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CENTRO UNIVERSITÁRIO FRANCISCANO – UNIFRA CURSO DE DIREITO DIREITO PENAL II MATERIAL DE APOIO E ORIENTAÇÃO Professor Fábio Freitas Dias Santa Maria, março de 2012 CENTRO UNIVERSITÁRIO FRANCISCANO – UNIFRA CURSO DE DIREITO DIREITO PENAL II – Parte 1 MATERIAL DE APOIO E ORIENTAÇÃO Material disponibilizado aos alunos da disciplina de Direito Penal II que compõe a grade curricular do Curso de Direito do Centro Universitário Franciscano, Santa Maria, RS, para servir de apóio ao desenvolvimento das temáticas de tal disciplina. Professor Fábio Freitas Dias Santa Maria, março de 2012 SUMÁRIO1 Ponto 1: Das Penas. Princípios. Teorias da função da pena. Modelos absolutos (retributivistas) e utilitários (preventivos). A reforma penal de 1984. Esquema geral das espécies de pena................ 1. Breve menção à evolução da pena................................................................................................ 2. Direito penal e Constituição: legitimidade e formação do sistema penal....................................... 2.1 Princípios constitucionais relacionados à pena........................................................................ 3. Teorias sobre a função da pena..................................................................................................... 3.1 Teorias abolicionistas............................................................................................................... 3.2. Teorias justificadoras............................................................................................................... 3.3 Concepção assumida pelo Código Penal brasileiro................................................................. 4. Espécies de sanção penal no Direito brasileiro.............................................................................. Ponto 2: Penas em espécie. Pena privativa de liberdade. Espécies. Estudo das circunstâncias. Circunstâncias judiciais, circunstâncias agravantes e atenuantes, causas de aumento e de diminuição........................................................................................................................................... 1. Conceito e espécies....................................................................................................................... 2. Estudo das circunstâncias.............................................................................................................. 2.1 Circunstâncias judiciais............................................................................................................ 2.2 Circunstâncias legais genéricas............................................................................................... 2.3 Circunstâncias legais especiais................................................................................................ Ponto 3: Aplicação da Pena Privativa de Liberdade. Método adotado pelo CP brasileiro. Concurso de circunstâncias. Processo de individualização. Cálculo da pena. Fixação do regime inicial de cumprimento de pena privativa de liberdade....................................................................... 1. Aplicação da pena. Método adotado pelo Código Penal brasileiro................................................ 2. As fases de determinação (individualização) da pena................................................................... 2.1 Fase da pena base................................................................................................................... 2.2 Fase da pena provisória........................................................................................................... 2.3 Fase da pena definitiva............................................................................................................ 3. Fixação do regime inicial. Menção à Lei dos crimes hediondos.................................................... Ponto 4: Concurso de crimes. Concurso formal, material e crime continuado.................................. 1. Considerações iniciais.................................................................................................................... 2. Concurso material........................................................................................................................... 3. Concurso formal............................................................................................................................. 3.1 Concurso formal próprio ou perfeito......................................................................................... 3.2 Concurso formal impróprio ou imperfeito................................................................................. 4. Crime continuado........................................................................................................................... 4.1 Requisitos................................................................................................................................. 4.2 Aplicabilidade........................................................................................................................... 4.3 Pena no crime continuado........................................................................................................ Ponto 5: Suspensão condicional da pena: conceito, espécies, requisitos e condições. Período de prova. A revogação e a prorrogação do sursis................................................................................... 1. Conceito.......................................................................................................................................... 2. Natureza jurídica............................................................................................................................. 3. Espécies de suspensão condicional da pena................................................................................. 4. Requisitos legais............................................................................................................................ 5. Condições para concessão do “sursis”.......................................................................................... 6. Audiência admonitória e período de prova..................................................................................... 7. Revogação..................................................................................................................................... 8. Prorrogação do período de prova................................................................................................... 9. Extinção.......................................................................................................................................... 04 04 06 08 13 13 14 18 19 21 21 22 23 28 42 44 44 44 44 46 49 50 54 54 54 55 56 57 58 58 60 60 62 62 62 62 63 64 65 66 66 66 1 O presente material não esgota as temáticas relacionadas no plano de ensino. A leitura do presente material deve ser conjugada e complementada pela bibliografia indicada. PONTO 1: DAS PENAS. PRINCÍPIOS. TEORIAS DA FUNÇÃO DA PENA. MODELOS ABSOLUTOS (RETRIBUTIVISTAS) E UTILITÁRIOS (PREVENTIVOS). A REFORMA PENAL DE 1984. ESQUEMAGERAL DAS ESPÉCIES DE PENA. 1. Breve menção à evolução da pena: a historicidade do próprio homem revela ser ele um ser essencialmente social, tendente a se agrupar comunitariamente, instituindo com o seu semelhante uma convivência e coexistência comunicacional, uma relação de reciprocidade, de respeito mútuo das esferas de direitos individuais. Contudo, nesse contexto inter-relacional, por muitas vezes, se estabeleceu uma conflituosidade, pois, a natureza imperfeita do homem se manifestou através de condutas agressivas, invasoras daquelas esferas individuais e perturbadoras da coletividade. Conta a História que toda vez que o homem comportava-se em desacordo com as regras historicamente formadas, fossem morais, religiosas ou sociais, promovia uma ruptura da paz social (quebra da ordem social estabelecida) e, em face disso, recebia uma resposta social, um “mal necessário” para que espiasse a sua falta. Assim, ocorreu na origem bíblica. Adão cometeu o pecado original quando comeu o fruto proibido. Em face da sua falta, Deus condenou-o a se alimentar “das ervas do campo e a ganhar o pão com o suor do próprio rosto”.2 A pena nasce com a própria “civilização” e era entendida como uma mera reação, não racional, mas instintiva contra condutas que ameaçassem ou perturbassem o bem-estar comunitário, sobretudo a vida individual ou a sobrevivência do grupo. Julgam alguns autores que a primeira reação humana contra as faltas sociais teria sido a pena conhecida por vingança de sangue, que se configurava num ato de vingança privada, como reação ao ato agressivo cometido contra um membro da tribo. “Foi conseqüência da solidariedade entre os membros do mesmo clã, que é uma das forças de coesão e, portanto, de continuidade do grupo”.3 Era evidente o inconveniente da vingança de sangue. Ela acabava por atingir inocentes (guerra entre grupos ou clãs) e a colocar em risco a continuação da existência do próprio grupo. Evolui-se, então para outros dois tipos de pena: a expulsão do clã ou tribo e o banimento do território que ocupava. Isso, em parte, solucionava o risco antes mencionado, mas ainda não representava uma reação proporcional e delimitada ao fato agressivo cometido pelo o agente4. Em face daquela falta de proporção, procurou-se estabelecer uma pena que fosse pessoal e proporcional ao fato do agente. Foi consagrada, então, a chamada pena de talião que é representada pelo brocardo: Sangue por sangue, olho por olho, dente por dente.5 Isto é, uma retribuição com a mesma intensidade e gravidade da agressão. Ainda que esse sistema seja incompatível com o modelo de Estado contemporâneo, fundamentalmente, com o Estado Social e Democrático de Direito, a contribuição de tal sistema estava em trazer e consagrar as idéias de proporcionalidade e de pessoalidade da pena, que hoje não podem ser afastadas. Outros sistemas foram criados. Um deles estabelecia que a pena deveria resultar de uma 2 BOSCHI, José Antonio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 3.ª ed., Porto Alegre: Livraria do advogado, 2004, p. 93. 3 BRUNO, Aníbal. Direito Penal. Parte Geral. vol. I, t. 3. 3.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967, p. 56-57. 4 Cf. BOSCHI, José Antonio Paganella, ob. cit., p. 95. Mais adiante, o autor refere que essas penas: “eram visivelmente superiores à vingança de sangue porque preveniam a eclosão de movimentos grupais de vingança e, ainda, porque ao direcionar seus efeitos só sobre a pessoa do autor da falta funcionavam, direta e indiretamente, como instrumentos de proteção dos inocentes”. (Idem, p. 95). 5 PIERANGELI, José Henrique, “Das penas: tempos primitivos e legislações antigas”, in: Escritos Jurídicos-Penais, São Paulo : Revista dos Tribunais, 1999, p. 343. Direito penal II 5 composição ou transação, em verdade, uma negociação em que o agressor indenizava a vítima ou seus familiares através de um pagamento pecuniário. Sempre atendendo às regras legais ou costumeiras então vigentes. 6 Com o desenvolvimento dos grupos sociais, aparece o Estado, que passa a institucionalizar a pena e a adquirir a legitimidade para aplicá-la. Apesar desse fato representar uma certa evolução, não se refletiu no tempo da Idade Média, que realmente foi um período de trevas para o direito punitivo. Como ressalta BOSCHI, período “em que as penas estatais eram aplicadas desumana e desmedidamente para que o poder político assegurasse o status quo e reproduzisse a dominação, alcançada pelo consórcio celebrado com a Igreja”. 7 Para o direito punitivo, esse período se estende até fins do século XVIII, sempre ligado à amplidão da possibilidade de punir toda e qualquer ilicitude, o que propiciava ao Estado-juiz, na pessoa do monarca – a corporificação de Deus na Terra –, escolher a pena a ser imposta às ações que lhe desagrava, fundamentalmente do ponto de vista político e ideológico. O fato de a pena estar sujeita aos caprichos e humores do monarca e de servir como um instrumento de demonstração do poder fez dessa fase um período de penas infamantes, que apesar de serem concebidas como mera retribuição, tinham na verdade a função de demonstrar o poder instituído e, assim, impedir o cometimento de infrações. Como exemplo, vejamos essa narrativa de FOUCAULT: “[Daniens fora condenado, a 2 de março de 1757], a pedir perdão publicamente diante da porta principal da Igreja de Paris [aonde devia ser] levado e acompanhado numa carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras; [em seguida], na dita carroça, na praça de Grève, e sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de enxofre, e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento”.8 Com a Revolução Francesa, aquela idéia original de pena é transladada para uma nova realidade. Agora concebida como uma reação institucional e legítima contra uma falta social, ou seja, um atentado à estabilidade organizacional (ao Contrato Social) e das relações intersubjetivas, o que requeria a exigência de uma prévia proteção e de uma posterior reação jurídica. Inicialmente é vista como mera retribuição, mais tarde, como um meio de impedir novas infrações. Assim sendo, é a partir das idéias liberais que o Direito passa a ser visto como instrumento humano legítimo para regular as atividades do próprio Estado e dos indivíduos, capaz de “intentar conseguir e garantir uma ordem social determinada” 9 e proteger bens jurídicos, o que hoje deve fazer, em última instância, através da pena. 2. Direito penal e Constituição: legitimidade e formação do sistema penal O sistema normativo penal é uma unidade, na qual, conflui a diversidade de proposições 6 Cf. BOSCHI, José Antonio Paganella, ob. cit., p. 96. 7 Idem, p. 98. 8 FOUCAUT, Michel. Vigiar e punir. 6.º edição, tradução de Ligia M. Pondé Vassallo, Petrópolis : Vozes, 1988, p. 11. 9 POLAINO NAVARRETE, Miguel. Derecho penal. Parte General. vol. 1, t. 1. Barcelona: Bosch, 2000, p. 27. Prof. Fábio Freitas Dias 6 jurídicas e de conceitos eelementos delas extraídos, cuja relação de conexão intrínseca existente expressa algo dotado de sentido lógico, sendo possível, em tal ambiente, explicar e visualizar o crime como uma unidade sistemática. Tal sistema, cuja base formadora é um conjunto de normas e princípios, é na verdade um subsistema inserido num sistema maior, que tem por ápice a Constituição Federal. Nos Estados democráticos de direito, como é o caso do Brasil, o sistema jurídico nacional é formado a partir de uma lei fundamental: a Constituição Federal. Isso porque, num modelo de Estado dessa ordem, a Constituição é o conjunto normativo ordenador do sistema jurídico nacional,10 “o estatuto fundamental da ordem jurídica geral”.11 Ela contém todas as opções políticas, as normas e princípios fundamentais que fixam as diretrizes para a formação da vida jurídica da nação. É superior porque fruto de um poder constituinte originário, ou seja, de um grupo de representantes do povo, legitimados pelo voto popular para realizarem um fim específico: produzir a Carta Magna. Isso é o que se chama legitimação pela Soberania Popular, princípio informador do Estado democrático de direito. Portanto, a soberania popular legitima a atuação representativa dos parlamentares e se concretiza nessa mesma atuação. Desse modo, quando esses representantes elaboram e aprovam o texto constitucional, a lei fundamental valida a recepção de textos legais já existentes e a elaboração das futuras leis infraconstitucionais. Em face desse pilar fundamental do sistema jurídico nacional, é estabelecido um novo princípio: o da Supremacia da Constituição. Sob o aspecto hierárquico a Constituição é ápice do qual emanam as demais normas, uma vez que, como afirma Ferdinad Lassale, a Constituição para ser considerada lei fundamental “deverá, pois, atuar e irradiar-se através das leis comuns do país”.12 Desse modo, exige-se que qualquer subsistema jurídico, como o penal, esteja em sintonia com a Constituição, esteja em compatibilidade formal e material com a lei fundamental. Portanto, é uma conseqüência lógica, do princípio citado, a necessidade de as normas inferiores, como as leis penais, serem obedientes à forma de elaboração e aprovação das leis infraconstitucionais e também aos conteúdos nela estabelecidos. Mas a Constituição não é apenas um parâmetro capaz de estabelecer uma estrutura normativa em face de meras exigências formais. Para além de uma ordenação sistemática e racional dotada de supremacia,13 a Constituição é um modelo de arrumação jurídica que reflete um padrão axiológico da sociedade historicamente formado, representativo, sobretudo, do seu próprio modo de ser comunitário. Revela as fundamentais opções políticas, econômicas e jurídicas, o ponto de convergência dos mais importantes e capitais valores individuais e coletivos de um determinado conjunto social.14 Nesse contexto, o Estado Democrático constitucional é o reflexo da democracia do Estado Nacional, de modo a constituir o meio mais adequado de consagrar os direitos fundamentais. 10 Pois, como afirma, CANOTILHO “o Estado só se concebe hoje com Estado constitucional”. CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Direito Constitucional e teoria da Constituição, 5.ª ed., Coimbra : Almedina, 2002, p. 92. 11 CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital, Constituição da República Portuguesa anotada, 3.ª ed., Coimbra : Coimbra Ed., 1993, p. 63. 12 LASSALE, Ferdinand, A essência da Constituição, prefácio de Aurélio Wander Bastos, Rio de Janeiro : Liber Juris, 1985, p. 10. 13 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, ob. cit., p. 52. 14 DIAS, Fábio Freitas. Direito penal de intervenção mínima e a noção de bem jurídico aplicada às infrações tributárias. Uma análise à luz da concepção de Estado social e democrático de direito, p, 115/116. Direito Penal Secundário: estudos sobre crimes econômicos, ambientais e outras questões/ Coordenação Fábio Roberto D’avila, Paulo Vinicius Sporlder e Souza; Prefácio Jorge de Figueiredo Dias. São Paulo: Editora dos Tribunais, 2006. No mesmo sentido: FERREIRA FILHO, Manuel Gonçalves, Estado de direito e Constituição, São Paulo : Saraiva, 1988, p. 67. Direito penal II 7 Consoante exposição de Canotilho: (...) num Estado democrático-constitucional a lei parlamentar é, ainda, a expressão privilegiada do princípio democrático (daí a sua supremacia) e o instrumento mais apropriado e seguro para definir os regimes de certas materias, sobretudo de direitos fundamentais (...).15 A função legislativa do Estado, apesar de dinamizar a construção das normas necessárias à manutenção da paz e justiça sociais, fica limitada, contida formal e materialmente a um limite intransponível: a dos direitos e garantias mínimas do cidadão, já que, a própria sociedade, que se reflete no modelo de Estado assumido e consagrado na Magna Carta, optou e “concretamente pretende ser democrática, participativa, liberal, igualitária, respeitadora da liberdade, da consciência e da personalidade de cada indivíduo”.16 É nessa exata medida que o Estado se caracteriza como de Direito, ou seja, um Estado que também é limitado pelo próprio Direito, pela valoração que encerra e que se manifesta quase sempre através da lei. Coaduna-se perfeitamente com o que acabamos de sustentar passagem de Cristina Queiroz, ao afirmar que: Os direitos fundamentais são direitos constitucionais, que não devem em primeira linha ser compreendidos numa dimensão “técnica” de limitação do poder de Estado. Devem antes ser compreendidos e inteligidos como elementos definidores e legitimadores de toda a ordem jurídica positiva. Proclamam uma “cultura jurídica” e “política” determinada, numa palavra, um concreto e objectivo “sistema de valores. 17 Observe-se, todavia, que tal referência constitucional é fruto de um processo que se iniciou nos primórdios da civilização humana e teve suas primeiras manifestações legislativas no século XI18. Aparentemente, tal consagração se evidencia necessária por questão de segurança e efetividade jurídica. Desse modo, a consagração de tais valores estabelece uma correlação lógica inafastável entre dever e direito. É, por isso, que Jorge Miranda afirma que o “dever geral de respeito liga-se às liberdades e garantias e o dever geral de solidariedade aos direitos sociais e a adstrinções específicas impostas pelo Estado”.19 Ao menos teoricamente, podemos afirmar que um sistema aberto de regras e princípios 15 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 5º ed. Coimbra: Livraria Almedina, 2000, p 256. 16 DIAS, Fábio Freitas. Direito penal de intervenção mínima e a noção de bem jurídico aplicada às infrações tributárias. Uma análise à luz da concepção de Estado social e democrático de direito, p, 115/116. Direito Penal Secundário: estudos sobre crimes econômicos, ambientais e outras questões/ Coordenação Fábio Roberto D’avila, Paulo Vinicius Sporlder e Souza; Prefácio Jorge de Figueiredo Dias. São Paulo: Editora dos Tribunais, 2006. 17 QUEIROZ, Cristina M. M. Direitos Fundamentais, Teoria Geral. Teses e Monografias 4. Cidade do Porto: Coimbra Editora, 2002, p 39. 18 Sobre os valores de caráter individual Sarlet afirma que: “(...) os valores da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da igualdade dos homens encontraram suas raízes na filosofia clássica, especialmente na greco-romana, e no pensamento cristão. Saliente-se, aqui, a circunstância de que a democracia ateniense constituía um modelo político fundado na figura do homem livre e dotado de individualidade”(SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. 8ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007, p. 45). E continua o mesmo autor: “(...) o processo de elaboração doutrinária dos direitos humanos, tais como as primeiras declarações do século XVIII, foi acompanhado, na esfera do direito positivo, de uma progressiva recepção de direitos, liberdades e deveres individuais que podem ser considerados os antecedentes dos direitos fundamentais. É na Inglaterra da Idade Média, mais especificamente no século XIII, que encontramos o principal documento referido por todos que se dedicam ao estudo da evolução dos direitos humanos. Trata- se da Magna Charta Libertatun, pacto firmado em 1215 pelo Rei João Sem-Terra e pelos bispos e barões ingleses. Este documento, inobstante tenha apenas servido para garantir aos nobres ingleses alguns privilégios feudais, alijando, em princípio, a população do acesso aos “direitos” consagrados no pacto, serviu como ponto de referência para alguns direitos e liberdades civis clássicos, tais como o habeas corpus, o devido processo legal e a garantia de propriedade” (SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. 8ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007, p. 49). 19 MIRANDA, Jorge. Escritos Vários sobre Direitos Fundamentais. 1ª ed. São João do Estoril/Portugal: Principia, 2006, p, 65. Prof. Fábio Freitas Dias 8 consagrador de uma axiologia própria da sociedade brasileira, principalmente, no que tange aos direitos e garantias individuais, impede a volta e consolidação de governos autoritários e normas ideologicamente comprometidas com regimes anti-democráticos.20 Portanto, qualquer discussão sobre normas infraconstitucionais, principalmente daquelas que aparentemente desrespeitam aquela axiologia constitucionalmente consagrada, deve ser fixada no contexto de um sistema jurídico sustentado numa necessária compatibilização formal e material com a Constituição, ou seja, tendo a norma fundamental como vértice de toda e qualquer norma infraconstitucional respeitando a forma (tipo de norma, conteúdo que pode regular e processo de elaboração) e os conteúdos nela inseridos (valores, bens, opções políticas e econômicas da sociedade brasileira). Assim, as normas constitucionais são representativas das mais importantes opções da sociedade brasileira, legitimadas pela representatividade do próprio povo e, por isso, dotadas de supremacia a fim de propiciarem, segurança e estabilidade jurídica, o que acaba por sustentar a possibilidade do chamado controle de constitucionalidade.21 2.1 Princípios constitucionais relacionados à pena: podemos perceber que os princípios, sobretudo os constitucionais, são paradigmas legitimadores do Direito penal e, conseqüentemente, verdadeiros limites ao direito de punir. Em relação às penas, os princípios contemplados pela Constituição Federal configuram diretrizes limitadoras da atividade interpretativa e de aplicação da sanção penal, seja quanto a qualidade ou a quantidade de pena. 2.1.1 Princípio da igualdade: o princípio da igualdade exige a todo e qualquer criminoso um tratamento de igualdade formal quanto à aplicação da pena. Isso significa que, perante a lei, as diferenças devem ser consideradas e tratadas sempre de forma igual como dispõe o enunciado do artigo 5. º da CF, ou seja, todo e qualquer criminoso estará sujeito ao mesmo tipo de pena prevista para o crime cometido, sem ter a possibilidade de se eximir da conseqüência jurídico-penal. 22 É possível falar-se, também, de uma igualdade na lei, como uma diretriz endereçada ao legislador, no sentido de que “está desautorizado a editar leis criando ou aumentando as diferenças entre as pessoas”. 23 Observe-se, todavia, que o princípio da igualdade não se contenta apenas com uma 20 O Estado governava com Atos Institucionais, ou seja, conjunto de normas superiores, baixadas pelo governo, que se sobrepunham à própria Constituição Federal. O primeiro Ato Institucional dava ao executivo federal, durante seis meses poderes para cassar mandatos de parlamentares; suspensão de direitos políticos de qualquer cidadão; modificação da Constituição e a possibilidade de decretação de Estado de Sítio. O Ato Institucional n.º 2 ampliava o primeiro e extinguia todos os partidos políticos existentes , criando apenas dois a ARENA - Aliança Renovadora Nacional (partido da situação) e o MDB Movimento Democrático Brasileiro (partido oposicionista), esta oposição seria feita de maneira bem comportada. Foi criada a Lei de Segurança Nacional. O AI3 estabelecia o fim das eleições diretas. Com o AI4 foi criada a Constituição de 1967 que fortalecia o presidente e enfraquecia o judiciário e o legislativo. Em 1968 é criado o último e mais violento Ato Institucional, o AI5 dava plenos poderes ao governo para reprimir e perseguir opositores, fechamentos de assembléias legislativas, câmaras de vereadores., suspensão do direito político de qualquer cidadão por 10 anos e suspensão do habeas-corpus. FRANCO, Cristiane Machado. Violência na Ditadura. Disponível em: http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2003/04/252805.shtml, acesso em 03 de maio de 2007. 21 Toda modificação constitucional, feita com desrespeito de procedimento especial estabelecido (iniciativa, votação quorun etc.) ou de preceito que não possa ser objeto de emenda, padecerá de vício de inconstitucionalidade formal ou material, conforme o caso, e assim ficará sujeita ao controle de constitucionalidade pelo Judiciário, tal como se dá com as leis ordinárias. (SILVA, Afonso José da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27º ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p, 68.) 22 Roxin afirma: “quando o ordenamento jurídico parte da idéia de igualdade todas as pessoas, não pretende propor a máxima absurda de que todas as pessoas sejam realmente iguais, senão que ordena que os homens devam receber da lei um tratamento igual”. ROXIN, Claus. Derecho Penal. Madrid: Civitas, 1997, p. 808. 23 BOSCHI, José Antonio Paganella, ob. cit., p. 53. Direito penal II 9 igualdade formal. É necessário buscar-se uma igualdade chamada material (ou real), ou seja, um tratamento desigual para os materialmente desiguais, a fim de reduzir ou eliminar as diferenças. 24 Como vimos, perante a lei, a igualdade é formal, mas a chamada igualdade material, de certa forma, também é efetivada na aplicação da pena, através da individualização, que deve partir sempre da culpabilidade, enquanto elemento de determinação ou mediação da pena. É dizer, o juiz, na medida da culpabilidade do réu e atendendo às circunstâncias definidas na lei penal, deverá individualizar a pena para o autor do fato e, nesse sentido, leva em consideração as diferenças materiais deste (ex.: na multa, a situação econômica do réu). Parece ser nesse sentido que BOSCHI afirma: “Eis por que igualdade (e diferença), culpabilidade e individualização da pena se entrelaçam e, como princípios que permeiam o sistema, presidem e fundamentam o processo de opção qualitativa e quantitativa da pena...”.25 2.1.2 Princípio da humanidade: o princípio da humanidade está diretamente ligado à dignidade da pessoa humana26. Na visão kantiana, o homem é um valor em si mesmo. Levada essa idéia ao nível normativo aparece a dignidade como um atributo humano inafastável. A dignidade não é direito, é uma qualidade ou atributo inerente a qualquer homem independente de origem, sexo, idade, condição sociale etc., de forma que impõe a proibição de fazer dele um objeto da ação estatal. Entendemos que a dignidade resulta da experiência do homem consigo mesmo e com os outros, por isso, podemos afirmar que ela configura-se na raiz, na origem ou no ponto de convergência de todos os direitos humanos fundamentais. A dignidade humana refere-se, portanto, a uma esfera mínima de direitos inerente à própria condição humana, à condição de ser dotado de inteligência, liberdade e capacidade de distinguir e escolher. Acentue-se que a sociedade constitucionalmente estruturada e fundada no valor democracia deve fixar raízes na pluralidade e no respeito “pela dignidade da pessoa humana (de todo e qualquer homem, quaisquer que sejam as suas particulares convicções e modos de vida)”27. Nesse sentido, tem razão Kant, o ser humano representa um valor em si mesmo. Por isso, afirma Nicola Abbagnano, que o princípio da dignidade deve ser entendido como exigência imperativa, um valor que é absoluto por ser simplesmente intrínseco ao ser humano28. Trata-se do valor máximo, supremo, que motiva e dá causa a todo conteúdo do Direito, configurando-se em limite mínimo vital às construções jurídicas e, consequentemente, da intervenção jurídico-penal29. Com efeito, a nossa lei maior segue a tendência de exaltar a dignidade da pessoa humana e, no mesmo rumo, o princípio da humanidade. No seu art. 1.º, inciso III, a CF consagra a 24 BOSCHI, assinala ser exemplo de igualdade material a Lei 8.112/90, que assegura, nos concurso públicos, uma cota de 20% de vagas para o portadores de deficiência física. “A referida lei não contém “privilégio”, nem agride a Lei Maior, por ser nela precisamente que encontra o apoio (inciso III do artigo 37), instrumentalizando o que na atualidade se denomina de ação afirmativa do poder público...”. Ob. cit., p. 54. 25 Idem, p. 52. 26 Numa visão católica, pode-se afirmar que a dignidade vincula o homem à criação divina, pois, os seres humanos são criados à imagem e semelhança de Deus e, por isso, são dotados de divindade. 27 CUNHA, Maria da Conceição Ferreira da, «Constituição e crime», Uma perspectiva da criminalização e da descriminalização, Porto : Universidade Católica Portuguesa, 1995, pp. 136-7. 28 ABBAGNANO, Nicola, Dicionário de filosofia, Trad. de Alfredo Bosi, 2.ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 276. 29 Assim, no sentido do até aqui exposto, pode-se concluir que o princípio da dignidade exige: a) condições de existência digna conforme os ditames da justiça social; b) respeito à igualdade entre os homens (art. 5º, I, CF); c) a não consideração do ser humano como objeto, degradando-se a sua condição de pessoa, fundamentalmente, no que tange a prerrogativas de direito e processo penal; d) garantia de um patamar existencial mínimo. Prof. Fábio Freitas Dias 10 dignidade humana.30 Baseado na premissa da dignidade da pessoa humana, conquista iluminista inafastável, foi consagrado o princípio da humanidade da pena pela Constituição Federal de 1988, sobretudo nos incisos XLVII, XLVIII, XLIX e L do art. 5.º. Esse princípio é destinado aos legisladores, intérpretes e aplicadores da pena, no sentido de significar uma vedação às sanções que representem uma indignidade para o ser humano. Esses dispositivos, que configuram verdadeiros direitos fundamentais, asseguram o respeito à integridade física e moral de todo e qualquer preso, a possibilidade da mulher condenada amamentar seu filho, a adequação da instituição prisional ao sexo e idade dos condenados, a vedação de penas cruéis, infamantes, de morte,31 de caráter perpétuo, de trabalhos forçados e banimento. Nesse sentido, podemos afirmar que em face do princípio da humanidade da pena nenhuma sanção penal pode atentar contra a incolumidade da pessoa enquanto ser social, é dizer, nenhuma pena pode atentar contra a dignidade da pessoa humana. 2.1.3 Princípio da legalidade: não há pena sem lei anterior que a defina. Assim sendo, a pena está sujeita à reserva legal, ou seja, somente a lei em sentido estrito pode defini-la de forma prévia, o que faz através dos tipos legais de crime ou em normas gerais. Está sujeita também a certeza ou enunciação taxativa, que quer significar pena clara, certa e precisa quanto a sua qualidade e quantidade. Em face da legalidade, a pena fica submetida a regra geral da irretroatividade, mas também à exceção da retroatividade benéfica.32 2.1.4 Princípio da culpabilidade: não há crime sem culpabilidade, portanto, não poderá haver punição sem culpabilidade, enquanto uma característica necessária para poder imputar-se à alguém um crime, tornando-o responsável por ele. Portanto, como fundamento da pena, a culpabilidade “refere-se ao fato de ser possível ou não a aplicação de uma pena ao autor de um fato típico e antijurídico”.33 Como elemento determinante da pena, é um limite que impede que “a pena seja imposta aquém ou além da medida prevista pela própria idéia de culpabilidade”.34 Sinteticamente, a culpabilidade é pressuposto e medida da responsabilidade penal35. Mas, devemos lembrar que tal princípio não é aplicado às medidas de segurança, pois, o pressuposto da medida de segurança e sua medida é a periculosidade do réu. 30 O princípio da humanidade, sinteticamente, “significa que o Brasil vedou a aplicação de penas insensíveis e dolorosas (art. 5.º, XLVII, CF), devendo-se respeitar a integridade física e moral do condenado (art. 5.º, XLIX, CF). NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 8.ª ed. São Paulo: RT, 2008, p. 308. 31 Lembre-se a pena de morte é possível nos estados excepcionais de guerra declarada. Nessa hipótese, é possível termos penas de morte para os chamados crimes de guerra. 32 O princípio da legalidade não é absoluto, pois, como afirma BOSCHI, “a vedação não se estende às leis penais mais benignas, que podem retroagir mesmo no período de vacatio legis, para desconstituir, até mesmo, a sentença condenatória objeto de execução...” (Ob. cit., p. 59). Nesse sentido a Súmula n.º 611 do STF, que dispõe: “Transitada em julgado a sentença condenatória, compete ao Juízo das execuções a aplicação de lei mais benigna”. Questão interessante e ainda não pacífica é da retroatividade benéfica da jurisprudência. No RS, o procurador ODONE SANGUINÉ, defende a possibilidade e tem influenciado decisões do Tribunal de Justiça do Estado (SANGUINÉ, Odone, Irretroatividade e retroatividade das variações da jurisprudência penal, Fascículos de Ciência Penal, ano 5, v. 5, n.º 1, 1992, pp. 3-16). Como nos informa BOSCHI, na Revisão Criminal n.º 70002052959 (Relator Dr. Tupinambá Pinto de Azevedo), “Por maioria, o colegiado entendeu que a orientação uniforme dos tribunais afastando o estupro simples do rol dos crimes hediondos implicava exclusão da sentença condenatória da cláusula de cumprimento da pena em regime inteiramente fechado”. (BOSCHI, José Antonio Paganella, ob. cit., p. 60) 33 BITENCOURT, Cezar Roberto, ob. cit., p. 16. 34 Idem, p. 16. 35 Nesse sentido, afirma Boschi: “Em nosso direito, que recusa a responsabilidade objetiva, a culpabilidade atua com fundamento e limite para a imposição e a mensuração das penas, ante a fórmula empregada no artigo 29 do CP, (...) fornecendo a ratio para que juiz, ao considerar as diferenças de cada acusado, realize em concreto, pelo fato cometido, a justiça distributiva”. Ob. cit., p. 69. Direito penal II11 Para que fique claro: a expressão culpabilidade é empregada pela doutrina penal em três sentidos distintos: a) como categoria dogmática necessária para estabelecer o conceito de crime, por outras, como elemento conceitual de crime; b) num segundo sentido, como elemento de graduação da pena, é o que prevê o art. 59 do Código Penal brasileiro; e c) como conceito político criminal e limite do ius puniendi que pressupõe ou exige uma responsabilidade pessoal, subjetiva e reprovável. O juízo de culpabilidade que serve de fundamento e medida da pena, repudia a responsabilidade penal objetiva, ou seja, uma pena sem dolo ou culpa (vontade) e sem reprovação de caráter pessoal. Baseado em CEZAR BITENCOURT, pode-se afirmar que não há pena sem culpabilidade cujo conteúdo produz três conseqüências: 1ª) não há responsabilidade objetiva pelo simples resultado; 2ª) a responsabilidade penal está relacionada a um fato de seu autor; 3ª) a culpabilidade é a própria medida da pena. Cabe ressaltar que, no nosso sistema, a culpabilidade deve ser provada nos autos do processo penal. A idéia de culpabilidade se contrapõe a de inocência, por isso, o processo penal parte da presunção de inocência enquanto garantia constitucional, sendo incabível, portanto, presumir-se a culpabilidade do agente. Ela deve restar comprovada nos autos. 2.1.5 Princípio da pessoalidade: esse princípio visa fixar a responsabilidade penal na pessoa do réu, de forma que dele não passará para atingir terceiros. Segundo o art. 5.º, inciso XLV, “Nenhuma pena passará da pessoa do condenado”. Assim, se a pessoa não tiver vínculo com o fato, não poderá ser condenada, e se não for condenada, não pode ser-lhe imposta o cumprimento de uma pena.36 Refira-se que atualmente há uma boa discussão a respeito da relação desse princípio com a pena de multa, na medida em que o art. 51 do Código Penal a transformou em dívida de valor. Esse debate será analisado quando estudarmos a pena de multa mais a diante. 2.1.6 Princípio da individualização: a um determinado fato concorre um determinado autor singular, por isso, a necessidade de, dentro dos limites legais, individualizar a pena, necessidade consagrada no art. 5.º, inciso XLVI, da CF. É dizer, o juiz ao aplicar a pena deve singularizar a pena ao réu, o que proporcionará a ele saber o porquê da condenação e as circunstâncias, nas quais se apoiou a escolha da qualidade e quantidade da pena. Em última análise, a individualização atende ao fim de prevenção especial e ao mesmo tempo concretiza a idéia de igualdade material. 37 A ampla conexão do princípio da individualização da pena com o ideal de Estado Democrático pressupõe conexão lógica e precisa entre as atividades consideradas 36 Não é possível confundir a pena de multa, com o dever de reparação cível pelo dano produzido pela infração penal. Esta não se reveste da pessoalizada podendo atingir os herdeiros do réu. Por exemplo, se ele é condenado civilmente a pagar uma indenização de R$ 10.000,00 (dez mil reais), caso venha a morrer, seus herdeiros ficarão responsáveis pelo pagamento na medida das forças da herança. 37 Observem que Boschi considera a necessidade da individualização na fase executória também. “Já na fase da execução, a individualização da pena, consoante determina o art. 6.º da Lei 7.210/84, deverá desenvolver-se – embora não se desenvolva, conforme programa de tratamento individualizado elaborado por Comissão Técnica de Classificação, de modo a que, também nessa fase, fiquem resguardadas as diferenças próprias dos condenados e dos fatos respectivamente cometidos. Muito embora as eloqüentes determinações legais, os condenados, contudo, não são classificados para a individualização da execução, mas recolhidas às penitenciárias para cumprimento de penas em ambientes coletivos, sem infra-estrutura condigna, sem trabalho, ficando na maioria das vezes entregues à própria sorte”. Ob. cit., p. 73. Prof. Fábio Freitas Dias 12 individualizadoras, que em seu conjunto pretende a realização da vontade da lei a um caso específico. A individualização ampla se compõem numa atividade estatal tripartida, que se desdobra em três momentos sucessivos que acabam por assegurar a maior eficácia do princípio como instrumento de garantia da liberdade individual, sustentado no modelo de Estado Democrático de Direito e no princípio da dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, cumpre registrar que a individualização da pena se compõem em três momentos distintos, ou por outras palavras, suas conseqüências se irradiam em três momentos fundamentai da imposição da pena: a) na fixação da pena abstrata prevista no tipo penal (legislativa); b) na concretização da pena no momento da sentença (judicial) e c) no momento da execução da pena (judicial-executiva).38 A individualização comporta uma atividade ampla que se compõem daqueles três momentos sucessivos interligados entre si. É dessa forma que se pode falar em completa individualização da pena, pois que, abrange a atividade legislativa, judicial e executiva de modo a realizar a vontade da lei para um determinado caso específico, visando permitir sua maior eficácia enquanto garantia constitucional do próprio direito de liberdade individual, o que se coaduna com um modelo de Estado Democrático iluminado pela dignidade da pessoa humana. A individualização legislativa se dá quando o legislador cria um tipo penal e prevê a qualidade e quantidade de pena correspondente à espécie criminosa que está elaborando. Nesse momento, o legislador possui dois referenciais para efetivar tal idéia: os bens jurídicos e as condutas humanas. Nesse sentido o legislador deve utilizar o direito penal quando há ofensa a bens fundamentais para a subsistência do corpo social, por isso, não deve e não pode sancionar todas as condutas lesivas dos bens jurídicos, mas tão somente aquelas condutas mais graves e mais perigosas. Essa seleção permitirá estabelecer um grau de proporcionalidade entre a infração abstratamente prevista e a pena. Portanto, aqui a proporcionalidade se soma a fim de concretizar a noção de individualização abstrata da pena. Feita a seleção abstrata de bens e condutas, fixada a pena abstrata e sendo caso de condenação do agente, ao magistrado caberá mais um passo no processo de individualização que podemos chamar de processo de concretização da pena, ou seja, um processo intelectivo pelo qual o juiz aplica a pena abstratamente prevista em lei a partir de um sistema trifásico, que atenderá a todas as circunstâncias, condições e peculiaridades do crime e de seu autor, sempre observando à reprovação e à prevenção de crimes. Assim, pode-se perceber que o processo de individualização da pena no momento da sentença atende e concretiza o próprio princípio da igualdade material, na medida em que respeita as desigualdades fáticas e circunstanciais que caracterizam os indivíduos. Por fim, a pena imposta na sentença deve materializar-se na fase da execução. Mais precisamente, a execução representará a forma como um determinado réu irá cumprir a sua pena imposta na sentença. Assim, fixação de regimes, institutos como progressão de regime, livramento condicional, remição da pena, indulto e comutação, saídas temporárias são mecanismos que propiciam, a partir de características do fato e do próprio autor do fato, especificar a forma e o 38 Essa fase é uma concretização da individualização da pena. Sobre a individualização refere Ruy Rosado: “A individualização já começana elaboração da lei (legislação legislativa), quando são escolhidos os fatos puníveis, as penas aplicáveis, seus limites e critérios de fixação. A individualização feita na sentença, ao réu, no caso concreto, corresponde à segunda fase (individualização judicial), seguida da individualização executória, durante o cumprimento da pena” (AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado. Aplicação da pena. 4. ed. Porto Alegre: AJURIS, Escola Superior da Magistratura, 2003. p 1). Direito penal II 13 regramento do regime prisional do apenado. Portanto, também essa fase indica uma individualização ao réu o que também atende o princípio da igualdade material. 2.1.7 Princípio da proporcionalidade: esse princípio implícito está atrelado à intervenção mínima, ambos em consonância lógica com o modelo de Estado Social e Democrático de Direito. À luz desse princípio, exige-se uma ponderação entre a gravidade do fato (que envolve uma análise sobre a conduta e o bem jurídico atingido) e a gravidade da pena (necessidade da pena para atingir seus fins). Assim, o princípio da proporcionalidade não só deve ser observado pelo legislador quando fixa, na legislação, a pena prevista nos tipos penais, mas também cabe ao juiz observá-lo na aplicação concreta da pena, em cada caso. Nesse sentido, afirma MAURÍCIO RIBEIRO LOPES, o princípio é de fundamental importância “seja na adequação típica das condutas às descrições das normas, seja na atenuação dos rigores sancionatórios abstratos”.39 Para o nosso estudo, é fundamental fixar que a eficácia da pena aplicada está vinculada necessariamente ao princípio da proporcionalidade a fim de assegurar a individualização, ou seja, deve manter um grau de proporção entre a qualidade e quantidade de pena aplicada e o fato (com todas suas condições) de um determinado autor.40 3. Teorias sobre a função da pena 3.1 Teorias abolicionistas: parte da doutrina não encontra a razão de ser das penas e considera que elas nunca foram eficazes no sentido de cumprir as funções que lhe atribuíam, por isso, deveriam ser totalmente abolidas. Em verdade, esse entendimento se solidificou na premissa de que o Direito Penal fracassou na tarefa de ser o instrumento estatal responsável por manter o controle social e, por isso, os abolicionistas pretendem transformar o Direito penal em um instrumento meramente administrativo ou substituí-lo por outra forma de controle social.41 Basicamente, a idéia de seus seguidores é transferir o exercício de controle das condutas sociais para o âmbito do direito privado, o que seria fundamentado no “princípio do ressarcimento civil do dano, a que se acrescentariam certos procedimentos de arbitragem”.42 Para alguns, como Edson Passetti, o abolicionismo penal, apesar de ter como foco principal a proposta acima mencionada, quer colocar em cheque questões mais profundas que encontram raízes na própria formação social. Nesse sentido afirma que o abolicionismo penal é mais do que uma mera tentativa de abolir o direito penal e as penas. Ele problematiza a sociabilidade autoritária que funda e atravessa o Ocidente como pedagogia do castigo em que, sob diversas conformações históricas, atribui- se a um superior o mando sobre o outro. Abala o domínio no qual a criança e o jovem encontram-se confinados à condição de assujeitamento imposto pela obediência às hierárquicas regras da educação na infância e na adolescência e ao modelo do adulto legitimador de mentiras necessárias.43 39 LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Teoria constitucional do direito penal. São Paulo: RT, 2000, p. 421. 40 “Proporcionalidade significa que a pena deve ser proporcional ao crime, devendo guardar equilíbrio entre a infração praticada e a sanção imposta”. NUCCI, Guilherme de Souza, ob. cit., p. 308. 41 Nesse sentido, menciona BOSCHI, José Antonio Paganella, ob. cit., p. 108. 42 SILVA SÁNCHEZ, Aproximación Al Derecho Penal Contemporâneo. Barcelona: Bosch, 1992, p. 45. 43 PASSETTI, Edson. A atualidade do abolicionismo penal, p. 16. Curso livre de abolicionismo penal/ Organização Edson Passetti. São Paulo: Renavan, 2004. Prof. Fábio Freitas Dias 14 Avança o referido autor para concluir que O abolicionismo penal não lida somente com os conceitos da justiça criminal, com os efeitos do direito penal, a formação acadêmica de profissionais nas universidades, com as idas e vindas do condenado até a prisão, sua vida confinada ou sob os recentes controles sutis do regime das penas alternativas. O abolicionista penal se relaciona no dia-a-dia com cidadãos que se negam a discutir o fim dos castigos, acreditam na sua eficácia, na sua importância para demarcar limites, nas palmadas e nas pequenas surras44. Não nos cabe nesse singelo trabalho, que possui caráter mais informativo e didático, analisar com profundidade essa tese. Porém, pode-se afirmar que se o abolicionismo ainda não teve a recepção e repercussão desejadas é certo que esse movimento vem desafiando o Direito penal, enquanto ciência conjunta, a dar respostas mais eficazes no que tange ao combate a criminalidade. Esse desafio nos leva a acreditar que a pena privativa de liberdade, senão deve ser eliminada do sistema penal, ao menos deve ser reservada aos casos graves cometidos por agentes realmente perigosos para o convívio social. Importante referir que a grande maioria das teorias são justificadoras da pena, apoiadas na determinação de uma certa função que deve exercer. Nesse sentido, as teorias justificadoras são representadas por algumas variantes distintas e merecerem alguma atenção. Vejamo-las. 3.2. Teorias justificadoras 3.2.1 Teoria absoluta ou clássica: essa teoria representa a mais fiel idéia da pena como retribuição. Como observamos anteriormente, a pena sempre teve implícita a idéia da retribuição, em verdade, uma retribuição negativa, já que representava um sofrimento ou castigo necessário, para que o criminoso pagasse pelo seu delito. Nisso há uma relação dialética que justifica a lógica da pena: ação/reação; falta do filho/castigo do pai; pecado/penitência; mal do crime/mal da pena . É importante ressaltar que essa idéia de pena foi institucionalizada pelo Estado com a Revolução Francesa. Num modelo de Estado, fruto de um grande contrato social, portanto, legitimado pelo povo e limitado pelo Direito, somente era admissível uma pena concebida como uma retribuição à ruptura da ordem jurídica e do contrato.45 Desse modo, a função do Estado em matéria criminal se reduz “à obrigação de evitar a luta entre os indivíduos agrupados pela idéia do consenso social”.46 Nesse horizonte compreensivo, a pena tem um fim maior de Justiça e, em última análise, a representa. Isso porque, o Estado legítimo aplica a pena sempre tendo por parâmetro a culpa do autor e os limites legais. Observem, nesse momento histórico, como afirma BITENCOURT, “o fundamento da sanção estatal está no inquestionável livre-arbítrio, entendido como a capacidade de decisão do homem para distinguir entre o justo e o injusto”.47 Se o homem livremente quebra as regras do contrato social, deve recair sobre ele a justiça terrena, que é representada pela 44 Idem, p. 17. 45 “O Estado, tendo como objetivo político a teoria do contrato social, reduz sua atividade em matéria jurídico-penal à obrigação de evitar a luta entre os indivíduos agrupados pela idéia do consenso social. O indivíduoque contrariava esse contrato social era qualificado como traidor, uma vez que com sua atitude não cumpria o compromisso de conservar a organização social, produto da liberdade natural e originária. Passa a não ser considerado mais como parte desse conglomerado social e sim como um rebelde cuja culpa podia ser retribuída com uma pena”. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte geral. vol. 1, 3.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 68. 46 Idem, p. 68. 47 Idem, p. 68 Direito penal II 15 imposição concreta de uma pena. Ainda, podemos agregar aqui os resquícios da ligação que o Direito manteve com a Igreja, já que a pena imposta a partir de um delito cometido aproxima-se da idéia de castigo que se recebe pelo pecado cometido. Os principais defensores desta teoria foram Kant e Hegel. No entendimento de Kant, a lei é um imperativo categórico, tem-se a pena destituída de qualquer função utilitária, aplicada somente pelo fato de a lei ter sido violada, visando a fazer justiça; pois, se esta é desconhecida, os homens não teriam razão de ser sobre a terra. Este autor (Kant) define a justiça retributiva como lei inviolável, um imperativo categórico pelo qual todo aquele que mata deve morrer, para que cada um receba o valor de seu fato e a culpa de sangue não recai sobre o povo que não puniu os culpados. Nesse sentido, Salo Carvalho afirma que: O modelo penalógico de Kant é estruturado na premissa básica de que a pena não pode ter jamais a finalidade de melhorar ou corrigir o homem, ou seja, o fim utilitário ilegítimo. Se o direito utilizasse a pena como instrumento de dissuasão, acabaria por mediatizar o homem, tornando imoral. Logo, a penalidade teria como thelos a imposição de um mal decorrente da violação do dever jurídico, encontrando neste mal (violação do direito) sua devida proporção. Muito embora utilize critérios de medida e proporção da pena, Kant rememorará modelos primitivos de vingança privada. A teoria absoluta da pena sob o viés Kantiano recupera o principio taliônico, encobrindo-o, no entanto, pelos pressupostos de civilidade e legalidade....48 Já Hegel define o crime como a negação do direito e a pena como negação da negação e, portanto, como reafirmação do direito. A pena encontraria justificação na necessidade de restabelecer a vigência da vontade geral representada na ordem jurídica, e que foi negada pela vontade do delinqüente, devendo esta ser negada por meio do castigo penal, para que renasça a afirmação da vontade geral e se restabeleça o direito, sendo que, conforme o grau de intensidade da negação ao direito, também será o quantum ou intensidade da negação representada pela pena, como expõe Salo Carvalho: O principio fundamental da teoria hegeliana da pena é centrado na idéia de que a violência destrói a si mesma com outra violência: a supressão do crime é a remissão, quer segundo o conceito, pois ela constitui uma violência contra violência, quer segundo a existência, quando o crime possui uma certa grandeza qualitativa e quantitativa que se pode também encontrar na sua negação como existência.49 Em face da premissa retribucionista, a pena realiza justiça, de forma que a culpa do agente deve ser retribuída “por um castigo, um mal, isto é, uma sanção penal cujo fundamento legitimador, (...) é a capacidade de autodeterminação humana no que tange à distinção entre o que é justo ou não”50, justamente em face da quebra ou desrespeito das regras do Contrato Social. Apesar de politicamente justificada, a pena não deixa de ter a idéia de vingança pública. Sob a justificativa de ser uma forma de concretização da justiça, a pena só tem sentido quando “a culpabilidade do autor do fato delituoso seja compensada mediante a imposição de um mal 48 CARVALHO, Salo. Pena e Garantias. Rio de Janeiro: Lumen juris, 2003, p. 122. 49 CARVALHO, Salo, op. cit., 2003,p. 122. 50 CIPRIANI, Mário Luís Lírio. Das penas: suas teorias e funções no moderno direito penal. Canoas: Ed. ULBRA, 2005, p. 59. Prof. Fábio Freitas Dias 16 penal”51. A pena, portanto, era um sofrimento imposto pelo Estado em retribuição ao fato-crime cometido, reação estatal e social que atingia bens fundamentais (vida, liberdade, patrimônio, etc) do autor do fato uma vez que sua culpabilidade estivesse plenamente demonstrada. 3.2.2 Teorias relativas ou utilitárias: em alternativa à idéia da retribuição, as teorias utilitárias buscaram um fim ulterior na pena, que nada mais é do que evitar a prática de novos delitos. A pena não é um mal necessário, porque não punimos a pessoa pela falta cometida, mas porque não queremos que ela volte a cometer novas faltas. Assim, a pena atende o fim de inibir futuros crimes. Como afirma ANABELA RODRIGUES, “a pena perdeu em grande parte a sua função de cunho retributivo (...) para ganhar uma finalidade terrena, restrita à prevenção do cometimento de outros crimes”.52 Surgem, então, as chamadas prevenções geral e especial. A pena cumpriria a função de prevenção geral, pois, teria a capacidade de produzir, em todos os indivíduos de um determinado grupo social, uma intimidação ou espécie de motivação no sentido de não cometerem crimes. Essa concepção surge com FEUERBACH53 e sua teoria da coação psicológica. Segundo ele, a pena é uma ameaça legal tão grave que “coagiria psicologicamente” os cidadãos a não cometerem delitos. Obviamente, que dependia de um requisito básico: um indivíduo capaz de entendimento, “que a todo momento pode comparar, calculadamente, vantagens e desvantagens da realização do delito e da imposição da pena”.54 Assim, poderíamos resumir essa concepção em duas premissas básicas: a pena é uma ameaça que intimida pelo medo e o homem deve ser capaz de ponderar racionalmente sobre a realização de suas condutas, por outras, a pena intimida pelo medo e o homem pela sua racionalidade reconhece esse tal intimidação e, assim, se motiva para não realizar condutas criminosas. Já a prevenção especial nada mais é do que uma prevenção específica ou particular. A pena, ao contrário, não busca prevenir a delinqüência de todo e qualquer cidadão, mas tão- somente do autor de um fato particular, é dizer, objetiva que o criminoso não reincida no cometimento do mesmo crime ou de novos crimes. Por outras palavras, a pena não busca intimidar a totalidade do grupo social, nem se configura em mera retribuição do crime, mas visa, sim, impedir que o criminoso, autor de um fato concreto, não volte a delinqüir. Observe-se o que os adeptos de tal fim da pena pretendem: na realidade, é utilizar a pena como uma medida corretiva ou ressocializadora. Essa medida faz sentido no instante em que o sistema de cumprimento da pena recupere o apenado, já que assim, pode-se pensar em integrá-lo facilmente à sociedade e, por conseguinte, tem-se a prevenção especial efetivada na prática. Portanto, as teorias utilitárias se fundamentam na preservação e/ou sobrevivência do grupo social, ou seja, a pena serviria como um instrumento ou meio de prevenção da pratica do delito , inibindo, evitando ou impedindo tanto quanto possível a pratica ou a reincidência de delitos. Hoje, no contexto desse entendimento é possível, conforme a doutrina, fazer subdivisões 51 ROXIN, Claus, “Franz von Liszt e a concepção político-criminal o projeto alternativo”, in: Problemas fundamentais de direitopenal, tradução Ana Paula dos Santos Luís Natscheradetz, Lisboa: Vega, 1998, p. 16. 52 RODRIGUES, Anabela. A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade. Coimbra : Coimbra, 1995, p. 258. 53 “A teoria defendida por Feuerbach sustenta que é através do Direito Penal que se pode dar uma solução ao problema da criminalidade. Isto se consegue, de um lado, com a cominação penal, isto é, com a ameaça de pena, avisando aos membros da sociedade quais as ações injustas contra as quais se reagirá; e, por outro lado, com a aplicação da pena cominada, deixa-se patente a disposição de cumprir a ameaça realizada”. BITENCOURT, Cezar Roberto, ob. cit., p. 76. 54 BITENCOURT, Cezar Roberto, ob. cit., p. 68 Direito penal II 17 das funções preventivas em: a) geral negativa, que quer significar o poder intimidativo que a pena produz no imaginário dos destinatários da norma penal, portanto, frente a todos da sociedade; b) prevenção geral positiva, a função de reafirmar a existência e eficácia do Direito Penal; c) especial negativa, que é a função de intimidar ao autor do delito para que esse não volte mais a delinqüir, ou seja, a pena imposta representa uma intimidação para que não volte a delinqüir; e d) prevenção especial positiva, que representa atingir o fim pela ressocialização do apenado, para que possa ser reintegrado socialmente através do processo de cumprimento de pena. 3.2.3 Teoria eclética ou unificadora: entre as teses retribucionistas e as preventivas, alguns autores procuraram um ponto de contato, capaz de produzir uma teoria unificada dos fins da pena.55 Essa tentativa surge, fundamentalmente, no contexto do chamado movimento de Defesa Social, iniciado em Itália (1945). A premissa inicial era a atribuição ao Direito penal da função de resguardo da sociedade contra o crime. É nesse contexto, que a doutrina de defesa social persegue a prevenção especial “incumbindo às penas e às medidas de segurança o duplo fim: de curar o condenado, no pressuposto de que é um indivíduo doente e/ou de segregá-lo e de neutralizá-lo, no suposto de que é perigoso”.56 Nesse sentido, e de forma sintética, podemos afirmar que tal movimento reafirma a função preventiva, mas também recupera a idéia da retribuição, sem que esses conceitos anulem-se mutuamente. Como afirma BITENCOURT, baseado em MIR PUIG, as teorias mistas ou unificadoras entendem que “a retribuição, a prevenção geral e a prevenção especial são distintos aspectos de um mesmo e complexo fenômeno que é a pena».57 MIR PUIG58 entende que dentro das teorias ecléticas duas destacaram-se e marcaram a diversidade de opiniões: a) a do Projeto Oficial do Código Penal alemão de 1962, que tinha por princípio básico a proteção da sociedade e via na pena uma forma de retribuição justa, que na sua determinação desempenhavam relevância secundária os fins preventivos; b) a do chamado Projeto Alternativo (1966), que tinha por fundamento a proteção de bens jurídicos e a reintegração do preso. Por ter sido de grande importância, vejamos os traços principais do Projeto Alternativo. Na segunda metade da década de 60, um grupo de professores, elaboraram um Projeto Alternativo ao Projeto de Código Penal (1962) proposto pelo governo alemão. Esse trabalho, no que tangia aos fins das penas, tinha como idéia dirigente a proteção de bens jurídicos e a reintegração ou ressocialização do apenado. A concepção retributiva tradicional, do mal pelo mal, e de certa maneira a prevenção geral são substituídas por tendências que se caracterizavam por destacar, de um modo cada vez mais forte, a prevenção especial. A nova concepção não 55 A teoria da união apresenta duas vertentes dependendo da preferência às exigências de justiça ou de prevenção: a teoria de união aditiva e a teoria da união dialética. Na teoria da união aditiva se caracteriza pelo propósito de compatibilizar justiça e utilidade, dando prioridade as exigências da primeira sobre a segunda. Tem como premissa que o magistrado deve buscar uma fixação de pena justa e adequada a gravidade da culpabilidade do agente pelo pratica do delito, verifica-se neste entendimento a carga ínsita das teorias absolutas como o fundamento da pena (CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal Parte Geral. ICPC/Lumen Juris, 2006, p. 458). No que tange a teoria dialética unificadora, formulada por Claus Roxin, recusa a retribuição como fim da imposição da pena, tem com função da pena a proteção subsidiaria de bens jurídicos, mediante a prevencao geral negativa na cominação da pena; prevencao geral e especial na aplicação da pena,limitada pela culpabilidade; e prevencao especial na execução da pena37 .Esta construção teórica impõe ao magistrado a determinar até onde pode chegar com a pena que reputa justa e/ou adequada a responsabilidade do autor (TORON, Alberto Zacharias. Crimes hediondos – O mito da repressão penal. São Paulo: RT, 1996, p. 123). 56 BOSCHI, José Antonio Paganella, ob. cit., p. 130. 57 BITENCOURT, Cezar Roberto, ob. cit., p. 82. 58 Ver, MIR PUIG, Santiago. Derecho Penal. Parte general. 5.ª ed., Barcelona : Reppertor, 1998, p. 46. Prof. Fábio Freitas Dias 18 abandonou a idéia da prevenção, mas a subordinou às diretrizes gerais do Projeto Alternativo. Como afirma ROXIN, um dos principais articuladores do citado projeto, “Se, segundo a directriz programática do §2 I do PA, as penas e as medidas de segurança se destinam à protecção de bens jurídicos e à reintegração do sujeito na comunidade jurídica, caracterizam-se assim a prevenção geral e especial como os únicos fins da penal estatal”.59 Desse modo, a proteção de bens jurídicos está para prevenção geral, enquanto que reintegração social está para prevenção especial. 3.3 Concepção assumida pelo Código Penal brasileiro: não há como negar que a idéia ressocializadora foi assumida pelo Direito brasileiro, fundamentalmente com a Reforma de 1984, sem deixar de lado, contudo, a repressão. A título de exemplo, o art. 59 do CP se refere às funções de reprovação e de prevenção da pena necessária e suficiente (utilitarista). O art. 1.º da Lei de Execuções Penais se refere à criação de condições para a integração social harmônica do condenado e do internado (ressocializadora). Também essa é preocupação que baliza os julgados do STF, conforme demonstrado a seguir: DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. CRIME DE TRÁFICO DE ENTORPECENTE. PRETENSÃO DE SUBSTITUIÇÃO DA PENA CORPORAL (ART. 44, CP). IMPOSSIBILIDADE. LEI 11.343/06 E INTERPRETAÇÃO AUTÊNTICA. PROGRESSÃO DE REGIME NOS TERMOS DA LEI 11.464/07. CONCESSÃO PARCIAL DA ORDEM Todos os benefícios legais inerentes à execução da pena, e evidentemente compatíveis com o regime fechado, prosseguiam sendo aplicáveis aos condenados por crime hediondo ou a ele equiparado, de modo a estimular sua recuperação e ressocialização. 9. Com a nova redação do § 1º, e a introdução do § 2º, ambos do art. 2º, da Lei de Crimes Hediondos, deverão ser cumpridos os requisitos e condições impostas, mesmo em relação às pessoas que praticaram condutas criminosas em época anterior à nova ordem jurídica instaurada sobre o tema. [...] 10. Concessão parcial da ordem, com revogação da liminar. HC 89976 / RJ - RIO DE JANEIRO ; HABEAS CORPUS; Relator(a): Min. ELLEN GRACIE; Julgamento: 26/03/2009; Órgão Julgador: Tribunal Pleno. [sem grifos nos originais] Para o legislador de 1984, segundo Alberto Silva Franco, a pena “deve sernecessária e suficiente para a reprovação e prevenção do crime, isto é, deve servir, de um lado, à retribuição justa da culpabilidade e, de outro, a um fim de prevenção”.60 Ao aplicar a pena, o juiz irá de certa forma neutralizar o crime cometido, ao mesmo tempo em que fortalece a consciência jurídica da comunidade, sem nunca perder de vista o fim de reinserção social. Nesse sentido, no Direito brasileiro podemos afirmar que à pena são atribuídas a função preventiva geral (a pena busca uma atitude fiel ao Direito) e especial (indivíduo não volte a delinqüir, o que é feito com a sua recuperação), bem como a de ser, ao mesmo tempo, um meio de reprimir e possibilitar a reintegração o apenado no convívio social (retribuição justa)61. 4. Espécies de sanção penal no Direito brasileiro: preenchida a conduta e os demais elementos que constituem o enunciado descritivo e legal – tecnicamente chamado de tipo penal – 59 ROXIN, Claus, “Franz von Liszt e a concepção político-criminal o projeto alternativo”, in: Problemas fundamentais de direito penal, tradução Ana Paula dos Santos Luís Natscheradetz, Lisboa: Vega, 1998, p. 54. 60 FRANCO, Alberto Silva e outros. Código penal e sua interpretação jurisprudencial. São Paulo : RT, 1995, p. 666. 61 No mesmo sentido, NUCCI, Guilherme de Souza, ob. cit., p. 301. Direito penal II 19 ocorre uma adequação entre o fato concretizado na realidade e aquilo que prévia e abstratamente estava descrito na norma penal formalizada. Logo, se o mandamento da norma penal é contrariado (a causa) deve ser imposto ao criminoso uma sanção penal (a conseqüência). A conseqüência jurídica é a sanção prevista para cada tipo de crime, previamente descrito na norma penal formalizada. A sanção é cominada na lei penal em quantidade e qualidade. A quantidade se refere aos limites máximo e mínimo de pena privativa de liberdade cominada e é bastante clara nos tipos penais, por exemplo, no crime de homicídio, art. 121 do CP, reclusão de 6 a 20 anos. Já a pena de multa possui critérios próprios, estabelecidos em lei, para definir o seu quantum. Esses critérios serão oportunamente estudados. A qualidade é referente à espécie de sanção penal. Cabe observar, todavia, que as normas penais definidoras dos crimes em espécie cominam somente penas privativas de liberdade e/ou penas de multa. As restritivas de direito são utilizadas para, a partir de critérios legais, substituir as penas privativas de liberdade inicialmente cabíveis a uma determinado caso concreto. As medidas de segurança também não são previstas nos crimes em espécie, mas num título especial do Código Penal brasileiro (arts. 96 a 99). Ressalte-se que as medidas de segurança, que são aplicadas basicamente aos inimputáveis, podem ser aplicadas aos semi-imputáveis, quando estes necessitarem tratamento curativo especial, como veremos adiante. Aqui cabe estabelecer um gráfico demonstrativo capaz de dar uma visão geral das sanções penais que compõe o sistema jurídico brasileiro: S Reclusão A Privativa de liberdade Detenção N Prisão simples Ç Õ Penas Prestação de serviços à comunidade E Perda de bens e valores S Restritiva de direitos Prestação pecuniária Interdição temporária de direitos P Limitações de fim de semana E N Multa A I S Medidas de segurança Detentivas: internações Restritivas: tratamento ambulatorial Prof. Fábio Freitas Dias 20 Questões principais para reflexão e aprofundamento através de pesquisa: 1) O significado da pena em Hegel e Kant 2) A aplicação do princípio da individualização da pena e a lei dos crimes hediondos 3) O princípio da proporcionalidade e sua relação com o conceito de ilicitude 4) Exemplos na jurisprudência do uso do princípio da proporcionalidade da pena Bibliografia indicada para leitura: Bibliografia obrigatória: 1) Sobre os princípios das penas: BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. 8ª ed., v.1, São Paulo: Saraiva, 2003; ou ESTEFAM, André. Direito Penal: parte geral. v.1, São Paulo: Saraiva, 2010; ou NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal: parte geral: parte especial. 6.ª ed., São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2009.62 2) Jurisprudência sobre aplicação do princípio da proporcionalidade, disponibilizada da página da internet como anexo1. Bibliografia complementar: 1) Sobre a história das penas: PIERANGELI, José Henrique, “Das penas: tempos primitivos e legislações antigas”, in: Escritos Jurídicos-Penais, São Paulo : Revista dos Tribunais, 1999. 2) Sobre a ineficiência da pena privativa de liberdade: BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. São Paulo : Saraiva, 2004. 3) ZAFFARONI , Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 1996. 62 A bibliografia obrigatória é a mesma existente na biblioteca. Obviamente, podem ser utilizadas versões mais atuais das mesma obras citadas acima. PONTO 2: PENAS EM ESPÉCIE. PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE. ESPÉCIES. ESTUDO DAS CIRCUNSTÂNCIAS. CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS, CIRCUNSTÂNCIAS AGRAVANTES E ATENUANTES, CAUSAS DE AUMENTO E DE DIMINUIÇÃO. 1. Conceito e espécies: a pena privativa de liberdade é a sanção penal, de duração variável, que cerceia a liberdade do condenado, em face de sentença penal condenatória transitada em julgado63. As penas privativas de liberdade são: reclusão, detenção e prisão simples. A lei penal não estabelece com clareza a distinção entre reclusão, detenção e prisão simples. Cabe ressaltar que hoje, a prisão simples64, prevista para as contravenções (crimes de menor potencial ofensivo), não tem sido aplicada, tendo em vista a possibilidade de composição e transação no juizado especial criminal. Quando aplicada, na prática é executada como se fosse uma detenção. Para diferenciar as espécies de pena privativa de liberdade, são utilizados dois critérios: 1.º) Critério político: gravidade da infração penal; reclusão para os mais graves, detenção para os crimes médios, prisão simples para as infrações penais de pequena gravidade (contravenções). 2.º) Critério dos regimes: os regimes são modelos de cumprimento de pena, que podem ser: fechado, semi-aberto e aberto. A reclusão pode ser cumprida inicialmente nos três regimes, a detenção somente no semi-aberto e aberto. Cumpre, todavia, fazer uma observação importante. A detenção não admite a fixação do regime inicialmente fechado, mas esta espécie não é incompatível com tal regime, pois, havendo a necessidade de regressão de regime, poderá ser fixado o regime fechado para um apenado que cumpre detenção, por força do disposto no art. 118 da Lei de Execuções penais (LEP). Em face da diferenciação traçada anteriormente, é importante mencionar que dela surgem algumas conseqüências, algumas no campo do direito material e outras no campo do direito processual. O primeiro grupo de conseqüências aparece no próprio direito penal e podem ser apontadas como sendo: a) Definição do tipo de medidas de segurança a ser aplicada: em tese, se o agente comete um fato típico e ilícito apenado com reclusão, de regra, aplica-se uma MS detentiva que se configura numa internação em hospital psiquiátrico; já se apenado com detenção, de
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