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Antropologia Filosófica Visões do humano: A filosofia medieval, entre a fé e a razão Material Teórico Responsável pelo Conteúdo: Prof. Ms. Isacir Heleno Andreoni Júnior Revisão Textual: Profa. Esp.Vera Lídia de Sá Cicarone 5 • Introdução • Surgimento e contexto da filosofia cristã • Agostinho de Hipona • Tomás de Aquino Para um bom aproveitamento de seus estudos é importante seguir algumas recomendações. Em relação ao conteúdo da unidade: Investigar a visão do humano, no pensamento filosófico do período medieval, a partir da tensão entre a fé cristã (dominante, neste período), e a racionalidade herdada da Antiguidade grega. Isso será feito por meio do estudo da obra de dois pensadores, fundamentais neste contexto: Agostinho de Hipona, e de Tomás de Aquino. Como veremos, o primeiro procurou fazer de sua obra uma conciliação entre a filosofia platônica e a cristandade; enquanto o segundo procurou fazer o mesmo entre esta última e a obra de Aristóteles. Em relação às estratégias de aprendizagem: Nossa recomendação a você estudante é dividir seus estudos em etapas: primeiro, faça uma leitura atenta do texto, neste momento não é tão importante fazer marcações, busque uma compreensão de conjunto. No segundo momento, retorne ao texto, mas, desta vez, você já conhece o final da história, não é mesmo? Então, ao retornar você o fará com um olhar de investigador(a); busque pelos pontos principais: quem são os personagens mais relevantes dessa “história”? Que ideias cada um deles defendia? Por quê? Outras questões são colocadas ao longo do texto para sua reflexão? Quais são elas? E, finalmente, é sempre bom estar atendo ao vocabulário, não somente aquele já indicado no texto, mas, além disso, sempre procure o significado das palavras quando surgir alguma dúvida. Investigar de que maneira o pensamento filosófico procurou se estruturar, no período medieval, entre a fé cristã (dominante, neste período) e a racionalidade herdada da Antiguidade grega. Isso será feito por meio do estudo da obra de dois pensadores fundamentais neste contexto: Agostinho de Hipona e de Tomás de Aquino. Como veremos, o primeiro procurou fazer de sua obra uma conciliação entre a filosofia platônica e a cristandade e o segundo procurou fazer o mesmo entre esta última e a obra de Aristóteles. Visões do humano: A filosofia medieval, entre a fé e a razão 6 Unidade: Visões do humano: A filosofia medieval, entre a fé e a razão Contextualização O link abaixo é um vídeo de contextualização para a aproximação ao pensamento de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, contém alguns elementos históricos e alguns de seus conceitos principais, além do comentário da articulação do pensamento de ambos e da educação. Utilize-o para preparar-se para a discussão desta unidade. Explore https://www.youtube.com/watch?v=DtOAG-a8ies 7 Introdução Os diferentes povos da antiguidade sempre procuraram dar explicações aos fenômenos naturais. “Qual a origem do mundo?” “Como a natureza funciona?” “Como nascemos e por que morremos?” Todos esses eram questionamentos que encontravam, no pensamento mítico, as respostas para os aspectos essenciais da realidade de povos como os chineses, indianos, egípcios etc. Em vez de obras de um único autor, as narrativas míticas são produtos da tradição cultural de um povo e, em geral, a sua origem é indeterminada. Como herança, o mito é basicamente transmitido pela oralidade. O pensamento mítico pressupõe adesão e aceitação dos indivíduos e, na verdade, une as suas experiências com o real. Ou seja, o mito não precisa ser justificado, não precisa de fundamentações, nem mesmo se sujeita ao questionamento, à crítica ou à correção. O mito não é passível de ser negado. É incontestável. E não se discute o mito, uma vez que a pessoa que faz parte de uma determinada cultura tem por “lei natural” aceitar o mito como visão de mundo, ao passo que, para a pessoa que não pertence a essa cultura, o mito não tem significado. Para explicar a realidade, o pensamento mítico apela ao sobrenatural, ao mistério, ao sagrado e à magia. Tudo que acontece ao homem tem origem divina, misteriosa. O mundo é governado por uma realidade exterior ao mundo humano e natural. Fonte: Thinkstock / Getty Images Porém, houve um contexto histórico, geográfico, político em cujo âmbito a explicação mítica já não se mostrava tão satisfatória. Buscava-se explicar o mundo e o homem de uma outra forma. Esse contexto era o das cidades-estados. Também, com o aparecimento das moedas, das trocas comerciais, da intensa atividade política etc., os indivíduos passaram a se preocupar com a realidade mais concreta, com as condições básicas para o nascimento de um novo tipo de pensamento, o filosófico. Foram os gregos, com a filosofia, que abriram um novo caminho - na relação do homem consigo, com o mundo – diferente do mítico. Entretanto, isso não significou o desaparecimento definitivo do mito, mas um enfraquecimento do papel da religião na sociedade clássica. 8 Unidade: Visões do humano: A filosofia medieval, entre a fé e a razão Para os primeiros filósofos, a explicação do mundo natural estaria no próprio mundo e não fora dele. Com os primeiros filósofos, a resposta para todas as questões que movem o homem passou a ser buscada não em domínios outros, em forças sobrenaturais, míticas, mas na própria natureza, no próprio mundo. A natureza assumiu, assim, papel importante nos primórdios do pensamento filosófico. Mas, se, por um lado, tais filósofos, ao se voltarem para a própria natureza, para o próprio mundo, abriram novas frentes de investigação e de conhecimento, eles ainda não chegaram a investigar, no âmbito dessa natureza, desse mundo, o lugar do homem. Para eles, corpo e alma uniam-se em um único elemento, e este era a própria Physis. No pensamento cosmológico, característico dessas filosofias (como vimos em unidades anteriores), não havia uma distinção fundamental entre todos os elementos que compunham a Natureza. Sendo assim, também o homem era apenas uma expressão desta. Apenas com a filosofia socrático-platônica é que o pensamento passou a se concentrar no próprio homem, em sua natureza específica, na procura por sua essência. Foi aí que uma antropologia filosófica se esboçou e que a relação entre alma e corpo, por exemplo, passou a ser estabelecida. Diferente dos primeiros filósofos, Platão não pensava que alma e corpo se confundiam, unidos na própria natureza, mas, sim, que eram essencialmente distintos, não havendo unidade entre eles, mas uma oposição constante. É partindo dessa convicção que o filósofo dividiu o mundo em dois: o mundo sensível e o mundo inteligível. O primeiro, como sabemos, era o mundo das coisas materiais, um mundo das aparências, das sombras, enquanto o verdadeiro mundo seria o da pura luz, da verdade, o mundo das ideias infinitas, eternas e imutáveis. Assim, a alma eterna estaria aprisionada no corpo e lutaria para regressar ao mundo das luzes, para conhecer, para, enfim, chegar à verdade. Contudo, como vimos na unidade anterior, essa teoria platônica das ideias foi refutada por Aristóteles, o qual afirmava que, apesar de o homem ser, sim, um composto de alma e corpo, tal composição não se daria como uma contradição e um aprisionamento de um no outro, mas, sim, como a união que forma uma única realidade, um só mundo passível de ser experimentado, conhecido, pelo sensível e pela razão. A essência que confere o tom divino ao homem, a alma, seria, segundo Aristóteles, algo que se inscreve na própria ordem do real, entendido não como uma imaterialidade, um mundo além do sensível (como o queria Platão). É verdade que, com os esses dois grandes pensadores gregos, a reflexão sobre o homem no mundo atingiu um dos pontos mais altos de todo o pensamentofilosófico. Entretanto, para esses filósofos, ainda faltava dar uma solução para o problema da origem e do sentido da existência humana. Dizer o que o homem é, qual é a sua essência, foi, sem dúvida, um grande passo na história do pensamento. Contudo, faltava dizer de onde ele veio e qual o sentido de sua existência. Essa problemática encontrará respaldo no pensamento do mundo medieval, do século VII ao século XIV, dominado pela teologia e por uma filosofia fortemente cristã. 9 Quando o cristianismo surgiu, era mais uma entre várias religiões orientais, mas havia uma proposta que o diferenciava tanto do judaísmo (a sua origem) quanto de outras religiões antigas: a tarefa da evangelização. O cristianismo nascia para ser uma religião universal; era dever dos cristãos espalhar para o mundo inteiro a “boa nova”. Assim, precisando convencer os filósofos gregos e os imperadores romanos, coube aos padres da Igreja católica o desafio de mostrar-lhes a superioridade da verdade cristã sobre a tradição filosófica. Somente com essa conciliação entre o pensamento filosófico dos gregos e o cristianismo seria possível converter os pagãos. Filosoficamente, o cristianismo encontrou seus primórdios nas epístolas de São Paulo e no evangelho de São João, e desenvolveu-se em um período que compreendeu o século I até século VII, ficando conhecido como filosofia patrística (conhecimento produzido pelos padres). Os primeiros intelectuais cristãos foram São Paulo, São João, Santo Ambrósio, Santo Eusébio e Santo Agostinho. Antônio Parreiras (1860-1937)/ Wikimedia Commons Os primeiros pensamentos dessa filosofia procuraram fundamentar a explicação do mundo a partir das ideias de criação do mundo, do pecado original, da existência de Deus, do juízo final e da ressurreição dos mortos, temas antes nem cogitados pelos filósofos gregos. Mas, para que as ideias cristãs fossem aceitas, precisavam ser aceitas como verdades reveladas por Deus, fosse por meio da Bíblia ou dos santos. Logo, assumiram a conotação de dogmas, decretos divinos que são inquestionáveis. Foi nesse momento que nasceu a distinção entre verdades reveladas e verdades humanas: a primeira distinguindo-se da segunda por introduzir a noção de conhecimento recebido por uma graça divina. E, a partir dessa distinção, estabeleceu-se o debate, que atravessou toda a Idade Média, entre fé e razão. Surgimento e contexto da filosofia cristã 10 Unidade: Visões do humano: A filosofia medieval, entre a fé e a razão Consagrada como religião da salvação - cujo interesse maior se encontrava, portanto, na moral, na medida em que visava a garantir que os preceitos deixados por Jesus fossem praticados e não à produção de uma teoria da realidade - o cristianismo não precisava de uma filosofia, segundo alguns autores. O fato de os pensadores cristãos dedicarem uma maior atenção à fé, à crença e à revelação do que à razão teórica, ao conhecimento intelectual e à reflexão impulsionava os críticos a desacreditarem de uma filosofia cristã. Assim, na tentativa de responder a tais críticas e visando a adquirir um estatuto propriamente filosófico, a filosofia medieval (do século VIII ao século XIV) foi buscar em Platão e Aristóteles argumentos racionais para explicar a existência de Deus e do homem. A partir da reelaboração da filosofia clássica grega, adequando-a às ideias do cristianismo, o pensamento medieval cristão passou a perseguir alguns objetivos, tais como: 1 - Provar a existência de Deus e os atributos e predicados de sua essência; 2 - Provar que o mundo é produto da vontade divina e é governado pela providência divina; 3 - Provar que, embora Deus seja imaterial e infinito, sua ação pode ter efeitos materiais e finitos, como a própria criação do mundo e do homem; 4 - Provar que a alma humana existe e é imortal; 5 - Provar que não há contradição entre a liberdade humana e a onisciência- onipotência de Deus; 6 - Provar que o ser criador é diferente do ser criatura (as coisas do mundo, inclusive o homem); 7 - Provar que fé e razão não são contraditórias. Mas, se, por um lado, a filosofia cristã medieval precisava se voltar para a filosofia clássica e fazer dela uma reinterpretação, por outro, muitas das ideias defendidas pelos pensadores gregos não podiam ser aceitas pelo cristianismo. Isso porque, em muitos aspectos, o cristianismo medieval partia de pressupostos incompatíveis com os fundamentos da visão de mundo antiga, clássica. Por exemplo: enquanto, para os gregos, o mundo (sensível e inteligível) era eterno e, portanto, sem um começo e um fim temporais, para os cristãos, o mundo foi criado por Deus a partir do nada e terminará no dia do juízo final. Outro ponto de discordância entre o pensamento clássico e o pensamento medieval encontra-se na relação alma-corpo: para os gregos, o homem seria um ser natural dotado de corpo e alma; ambos, portanto, pertenceriam ao domínio da natureza, sendo que a alma é que possuiria o intelecto ou a razão; já, para os cristãos, o homem é um ser natural apenas no que diz respeito ao corpo, pois a alma, infinita, imortal, diz respeito ao sobrenatural. "O último julgamento", Michelangelo (1537) 11 Sobre a liberdade do homem eles também divergiam. Para os filósofos gregos, a liberdade humana seria uma forma de ação que implicaria em uma capacidade da nossa razão em escolher o que é bom ou ruim, justo ou injusto. E os pensadores do cristianismo viam o homem também como um ser livre, no entanto a sua capacidade de escolher seria uma ação moral determinada pela fé e pela revelação. Quanto ao conhecimento, os gregos acreditavam que este era uma atividade do intelecto, enquanto, para os cristãos medievais, a razão era algo limitado. Por meio dela o homem seria incapaz de alcançar a verdade, pois, sozinha, ela não possibilitaria esse acesso ao conhecimento. Para tanto, seria necessário recorrer à fé e à revelação. Fonte: “A criação de Adão”, Michelangelo (1510) Nesse sentido, podemos perceber que, para os filósofos do cristianismo, o maior desafio era conseguir reunir as verdades da razão e as verdades da fé, isto é, unir novamente aquilo que a filosofia tinha separado quando do seu nascimento: a razão e o mito. De que maneira dois dos mais importantes pensadores cristãos medievais realizaram essa conciliação, é o que veremos a seguir. Conhecido como o fundador da filosofia medieval e cristã, Agostinho de Hipona (que depois passará a ser Santo Agostinho) fazia severas críticas a toda a filosofia anterior ao advento de Cristo. O maior erro dos filósofos clássicos, acreditava ele, estava em colocar a razão como o elemento determinante da natureza humana. Segundo Agostinho, a razão sozinha não era capaz de nos oferecer o caminho do esclarecimento, das luzes, da verdade e da sabedoria. Não estaria na razão a chave para as verdades do mundo, afirmava o filósofo cristão. Agostinho de Hipona 12 Unidade: Visões do humano: A filosofia medieval, entre a fé e a razão Isso porque a razão estaria envolta em uma obscuridade, um mistério, algo maior que só a revelação cristã seria capaz de solucionar. Nesse sentido, as verdades do mundo não seriam alcançadas diretamente pelo intelecto humano, mas reveladas por Deus ao homem. Desse modo, o conhecimento passava a ser resultado da graça divina. Contrariando os pressupostos da filosofia grega que tinham a razão como o mais alto privilégio do homem, objeto de seu orgulho, o pensamento medieval via, na razão, o disfarce do perigo e da tentação. Portanto, em vez de um privilégio do ser humano, o pensamento racional converteu-se em humilhação e ameaça. Apesar disso, os pensadores cristãos teriam que se render à razão, em alguma medida, se quisessem incorporar ao cristianismo o “rótulo” de filosofia em vez de permanecer no domínio apenas da religião. Eassim o fizeram. Mas não se tratou de uma rendição propriamente dita. O que os padres da Igreja procuraram demonstrar é que não havia incompatibilidade em unir fé e razão e, mesmo que houvesse, a razão sempre estaria subordinada à fé assim como o conhecimento intelectual, à revelação divina. Essa aproximação da razão foi a única saída que o cristianismo encontrou para explicar temas caros à sua filosofia, como a existência de Deus e a criação do mundo e do homem. Nesse processo estava implícita a atividade de evangelização, uma tarefa que os cristãos deviam cumprir (e ainda cumprem) dentro de uma religião que se pretende universal. É importante ressaltar que os primeiros pensadores cristãos fizeram uma leitura seletiva da filosofia grega, em especial de Platão e Aristóteles, como veremos. E essa seleção, obviamente, deixou de lado tudo aquilo que eles consideravam incompatível com o cristianismo como religião revelada. Isto é, qualquer incorporação de doutrinas ou conceitos filosóficos estava diretamente relacionada aos ensinamentos religiosos e deveria, portando, adequar-se a eles. Inicialmente, os filósofos cristãos recorreram aos pensamentos de Platão, depois de algumas adaptações, é claro. Foi Santo Agostinho que, ao retomar o dualismo platônico entre o mundo espiritual (mundo das ideias) e o mundo material (mundo sensível), fez do “mundo das ideias” o “mundo das ideias divinas”. Por conseguinte, se, em Platão, temos uma teoria das ideias, a interpretação agostiniana deste produz uma teoria da iluminação. Santo Agostinho foi o principal nome da filosofia patrística e conheceu o pensamento de Platão por meio dos intérpretes da escola de Alexandria e de traduções latinas. Na verdade, Agostinho foi influenciado não propriamente pelo platonismo, mas pelo neoplatonismo, um movimento de retomada da filosofia de Platão, mas com um conteúdo espiritualista e místico. Para os neoplatônicos, três realidades distintas se configuravam: o mundo sensível dos corpos (da matéria), o mundo inteligível das puras formas imateriais (as ideias, os conceitos) e, acima desses dois, uma realidade suprema, inatingível pelo intelecto humano. Fonte: Heiliger Augustinus, Simone Martini (1320-1325) 13 Um exemplo de como se deu essa reelaboração do pensamento platônico nos moldes do cristianismo pode ser ilustrado por uma atitude filosófica típica dos gregos. Platão indagava o seguinte: O que é a virtude? A virtude pode ser ensinada? Diante desse impasse, Platão era contundente ao afirmar que a virtude não poderia ser ensinada, uma vez que já a trazemos conosco. Portanto, para o pensador grego, nenhum ser divino ou mestre seria capaz de introduzir este ou outro valor em nossa alma, uma vez que se tratava de uma característica da natureza humana ser virtuoso. Desse ponto de vista, era papel do filósofo não ensinar, mas despertar essa virtude essencialmente presente, mas adormecida, na alma de todos os homens. Santo Agostinho deu uma nova leitura a essa situação. Para ele, o conhecimento humano não se daria somente pela apreensão sensível ou pela experiência concreta com o mundo, mas necessitaria de um elemento deflagrador para o próprio processo de conhecer: o ser divino. O que Agostinho afirmava era que o homem recebia de Deus o conhecimento das verdades eternas, isto é, a razão seria realmente algo intrinsecamente humano, como Platão afirmava, mas seria o ser divino que a iluminaria. Em outros termos, a força do pensamento humano residiria no sobrenatural, no místico. Até mesmo o pensar correto, no sentido de fazer boas escolhas no campo dos valores morais, seria resultado da graça divina. Segundo a doutrina agostiniana da iluminação, não seria o homem, limitado ao uso de sua própria razão, capaz de chegar à verdade, mas esta seria nele ativada por intermédio da força divina. Para Agostinho, embora o homem, enquanto criatura divina, trouxesse, necessariamente, em seu interior, as verdades eternas, estas seriam ativadas não pelo próprio homem, mas por meio da irradiação da luz divina, a qual atuaria imediatamente sobre o Intelecto humano, deixando-o apto para o conhecimento das verdades eternas. Essa tese de que o homem é, por essência, um ser iluminado também nos conduz, dentro do pensamento agostiniano, à ideia de que o refúgio da verdade estaria no nosso interior, pois bastaria olharmos para o nosso interior para descobrirmos a verdade. É esse o significado da célebre frase de Agostinho: “No homem interior habita a verdade”. Assim, a interioridade seria aquela dotada da capacidade de entender a verdade pela iluminação divina. É no interior do homem que reside o ponto de partida para o conhecimento, porém, para que este se deflagre, Fonte: Thinkstock / Getty Images “Quem nos mostrará o Bem? Ouçam a nossa resposta: está gravada dentro de nós a luz do vosso rosto, Senhor. Nós não somos a luz que ilumina a todo homem, mas somos iluminados por Vós. Para que sejamos luz em Vós, nós, os que fomos outrora trevas.” (Santo Agostinho, Confissões) 14 Unidade: Visões do humano: A filosofia medieval, entre a fé e a razão aconteça, é necessário um “primeiro motor”, um princípio de tudo: Deus. Com esse argumento, Santo Agostinho procurava abrir espaço para que a fé adentrasse o território filosófico. Devido à grande originalidade de sua obra, seus pensamentos influenciaram definitivamente os rumos do pensamento medieval, sobretudo em seus primeiros séculos. Mas foi em torno dos séculos XI e XII, já no contexto da filosofia tomista1 , que surgiu uma filosofia particular da Idade Média: a escolástica. O termo deriva do fato de que, nesse período, os filósofos começaram a se vincular a uma ou outra “escola” de pensamento e de ensino. Pela primeira vez, escolas foram formadas nos mosteiros e catedrais com o objetivo de formar o clero. Assim, se pretendemos entender o grande desenvolvimento do pensamento escolástico, principalmente do ponto de vista filosófico, é necessário atentarmos para dois fatores imprescindíveis que marcaram o século XIII. Primeiro, o surgimento das universidades e, depois, a criação das ordens religiosas dos franciscanos e dominicanos. São Tomás de Aquino, por exemplo, não era apenas um frade dominicano, mas também tinha a sua vida profundamente ligada às universidades da época. Se a filosofia de Platão, interpretada por Agostinho, era considerada, entre os padres, a mais adaptável aos ideais cristãos - tanto que, durante muito tempo, influenciou e predominou no pensamento medieval -, as ideias de Aristóteles eram vistas com desconfiança, por serem incompatíveis em alguns pontos cruciais com a revelação cristã. Segundo os autores cristãos, a visão aristotélica de que o homem era composto de matéria e forma, não diferindo, portanto, de todos os outros seres da natureza (animais, plantas), contradizia a ideia cristã de que é possível salvar a espiritualidade e a imortalidade da alma. Tomás de Aquino Se foi a partir da releitura agostiniana que Platão encontrou um novo lugar na história da filosofia, com papel crucial no pensamento cristão medieval, o mesmo ocorreu com relação a Aristóteles, a partir da interpretação que dele foi feita pelo frade dominicano Tomás de Aquino. Foi Tomás de Aquino (Santo Tomás de Aquino) quem procurou encontrar um equilíbrio entre o cristianismo e o pensamento filosófico de Aristóteles, abrindo uma nova alternativa para o desenvolvimento da filosofia cristã. O resultado é o que ficou conhecido como filosofia aristotélica tomista. Para Santo Tomás, assim como em Aristóteles, o homem deveria ser interpretado como um composto de alma e corpo, mas, nesse composto, a alma seria aquela que possuiria o ser 1 Tomista: o termo se refere à filosofia de São Tomás de Aquino, como veremos. Fonte: chiesaveritacristiana.com 15 diretamente.Entretanto, mesmo a alma tendo um papel fundamental no ato de ser do homem, ele concebia, ao contrário de Aristóteles, que a morte do corpo não implicava morte da alma. Vemos, portanto, que, se, por um lado, Tomás de Aquino buscou, em Aristóteles, a ideia de um composto corpo-alma, por outro lado, foi em Platão que ele encontrou a definição dessa alma como algo imortal. Ao persistir na imortalidade da alma, o pensamento tomista defendia alguns pressupostos, tais como: 1 - O homem é composto de matéria e espírito, o que nos leva a acreditar que não há hiato entre os dois mundos ou que não é possível separar a matéria (corpo) do espírito (alma) – algo que, segundo a filosofia platônica, acontece. Assim, trata-se de um processo mútuo: enquanto, no homem, a matéria se espiritualiza, é na matéria que o espírito se materializa; 2 - Desse ponto de vista, corpo e alma, no homem, formam uma unidade substancial tão íntima e profunda que não é possível pensarmos que possam existir separados; 3 - No entanto, mesmo que a alma seja a forma substancial do corpo (ou seja, a sua essência), isso não significa que a alma seja matéria; pelo contrário, a alma assume um perfil espiritual, portanto, imortal. Depois dessa reelaboração dos pensamentos aristotélicos por Santo Tomás de Aquino, Aristóteles passou a ser uma influência marcante na filosofia cristã, encontrando respaldo entre os padres dominicanos e, mais tarde, entre os jesuítas. Fonte: Fra Angelico (1340-1345) 16 Unidade: Visões do humano: A filosofia medieval, entre a fé e a razão Material Complementar A bibliografia complementar irá ajudá-lo(a) no aprofundamento dos seus estudos. Sugerimos iniciar sua pesquisa de aprofundamento a partir dos “manuais mais gerais” e depois dedicar sua leitura aos textos específicos dos autores estudados na unidade. Por exemplo, recomendamos começar pelo livro Filosofando e depois ir para as demais obras. Importante também, é recorrer a um bom vocabulário de filosófico. Também sugerimos para captar “a atmosfera intelectual” medieval a leitura do romance O nome da Rosa de Umberto Eco e/ou o filme baseado na mesma obra. (veja o link abaixo relacionado). Essa abordagem facilita o movimento de investigação partindo dos textos mais introdutórios em direção aos mais complexos. Bibliografia ARANHA, M. L. de A.; MARTINS, M. H. P. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo: Moderna, 1993. NOGARE, P. D. Humanismos e anti-humanismos: introdução à Antropologia Filosófica. Petrópolis: Vozes, 1994. 17 Referências BOEHNER, P.; GILSON, E. História da filosofia cristã. Petrópolis: Vozes, 1982. GILSON, E. A filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1995. IMAGENS da Idade Média. Disponível em: <http://www.cefetsp.br/edu/eso/fausto/ imagensidademedia.html>. Acesso em: 6 jan. 2008. NOGARE, P. D. Humanismos e anti-humanismos: introdução à Antropologia Filosófica. Petrópolis: Vozes, 1994. PENSAMENTO Cristão. Disponível em: <http://www.mundodosfilosofos.com.br/pencristao. htm>. Acesso em: 6 jan. 2008. PORTAL da história. Disponível em: <http://www.arqnet.pt/portal/directorio/ih_imedia. html>. Acesso em: 6 jan. 2008. STORCK, A. Filosofia medieval. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. 18 Unidade: Visões do humano: A filosofia medieval, entre a fé e a razão Anotações www.cruzeirodosulvirtual.com.br Campus Liberdade Rua Galvão Bueno, 868 CEP 01506-000 São Paulo SP Brasil Tel: (55 11) 3385-3000
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