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Revista da Faculdade de Direito Milton Campos Nova Lima V. 26 p. 343-360 2013 A Sociedade de Risco e o Direito Penal Juliana Falci Sousa Rocha Cunha Virgínia Afonso de Oliveira Morais da Rocha Cidade/Estado: Belo Horizonte/MG E-mail: virginia.afonso@uol.com.br falci@adv.oabmg.org.br Recebido: 20/10/2013 Aprovado: 18/11/2013 ________________Sumário________________ 1. Introdução. 2. Sociedade de risco. 2.1 A contribuição de Ulrich Beck. 2.2 A modernização de Anthony Giddens. 2.3 O sistema autopoiético de Luhmann. 3. Globalização. 4. Sociedade de risco e o novo paradigma da criminalidade. 4.1 A flexibilização do direito penal. 4.2 A setorização do direito penal. 4.2.1 O direito penal de velocidades. 4.2.2 O direito penal do risco. 4.2.3 O direito penal “do inimigo”. 4.3 Traços distintivos do bem jurídico protegido no contexto da sociedade de risco. 5. Considerações finais. Referências. Resumo O presente trabalho tem como objetivo estudar a sociedade de risco como fenômeno sociológico e criminal, buscando a sua origem, prevenção e possível controle. Inicialmente, será feita uma breve análise do conceito de sociedade de risco, decorrente de um entrelaçamento estrutural e tecnológico surgido numa era pós-industrial. Serão abordados vários conceitos sociológicos sobre o tema, fazendo-se uma apresentação das visões de seus principais autores e a influência de seus pensamentos para essa sociedade. Em seguida, serão perquiridas as definições e conceitos do instituto da globalização e os seus reflexos numa era pós-moderna pautada pela insegurança, instabilidade e desconfiança. Por fim, a última etapa do trabalho consiste no estudo da criminalidade em face dessa sociedade de risco, apresentando diversas correntes dogmáticas e os verdadeiros bens jurídicos protegidos diante de um direito penal supra-individual. Palavras-chave: Sociedade de Risco. Concepções Sociológicas. Globalização. Reflexos Penais. Advogada, Professora Universitária, Mestranda em Direito Empresarial - Faculdade Milton Campos. Especializada em Direito Empresarial - Faculdades Milton Campos e em Direito Civil Faculdades Milton Campos. Graduada em Direito - Faculdades Milton Campos, Administração de Empresas – Centro Universitário UNA e Tecnologia em Processamento de Dados – Centro Universitário UNA. Advogada, Professora da Faculdade de Direito Milton Campos, Especialista em Direito Público e Mestranda em Direito Empresarial – Faculdade Milton Campos. Professora na Pós-Graduação em Ciências Penais da Faculdade de Direito Milton Campos. Graduada em Direito – Faculdade Milton Campos. Revista da Faculdade de Direito Milton Campos Nova Lima V. 26 p. 344-360 2013 1 Introdução O presente trabalho é fruto de uma reflexão sobre a sociedade de risco, tema que com repercussão mundial, haja vista ser um fenômeno de integração supranacional. Destaca-se a preocupação em delimitar o conceito de uma sociedade de risco, tendo como marco teórico os apontamentos do sociólogo alemão Ulrich Beck. A preocupação em face de uma sociedade pós-industrial e de um mundo globalizado demonstra a nítida correlação existente entre a sociologia e o direito penal, caracterizando, assim, uma interdisciplinaridade entre tais ciências. Saliente-se que o presente trabalho não pretende esgotar todas as escolas sociológicas e dogmáticas jurídico-penais sobre o tema, apenas propõe uma discussão sobre o futuro de uma sociedade totalmente desestruturada e desconfiada de seus institutos. A partir dessa problemática, foram analisados os efeitos gerados por uma sociedade denominada de risco e, conseqüentemente, buscou-se oferecer respostas, mesmo que transitórias, as novas questões surgidas como, por exemplo, a proposição de um direito penal de risco, baseado na proteção de direitos supra-individuais. Desta forma, à luz dos preceitos da Sociologia e do Direito Penal, o presente trabalho tem o objetivo de repensar as categorias vigentes e sugerir novos instrumentos capazes de regulamentar e garantir uma proteção para este novo universo que se faz presente: a sociedade de risco. 2 Sociedade de risco Desde a década de 90, a sociedade de risco tem sido discutida em todo o mundo, o que se deve à contribuição de Ulrich Beck, sociólogo alemão, com a publicação do seu livro “Sociedade de Risco”. Segundo ele, a sociedade industrial deu lugar à sociedade de risco, segundo a qual a distribuição de riscos não equivale tão somente às diferenças econômicas, sociais e geográficas da sociedade moderna. As técnicas e as ciências não têm sido capazes de controlar tais riscos, o que tem acarretado sérios problemas, dentre eles aqueles relacionados à saúde humana e ao meio ambiente. Entre os riscos abordados pelo renomado Ulrich Beck encontram-se os riscos químicos, genéticos e nucleares, que são, segundo GUIVANT (2001), “produzidos industrialmente, externalizados economicamente, individualizados juridicamente, legitimados cientificamente e minimizados politicamente”. Neste contexto, nota-se o Revista da Faculdade de Direito Milton Campos Nova Lima V. 26 p. 345-360 2013 surgimento de uma nova forma de capitalismo, que transforma a economia e a ordem global, impactando diretamente na vida de toda a humanidade. A sociedade de risco pode ser identificada em três fases: Idade Moderna, onde os riscos são pequenos e controláveis; final do século XIX e início do século XX, período no qual buscou-se conter os riscos; e finalmente a fase iniciada no Estado do Bem Estar Social (Welfare State) até os dias atuais, ocasião em que surgem riscos graves e incontroláveis, devido ao grandioso crescimento da sociedade industrial. Todavia, nota-se que existem diferentes classificações quanto às fases da sociedade de risco, sendo que para Ulrich Bech, por exemplo, existem a Primeira e Segunda Modernidade, o que será posteriormente abordado. Assim sendo, segundo DEZALAY e TRUBEK, citados em obra organizada por FARIA (2010), atualmente estamos passando por processos e mudanças no cenário mundial, quais sejam: mudança dos padrões de produção, união de mercados financeiros, aumento da importância das empresas multinacionais, crescimento da importância do intercâmbio e aumento de blocos regionais de comércio, ajuste estrutural e privatização, hegemonia de conceitos neo-liberais de relações econômicas, tendência mundial à democratização, proteção dos direitos humanos e renovado interesse no “império do direito”, além do surgimento de protagonistas supranacionais e transnacionais promovendo os direitos humanos e a democracia. Neste contexto, nota-se que a sociedade de risco está cada vez mais presente em todos os países e tem influenciado diversos estudos relacionados à globalização, bem como influenciado diretamente no campo jurídico, especialmente no que se refere ao Direito Penal, objeto do presente trabalho. Isto posto, é importante definirmos o que é risco. Para FERNANDES (2001): [...] os riscos dizem respeito a danos possíveis, mas ainda não concretizados, e, mais ou menos improváveis, que resultam de uma decisão, e por assim dizer, podem ser produzidos por elas e não se produzem caso sejam tomadas decisões diversas. Entretanto, FERNANDES (2001) relembrou que os riscos sempre existiram. Ele cita, por exemplo, que na remota época dos grandes descobrimentos surgiram os seguros marítimos. No mesmo sentido LUHMANN (1993)já afirmou que “o seguro marítimo é uma forma arcaica de controle do risco”. Os riscos atingem toda a sociedade, independente de desenvolvimento econômico e político, nível social e educacional. Ele não respeita as fronteiras entre os países e/ou blocos econômicos. Eles podem ser locais e globais. Na grande maioria das vezes tais riscos têm se Revista da Faculdade de Direito Milton Campos Nova Lima V. 26 p. 346-360 2013 apresentado até mesmo maiores do que os riscos naturais, sendo que neste contexto PANTALEÃO (2009) afirma que: [...] enquanto as catástrofes de outrora eram concebidas como algo que poderiam ser imputadas ao destino, os riscos surgem como efeitos colaterais indesejados do processo de modernização e são oriundos de decisões humanas, ou de organizações, vinculadas à exploração e ao manejo de novas tecnologias, dirigidas a fins construídos para serem positivamente valorados. Ademais, FERNANDES (2001), afirma que a “sociedade pós-moderna, pós- industrial” se caracteriza pelo: [...] aparecimento de novos riscos, a insegurança, a globalização, a integração supranacional, [...] o reforço da criminalidade organizada, o descrédito nas instâncias de proteção, a maior relevância do crime macrosocial, etc. Dentre os riscos negativos que a sociedade tem vivido, pode-se citar a desregulamentação de áreas da economia, o crescimento do desemprego, a crescente intervenção das empresas multinacionais e o aumento significativo da violência. Pode-se claramente notar que quanto maior a produção e o desenvolvimento industrial, maior é a produção de riscos. O desenvolvimento de novas tecnologias também caminha no mesmo sentido: à medida que se desenvolve, apresentam-se novas situações, muitas delas consideradas de risco. Assim sendo, conforme nos ensina SILVA (2010), a ação humana, mesmo que de forma anônima, ocasiona riscos globais. Segundo ela, tais riscos são “passíveis de ser produzidos em tempo e lugar com alargamento distanciados da ação que os originou ou que para eles contribuiu, que podem apresentar, inclusive, dimensão e potencial destrutivamente avassaladores, a exemplo da crise econômica mundial”. Com isto, tem-se notado que a sociedade como um todo apresenta apreensões constantes quanto aos potenciais riscos que podem sofrer, pelo efeito imediato ou não de seus atos. Ou seja, a sociedade tem a sensação de incerteza e de impossibilidade de controle do desenvolvimento. Por exemplo, a poluição na Ásia pode acarretar problemas no Brasil, dentre eles problemas de saúde. Uma bomba nuclear lançada em um país europeu pode gerar a exterminação não somente da comunidade da região como também afetar diretamente os demais continentes, por mais longínquos que estejam. Estes riscos tem levado a sociedade mundial à incerteza, à ansiedade, à apreensão e ao medo. Sobre isto, VILLAMOR MAQUIERA, citado por FERNANDES (2001), afirma que a sociedade de risco é afetada pela insaciável busca pela segurança: “o homem, a família, a Revista da Faculdade de Direito Milton Campos Nova Lima V. 26 p. 347-360 2013 sociedade, o Estado e o direito [...] demanda-se segurança no trabalho, segurança no futuro, segurança do Estado, segurança nacional, seguros privados de toda a índole, segurança económica.” Assim sendo, é necessário refletir sobre a recriação da sociedade, da economia e da política buscando a prevenção e a redução dos riscos e perigos produzidos pela modernização da sociedade, nos mais diversos âmbitos, como o ecológico, o psicológico e o social. Segundo Ulrich Beck, nos encontramos na fase da “modernidade reflexiva”, na qual questionamos a sociedade industrial, tendo em vista os riscos que ela provoca na modernidade. É neste contexto que surge a demanda social por segurança, especialmente no que se refere ao viés penal, que será tratado ao longo do presente trabalho. Além disso, devemos prestar atenção no risco da expansão exagerada do direito penal. Isto posto, verifica-se que a sociedade de risco tornou-se ponto central nos estudos jurídicos, principalmente a partir das pesquisas realizadas pela sociologia. Sob enfoques diferentes, vários autores contribuíram para a elaboração desse conceito, de acordo com a sua visão particularizada. Em síntese, a seguir serão destacados três autores e a influência de seus pensamentos na sociedade pós-moderna. 2.1 A contribuição de Ulrich Beck Em um primeiro momento é importante ressaltar que Beck adotou o conceito de modernidade reflexiva, como trado anteriormente, partindo do entendimento de que é o não- conhecimento que a constitui. Para o autor, o risco é configurado pela tentativa de prever o incalculável, ou seja, os fatos que ainda não aconteceram são passíveis de prognóstico graças à segurança jurídica. Segundo PRADO AMARAL (2007), os argumentos científicos universais de Beck podem ser sintetizados nas seguintes premissas: 1) Com o advento do processo de modernização, a produção de riqueza gera riscos; 2) A distribuição dos riscos não obedece proporcionalmente à distribuição de riquezas e se irradia para todos os grupos sociais; 3) O desmoronamento dos esquemas tradicionais da sociedade industrial foi impulsionado por uma forte onda do individualismo nascida no pós-guerra; 4) O individualismo mina de inseguranças o processo de modernização, através de diversos fatores decorrentes; 5) A modernização é um processo complexo, sujeito a constantes (re)avaliações e transformações , em que o desenvolvimento democrático destrona o saber científico e a ação política de seus respectivos monopólios; 6) A relativização do saber científico e da ação política formam um círculo vicioso na produção de riscos. Revista da Faculdade de Direito Milton Campos Nova Lima V. 26 p. 348-360 2013 Na década de 80, o sociólogo germânico Ulrich Beck lançou o livro “Sociedade de Risco”, no qual abordava o acidente nuclear de Chernobyl, que havia ocorrido em uma usina da União Soviética e que acabou por gerar consequências transgeracionais. Segundo ele, até Chernobyl, quando ocorreram guerras e Auschwitz, por exemplo, a miséria e violência humana era relativa aos “outros”, sejam eles judeus, mulheres, refugiados etc. Entretanto, após o referido acidente nuclear a miséria passou de segregada à todos nós. BECK (2011) afirmou que, neste caso, “a admissão de uma contaminação nuclear perigosa equivale à admissão da inexistência de qualquer saída possível para regiões, países ou continentes inteiros”. Neste contexto, é importante observar que desde Chernobyl muitos outros recursos, inclusive armas, foram desenvolvidos, o que, sem dúvida alguma, pode impactar ainda mais na vida de em todos nós, ou seja, os riscos sociais são crescentes. O referido autor trata do risco como a probabilidade de um perigo relacionado à uma determinada decisão. Ele aborda a “sociedade industrial de risco”. Esta sociedade surgiu com a grande mudança pela qual passou a sociedade ocidental, com a migração da sociedade feudal agrária para a sociedade capitalista e industrial. Estabeleceram-se novas formas de produção e de distribuição de bens, acarretando assim maiores desigualdades. Ulrich Beck traça dois momentos da sociedade de risco: a primeira e a segunda modernidade. A Primeira Modernidade (ou modernidade simples) é marcada por revoluções políticas e industriais ocorridas na Europa a partir do século XVIII. Nesta ocasião houve uma intensificação da industrialização e também um avanço tecnológico, sendo que acreditava-se que aracionalidade humana poderia conduzi-los à uma mundo ideal. Vale destacar que os efeitos deste desenvolvimento não eram considerados uma grande preocupação dos cidadãos e que as relações sociais eram realizadas a nível territorial. Já na Segunda Modernidade (ou modernidade reflexiva) o homem percebe os malefícios e as possíveis consequências do desenvolvimento presenciado no período anterior, passando a refletir sobre as atividades industriais e o desenvolvimento da tecnologia. Nesta fase, o cidadão percebe a sua impotência no domínio da natureza e do mundo em geral e que a globalização acarretou relações globais e não mais territoriais como na fase anterior. É nesta ocasião que se estrutura e se contrai a chamada sociedade de risco em detrimento da sociedade industrial da Primeira Modernidade. Os pensadores e cientistas passaram a discutir os riscos sociais, os quais hodiernamente muitos os consideram incontroláveis, imprevisíveis e globais. Exemplo disto é a manipulação genética de alimentos, já que não é possível saber que tipo de problemas poderão trazer para a nossa saúde nem quando estes problemas poderão se manifestar. Revista da Faculdade de Direito Milton Campos Nova Lima V. 26 p. 349-360 2013 Neste contexto, o renomado sociólogo alemão afirma que a globalização desempenhou papel muito importante na construção da sociedade de risco, visto que com ela as ameaças passaram a ser globais e a incidência passou a ser extraterritorial. A sociedade de risco é aquela que torna todos iguais quanto aos potenciais riscos, sejam os países ricos ou pobres, os ocidentais ou orientais. Para Ulrich Beck a tecnologia e o desenvolvimento industrial criaram os riscos globais. Assim sendo, BECK (1998) nos ensina que: [...] os riscos e perigos de hoje se diferenciam essencialmente dos da Idade Média pela globalidade de suas ameaças, e por suas causas modernas. São riscos da modernização. São um produto global da maquinaria do progresso industrial e são aumentados sistematicamente com seu desenvolvimento posterior. Ulrich Beck define três espécies de risco global: risco da destruição global que é fruto do desenvolvimento industrial (ex. buraco na camada de ozônio e efeito estufa); risco relacionados à pobreza (ex. habitação, alimentação e energia); e risco decorrente de “armas” de alto poder destrutivo, seja nuclear, biológico ou químico. Ademais, para ele a realidade social não está mais focada na divisão de classes, mas sim na distribuição de riquezas. Neste contexto, o risco surge como norteador de condutas sociais, passando assim a ser uma preocupação social. Finalmente, é importante recordar que Ulrich Bech alega que quanto mais reflexiva se torna uma sociedade, mais ambígua ela se apresenta. Todavia, ele questiona o que de fato se elevou: o risco ou a nossa preocupação com o risco. 2.2 A modernização de Anthony Giddens Da mesma forma que Ulrich Beck, Anthony Giddens baseia os seus estudos na modernidade reflexiva. O autor procura dar uma visão descontínua da organização social. Afirma PRADO AMARAL (2007): As descontinuidades que separam as ordens sociais precedentes da presente ordem moderna são identificadas por: a) “ritmo de mudança” (enorme velocidade de transformação que a modernidade acarreta); b) “o escopo de mudança” (conforme diversas áreas do planeta são colocadas em conexão, desencadeiam-se ondas de transformação social); e c) “a natureza intrínseca das instituições modernas” (algumas das atuais instituições não existiam ao tempo das ordens sociais tradicionais precedentes, como, por exemplo, a dependência em grande escala das fontes de energia inanimadas). Revista da Faculdade de Direito Milton Campos Nova Lima V. 26 p. 350-360 2013 Para GIBBENS (1990) o risco social está incorporado na maneira de ser do mundo moderno, devido à complexidade que atingiu. Ele afirma que a dinâmica da sociedade é reflexiva, devido à crescente produção de novas informações. GIBBENS (1990) aborda a existência do risco construído socialmente, sendo que nos apresenta sete formas de caracterização dos riscos serem caracterizados: a) globalização do risco: relacionado à intensidade do risco (ex. guerra nuclear pode aniquilar a existência humana); b) quantidade de efeitos da globalização que podem afetar todos os homens (ex. mudanças globais nas relações de trabalho que com o intenso uso de tecnologia e a redução do lucro, acarreta a queda na demanda de mão de obra); c) riscos da socialização da natureza (ex. a manipulação genética da natureza pode gerar riscos não conhecidos para a saúde do ser humano); d) riscos do mercado financeiro; e) risco da sabedoria da existência de risco: refere- se às incertezas do caminho do conhecimento, ou seja, que perigo o desconhecido pode acarretar; f) risco da popularidade: a sociedade tem sido bombardeada com informações sobre diversos riscos e muitas vezes não consegue eleger aquele que seria pior e/ou imediato; g) risco de limitações das práticas de perícias. O referido autor também aborda a transformação das relações pessoais na sociedade de risco, que se mostra sempre em busca de ganhar confiança das pessoas com as quais interage cotidianamente. Outra característica marcante é a redução da esfera íntima, posto que as relações ultrapassaram o contexto familiar, de afeto e de lazer. 2.3 O sistema autopoiético de Luhmann Nikas Luhmann, famoso representante da sociologia alemã, interpreta a sociedade como um sistema, apresentando-a como teoria de sistemas autopoiéticos. Luhmann afirma que um sistema é sempre menos complexo do que o ambiente em que ele está inserido, sendo que para reduzir essa complexidade desenvolve-se o sistema, tornando necessário selecionar os elementos da relação sistema-ambiente, bem como dos elementos originários do próprio sistema. A teoria da sociedade de Luhmann é a teoria do sistema social complessivo, que inclui os demais sistemas sociais. Para ele, a sociedade está compreendida como um sistema. Os elementos que compõem a estrutura desse sistema e que se relacionam entre si são comunicações, sendo que cada elemento mantém uma relação com um outro. Ademais, ele acrescenta que cada pessoa faz as suas escolhas, ou seja, em cada situação o indivíduo escolhe a sua alternativa. Desta maneira, surge uma complexidade, a qual compõe o sistema social. Revista da Faculdade de Direito Milton Campos Nova Lima V. 26 p. 351-360 2013 Para ele inexiste um sistema sem meio ambiente. Este é considerado como a base do sistema social. Os elementos do sistema (autopoiético) não podem ser provenientes do exterior, mas tão somente das operações internas. O sociólogo divide a sociedade da seguinte maneira: sociedade segmentária; sociedade centro e periferia; sociedade estratificada e de diferenciação funcional. A primeira se baseia na igualdade, sendo que a distinção pode ser feita pelas famílias, idade e sexo; entretanto, existe uma desigualdade quanto aos indivíduos de fora da sociedade segmentaria. Na sociedade centro e periferia nota-se uma desigualdade entre a cidade e a periferia, o que se deve ao desenvolvimento maior do centro em detrimento da periferia. Já na sociedade estratificada e de diferenciação existe uma diferenciação em função do aspecto social de cada classe. Nesta, a classe rica domina a política e o poder, o que acaba por levar à sociedade a diferenciação funcional, sendo que a classe dita inferior almejava as condições de vida da classe vista como superior.3 Globalização Para muitos autores a globalização é um evento que surgiu no final do século XX, mas para outros, como FERNANDES (2001), este é um processo que vem se desenvolvendo há muitos séculos, acreditando-se que se iniciou com as grandes descobertas propiciadas pela navegação marítima. De qualquer maneira, a partir dos anos 80 o capitalismo avançou significativamente, o que acarretou a integralização da economia mundial, sempre visando a maximização de lucros. Neste contexto, ocorreu a concentração do capital em grandes empresas multinacionais, o que tem acarretado a redução do poder dos Estados, bem como dificulta a regulamentação do mercado. A globalização promoveu o estreitamento do relacionamento entre os povos, maior integração tanto política e econômica quanto social, além de ter possibilitado o fim das fronteiras, as quais até então não permitiam que certos riscos adentrassem em outros territórios. Este fenômeno permite que impactos em um país ou região sejam sentidos em outro, como é o caso da crise econômica americana ocorrida em 2008 que impactou todos os demais países do globo. Outro exemplo, é o derramamento de óleo em águas marinhas ocasionado em uma parte do planeta que afeta todas demais áreas, espalhando o seu efeito nocivo sobre o meio ambiente como um todo. Revista da Faculdade de Direito Milton Campos Nova Lima V. 26 p. 352-360 2013 Com a globalização o crime também se tornou global, principalmente quando se trata de crime econômico e a delinquência de colarinho branco, que atingem todos os países e todos os povos, mesmo que em intensidades diversas. A globalização dos riscos acarreta a indeterminação das suas vítimas e em determinadas ocasiões até mesmo a não determinação de seus autores. Por exemplo, como podemos indicar o verdadeiro responsável pelo buraco na camada de ozônio, já que todos nós com os nosso hábitos rotineiros podemos apresentar alguma contribuição para a sua formação? E quanto às vítimas, também se torna impossível determinar quem arcará com os males gerados pelo buraco da camada de ozônio, o que nos faz acreditar que afetará toda a coletividade. Sobre isto, é interessante verificar um trecho do discurso do ex-presidente americano Bill Clinton, realizado na ONU pela celebração do seu 50 o aniversário: “na nossa aldeia global, o progresso pode espalhar-se rapidamente, mas os problemas também. Um problema no limite externo da cidade cedo se torna uma praga em casa de cada um.” Muito teóricos acreditam que o que levou à aceleração da globalização foram os meios de transporte e de comunicação que apresentaram uma grande ascensão nas últimas décadas. Neste contexto, MCLUHAN, citado por FERNANDES (2001), acredita que o passo decisivo foi dado pela internet, a qual “transformou o globo em aldeia, possibilitando que se esteja, virtualmente, em todo o lado e ao mesmo tempo desde o momento em que se tem acesso à “rede”.” Mas, a televisão e a imprensa escrita também não deixaram de contribuir para a globalização. FERNANDES (2001) afirma que todos estes meios de comunicação, “em vez de informar, muitas vezes causaram a desinformação – provoca uma sensação de insegurança e amedrontamento geral, ao ponto de as pessoas, legitimamente, se interrogarem: nada mais há senão crime e destruição?” Isto nos permite refletir sobre a grande interdisciplinaridade entre a globalização e a sociedade de risco. Com isso, a globalização tem favorecido a dominação econômica, desestruturando Estados, já que os interesses econômicos sempre tem-se apresentado acima dos interesses políticos e sociais. Nota-se que é crescente o poder das corporações transnacionais, que muitas vezes acarretam exclusões sociais e consequentemente riscos sociais, como o desemprego, a fome, a destruição ambiental e a disseminação de doenças, em favor do crescimento econômico. Enfim, não há dúvidas de que a globalização é irreversível e que um acontecimento em um determinado território afeta todos os demais, por mais distantes que estejam um do outro. Revista da Faculdade de Direito Milton Campos Nova Lima V. 26 p. 353-360 2013 4 Sociedade de risco e o novo paradigma da criminalidade Uma vez conceituadas as características da sociedade de risco e os seus principais teóricos, verifica-se a necessidade de abordar o reflexo desse fenômeno pós-moderno no direito penal. Diferentemente do ocorrido nas décadas de 50 e 60, vislumbra-se uma expansão do direito penal em ramos diversos, como por exemplo, meio-ambiente, consumidor, biogenética, saúde pública, economia e tributário. Tal expansão vem permitindo a ingerência da ciência criminal em áreas que anteriormente ficavam restritas ao direito civil e administrativo. Não se trata da criação de um novo direto penal, mas apenas de sua adequação a uma sociedade de risco que clama pela proteção de direitos supra-individuais. A sociedade atual vem sofrendo fortes influências tecnológicas e estruturais, saindo de um aparente conforto de confiança em relação aos seus pares para uma sociedade de desconfiança latente. A imprevisibilidade, a insegurança e a verdadeira quebra de um estado de bem-estar social acarretam o crescimento de um pensamento de que a solução de todos os problemas sociais e políticos da sociedade pós-industrial está no direito penal, servindo a ciência criminal como um salvaguarda genérico. Nesse prisma, fala-se na necessidade de superar a linha clássica como um dogma e discutir um direito penal da globalização. Afirma Mário Ferreira Monte em apontamento introdutório na obra de FERNANDES (2001), que parece evidente que “o direito penal tradicional de cunho liberal não está em condições de responder a tais desafios. O bem jurídico individual, concreto, não faz aqui o menor sentido”. Portanto, torna-se necessário refletir sobre a substituição de uma orientação individual para uma coletiva ou supra- individual. SGUBBI, citado por SILVEIRA (2003), em 1975, já publicava artigo intitulado “Tutela penale di interessi difusi”, ressaltando sua apreensão no que tange à proteção dos direitos supra-individuais, numa sociedade de risco que já se configurava. A delinqüência na sociedade de risco, segundo PRADO AMARAL (2007), provocou significativa alteração na estrutura do delito: “no lugar do homicídio praticado por um único agente, ingressam no campo de análise dogmática, por exemplo, os comportamentos de corrupção de uma empresa que pratica crimes ambientais”. Efetivamente, o crime tornou-se global e o avanço tecnológico permitiu a proliferação de formas perigosas de delinqüir. Salienta FERNANDES (2001) que “diluem-se as fronteiras do estado-nação e tudo é feito à escala quase-planetária” Nesse aspecto, ganha relevância o estudo sobre os crimes de perigo, usados de forma aleatória pelo poder legislativo com o objetivo de responder às angústias impostas por esse Revista da Faculdade de Direito Milton Campos Nova Lima V. 26 p. 354-360 2013 novo modelo social. Assim, constata-se a imposição de uma hipertrofia legislativa que muitas vezes não respeita o processo dialético, criando-se um direito penal secundário, totalmente desvinculado do direito penal tradicional. Essa versão diferente do direito penal flexibiliza as garantias constitucionais, rompendo com os princípios da Intervenção Mínima e da Subsidiariedade, configurando o comportamento perigoso como “verdadeiro modelo autônomo de tipificação penal” (MAQUEDA ABREU, 1994). Percebe-se, pois, a intimidação do legislador ao criar tipos penais cujas sançõessão graves e incapazes de punir verdadeiramente os autores da conduta, permitindo, assim, a criação de um direito penal próprio de forma desmesurada e simbólica, característica esta marcante nas sociedades pós- industriais, valorizando a importância penal de acordo com o apelo social, ou seja, atingindo os seus efeitos na opinião pública. Assevera SILVEIRA (2003) que aceitar uma legislação em moldes puramente simbólicos, “ além de perder qualquer base dogmática, implica em uma ingerência política desvirtuada da necessidade pragmática.” Passa-se a penalizar aquilo que a opinião pública anseia, o que Sgubbi citado por SILVEIRA (2003) chama de “vedetes penais”. Salienta SILVEIRA (2003) que “ o pensamento incutido na sociedade passa a ser o de que, se alguém, no ápice da pirâmide social vier a ser punido por um crime, qualquer infração de sua parte também o será”. Assim, o grande erro da sociedade de risco são as formulações simbólicas, uma vez que, com o passar do tempo, a população não mais confiará na proteção, tendo em vista a sua ineficácia, gerando uma insegurança em face do ordenamento estatal. Assim, alguns questionamentos devem ser feitos na esfera penal decorrentes do surgimento de uma sociedade de risco. Esta problemática, de acordo com os ensinamentos de SALVADOR NETTO (2006) demonstra a desestruturação das entidades de controle tradicionais com os comportamentos que impulsionam a tutela jurisdicional. O direito penal moderno apresenta contradição com o caminhar das forças produtivas. Desta forma, verifica- se um momento de incerteza na esfera criminal, originando um impasse absoluto, ressaltado por SALVADOR NETTO (2006): De um lado, a dogmática como categoria científica de juízos certos, precisos e orgânicos parece cada vez mais distanciada da realidade social enquanto aparato teórico apto à efetivação do controle e previsibilidade de comportamentos, na medida em que se restringe ao universo do positivismo ou idealismo. De outro lado, as decisões, no anseio desesperado deste mesmo controle, assumem um julgamento tanto mais arbitrário quanto lastreado em uma tida e suposta “ opinião pública”, que, de forma ambivalente, ao mesmo tempo em que critica a ciência penal, por entendê-la distante e diletante, a utiliza como mero argumento de convencimento para decisões pré-determinadas, dissimulando-a e descontextualizando-a. Revista da Faculdade de Direito Milton Campos Nova Lima V. 26 p. 355-360 2013 Portanto, há de se investigar de que modo a dogmática penal irá acompanhar essas transformações e se isso implicará em uma crise para o Direito Penal. Diante de tais questionamentos, resta-nos demonstrar algumas alternativas conferidas à dogmática penal. 4.1 A flexibilização do direito penal A primeira alternativa para a dogmática penal seria a flexibilização das garantias materiais. A modalidade clássica de delinqüência estaria de acordo com as regras de imputação relaxadas. Neste sentido, enfatiza PRADO AMARAL (2007): Seria exigida uma absurda desconsideração do sistema geral de regras como está atualmente configurado, com sua clara vocação garantista, a partir da constatação da gravidade das conseqüências jurídico-penais. [...] Em tema de flexibilização de garantias penais, registre-se somente, quão impressionante é o fato de que a modificação do paradigma da criminalidade ocasionada pela sociedade de risco – para os seus adeptos- agiu, e com tal força que os fez perder de vista o marco político-criminal recente, que tinha gerado uma notável evolução positiva na humanização do direito penal. Essa alternativa recebe enormes críticas da doutrina, uma vez que representa um enorme retrocesso. 4.2 A setorização do direito penal A segunda alternativa para a dogmática penal estaria em estabelecer o direito penal em blocos. Deve-se analisar a sanção penal aplicada (se privativa de liberdade ou não) e, conseqüentemente, a postura assumida pelo indivíduo no que tange ao reconhecimento ou não do direito. Vislumbra-se, assim, o surgimento de uma pluralidade de direitos penais, como por exemplo, no mínimo, um direito penal principal e um direito penal secundário. Segundo PRADO AMARAL (2007), tal aberração surge como uma tentativa de solucionar um problema criado com o surgimento da sociedade de risco e que a teoria clássica do direito penal não consegue responder. Neste diapasão, alinham-se propostas de um direito penal “de velocidades”, “do risco” e “do inimigo”. 4.2.1 O direito penal de velocidades SILVA SÁNCHEZ (2002), afirmando que seria extremamente difícil limitar a expansão do direito penal diante da configuração de uma sociedade de risco, adota a imposição de um direito penal de “primeira velocidade”. Esse direito seria aplicado todas as vezes que houver a possibilidade de cominação, de forma concreta, da pena privativa de liberdade. Já o direito penal de “segunda velocidade” ficaria restrito para os delitos cuja pena Revista da Faculdade de Direito Milton Campos Nova Lima V. 26 p. 356-360 2013 abarcaria a restrição de direitos ou a pena pecuniária. Salienta FERNANDES (2001), que de um lado estariam as condutas mais graves (penas privativas de liberdade) e de outro lado fatos puníveis cuja conseqüência se distancia do núcleo criminal, impondo-se penas mais próximas às sanções administrativas. Nesse mesmo sentido, enfatiza BOTTINI (2007): Desta forma, o autor mantém no âmbito do direito penal tanto as condutas que afetam bens jurídicos tradicionais (ataques à vida, à saúde, à propriedade), como aquelas ações que afetam bens coletivos, ou que apenas apontam para uma periculosidade em relação aos interesses protegidos pela norma penal. No primeiro caso, valeriam as regras e os instrumentos dogmáticos do sistema penal atual, com os seus princípios rígidos e suas penas ancoradas na privação de liberdade. Na segunda hipóteses, vigoraria um direito penal diferente, mais brando, com sanções não privativas de liberdade, com institutos e limites mais flexíveis para amparar os contextos novos e os riscos inéditos trazidos pelo desenvolvimento científico. Excepcionalmente, adota-se um direito penal de “terceira velocidade” que, de acordo com SILVA SÁNCHEZ (2002), “a pena de prisão concorre com uma ampla relativização de garantias político-criminais, regras de imputação e critérios processuais”. Várias críticas são feitas a essa teoria, enfatizando PRADO AMARAL (2007): 1) do ponto de vista científico-sistêmico, conduz à quebra da teoria do delito como concepção geral e uniforme do ilícito, em claro retrocesso histórico; 2) também, aproxima-se muito das propostas de Hassemer e outros- exceto pelo fato de propor a manutenção do direito penal de segunda velocidade dentro do próprio direito penal – no sentido de um direito da intervenção (Intervenktionsrecht), cujo conteúdo ainda carece de precisão; 3) ainda, traria para dentro do direito penal a possibilidade de relativização das garantias penais heróica e historicamente conquistada; 4) não se pode deixar de apontar também que criaria um direito penal de classes, em que seriam sancionados com pena privativa de liberdade os indivíduos da camadas menos favorecidas, enquanto na delinqüência agressiva aos bens coletivos (por exemplo a que atinge a economia) seus autores seriam sancionados com penas não detentivas; 5) outrossim, desconsideraria o caráter estigmatizante que possui qualquer pena criminal, ainda que não privativa de liberdade; 6) e, afinal, um direito penal de velocidades causaria uma inapropriada atuaçãodo princípio da proporcionalidade. Desta forma, SILVA SÁNCHEZ (2002) “deslocou o modelo excludente da pena privativa de liberdade e, portanto, o modelo menos garantístico, para dentro do sistema penal”, diferentemente do que havia proposto HASSEMER (1994) que o situava fora do penal, ao lado do direito administrativo sancionador. 4.2.2 O direito penal do risco Busca-se com esta teoria a definição do que seria o risco penalmente relevante, que segundo PRADO AMARAL (2007) ocorreria por meio de um “processo dialético, o que pode Revista da Faculdade de Direito Milton Campos Nova Lima V. 26 p. 357-360 2013 ser alcançado com a atualização da elaboração dogmática de suas categorias básicas de ação, tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade”. Assim, verifica-se uma concepção distinta do direito penal, criando-se dois pólos: de um lado o direito penal comum e de outro o direito penal do risco. Tal proposta desconsidera a idéia que o risco não é uma novidade da sociedade contemporânea. Ademais, o risco pode ser considerado como uma característica marcante da modernidade, mas não o adjetivo designante de tal sociedade (PRADO AMARAL, 2007). 4.2.3 O direito penal “do inimigo” Afirma PRADO AMARAL (2007) que o direito penal do inimigo designa uma ampliação do direito penal e, ao mesmo tempo, representa um direito claramente preventivo, ou seja, uma tutela penal antecipatória. Conceitua JAKOBS (2003) que esse direito – o do inimigo – representa “uma leve defesa frente a riscos futuros”. Já SILVA SÁNCHEZ (2002) relaciona esse direito com a sua proposta de um direito penal de “terceira velocidade”. Para essa teoria, o inimigo será aquele indivíduo que demonstra uma conduta de total abandono do direito; aquele indivíduo que se recusa às normas de cidadania. Desta forma, o Estado não reconhece os seus direitos e em face dele é imposto um procedimento de guerra. 4.3 Traços distintivos do bem jurídico protegido no contexto da sociedade de risco Primeiramente, será considerada a questão do bem jurídico protegido no direito penal ambiental. Neste contexto, SILVEIRA (2003) salienta que de uma forma global, deve-se entender o ambiente não em seu aspecto individual, mas sim tendo como norte a coletividade. Sua presença somente poderá ser imposta se “respeitado o princípio da subsidiariedade, pois d’outra forma, desconfigurado estaria o Direito Penal liberal”. Enfatiza SILVEIRA (2003) que: [...] evidente fica a tendência de uma salvaguarda penal através da incidência de figuras de crime de perigo. Nítida é a opção do legislador por esta modalidade de tipificação. Por diversas vezes, incorre ele no perigoso campo da proliferação indiscriminada de normas, não considerando as necessárias análises ex ante e ex post da determinação do perigo. Passam, assim, as normas a perder, por completo, sua rigidez metodológica, caindo no vazio da determinação aleatória de crimes. Segundo SILVEIRA (2003), a proliferação de tipos penais não protegem de forma eficaz o ambiente. Tal expansão do direito penal ambiental é decorrente de diversos fatores como a seletividade das cifras negras - que procuram punir de forma incisiva os pequenos poluidores em face dos grandes; a presença de uma acessoriedade administrativa do meio Revista da Faculdade de Direito Milton Campos Nova Lima V. 26 p. 358-360 2013 ambiente (não representando o direito penal como a melhor solução para o problema); e, por fim, o fato de que a Administração Pública permite a exploração de diversos recursos ambientais, adotando o conceito de “poluição aceitável”. Assim sendo, percebe-se que o grande problema é a falta de uma política ambiental efetiva e real. No que tange ao direito penal econômico, assevera FERNANDES (2001) que a sua natureza artificial, decorrente do intervencionismo do Estado em face da economia. Desta forma, afirma o autor que o direito penal econômico “não conta com aquele substrato onto- antropológico definido e sedimentado, ao contrário do que sucede com os bens jurídicos, chamemo-lhes, clássicos, como a vida ou a integridade física”. É importante ressaltar que, o direito penal econômico visa a proteção de um direito supra-individual, utilizando-se de recurso a crimes de perigo abstrato, refletindo uma antecipação da tutela de bens e a tipificação de condutas criminosas de maneira vaga. Nesse mesmo sentido, o legislador vem a proteger comportamentos ofensivos à relação de consumo. De forma criticável, adota conceitos não nítidos e utiliza-se de normas penais em branco, dificultando, assim, a aplicação de um direito penal que visa garantir a segurança jurídica e preservar a saúde dos consumidores. 5 Considerações finais O presente trabalho analisou um dos atuais temas da sociologia e da dogmática jurídico-penal, que é a sociedade de risco, com o propósito de compreender as definições e a amplitude do risco e, conseqüentemente, refletir sobre as delimitações referentes ao bem jurídico protegido. Destaca-se presente estudo focou no direito penal. Embora haja dificuldades com as quais o Estado continuará se deparando para se adequar as novas mudanças ocorridas na sociedade pós-industrial, torna-se necessário o estudo da sociedade de risco através de uma concepção sociológica, filosófica e jurídica. A cada dia novos riscos serão impostos aos cidadãos, devendo o Estado procurar soluções aptas à proteção de uma sociedade descrente e desconfiada de seus institutos. Desta forma, deparamo-nos com determinadas mudanças sociais que provocam e exigem uma atuação punitiva por parte do Estado. E é justamente a proteção de bens jurídicos novos que vêm criando contornos jamais imaginados em um ramo do direito que sempre Revista da Faculdade de Direito Milton Campos Nova Lima V. 26 p. 359-360 2013 adotou princípios como o da subsidiariedade ou o da intervenção mínima. Deixamos de lado a proteção exclusiva do indivíduo para protegermos bens jurídicos supra-individuais, como o meio ambiente, o consumidor, a bioética e a economia. Na verdade, com a constatação da existência de uma sociedade de risco, percebemos uma expansão do direito penal como o único ramo capaz de solucionar os problemas que assolam essa sociedade pós-moderna. Neste contexto, nota-se que o direito penal vive um período de crise. O sistema punitivo perdeu a sua referência, sendo orientado por influências midiáticas e pela opinião pública. Assim, o direto penal deixa de ter um caráter garantista, passando a adotar uma visão mais prevencionista com a utilização de mecanismos muitas vezes vagos, tais como a norma penal em branco e o crime de perigo abstrato. O direito penal tornou-se simbólico. Assim, não adianta negarmos a ideia de que a sociedade de risco nunca existiu ou que o risco sempre esteve presente nas relações humanas. Na verdade, vivenciamos um momento de transformação social que exige um estudo detalhado e a reflexão de quais posições efetivamente irão atender os direitos fundamentais dos indivíduos e, conseqüentemente, resguardar a aplicação das normas constitucionais. Abstract The current study aims to analyse the risk society as a sociological and criminal phenomenon, main source, prevention and potencial control. Initially, it will be done a brief analysis of the concept of risk society came out in post-industrial period. It will examine various sociological concepts on the subject, presenting the point of views of the main authors and the influence of theirs thoughtsfor the society. After that, it will be analysed definitions and concepts of the globalization and their influences on postmodern period, which is led by insecurity, instability and distrust. Finally, it will be studied the criminality ahead the risk society, presenting different dogmatic ideas and the true legal asset protected by the supra-individual criminal law. Keywords: Risk Society. Sociological Conceptions. Globalization. Criminal Consequences. Referências BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad. Barcelona: Paidós, 1998. BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Ed. 34, 2011. BOTTINI, Crimes de perigo abstrato e princípio da precaução na sociedade de risco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. 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