia del Estado Desarrolista em Brasil”, in Revista de la CEPAL, vol. 47, pp.187-200, 1992. FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala. 25 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto. Rio de Janeiro: Forense, 1975. RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Razões da desordem. Rio de Janeiro: ROCCO, 1993. Video Link: O Povo Brasileiro de Darcy Ribeiro - Matriz Tupi https://www.youtube.com/watch?v=Dmi0Jn_9sPA O Povo Brasileiro de Darcy Ribeiro - Matriz Portuguesa https://www.youtube.com/watch?v=3kLJ8mmHbKo O Povo Brasileiro de Darcy Ribeiro - Africana https://www.youtube.com/watch?v=PzlVq5U177E 19 A Cidadania no Brasil Cidadania | UNISUAM
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