Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
o sentido daEscola --{/ç~ .,-, , r ::::v /' li i; i~I, 1" I'; :' 1992. LEVY,Pierre.As tecnologiasda inteligência.Rio deJaneiro:Ed. 34, 1993. MATURANA,Humberto;VARELA,Francisco.A árvoredoconhecimento. Campinas:EditorialPSY, 1995. MARGULIS;SAGAN.Microcosmos- four millionyearsof microbial evolution.Berkeley:UniversityofCaliforniaPress,1997. MARx,Karl; ENGELS,Frederich.A ideologiaAlemã.Lisboa!S.Paulo: Ed.Presença!MartinsFontes,s/d. MOLES,AbrahamA. As ciênciasdo impreciso.Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira,1995. POPKEWITZ,ThomasS.Históriadocurrículo,regulaçãosocialepoder. In: SILVA,TomazTadeuda.O sujeitoda educação.Petrópolis: Vozes,2"ed,1995:173- 210. PRIGOGINE,Ilya. O fim dascertezas- tempo,caose leis da natureza. S.Paulo:Ed.UNESP, 1996. ROSSI,Paolo. Osfilósofoseasmáquinas.S.Paulo:Companhiadas Letras,1989. SANTOS,BoaventuradeSouza.PelamãodeAlice.S. Paulo:Cortez, 1995. ~ ~ )b-(c."ç{)/JCA:f°., v"re\ 'cCnrf\. X i'y' >G; '-( C; \ x- { 'r \Q h ---. ç { C ,,~,~,C (.A \,v\..S., -I J x. r'\Q'l I",'.-G~c'l' '_,Á./',A t- ~ o,~ , , (" (o;) 1", '. ; j '~ ,170 ( . Transversalidadee educação: pensandoumaeducação não-disciplinar* LEFEBVRE, Henri. Lógicaformal/lógicadialética.Rio deJaneiro: CivilizaçãoBrasileira,1983. . A vidacotidianano mundomoderno.S. Paulo:Ática, Sílvio Gallo '"'" . Introduçãoa umaciênciapós-moderna.Porto:Afrontamento, 3. ed.,1993. TOURAINE,Alain. Crítica da modernidade.Petrópolis:Vozes,1994. VARELA, FranciscoJ. Sobrea competênciaética.Lisboa:Edições70, 1995. VARELA,Julia. O estatutodo saber pedagógico.In: SILVA, Tomaz Tadeu da. O sujeitoda educação.Petrópolis:Vozes,2"ed,1995: 87- 96. VIGOTSKY,L. S. Pensamentoe linguagem.S. Paulo: Martins Fontes, 1991. Vivemoshoje, nós que nos dedicamosà educação, qual ÉdiposdiantedaEsfinge.Ou deciframoso enigma queo monstronoscolocaousomosdevoradospor ele.No processoeducativo,serdevoradopelaEsfingeépassara fazerpartedosistemaeducacionalvigente,tornar-semais uma engrenagemdessamáquinasocial,reproduzindo-a a todoinstanteemnossosfazerescotidianos.A condição de não ser mais uma engrenagemé sermoscapazesde decifrarosenigmasqueacrisenaeducaçãonosapresenta, cónseguindosuperaressemomentoderupturas. GAIvLO,s(lv~o. Tra-nsv0rsvvtCcLcutbe"eduC-a-q'êw: ECiilsavrvc0U:Yn~ culuw..-~ rL-M.,dt'5C-('pft'na.r.In.: 'ALVG5,N llela;/IAR-GIA) R~lnQ Le.t+e.CO(9~'O 5eY\hJo dA esGOlCt.g~to ck JalWív-o: ppJ(:ft)~ooo. 16 .Este textoé resultadode uma bricolagem.departes de três outros..Dois apresentadosnoGT deCurrículodaANPEd em1995e 1996:Conhecimento, Transversalidade e Currículo e Saberes,Transversalidadee Poderes;o terceiro, um antigo texto sobreinterdiscÍplinaridade(1990),Educaçãoe Interdisciplinaridade,publicadonon. 17daRevistaImpulso,daEd.Unimep. .. ProfessordoDepartamentodeFilosofiaeHistóriadaEducaçãodaUNICAMP e doDepartamentodeFilosofiadaUNIMEP. MembrodoGT deFilosofiada ANp,Ed,ondeapresentoutrabalhossobrecurrículo.AutordeartigosnoBrasil e noexterior. . ~ 17 ,,#; o sentido daEscola Transversalidade e educação: pensandoumaeducação... Os enigmasnãosãopoucos;a crisena educaçãoé multifacetada.Um dosseusaspectosdiz respeitoao próprioconceitodeeducaçãoeacomoaescolaseorganiza paramaterializá-Io:a funçãodaescolaemnossosdiasé instruir,ouseja,transmitirconhecimentos?Ouéeducar, i isto é, formarintegralmenteumapessoa? l Educação e instrução não se excluem, mas se complementam.Ou melhor,a educaçãoabarcaa própria instruçãoe a completa;'formandooindivíduointelectual esocialmente,duasrealidadesnaverdadeindissociáveis. A instrução é o ato de instrumentalizar o aluno, fornecendoa eleos aparatosbásicospara quepossase relacionarsatisfatoriamentecoma sociedadee comseu mundo.A instruçãotrabalhaaaquisiçãodasferramentas ~ecomunicação:a língua materna,'queelebasicamente já dominana forma oral, será tambémassimiladana forma'escrita,estendendoe alargandoos horizontesda comunicação.Além da língua materna, outras ainda podemsertrabalhadas,garantindoumaprofundamento do conhecimentoda própria língua original e abrindo novasperspectivas.Por outro lado,temosa linguagem matemática,que é imprescindívelpara a comunicação científica.Ajuda na articulaçãológica das mensagens comoum todo e abre caminho para a apreensãodos conhecimentoscientíficos,o desvendardossegredosdo mundo. De posse das ferramentas básicas para a comunicaçãoe o entendimento,a instrução procura tambémforneceraos alunos os conhecimentosbásicos sobre o mundo e sobre a sociedade,traduzidos nas disciplinas física, química, biologia, que integram a cosmologia,isto é, os conhecimentoshumanossobreo Universo, e nas disciplinas geografia e história, que mostramcomoo homemrelaciona-secomseuespaçoe suamarchasocialatravésdostempos. Mas a educaçãonãoseresumeàtransmissãodesses conhecimentos;umapessoadepossedetaisinstrumentos aindanãoestáaptaarelacionar-secomomundoecoma sociedadede maneira plena, autêntica e satisfatória: falta-lhe ainda uma postura diante da realidade,uma formadeseutilizar dessesaparelhos,umapersonalidade ,definida.Mas comoseensinaumapostura,comoseforma a personalidade? Antes detudo,é bomlembrar quea posturanãoé adquiridaapenasna escola:já na família enasdiversas instituiçõessociaisa criançavai tomandocontatocom uma série de realidades que a levam a assumir determinadasposturas,sendoquecomopassardotempo elavai filtrandoalgumas,cristalizandooutras,formando ocaráter,apersonalidade.Mas, enaescola,comosedáo processo?Seráqueaformaçãodapersonalidadeacontece por meiodeum aprendizadodireto,análogoàqueleque ocorrGcomos~onhecimentossobreo mundo?É óbvioque 18 ;,.p 19 o sentido daEscola Transversalidade e educação: pensandouma educação... il '~ 1 ,1 I1 li não. Não se adquire postura por meio de discurso. Exemplificando:nãoécomintermináveisaulasdeética,nas quaisum professorapresentae repeteospreceitosmorais dasociedade,queoalunoconseguiráassumir,emsuavida, posturasmoralmentecorretaspautadasporessespreceitos. A formação do aluno jamais acontecerá pela assimilação de discursos, mas sim por um processo microssocialemqueeleé levadoa assumirposturasde liberdade,respeito,responsabilidade,ao mesmotempo em que percebe essas mesmas práticas nos demais membrosque participamdestemicrocosmocomquese relacionano cotidiano.Uma aula dequalquerdisciplina constitui-se,assim,empartedoprocessodeformaçãodo aluno,nãopelodiscursoqueoprofessorpossafazer,mas peloposicionamentoqueassumeemseurelacionamento comosalunos,pelaparticipaçãoquesuscitaneles,pelas novasposturasqueelessãochamadosa assumir.É claro queesseprocessonãoficaconfinadoà saladeaula;todas as relações que o aluno trava no ambiente escolar - com outros alunos, com funcionários, com o staff administrativo, enfim, com toda a comunidade- são passosna construçãodesuapersonalidade. Para formar integralmenteo aluno não podemos deixar de lado nenhuma d~ssasfacetas: nem a sua instrumentalização,pelatransmissãodoscont,eúdos,nem sua formação social, pelo exercício de posturas e relacionamentosque sejamexpressãoda liberdade,da autenticidadeedaresponsabilidade.A esseprocessoglobal podemos,verdadeiramente,chamarde educação.Deste ponto de vista, os conteúdosa seremtrabalhadossão expressãoda instrução, enquantoque as posturasde trabalhoindividual e coletivosetraduzemno métodode trabalhopedagógico.A educaçãoé,pois,umàquestãode método. Sedesejamosumaeducaçãocomtaiscaracterísticas, elas precisam estar materializadas nos currículos de nossasescolas.Infelizmente,nãoé bemisso quevemos ao analisá-los... Compartimentalizaçãodossaberes e currículosescolares A realidade do ensino contemporâneoé a compartimentalizaçãodo conhecimento,fenômeno constituintedeumtodomaior,aespecializaçãodosaber. Nas sociedadesantigas,a produçãodoconhecimento fazia-seemrespostaàsnecessidadesdeexplicaçãodeuma realidademisteriosaqueeraexperimentadanodia-a-dia, espantandoosnossosancestraiselevando-osaformularquestõesfundamentaisemtornodosentidodavidaedo universo.As respostasentãoconstruídasestavam inseridasnaquelecontextosocialeeramnecessariamente globalizantes:misturavamreligiosidade,engenhosidade e praticidade.Destemodo,osprimeirosconhecimentos sobreo mundoconstruídospelohomemnãoestavam dissóciados,mastodosbrotavamdeumpontocomume procuravamexplicá-Io;ao surgir a astronomia,a observaçãosistemáticadosastrosno céu,apareciaa necessidadedemedirseusmovimentos,metrificá-Ios, dandomaiorimpulsoà matemáticae à geometria;a explicaçãodosmovimentosqueocorriamnaTerraeno Universo levavamà física a maiores avançosna matemática,eassimsucessivamente. Como crescenteacúmulodosaber,e'ntretanto,foi ocorrendoumaespecializaçãocadavezmaisradical:um físico,por~xemplo,écadavezmenosummatemático,no 20 21 1.::"i o sentido daEscola Transversalidade e educação: pensandouma educação... ,;i :; sentido de que não mais estuda a matemáticaem si mesma- comoumNewtoncontemporâneo- masapenas se utiliza dosprocessosmatemáticosjá existentespara poderequacionaras questõesteóricascomquetrabalha na física.E o mesmoocorrecomasdemaisciências,pois quantomais conhecimentossãoacumuladossobreuma determinadafacetado saber,mais difícil fica para que cada indivíduo domine a totalidade do conhecimento globalsobrea realidade. Uma ilustração bastante prática desta brutal especializaçãodosaberpodemosencontrarna medicina. Antigamente,eramuitocomumafigurado"clínicogeral", ummédicoqueprocuravaentenderasdoençasdopaciente comoumprocessosomáticoglobal,envolvendoentãotodo o organismo e mais as ansiedades e contradições psicossociais do indivíduo. Com o crescimento dos conhecimentosmédicosacercado corpohumano,esta posturamédicafoi cadavezmaisrelegadaaum segundo plano,enquantoficavacadavezmaisimportanteafigura do "especialista",um profissionalque conhecea fundo um dos aspectosou sistemas de nosso corpo. Desta maneira,hojeécomumqueconsultemosumcardiologista que se esforçarápara descobrirpossíveisfalhas e/ou disfunçõesemnossocoraçãoou sistemacirculatório,na maioriadasvezessemdar-secontadequeestesistema, tomadoisoladamente,perdetodoseusentido,poiséparte deum organismomuitomaisabrangente... É óbvioquea perspectivadaespecializaçãotraz-nos inúmerosbenefíciose,promoveimensosavançosnoconhe- cimento,maséprecisoquenãopercamosdevistaaneces- sidadedecompreendersempreessasespecializaçõescomo partedeum todocomplexoeinter-relacionado,sobpena de desvirtuarmoso próprio conhecimentoadquiridoou construído. Mas qualarelaçãodetudoissocomaeducação?Acon- tecequeoprocessoqueocorrecomamedicinaéemblemático, é análogoàquelequeaconteceuhistoricamentecomo co- nhecimentohumanosobreo Universo,naaventura.dosa- berqueAugusteComtedescreveucomoaevoluçãodopen- samentomitológico,teológicoefilosóficoparaopensamen- tocientífico.Mesmodiscordandodacegafénapositividade daciência,éinegáveloprogressodaciênciaedatécnicaao longodahistóriadahumanidade.À medidaqueaumentaa quantidadedeconhecimento,fica mais difícil percebera relaçãoentreasváriasáreaseasváriasperspectivas,pro- cessoestequeacabaporculminarna abstraçãoquevive- moshoje:ototalalheamento,a completadissociaçãoentre osváriosconhecimentos.E todoesseprocessodecorrente daconstruçãohistóricadosconhecimentoscientíficosrefle- te-senoscurrículosescolares:elessãoosmapasondeesse territórioarrasadopelafragmentaçãoficamaisevidente. Quandoassistea uma aula dehistória,cadaaluno abrea gavetinhadeseuarquivomentalondeguardaos conhecimentoshistóricos;ao final da aula, fechaessa gavetinha e abre aquela referente à matéria a ser estudadana próximaaula, e assimpor diante...E como cada uma das "gavetinhas"é estanque,semnenhuma relJlçãocomasdemais,osalunosnãoconseguemperceber que todosos conhecimentosvivenciadosna escolasão perspectivasdiferentesdeumamesmaeúnicarealidade, parecendocada um deles autônomoe auto-suficiente, quandona verdadesó podeser compreendidoemsua totalidadecomopartedeumconjunto,peçaímpardeum imensopuzzlequepacientementemontamosaolongodos séculose dosmilênios. Mas a disciplinarizaçãodoscurrículosescolaresnão reflete apenas a compartimentalizaçaodos saberes científicos.Nelaestáembutidatambémaquestãodopoder.cl. <. 23 22 ;,I: :\ o sentido daEscola Transversalidade e educação: pensandouma educação... 11 iI o sabereopoderpossuemumelomuitoíntimode ligação:conheceré dominar.E conhecemoso velho preceitodapolítica:dividirparagovernar.O processo históricodeconstruçãodas ciênciasmodernasagiu atravésda divisãodomundoemfragmentoscadavez menores,deformaapoderconhecê-Iosedominá-Ios.No desejohumanodeconheceromundoestáembutidoseu desejosecretodedominaromundo. Por suavez,a educaçãosempreestevetambém permeada pelos mecanismos de controle. E a disciplinarizaçãopossibilita essecontrolesobreo aprendizado(o quê,quando,quantoe comoo aluno aprende)e tambémumcontrolesobreopróprioaluno. A disciplinatambémestárelacionadaaocomportamento, nãoapenasàaprendizagem.Disciplinaroalunoétambém fazercomqueelepercebaseulugarsocial.A disposição cartográficadeumasaladeaula,sejaelaqualfor,é sempreumadisposiçãoestratégicaparaqueoprofessor possadominarosalunos,poisnestaconcepçãodeescola oaprendizadosópodeacontecersobdomínio.Paradizer deoutraforma,umasaladeaulanuncaé caótica,há sempreumaordemimplícitaque,sevisapossibilitara açãopedagógica,traz tambéma marcadoexercíciodo poder,quedeves~rsofridoeintrojetadopeloaluno. Valeressaltarqueacompartimentalizaçãodosaber e o exercíciodo poderna escolasãosustentadose intensificadospeloaparelhoburocráticoescolardoqual nós,professores,somosfiéisinstrumentos,comnossos programas,livros-texto,diáriosdeclasseetc.Destemodo, querelaçãopodehaverentreumaauladehistóriaeuma d~geografiaouumadeciências? o.quedevemosinferirdestabreveanálisedoprocesso históricodeconstruçãodosaberéquearesponsabilidade pelodesviodaespecialização,queacabaporseverrefletido naestruturadenossaeducação,nãopodeserimputadaaos professoresnem,muitomenos,aosalunos.Resultadodesse processohistóricodefragmentação,nossoensino- também , fragmentado-.:. nãofala davida,queé multiplicidade articulada,masdeumcenárioirreal,ondecadasabertem o seulugarenãosecomunicacomosdemais.. Os professores podem ter uma participação extremamenteimportanteno processode rompercom essa tradição alienante e superar essa contradição históricaentreo sabere a realidade. '; l il :1, ~ Comopodemosfazerisso?Quebrando,na medidade nossaspossibilidades- semdúvida alguma, sensivelmente limitadas pela burocracia escolar -, a compartimen- talizaçãodequeé vítima nossosistemaeducacional.Po- demostentarfazerdenossoscurrículosnovosmapas,não maismarcadosporterritóriosfragmentados,mastentan- doultrapassarfronteiras,vislumbrarnovosterritóriosde integraçãoentreossaberes.Um doscaminhospossíveisé o da interdisciplinaridade. A interdisciplinaridadee seuslimites f Desdeos anosde 1980,a questãoda interdisci- plinaridadetemestadomuitoemmodanosdebatesedu- cacionais;ecomotodacoisaimportanteque,derepente, viramodismo,esvazia-sedesentido.Muitagenteusaesse conceitocomoumtrava-línguas,umapalavradecujosig- nificadonãofaza menoridéia,masqueé inseridano discursoparadarumcertoar de"il1telectualidade",de modernidade.E umaquestãodeextremaimportânciavira brincadeirad~criança...~. I ! L i', 24 25 .,/r:: o sentido daEscola Transversalidade e educação: pensandouma educação... Vamos então em busca de seu sentido. A interdisciplinaridade,deacordocomGuy Palmade,tem recebido diferentes definições: integração interna e conceitualquerompea estruturadecadadisciplinapara construirumaaxiomáticanovaecomuma todaselascom oobjetivodedarumavisãounitária deum setordosaber (na visão de Soler);intercâmbiosmútuose integrações recíprocasentreasváriasciências.Tal cooperaçãoresulta numenriquecimentorecíproco(naperspectivadePiaget). Ainda segundoeste autor, a interdisciplinaridade foi adjetivadadasmaisvariadasformas,porepistemólogose estudiososdaquestão:interdisciplinaridade auxiliar; interdisciplinaridadecomplementar;interdisciplinaridade composta;interdisciplinaridadedeengrenagem;interdisci- plinaridadeestrutural;interdisciplinaridadeheterogênea; interdisciplinaridade linear; interdisciplinaridade restritiva;interdisciplinaridadeunificadora.Todasessas adjetivaçõesdenotamdiferentesformasdecompreensão da questãoe detentarpraticarum trânsitoprofícuopor entreasdiferentesdisciplinas. Ainda temos alguns outros conceitos:a jJseudo- interdisciplinaridade;apluridisciplinaridade, queseria a justaposiçãode disciplinas diversas mais ou menos "próximas"no campbdo conhecimento.Cooperaçãode , carátermetodológicoe instrumentalentre elas,não de umaintegraçãoconceituale interna. Mas os epistemólogos,aindanão satisfeitoscomos efeitosda interdisciplinaridade,criaram a transdisci- plinaridade: integraçãoglobaldevárias ciências.Supe- rior à interdisciplinaridade,quenão apenascobririaas inve'stigações ou reciprocidades entre projetos especializadosdeinvestigação,mastambémsituariatais relaçõesnumsistematotalquenãoteriafronteirassólidas entreas disciplinas.Parte-sedofatodequea naturezaé ~ únicaetenta-sechegaraconhecê-Iacomoé,prescindin- dodasdivisõesarbitrariamenteimpostaspelohomemà ciência(Soler).Esta,porsuavez,tambémrecebeualgu- masadjetivações,comotransdisciplinaridadeampliada etransdisciplinaridadelocal. Mas, apesarde todaessaprofusãoconceitual,o sentido geral da interdisciplinaridade parece-me transparente:éaconsciênciadanecessidadedeuminter- relacionamentoexplícitoe diretoentreas disciplinas todas.Em outraspalavras,a interdisciplinaridadeé a tentativade superaçãodeum processohistóricode abstraçãodoconhecimentoqueculminacoma total desarticulaçãodosaberquenossosestudantes(etambém nós,professores)têmodesprazerdeexperimentar. Mas as propostasinterdisciplinaresnãosurgiram porummeroacaso.Aconteceque,desdemeadosdoséculo XX, o movimentohistórico de especializaçãoe compartimentalizaçãonaproduçãodossaberes,doqual já falamos,derepentejá nãodácontaderespondera certasquestõesquearealidadenosmostra.Começaram asurgirproblemasqueasciênciasmodernas,estanques em suas identidadesabsolutas,não sãocapazesde resolver- e, àsvezes,nemmesmodeabordar. Um bom exemploencontramosnos problemas ecológicos:elesnãopodemserabarcadosapenaspela biologia,ou apenaspela geografia,ou apenaspela química,ouapenaspelapolíticaetc.A ecologiaconstitui- senumnovoterritóriodesaber,marcadopelainterseção devárioscamposdesaberes,comoestesjá citados,além de muitos outros. Podemoschamaros problemas ecológicosdeproblemashíbridos. Será quepodemoschamara ecologiadeciência? Particularment~,prefiroquenão;pensoqueganhamhoje. c.'~; 26 27 o sentido daEscola Transversalidade e educa~ão: pensandoumaeducação... asáreasquenãosãoimediatamenteidentificadascomo "científicas",poisisso dá a elasumaaberturamuito maior,paraquepossamvaler-sedeoutrasabordagens aoscamposdesaberes,deformanãocompartimentada. Assimcomoaecologia,aeducaçãoéumadessasáreas,e emlugardeesforçarmo-nosparafazerdelaumaciência, deveríamosaceitaro fatodequeelaé muitomaisum espaçodeinterseçãodesaberesmúltiplos...Mas issoé assuntoparaoutromomento. As propostasinterdisciplinares- comtodasas suas adjetivaçõesemesmoosoutrosconceitospróximosaela, de multidisciplinaridadee transdisciplinaridade- surgiramexatamenteparapossibilitaresselivretrânsito pelossaberes,rompendocomsuasfronteirasebuscando respostasparaassuntoscomplexoscomoosecológicose os educacionais,por exemplo.Devemos,portanto, perguntar:a interdisciplinaridadedácontaderomper comasbarreirasentreasdisciplinas? Temoquenão;emboraelapossasignificarumgrande avançoemrelaçãoàdisciplinarizaçãopuraesimples,não é,porém,umrompimentodefinitivocomasdisciplinas. A afirmaçãodainterdisciplinaridadeéa afirmação,em última instância,da disciplinarização:sópoder.emos desenvolverumtrabalhointerdisciplinarsefizermosuso das várias disciplinas. E, se a fragmentaçãoe compartimentalizaçãodossaberesjá nãodãocontade respondera váriosproblemasconcretoscomquenos defrontamosemnossocotidiano,precisamosbuscarum sabernão-disciplinar,quea interdisciplinaridadenão seria capazdenos fornecer.Para pensarproblemas híbridos,necessitamosdesabereshíbridos,paraalémdos saberesdisciplinares. O mesmosedáquandolevamosa questãoparaos currículosescolares.A interdisciplinaridadecontribui paraminimizarosefeitosperniciososdacompartimen- talização,masnãosignificaria,deformaalguma,oavanço . para um currículonão-disciplinar. Pensandoa possibilidadede uma educaçãonão-disciplinar Sedesejamospensardefatoa possibilidadedeuma educaçãonão-disciplinar, é necessário que tentemos visualizar o conhecimentoe seuprocessodeconstrução deoutramaneira.Tradicionalmente,usamosa metáfora daárvoreparacompreendero campodosváriossaberes. O troncoda "árvoredo saber"seria a própria Filosofia, queoriginariamentereunia emseuseioa totalidadedo conhecimento;comocrescimentoprogressivoda"árvore", adubadaintensamentepelacuriosidadee sededesaber própriadoserhumano,elacomeçaadesenvolverosgalhos das mais diversas "especializações" que, embora mantenham suas estreitas ligações com o tronco - nutrem-se de sua seiva e a ele devolvema energia conseguida pela fotossíntese das folhas em suas extremidades,num processode mútua alimentação/ fecundação- apontampara as mais diversasdireções, não guardandoentresi outrasligaçõesquenãosejamo troncocomum,que não sejaa ligaçãohistóricade sua genealogia.Para sermaispreciso,asciênciasrelacionam- setodascomseu"troncocomum"- pelomenosnoaspecto formal e potencialmente-, emboranão consigam,no contextodesteparadigma,relacionarem-seentresi. O paradigmaarbóreoimplicaumahierarquizaçãodo saber, comoforma de mediatizar e regular o fluxo de~:. I1I 1\ 28 29 .'Y' o sentido da Escola i' informações pelos caminhos internos da árvore do conhecimento.A frondosa árvore que representa os saberesapresenta-osdeformadisciplinar:fragmentados (os galhos)e hierarquizados(osgalhosramificam-see não se comunicamentre si, a não sei quepassempelo tronco). Mas será,defato,queopensamentoeoconhecimento seguema estrutura propostapor esteparadigma?Não serátal paradigmaum modelocompostoposteriormente e sobrepostoaoconhecimentojá produzido,comoforma ~ deabarcá-Io,classificá-loe,assim,facilitaroacessoa ele e seudomínio,passandomesmoa determinara estrutu- ra de novosconhecimentosa seremcriados?Se assim for,nãoseriarazoávelconjeturarqueopensamentopro- ceda- ou possa proceder- de outra maneira, menos hierarquizadae maiscaótica? Para pensaranovadimensãoquenoséimpostapelos problemashíbridos,comoosecológicoseoseducacionais, precisamosde outra metáfora,pois a árvorejá não dá conta. Os filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari apresentaramumaalternativainteressante,ao falarem no rizoma. A metáforado rizoma subvertea ordemda metáforaarbórea,tomandocomoparadigma aquele tipo de ca.uleradiciforme de alguns vegetais, formado por uma miríade de pequenas raízes emaranhadasemmeioapequenosbulbosarmazenatícios, colocandoemquestãoarelaçãointrínsecaentreasvárias áreas do saber, representadascada uma delas pelas inúmeraslinhasfibrosasdeumrizoma,queseentrelaçam eseengalfinhamformandoumconjuntocomplexonoqual oselementosremetemnecessariamenteunsaosoutrose mésmopara foradopróprioconjunto. O paradigmarizomáticoéregidopor seisprincípios básicos: 30 Transversalidade e educação: pensando uma educação... r a) PRINCÍPIODECONEXÃO- Qualquerpontodeumrizoma pode ser/estar conectadoa qualquer outro; no paradigma arbóreo, as relações entre pontos precisamsersempremediatizadasobedecendoauma determinada hierarquia e seguindo uma ordem intrínseca. b) PRINCÍPIODEHETEROGENEIDADE- Dadoquequalquer conexão é possível, o rizoma rege-se pela heterogeneidade; enquanto- que na árvore a hierarquiadasrelaçõeslevaa umahomogeneização dasmesmas,no rizomaissonãoacontece. c) PRINCÍPIODEMULTIPLICIDADE-O rizomaé sempre multiplicidadequenãopodeserreduzidaà unidade; umaárvoreéumamultiplicidadedeelementosquepode ser"reduzida"aosercompletoeúnicoárvore.Omesmo nãoacontececomorizoma,quenãopossuiumaunidade quesirvadepivôparaumaobjetivação/subjetivação:o rizomanãoésujeitonemobjeto,masmúltiplo. d) PRINCÍPIO DE RUPTURAA-SIGNIFICANTE- O rizomanão pressupõe qualquer processode significação, de hierarquização.Emborasejaestratificadoporlinhas, sendo,assim,territorializado,organizadoetc.,está sempresujeitoàs linhas defuga queapontampara novas e insuspeitasdireções.Embora constitua-se nummapa,comoveremosaseguir,orizomaésempre um rascunho, um devir, uma cartografia a ser traçadasempree novamente,a cadainstante. e) PRINCÍPIODE CARTOGRAFIA- O rizomapodeser mapeado,cartografadoe tal cartografianosmostra que elepossuientradasmúltiplas; isto é, o rizoma pode ser acessadode infinitos pontose pode daí remetera quaisqueroutrosemseuterritório. f) PRINCÍPIODEDECALCOMANIA- Osmapaspodem,no en~nto,ser:copiados,reproduzidos;colocarumacópia 31 .,(;' o sentido daEscola Transversalidade e educação: pensandouma educação... I1 sobre o mapa nem sempre garante, porém,uma sobreposiçãoperfeita.O inversoéanovidade:colocaro mapasobreas cópias,os rizomassobreas árvores, possibilitandoosurgimentodenovosterritórios,novas multiplicidades. Destamaneira,a adoçãodeum novoparadigmado sabersignifica,ao mesmotempo,outraspossibilidades de abordagemdo próprio conhecimento.O paradigma rizomáticorompe,assim,coma hierarquização- tanto noaspectodopodere daimportância,quantonoaspecto das prioridades na circulação - que é própria do paradigmaarbóreo.No rizoma sãomúltiplas as linhas de fuga e portanto múltiplas as possibilidades de conexões,aproximações,cortes,percepçõesetc.Aoromper comessahierarquiaestanque,orizomapede,porém,uma novaformadetrânsitopossívelporentreseusinúmeros campos de saberes; podemos encontrá-Ia na transversalidade. Félix Guattari desenvolveu a noção de transversalidadeparatratardasrelaçõesentrepacientes e terapeutas,substituindo a relação de transferência proposta por Freud. A transferência é hierárquica e unitária, pois ocorre apenas entre o terapeuta e seu paciente, de forina individualizada. Preocupado em desenvolverumaterapêuticacoletivaenão-hierárquica, Guattari propôs a transversalidade, comoforma de atravessaras relaçõesentreas pessoas.Mais tardeeste conceitofoi estendidopara o conhecimento,e alguns começaram a falar em saberes transversais, que atravessamdiferentes camposd.econhecimento,sem identificar-senecessariamentecomapenasum deles. Podemos,assim,tomara noção4etransversalidade e aplicá-Iaaoparadigmarizomáticodosaber:elaseriaa matriz da mobilidadepor entre os liames do rizoma, abandonandoos verticalismos e horizontalismosque vemosno paradigmada árvore,substituindo-osporum fluxo que podetomar qualquer direção,semnenhuma hierarquiadefinidadeantemão. As propostasdeumainterdisciplinaridadepostashoje sobrea mesaapontam,no contextode uma perspectiva arbórea,para integraçõeshorizontaise verticaisentreas várias ciências;mima perspectivarizomática,podemos apontarparaumatransversalidadeentreasváriasáreas dosaber,integrando-as,senãoemsuatotalidade,pelomenos deformamuitomaisabrangente,possibilitandoconexões inimagináveispormeiodoparadigmaanterior.Assumira transversalidadeé transitarpeloterritóriodosabercomo assinapsesviajampelosneurôniosemnossocérebro,uma viagemaparentementecaóticaqueconstróiseu(s)sentido(s) à medidaquedesenvolvemossuaequaçãofractal. Nestaperspectiva,podemosafirmarquea proposta interdisciplinar,emtodosos seusmatizes,apontapara uma tentativa de globalização, esse cânone do neoliberalismo,queremeteaoUno, aoMesmo,tentando costuraro incosturávelde uma fragmentaçãohistórica dossaberes.A transversalidaderizomática,porsuavez, aponta para o reconhecimento da pulverização, da multiplicização,paraorespeitoàsdiferenças,construindo possíveistrânsitospelamultiplicidadedossaberes,sem procurarintegrá-Iosartificialmente,masestabelecendo policompreensõesinfinitas. Para a educação,as implicações são profundas. A aplicaçãodo paradigma rizomáticona organização curriculardaescolasignificariauma:r.evoluçãonoprocesso educacional,pois substituiria um acessoarquivístico estanqueao cQp.hecimentoquepoderia,no máximo,ser. '. III 1I € 32 33 o sentido daEscola Transversalidade e educação: pensandoumaeducação... I I Ii 'It intensificadoatravésdostrânsitosverticaisehorizontais deuma açãointerdisciplinarquefossecapazdevencer todasasresistências,massemconseguirvencer,defato, a compartimentalização,por um acessotransversalque elevariaaoinfinitoaspossibilidadesdetrânsitoporentre os saberes.O acessotransversal significaria o fim da compartimentalização,pois as gavetasseriam abertas; reconhecendo a multiplicidade das áreas do conhecimento,trata-se de possibilitar todoe qualquer trânsitopor entreelas. O máximopossívelpara a educação,nocontextodo paradigmaarbóreo,seriaarealizaçãodeumaglobalização aparente - e falsa! - dos conteúdoscurriculares. No contextorizomático,deixandodeladoessailusãodoTodo, a educaçãopoderiapossibilitara cadaalunoum acesso diferenciadoàsáreasdosaberdeseuparticularinteresse. Issosignificaria,claro,odesaparecimentodaescolacomo conhecemos, pois romper-se-ia com todas as hierarquizaçõese disciplinarizações,tanto no aspecto epistemológicoquantono político.Mas possibilitariaa realização de um processo educacional muito mais condizentecomas exigênciasdacontemporaneidade. O rompimentpdasb,arreirasdisciplinaresnocampo epistemológicoenocampopedagógicosignifica,comonão poderiadeixar de ser, um rompimentoeminentemente político,poisaltera sensivelmenteo equilíbriodeforças queconstituiasteiasdepoder.Hoje,podemosdizerque as grandesquestõespolíticas devemser resolvidasno campodofluxodeinformações. . O acessoao fluxo informacional é atualmente a principal.táticapolítica.Estruturam-secomohorizontes de possibilidades tanto um totalitari::;motão intenso quanto jamais sonhado,mesmoem 1984 de Orwell, quanto uma democracia direta também até agora inimaginável.A chaveparaambose o quedefiniráume outro é justamentecomose dará o acessoao fluxo de informações.Centralizartal acessoseráfornecerasbases para o totalitarismo;descentralizá-Ioao limite será,ao contrário, a senha para o acesso a um mundo democratizado.Qual das duas utopiasse realizarávai depender,evidentemente,de comoagiremosenquanto humanidade. Se assumimostais perspectivas,a próprianoçãode escola muda radicalmente, para não ficarmos estritamentecoma noçãodecurrículo.Qualquerespaço social podeser o lugar do aprendizado,do acessoaos saberesedesuacirculaçãoepartilha,inclusiveopróprio espaçodotrabalho. **.* Diantedetalpanorama,simplesrevisõescurriculares nas escolas, mesmo as mais radicais e ainda que implementadorasdeperspectivasinterdisciplinares,não darãocontade produzire fazercircular os saberesnão- disciplinarese ascompetênciassolicitadaspelacaóticae híbrida realidadecontemporânea.Ela exigedenós que nosdebrucemossobreasquestõesdaeducação,commuito maisempenhoe esforçodepensamentocriativo. Rompercoma disciplinarização,tarefapossívelpela adoçãodeoutroparadigmadesaber,comoo rizomático queproponhoaqui,significatambémredesenharomapa estratégicodopodernocampoda(s)ciência(s)enocampo da educação,colocandoas relaçõesnoutra dimensão. A transversalidade do conhecimentoimplica possibi- lidades de escolase de currículosem muito dÍferentes daquelasquehojeconhecemos,novosespaçosdeconstrução . \~ 34 35 ..' o sentido da Escola Transversalidade e educa~ão: pensando umaeducação... e circulaçãode saberesquandoa hierarquizaçãojá não seráa estruturabásica,esituaçõesatéentãoinsuspeitas poderãoemergir. É por isso que peço ao leitor a atenção de não confundira propostadetransversalidadequeapresento aqui com aquela que o MEC vem desenvolvendonos Parâmetros Curriculares Nacionaispara o Ensino Fundamentale Médio.A propostadoMEC representa, talvez,um certoavançoemrelaçãoà disciplinarização, mas de forma algum'aum passopara sua superação. Propõe a organizaçãodo currículo em ciclose não em sériese,para o primeiroe segundociclos,a organização emáreasenãoemdisciplinas;masjá nosciclosseguintes processa-sea disciplinarização.A maior novidadeestá naquiloquedenominamdetemastransversais:assuntos de interesse social (como ética, meio ambiente, sexualidade dentre outros) que devem permear, "atravessar"o conteúdodetodasas disciplinas. Mas a novidadedostemastransversaisnão passa de uma tentativa de colocar em prática a idéia de interdisciplinaridade,já queas disciplinas- ou áreas- são mantidas como estruturação básica do plano curriculardaescol~.Pensoqueestapropostanãodáconta de desvendaro enigmaquea Esfinge da educaçãonos apresenta;a suaadoçãosignificará,quandomuito,uma novaforma,talvezmaissimpática,desermosengolidos pelomonstro.Pensoquepararesolveroenigmadevemos sermaisousados,ebuscarsoluçõesmaiscomplexas,mas tambémmaiscriativasequepermitamodesenhodeum novofuturo. controleseexerçadeformamaisdiluídaetambémmais intensa,dando-nosapenasumailusãodeautonomia,ou então de uma educaçãoe uma sociedadeem que a autonomiasejaum fato,numarealidademais solidária e maisdemocrática. Nem o objetivodefornecer"receitas"decomodeve- se ou pode-setrabalhar de forma interdisciplinar ou transversal,nemmuitomenosdesenvolverumaanálise de"especialista"sobreoassuntosãoobjetivosdestetexto; antes apenaso de convidaros colegasà reflexãoe ao debate, rompendoacima de tudo as nossas próprias amarras,aquelasquenosancoramnosportossegurosde nossas especialidades, alheios aos monstros e às tormentas que povoamos mares desconhecidosdas demaisáreasdeconhecimento. De nossacriatividadee denossaaçãopolíticae capacid~dedeinfluênciadependeráo delineament'ode um processoeducativoe deumasociedadeemqueo Semdúvidaalguma,ébastantedifícilparaqualquer professor trabalhar na perspectiva de uma transversalidade,dadoquefomos,nóspróprios,formados de maneiracompartimentalizadae de certomodo "treinados"paratrabalhardessaforma,reproduzindonos alunosasestruturasdos"arquivosmentaisestanques". Entretanto,comovimos,esseensinocompartimentalizado 'levaa umaabstraçãodoreal,poiso mundoformaum todocomplexoemultifacetado,umapluralidadedeinter- relaCionamentos.Devemoslembrarqueoaluno,na"sutil inocência"de sua virgindadeacadêmicaapreendeo mundocomoessapluralidade,compreendendo-aounão; fica,assim,bastantecomplicadoparaelasassimilaras compartimentalizaçõesquelhe oferecemosna escola. Umadasprimeirasbarreirasnaeducaçãodascrianças- ecertamenteumadasmaisdifíceisd~sertransposta- é essapercepçãointuitivaemuitasvezesinconscienteda multiplicidadedoreal,queelasprecisamabstrairpara~. '" 36 37 o sentido da Escola Transversalidade e educação: pensandouma educação... assimilar a compartimentalizaçãode saberesquelhe é impostapor nós,professores. Se, no lugar de partirmos de racionalizações abstratasdeum saberpreviamenteproduzido,começar- mos O processoeducacionalna realidadeque o aluno vivenciaemseucotidiano,poderemoschegara umaedu- caçãomuitomaisintegrada,semdissociaçõesabstratas; àpartea novafilosofiadeeducaçãoqueimplicaessapos- tura e mesmoa nova visão de mundoque ela suscita, tambémexperimentaríamos,comessaposturapedagó- gica,uma sensívelmelhoriano aproveitamentoerendi- mentodosalunos,poisaquelabarreiraintuitivanãomais precisariaserultrapassada. Sei queestamos,nós professores,emlarga medida compése mãosatadospelahurocraciaescolar.O quepo- demosfazerépouco,masapequenaaçãotransformadora no espaçoemquesomosautônomospodeter umareper- cussãoe um resultadomaiordo queo queimaginamos; semdúvida,nomínimoconseguiremosmaisdoqueinsis- tindonapálidaapatiaconformistaquenosreduza meros "reprodutoresdamesmice". enquantooutrascompõema cosmologiacontemporânea e outras ainda procuram explicitar a vivência e a apreensãohistórica doespaçohumano. O mínimoque podemosesperaréqueoalunoconsigacompreenderessas inter-relaçõesbásicasentreas disciplinasqueestudae, num segundoestágio,possa perceberas relaçõesda apreensãodoespaçohistóricocoma cosmologia,eassim por diante. Não podemos,porém,perderdenossohorizonteque a utopiaquenosguiaé algobemmaior:a construçãode uma concepçãodesaberquevislumbrea multiplicidade sema fragmentação;um currículoe umaescolana qual as crianças possamaprender sobre o mundo em que vivem,ummundomúltiploecheiodesurpresas,epossam dominar as diferentesferramentasque permitamseu acessoaos saberespossibilitados por es~.emundo, e possamaprendera relacionar-secomos outrose como mundoemliberdade. Somentequandolograrmosalcançaressadimensão teremosdefatodesvendadooenigmacomquea Esfinge- Educaçãonosaterroriza. Paraascondiçõesatuaisdenossaeducação,pensoque aspostur~sdesejáveisseriamaquelasqueprocurassem minimizarasaparênciasdacompartimentalização,dado quenãopodemosvencê-Iadeimediato,entranhadaque estáemnossoscurrículos.Cadaprofessorpoderia,para começar,tentarmostrarqueosconteúdosqueensinaem suasaulasnãoestãoisolados,masserelacionamde algummodocomtudoo maisqueo alunoaprendena escola.Seria de grandeimportânciaqueos alunos percebe?semaquiloqueeujá apresentavanoinício;que determinadasdisciplinassãoferrament~sinstrumentais que auxiliam na compreensãodos conhecimentos, Referênciasbibliográficas ApPLE,Michel.Educaçãoepoder.PortoAlegre:Artes Médicas,s.d. BOCHNIAK,Regina.Questionaro conhecimento:interdisciplinaridade na escola...efora dela.SãoPaulo:Loyola,1992. DELEUZE,Gilles. Conversações.Rio deJaneiro: Editora 34,1992. DEL~UZE,Gilles; GUATTARI,Félix. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia.Rio deJaneiro: Imago,1976. -' Capitalisme~tSchizophrénie:milleplateaux.Paris: Les Éditions deMinuit, 1980. 38 39 o sentido daEscola Transversalidade e educação: pensando umaeducação... -' Ka{ka:porumaliteraturamenor.RiodeJaneiro:Imago,1977. -' Oqueéfilosofia?RiodeJaneiro:Editora34,1992. FAZENDA,Ivani C.A. Integraçãoe interdisciplinaridadenoensino brasileiro:efetividadeouideologia.SãoPaulo:Loyola,1979. -' Levantandoa questãoda interdisciplinaridadenoensino. EducaçãoeSociedade,n.27.SãoPaulo:Cortez/CEDES,1987. -' Práticasinterdisciplinaresnaescola.SãoPaulo:CortezlAutores Associados,1991. -' Interdisciplinaridade:história,teoriaepesquisa:Campinas: Papirus,1994. FoucAuLT,MicheI.A arqueologiadosaber.RiodeJaneiro:Forense- Universitária,1987,3aed. -' Aspalavraseascoisas.SãoPaulo:MartinsFontes,1990,5aed. -' Vigiarepunir:históriadaviolêncianasprisões.Petrópolis:Vozes, 1991,8"ed. -' HistoiredelaFolieà l~geClassique.Paris:Gallimard,1972. -' MicrofísicadoPoder.RiodeJaneiro:Graal,1984,4aed. -' Tecnologíasdelyo.Barcelona:EdicionesPaiclósIbérica,1990. GALLO,Sílvio.Educaçãoeinterdisciplinaridade.In: Impulso,voI.7, n. 16.Piracicaba:Ed.Unimep,p.157-163,1994. -' EducaçãoAnarquista:umparadigmaparahoje.Piracicaba:Ed. Unimep,1995. GONÇALVES,FranciscaS. Interdisciplinaridadeeconstruçãocoletiva doconhecimento:concepçãopedagógicadesafiadora.In:Educação eSociedade,n.49,Campinas:Papirus/CEDES,1994. GUATTARI,Félix.Revoluçãomolecular:pulsaçõespolíticasdodesejo. SãoPaulo:Brasiliense,1985,2aed. -' OInconscientemaquínico:ensaiosdeesquizo-análise.Campinas: Papirus,1988. -' Caosmose:umnovoparadigmaestético.RiodeJaneiro:Editora 34,1992. GUATTARI,Félix;NEGRI,Toni.LesnouveauxespacesdeLiberté.Paris: Ed.DominiqueBedou,1985. GUATTARI,Félix;ROLNIK,Suely.Micropolítica:cartografiasdodesejo. Petrópalis:Vozes,1986. HABERMAS,Jürgen.LesscienceshumainesdémasqueesparIacritique deIaraison:Foucault.In:LeDébat,n.41,set./nov.1986,p.70-92. JAPIASSU,Hilton.lnterdisciplinaridadeepatologiadosaber.Riode Janeiro:Imago,1976. -' IntroduçãoaoPensamentoEpistemológico.Rio deJaneiro: FranciscoAlves,1988,5aed. LATOUR,Bruno.Jamaisfomosmodernos.RiodeJaneiro:Editora34, 1994. LÉVY,Pierre.As tecnologiasda inteligência:ofuturodopensamentonaeradainformática.RiodeJaneiro:Editora34,1993. LÉVY,Pierre;AUTHIER,MicheI.Asárvoresdeconhecimentos.SãoPaulo: Escuta,1995. MAcHADo,Roberto.Ciênciae saber:a trajetóriada arqueologiade Foucault.RiodeJaneiro:Graal,1988,2aed. MARIGUELA,Márcio(org.)Foucaulte a destruiçãodasevidências. Piracicaba:Ed.Unimep,1995. -' Epistemologiadapsicologia.Piracicaba:Ed.Unimep,1996 PALMADE,Guy.InterdisciplinariedadeIdeologías.Madrid:Narcea,S.A. deEdiciones,1979. PEREIRA,Maria Clara I. etalii. A interdisciplinaridadeno fazer pedagógico.In:EducaçãoeSociedade,n.39.Campinas:Papirus/ CEDES,1991. SERRES,MicheI.O ContratoNatural.RiodeJaneiro:NovaFronteira, 1991. -' Hermes:umafilosofiadasciências.RiodeJaneiro:Graal,1990. . .~~ .,.. 40 41 GA/l.,~lAJ~1'hCL kd-e.120ba1i ~ rnernÓnQ: ~i5+VviQ,5de froFes~íQ. !n.; ALV~slrJifcG:j GAWAJ f<9i'YtCtLeite(or9s.).Osenhclv d.~ 0scofOv.'RI'OeLe Janeiv-o J J>P&A,:2x;oo. Do bàú da'memória: históriasde professora Regina Leite García>I- Tersidoprofessoraprimária,portantosanos,tantosque já mefazemserreconhecidapormaisdeumageraçãode professoraseprofessoresenaverdadenuncatersaídoda escola,poisquea elavoiteisempre,mesmodepoisde aposentada,agoravoltandonacondiçãodepesquisadora,me fazterumbaúq.ememórias,ondeestãoguardadastantas histórias,algumasvividaspormim,outrascontadaspor tantasprofessorasquefuiconhecendo.Fuiassimmetornando umacontadoradehistóriasdeescolas,deprofessoras,de alunosealunas,históriasenfimsobreeducação. Há poucotempoli umanotasobrea ColeçãoGrió,2 quemeajudoua entenderopapelquealgumasdenós temosdesempenhadoemnossalutaemdefesadaescola pública,tãodesrespeitadaemnossopaísetãoimportante nalutamaiorpelademocratizaçãodasociedade.Fez-me atécompreendermelhorporqueresolvemosorganizar .Professoratitular emAlfabetizaçãoda Faculdadede Educaçãoda UFF - UniversidadeFederalFluminense.MembrodoGT deCurrículodaANPEd. AutoradeartigospublicadosnoBrasilenoexterior. 2 Coleçãojublicadap~laEditoraMazza. II 11\ <" 43 } f l . o sentido daEscola Do baú da memória: histórias de professora estacoleçãodelivrosemquepretendemosdenunciaro processo de destruição da escola pública e de desmoralizaçãodaprofessoraeanunciaraltoembomsom queaescolapúblicanãoestámortaequeasprofessoras nãodesistiramdelutarpelasobrevivênciadela.Nãonos conformávamoscoma explicaçãodadapor tantas autoridadeseducacionaisounão,paraofracassoescolar, ao localizá-Iona má formaçãodo professor.Quero contraporaessaavaliação,umaoutrahistória,quefala deoutrolugaredeondefalamaquelasquenãoconcordam comtal significaçãoquantoao problemadofracasso escolar. É destahistóriaquesetratanestetexto,trazendo falasquevêmdedentrodaescola,falasdequemestá concentrada/empenhadaemestabelecernasaladeaula um espaçorico de aprendizagenssignificativaspara . alunose alunase usa todasas suasenergiasparacriar alternativaspedagógicasquepossamfavoreceressas aprendizagens.Sãofalasdequemvivecorrendodeuma primeiraescolanapartedamanhã,paraumasegundaescola napartedatardeequemuitasvezesaindasaicorrendopara umaescolanoturna,para,nofinaldomês,poderpagartodas ascontase...conseguirsobrevivermaisummês...uff,vitória!... Comestavida,emqueotempoéinimigo,poiscorremaisdo queoindispensávelpara,alémdatriplajornadadetrabalho, poderdarcontadacasa,dosfilhos,edesermulher,impossível seriaencontrartempoparafalar,parasedefenderde acusaçõestãoinjustas,difícilencontrartempoparase organizarcoletivamente,paraqueasuavozisoladapudesse ganharforça,produzirecoe serouvidanoespaçosocial maisamplosomando-seaoutrasvozesatéchegaraosque estãonopoderparaque,lá chegandofortee vigorosa, obrigasseápensarnalutaheróicadasprofessQrasqueficaram naescola,apesardetudoetodos,e seficaram,éporque acreditamqueháalgodemuitoimportanteaserfeitoaí equesóelaspodemfazer,coisaquenenhumcomputador, televisãooukitpedagógicopodefazeremseulugar. Seasprofessorasvivemnessacorridacontraotempo, semlhessobrartempoparaescreversobresuashistórias, resolviassumiro papeldogriôe,pedindo-Iheslicença, metornarescreventedehistóriasquefalamdesuas históriasquenãoescrevem,poiso tempodelasépouco paranãomaisquesobreviver. Comoos griôs,tenhotransmitidooralmente,em minhasandançaspeloBrasil,eagoratambémporescrito, nestelivro,eemtantosoutrosquejáescrevi,ashistórias dasprofessorasquenãodesistemdelutarpelaqualidade da escolapública,contribuindoparaa preservaçãoda memóriadacategoriamagistério. E aomesmotempo,vourecolhendohistóriasdepro- fessorasporestepaísafora,levandodelugarparalugar as históriasquemecontam.Essashistóriasnarradas pelasprofessorasvãoconstituindoumamemóriacoletiva que, espero,possa contribuir p~rarecuperarum autoconceitopositivoeumsentimentodepotênciacria- dora,queumdiaasprofessorastiveram,já quehojese ássisteaumaaçãoorquestradadedesmoralizaçãoapar- tir dafalsaidéiadequeaescolarisonhaefrancamorreu equeagoraéprecisoeficiênciaqueacompanhea lógica domercado. Partedestatarefadivulgadoraeorganizativa,trata- sedestetexto,emquemevalhodaescritaparaampliar aspossibilidadesdeminhafunçãogriô.Minhaintenção é quE(fí<iUeclaroserapráticaum loeusdeproduçãode conh~im_entosquemuitasvezesantecipaoqueateoria maistardeafirmaseraverdadecientífica. . t} 44 45 .,.t o sentido da Escola Do baú da memória: histórias de professora Tiremosentãodobaúdememóriasalgumashistórias escolhidasa esmo,poistantashá quebastaabrir o baú queelaspulamprocurandoespaçopara falar. abrir novoscaminhoslevandoa pontosdiversos,ouseja, aoaparecimentoe reconhecimentodadiferença. Antes dorelatodeLúcia, é precisoqueeu digaque elanãofaznuncaplanejamentofechado.Ela traz a cada dia algumas idéias, que nem sempre se mostram oportunas,poisoqueindicaa pertinênciadoplanejadoé a reaçãodosalunose alunasdaturma.Quandoaturma sinaliza queaquilo que Lúcia trouxeracomoassuntoa ser tratadono dia, nãoé o queresponderiaaointeresse dascrianças,elarapidamentemuda,eguardaparaoutro dia, poisprocuraestarsempresintonizadacoma turma (Barbier, sociólogofrancês, chamaria a isso escuta sensível; meu grupo de pesquisa, todas educadoras brasileiras,ampliaesteconceitoeafirmaa "sensibilidade dossentidos",uma formadeapreensãodoreal quenão se limita à simplesapreensãointelectual).O queLúcia nãodeixadefazeréregistrartudoo queacontecea cada diaemsuasaladeaula.Segundoela,esteéoseutesouro eseutermômetro.É poresseregistrodeclassequeLúcia sepautaparacontrolaro quefaz,yomofazeporquefaz. Mais do quequalquercontrole'externo,é à própria professoraquecabecontrolaro desenvolvimentodeseu trabalho.Mais doquequalquerprovaunificada,éporali que Lúcia se pauta para ir avaliando as crianças e redirecionandoa sua prática pedagógica,poispor tudo que observo em seu cotidiano de professora comprometida,ela sabequeo sentidoverdadeiramente educativo da avaliação é a possibilidade de ser replanejada a ação pedagógica e não de controlar, classificar, rotular, discriminar e excluir os alunos e alu~Na sala de aula de Lúcia, Eros é bem-vindoe ab~ alaspara a expressãodamultiplicidade. VamosportantoaoregistrodeLúcia que,apartir de um.temaini'êial-umjogodoBrasilnaCopadoMundo- Primeirahistória- Copado mundopodeser umainteligenteoportunidadede trabalhartransversalmente Lúcia, professorana BaixadaFluminensenoRio de Janeiro, chegaà escolano dia seguintedojogoBrasil x Marrocos e transforma a sala de aula numa "zorra", segundo a servente, "bagunça", segundo algumas professoras, "caos", segundo a diretora. O que foi acontecendo durante aquele dia e nos dias que se seguiramobrigoua servente,asprofessorase a diretora a repensaremo queafinal ézorra,bagunçae caosnuma saladeaulae,até,semteremlidoPrigogine,aprenderem na prática quedo caospodesurgir uma novaformade organizaçãomais criativa e livre - um novoespaçode liberdade - em que cada aluno e aluna podiam se aventurarpor diferentesáreasdoconhecimentoa partir deseuprópriointeressee assimfazendochegara novas sínteses.A surpreendentemultiplicidadedesaberesque decorreudoprocessoque abria espaçopara saberesjá conhecidospor alguns e criava possibilidadespara a emergênciadesaberesnovospara todos,evidenciavaa riqueza da diferença,em que as fronteiras da divisão disciplinareramrompidase a disciplinaautoritáriaera substituída pela alegria espontâneado descobrire do conhecer. Da homogeneidade forçada da escola tradicional, em que todos caminham pelos mesmos caminhosjá antescaminhadose que levamao mesmo ponto,ou seja, à repetição;a heterogeneidade,de fato comuma todosos grupos,ao ser respeitada,possibilita 46 47 ", " o sentido da Escola Do baú da memória: histórias de professora transformoua saladeaula num "caos"(naavaliaçãode quemsóconseguevercomosolhosdojá visto,ouseja,da mesmice)e, a partir do caosinicial, criou um clima de participação,curiosidade,interesse,prazer, aprendiza- gens,o quemobilizouosdesejosdaprópriaprofessorae deseusalunosealunasa seengajaremnumricoproces- sodeinvestigação,descobertas,aprendizagens.Vejamos, acompanhandooregistro,o queaconteceu,comoaconte- ceu e quais os "conteúdosprogramáticos"tratadosdu- rante os dias que se seguiramao dia dojogo Brasil x Marrocos. Dia17dejunhode1998. Hoje,quandoentreinasalaencontreias crianças alvoraçadas.Sentiquenãodavaparadaro itemdo programaquetinhaplanejado.Pretendiahojeensinar tantacoisaimportanteparaatalprovaconjuntadaescola equeseeunãodesseoprogramaascriançasseferrariam. Mascomoeupossoensinaro quedizemqueépreciso queascriançasaprendamseelassóqueremfalarno jogoBrasilxMarrocos?Eusempredesconfioquenãoé possívelquetodasascriançasdevamaprenderasmesmas coisasnamesmahora.Eunãoseicomoéquesepode serconstrutivistaeensinarasmesmascoisasnamesma horaparapessoasdiferentes.Oueunãoentendioqueé essenegóciodeconstrutivismo,queemtodasasreuniões nosdizemqueéo moderno,ouoqueasupervisoradiz quenóstemosquecumprir- osParâmetrosCurriculares Nacionais(PCNs)-,nãotêmnadaa ver.Eudesconfio quenemelassabem.Deixapralá,porqueoqueinteressa équeasminhascriançasaprendamalereescreverbem .eaprendamapensar,queénissoqueeuacredito. Bem,'quandoeuvi quenãoiaconseg~irseguiro que tinhaplanejado,penseirápidoque"seMaoménãovai àmontanha,amontanhavaiaMaomé".Emvezdetentar impordisciplina,deixeirolaraconversa.Aíelesetambém elascomeçaramacomentaro jogo,afazerperguntase eucompreendiquepodiatransformaraquelafa/açãoem aula.Ficaaté difícil anotartudo queas crianças aprenderame tudoqueeu entendiqueelaspodiam continuaraaprender. Seguindoafaladascrianças,eufuipuxandoconversae ensinandoummontede coisas.O melhoré queas criançasiamdescobrindocoisase ensinandoumasàs outras. EstudamosondeficaoBrasileondeficaoMarrocos.Ainda bemquenaminhaescolatemummapadomundoque eumandeibuscarnasaladadiretora.Fuimostrandono mapaondeficao Brasil,(ascriançasacharamo Brasil imensoeocompararamcomosoutrospaísesdaAmérica), aAméricaLatina("porquesechamaAméricaLatina?"), ospaísesdaAméricaLatinaqueestãojogandonaCopa. Jáqueeuestavacomomapanafrente,mostreiaAmérica doSuleaAméricadoNorteealgunsmeninosdisseram queotimedosEstadosUnidosédepernadepaueque nãoiachegaràsfinais.Eeutiveasurpresadeverqueas criançassabemumaporçãodepalavraseminglês.Da AméricadoSuleAméricadoNortepassamosparanorte e sul,lesteeoeste,e eujá estavaensinandoospontos cardeais.Olharparao mapae ir identificandoospaíses quejá conheciameaprendendoosquenãoconheciam melevouaIhesensinaraidéiadefronteira- ospaísesque têmfronteiracomo Brasileosquenãotêm. Asperguntasiamsurgindoeeuiarespondendoou,como jádisse,asprópriascriançasiamdescobrindoasrespostas. Podeatéparecerumabagunçaefaltademanejodeclasse daminhapf!Jte,masatéqueeuacheimuitointeressante.. 48 49 f: o sentido da Escola Do baú da memória: histórias de professora Ascoisasquepodiamparecersoltaseatécaóticasiam se ligandoàsoutrasquestõesquesurgiame tudoia fazendosentido.Istomefezpensarseo melhorparaas criançasaprendereméseguiroprogramaouoqueagora substituiuos programas,quesãoosPCNs.Comose explicaria,então,sedaformacomoestavaacontecendo, euviaqueascriançasaprendiammaisecommuitomais prazer.Eraumaquestãodematemáticaaqui,umade geografiaali,umadehistóriaacolá,umaatividadede artederepente,e música,etelevisão,e escrita,muita escrita.Eracomoseficassetudopipocandomasacabasse tudojunto.a quejuntavaeraaCopadoMundo.Nessa horamedásaudadesdequandonóstínhamosreuniões pedagógicase podíamosdiscutira nossaprática pedagógicaeumasajudavamasoutras,oquehojepor causadosduzentosdiasobrigatóriosnãodámais. Éincrívelcomoascriançasaprendemmuitomaisdoque mandao programaquandoelasestãoenvolvidasna própriaaprendizageme quandoa professoraestá ensinandooqueIhesinteressa.Eusempremepergunto setemsentidodizerquenãosepodeensinarcertascoisas a certascriançasantesqueelasatinjama maturidade. A minhaexperiênciamemostraquequandoa criança estáinteressadaelaaprende,comoestáacontecendo agoracomestacoisadeCopadoMundo.a quemefaz pôremquestãoo conceitodematuridade.Precisoler maissobreisto.Afinal,teoriaserveparaisso.A gente descobrenapráticaevaiconfirmarnateoria.Seriabom sepráticoseteóricostivessemumdiálogopermanente. Nós,aspráticas,exerceríamosanossapráticacommais segurança.Masachotambémqueosteóricospoderiam ,aprenderumpoucocoma nossaexperiência.Todos aprenderiamcomo diálogo. Quandoeumostreio Marrocosnomapaascrianças quiseramsaberquelínguasefalanoMarrocosecomo eunãosabia,propusqueagentefizesseumapesquisa, procurandonosjornaisenoslivros.Nodiaseguinte,elas vieramtodascontenteseorgulhosasporquedescobriram quelásefalafrancêseárabe.Quiseramsaberporquese falafrancêsnaFrançae tambémnoMarrocos.Ensinei quenaÁfricasefalamaisdeumalínguaporquefalama línguadocolonizadorea línguadopovonativo.Como fuifalardecolonizadorecolonizado,látiveeudefalar sobreaaçãocolonizadoradoseuropeus,daescravidão, daslutaspelaindependência. A impressãoquemedá,agoraqueeuestouescrevendo sobreo queaconteceu,équeascriançasiampuxando fios e cadafio traziaumassuntoe queos fiosse emaranhavamcomoseganhassemnovasformas,e as formasmuitasvezessemodificavamenovasformas apareciam.É assimcomoumcaleidoscópio,queestá sempremudandoefazendosurgirnovasformas,novas cores,semnuncavoltaràformaoriginal.Liberdadeéo quemeocorre.Que lindoviverumasituaçãode aprender/ensinarcriandoemliberdade! AscriançassozinhasforamdescobrindoondeficaaÁfrica doSul,a Escócia,aAlemanha,a Itália,a Inglaterra,o . Chileequeriamsaberondeficacadaumdospaísesque estãojogandonaCopae quelínguasefalaemcada país.Nuncaviestascriançastãoanimadasparaaprender. a interessanteéquecadaaprendizagemprovocavauma novacuriosidade.Depoisdedescobriremondeficamos países,aprenderamoqueécontinente.("EntãoaFrança é naEuropae o Brasilé naAméricaLatina"),o queé' oceano("TemumoceanoAtlânticoentreo Brasile a França?Entãooaviãopassaporcimadooceano?Então nãopode:i!rdecarropraFrança?"). ~ 50 51 o sentido daEscola Do baú da memória: histórias de professora Asperguntasvinhamcomoenxurrada.Etodosfalavam aomesmotempo.Resolvipôrumacertaordemnaquela aparentebagunçae propusquecadaumlevantasseo braçoparafalarequeosoutrosesperassemasuavez, respeitandoa faladocolegaoudacolega.Deucerto. Achoquerespeitoseaprendevivendoo respeitopelo outro,enãoouvindodiscursosobrerespeito.Incrívelé queotemponãodeuparaencontrarrespostasparatudo o queascriançasqueriamsaber.Porissoaquelaaula duroumaisdeumasemanaeeuvoucontinuararegistrar tudooqueascriançasforammeobrigandoaensinar. Comoeujá escrevi,elasquiseramsaberaslínguasque cadaseleçãofalaenósfomospesquisar.Depoisestudamos ascoresdasbandeiras;umaselasjátinhamvistonojornal ounatelevisão,outrasforamprocurarnumlivroqueuma dasmeninastrouxedecasa.Eforamfazendoacontade quecorapareciamaisnasbandeirase dequecores apareciammenose dequantasbandeiraselasagora conheciam.Discutiramqualabandeiramaisbonitaepedi quecadaumajustificasseporquepreferiaumabandeirae nãooutra.Achoimportantequeascriançasaprendama respeitarasdiferençasdegosto,deescolha,porqueassim elasvãoaprendendoaviverdemocraticamente. Enquantoestudávamosasbandeiras,algumascriançasquiseramdesenhá-Ias,outraspreferirampintareoutras fizerambandeirinhascompapel,colaemadeira.Quando asbandeirasforamficandoprontasiamsendocolocadas emnossomural,queficoulindo.Pareciaumaoutra bandeira(quemdisseissofoio Pedroquegostamuito dedesenharequetemalmadeartista). Co.moalgumascriançastinhamvistonatelevisãoas músicaseasdançasmarroquinas,com~çaramaperguntar sobreasroupas("Homemandavestidodemulherno Marrocos?Escocêstambém,né?Parececarnaval"), comentaramobatuquequeosmarroquinosfizeramantes do jogo("parececoma nossaescoladesamba")e acharammuitagraçanosescocesestocandogaitadefole. O paidoJorge,queéárabe,mandouumdiscodemúsica árabeenósouvimosjuntos.Nodiaseguinte,aMariado Céutrouxeumfadoe umafantasiadeportuguesa.Foi umbarato.Nóscombinamosfazerumafestacomos paiseasmãescomasmúsicasdecadalugar.O Zeferino dissequevaitrazerumforróeeuacheiótimo,poistodas ascriançassesentiramorgulhosasdesuaorigem.Acho queéassimqueseconstróiumademocracia. Difícilfoiquandoelesquiseramsaberoqueéhoo/igan. Bem,eurespondiquesãocomoos funks,queestão sempreaprontando. Muito legalfoi vero interessecomqueascrianças trabalharamdurantetodaa semanae tantacoisaque aprenderam.Estudamosjuntostantacoisasobreo mundo,passandopelamatemática,pelageografia,pela história,pelaarte,pelamúsica,pelaslínguasepelanossa língua,porquetudoqueeraestudadoeraescritoelido. Eracomosenósfôssemospasseandopelasdisciplinas semficarmosparadosnelasetirandodecadaumaaquilo quenahoranosinteressava. Achoquefoi importanteaproveitara CopadoMundo paraensinartantacoisaparaascrianças.Voucontinuar a trazerparaasaladeaulaaquiloemqueascrianças, comotodosos brasileiros,estãomaisinteressadas- a conquistado pentacampeonatoparao Brasil.Não importaquea CopadoMundonãosejapartedoque estálistadonosPCNs,o queimportaéqueascrianças aprenderammuitomaise melhordoqueseeufosse seguiro qL+;.eos PCNs mandama genteensinar.. 52 ...r, 53 ,.," o sentido da Escola Do baú da memória: histórias de professora E eu tenho de admitir que aprendi muito também. Aprendisobretantacoisaquetivede pesquisar,poisnão sabia,e aprendisobresermelhorprofessora. põe-sea pesquisare, pesquisando,reflete sobreo que descobre. No entanto, como nem sempre encontra explicaçõespara o que descobre,vai buscarna teoriao que,comseusprópriosrecursosteóricos,não consegue dar conta.Exe.mplodissoé quandoa suaintuiçãopõeem questãooconceitodematuridadecomopré-requisitopara a aprendizagem.Ela intui, masnãoconsegueexplicar,o queafazdispor-seabuscarnateoriaajustificativateórica parasuaintuição.Intuiçãoquenóssabemosestarafinada comaspesquisasmaisavançadasquecriticamopróprio conceitodematuridadeequepostulamqueamaturidade sedánumcontinuumequeacadaatingimentodeníveis dematuridadevãoserevelandonovosaspectosdeuma imaturidadequeacompanhaa todosos sereshumanos por toda a vida. Lúcia estátrilhando um caminhoque rompecomas análisessimplificadorase,aofazê-Io,vai compreendendoqueorealécomplexoecomotal deveser analisadopara podersermaisbemapreendido. Quandoela refletesobrea relaçãoentreospráticos eosteóricos,estáanunciandooqueBoaventuradeSousa Santospropõecomo"segundaruptura epistemológica", que seria, emseudizer,o reencontroentrea teoriae a prática, fertilizando-se a teoria e enriquecendo-sea prática. Eu diriaqueLúciaéumaexcelenteprofessoraporque estásempreatentaao queaconteceno cotidianodesua saladeaulaeporque,estandosempreatenta,podeseguir as pistas que o complexoprocesso de apropriação/ construçãodeconhecimentosdeseusalunose alunasa desafiaa investigar.Lúcia nãoserecusaasuasintuições, ao contrário, segue-as,decifra-as, ~prendecom elas porqueousapenetrarematalhossemmesmosaberaonde podemdar. É corajosa.Além de tudo é estudiosae vai ;li. Meu comentário Lúcia,aprofessoraquevenhoacompanhandonodia- a-dia de sua sala de aula, queatua comuma turma de crianças de terceira série, não fica presa à divisão disciplinar,maspermitequeosconhecimentosvãosendo construídoscomorizomas,comoraízesdaquelecapimque o povo chama de tiririca, que brotam num lugar e reaparecemem outro, que se aproximame se afastam comonuma dançasemcoreografiapredefinida,emque sãoos própriosrizomasquelivrementee caoticamente constroemacoreografia.A metáforaempregadaporLúcia de fios que vão sendo puxados e que fazem um emaranhadodefiosadquirindonovasformas,meparece rica, pois nosconvidaa puxar outrosfios e criar outros emaranhadosnumprocessodeinstigantecriação. No final, aquelascriançashaviamaprendidomuito maisdoqueaparecerelacionadoemqualquerprograma ou livro didáticopara turmasdeterceirasériee é Lúcia quemconstatae reflete sobreos resultadosatingidos. Lúcia é, semdúvida,o quealgunsteóricos,entreeleso Shõn, denominamprofessorareflexiva.Eu diria mais - porqueLúcia é comprometidacoma aprendizagemde seus alunos e portanto inconformadacom o fracasso escolar,assumeuma posturainvestigativa,mostrando- seuma professora-pesquisadora.Ela quersaberporquê alguns alunos e a,lunas não aprendem ou não se interessampor aprendero quea ela,professora,parece importantequesejaaprendido.Por querercompreender, F 54 55 o sentido daEscola Do baú da memória: histórias de professora buscarna teoria as respostaspara o quenãoconsegue explicardesuaprática.Lúcia éumaboarespostaàqueles quedescrêemdacapacidadedecriar dasprofessoras. Abaixou-separaperguntaràmeninaporquechoravae Rosinhalhecontouqueestavachorandoporqueseuavô lhederaumcachorrinhoequeamãenãolhepermitira levarparaa escola.Mercedesconvenceua meninaa entrare lheprometeuqueiriavero queseriapossível fazer.Asduasentraramjuntasnasaladeaulae,logo, logo,MercedespôsemdiscussãooproblemadeRosinha, sugerindoquepensassemjuntosoquepoderiaserfeito. Unsdiziamquecachorronãodeveentrarnaescola porquefazsujeira,outrosdiziamqueseelescuidassem docachorroelenãofarianadae quepoderiaatéficar bemquietinhoeseacostumarcomaturma.Depoisde muitaargumentaçãoecontra-argumentaçãoacabaram chegandoaumconsenso.Ascriançasiriamemcomissão perguntarsea diretorapermitiriaa presençadeum cachorronaescola,e,seelapermitisse,iriamescrever para a mãede Rosinhadizendoq/Je todos se responsabilizariampelocachorrinho. Assimfizeram.Nomesmodia,foramjuntosfalarcoma diretora,tendoantesplanejadooquediriam,quemfalaria primeiroeo queo gruposeresponsabilizariaporfazer. NãoprecisodizerqueMercedesfoi comascrianças, orgulhosasdasuagenerosidadeemrelaçãoàcolegae desuacapacidadedeorganização.Adiretora,apesarde relutante,acaboucedendocomalgumascondições- não poderiaaparecerqualquersujeiradecachorro,aturma équeteriaa responsabilidadedealimentaro bichinho, nadadecorreriapeloscorredoresdaescola,e,antesde tudo,eraprecisoqueamãedeRosinhaconcordasse. Àmedidaquesesentiucompreendidaeajudada,Rosinha paroudechoraresuaexpressãodetristezadesapareceu deseurosto,fazendoreaparecero brilhodeseusolhos cordemel~. " Segundahistória- Umaclassedeeducaçãoinfantil ondecomtão pouco,tantoseaprende ,11 Comonas históriasinfantis,eu voucontaruma históriaquecomeçacomoeraumavez. Eraumavezumaprofessoradeeducaçãoinfantil,que naqueletempotodoschamavamjardimde infância. Trabalhavanumaescolanaperiferiade Recife,em Pernambuco.Todasasmanhãsvinhaparaaescolatrazendo umasacolacheiadebadulaquesquequandoelaabriana saladeaulapareciaa cartoladomágico- iamsaindo fantasias,fantoches,livrosdehistória,chapéus,bonecas, bolas,caixinhas,eseimaisoquê.Nuncaeramasmesmas coisas,o quefascinavaascriançasquesemprese surpreendiamcomasnovidades.Mercedes,aprofessora dequemfalo,recolhiatudoqueencontravae pediaa todosqueguardassemparaa suaturmatudoquenão quisessemmais.Osamigosbrincavamcomela,dizendo queelaeraaMariaTrapeira.Maselanemsetocava,pois tudoistoqueeuestoucontandofoielaprópriaquemme contoueachandomuitagraça.Aliás,umadascoisasque maismeimpressionouemMercedesfoioseubomhumor eacapacidadederirdesimesma,oquemepareceuma característicadaspessoasinteligentes. Mercedesmerelatoumuitasexperiênciasqueviveu comoprofessoradecriançasatéseisanos.Voumelimitar a.contarumadasinúmerashistóriasquemecontouequemuitomeensinaram. Umdia,Mercedeschegouàescolaeencontrouumade suasalunas,aRosinha,acocoradanochãoechorando. 1I li! 1 \ 'I I I ii II 56 57 ti" , li' o sentido daEscofa Do baú da memÓria: histórias de professora I I I I i II i Ao voltaremparaa saladeaula,a professorapropôsque fizessemjuntosumacartaparaa mãedeRosinha.Eassim fizeram. A carta ficou imensa, pois todos queriam participar.Mercedes ia escrevendono quadrode giz o que cada umadas criançasia dizendo.À medidaque a cartaia sendoescrita,as criançasa liam,aindaque não soubessemlercomo a escolaexige.Mas comotudo que estava escrito era o registro da fala de alguma das crianças,ficavafácil "ler". Terminadaa carta,depoisde lerema escritafinal e com um ar muito importantede quemseorgulhado queacabadefazer,algumascrianças quiseramfazerdesenhos,pinturas,colagenssobreo que as tinha mobilizadotanto. Uma dascriançasquis fazer umdesenhonaprópriacartaeo fez.Os demaistrabalhos foram colocadosno muralda sala. Quando parecia que tudo estava acabado, alguém lembrouque cartaprecisadeenvelope.Mercedesentão ensinou como se pode fazer um envelopecom papel, tesoura, cola e régua.A régua apareceude dentro da sacolamágicada professora,masera precisoensinaro queé umarégua,paraqueserveecomoseusa.Mercedes o fez e as criançasforam aprendendoa ler uma régua. De repente,em vez de fazer o envelope,elasestavam querendomediras mesas,o tamanhodos pés,a janela, a porta; tudo o que viam queriammedir.Mas como a régua não era suficientementegrande, a professora , ensinoucomose pode "medirsomandoos pedacinhos". A mediçãoduroutantotempoque,de repente,bateuo sinal de saída e o envelope não havia sido feito. Combinaramentãoquefariamo envelopenodiaseguinte . assimquechegas,semàescola.Combinaramtambémque aqueleseriaum segredodaturmaeque ninguémfalaria sobre a carta, para que ela fosse um<=!-surpresapara a mãede Rosinha. No dia seguinte,as criançaschegarambemcedoe logo 'quiseramfazeroenvelope.Decidiramqueeramelhorfazer váriosenvelopeseescolhero maisbonito,o quefoi aceito portodasascrianças.Fazeros envelopesfoi ummomento de grandeconcentração,poisestaeraa primeiravezque o faziam. Alguns envelopes ficaram tortos, outros lambuzados,outrosficarammuitopequenosparacabera carta.Finalmenteescolheramo envelopequeIhespareceu o maisbemfeito e no qualcoubessea carta. Meu comentário Ascriançasestavamdesenvolvendoosensoestético, alémdeaprenderemconceitosmatemáticosa partirde umasituaçãodevidaqueasmobilizara.Nãoépreciso dizer que se alfabetizavamno melhor sentido de alfabetização,poisaleituraeaescritaiamacontecendo comuma funçãopráticadenecessidadee desejode comunicaçãoatravés da linguagem escrita. Ao desenharem,pintaremefazeremcolagensdesenvolviam a linguagemplástica.Ao prepararema colae astintas necessitaramdeconhecimentosdequímica,poisumavez queaescolanãodispunhaderecursosparacomprarcola é tintas,era necessárioprepararosmateriaiscomos recursosde quedispunham,aindaquetalveznema professorapretendesseestardandoauladequímica.Aliás osconhecimentosiamaparecendonamedidaemquese tornavamnecessáriosparaasoluçãodosproblemasque seapresentavam.Nadaeragratuito,nadaeraapenas "dever",nadaeraapenasaula.Emnenhummomentoa divisãodisciplinar,mas,comonavida,o conhecimento er~religadonassituaçõespráticasq~eseafiguravam. Além dessesconhecimentosvisíveis,aprendiam impottantes~onhecimentosinvisíveis.Aprendiama ;1", 58 ..f}59 ":.' o sentido daEscola Do baú da memória: histórias de professora i I solidariedade,quandosemobilizaramcomosofrimento de Rosinhae se dispuserama ajudá-Iaa resolvero problema.Aprendiama participaçãoe a organização,o respeitopelapalavradooutro,e a lutarpelodireitoà palavra.Aprendiamaargumentar,apersuadir,a fazer alianças,a criarestratégiaspara.enfrentarproblemas. Aprendiamaassumircompromissosearesponsabilidade dequemosassume.Aprendiamsedesenvolvendoe se desenvolviamaprendendo. Confirmavaaprofessoraoquejá sabia- queasala deaulapodeserumespaçodeimensoprazerealegriae quenãosãoincompatíveiso aprendere o prazer,ao contrário,talvezo quedemelhorseaprendana escola sejaoprazerdeaprender. É precisodizerqueahistóriadocachorrodeRosinha aindarendeumuito. Nodiaseguinteforamemcomitiva,acompanhadospela professoraàcasadeRosinhaparatentarconvencersua mãedequeocachorropodiaircomsuadonaàescolae queseriamuitobem-vindo.Depoisdemuitaconversa,a mãedeRosinhaacaboucedendo,admitindoque"de vezemquando"ocachorropoderiaircomRosinha,mas queseatrap,alhasse,nuncamaiselapermitiriaqueele fosse.Jávoltaramparaaescolacomocachorrinhoque, comoaindanãotinhanome,ficousendochamado'Dógui. Foiumalvoroço,poistodosqueriampegaroDógui,dar comida,atébanhoquiseramdar,masa diretoranão permitiu.Momentodefrustraçãoquenãoduroumuito, poislogosurgiuoutraidéia. "EuachoqueoDóguiprecisadeumacasa.Vamosfazer?" . Tera idéiaé fácil,fazeré quesãoelas;pensoua professora.Eaopensar,falou: ' "Vamosentãoplanejarcomosefazumacasadecachorro eoqueéprecisoparaconstruí-Ia." As criançasquiseramprimeirodesenhara casaque queriamfazer.Umadasmeninasquistambémescrever o nomedocachorronaportaeMercedeslheensinou, escrevendonoquadro.Éclaroquemuitosoutrostambém escreveramonomedocachorronacasaquedesenharam. Escolhidoomodelodecasa,agoraeraprecisolevantaro queserianecessárioparaconstruí-Ia.Eforamregistrando: madeira,serrote,pregos,martelo,cola,pincel,lixa,tinta, edividindotarefas:unstrariammadeira,outrospincele colademadeira,outroslixas,e assim,cadaumadas criançassedispôsatrazeraquiloquejá tinhaemcasa. Nodiaseguintenemtudoapareceu,poisnemtodosos paisacreditaramnahistóriadocachorroenacasapara ele. Mercedescompreendeuquenadasepodefazernaescola sema adesãodospaise resolveuchamá-Iosparauma reuniãodepaisemães.Nemtodosospaisemãesvieram, masosquecomparecerampassarama colaborare o materialapareceu.Ea construçãodacasadocachorro começoucomgrandealegria. Meucomentário Para quemacompanhou,ficafácil dizertodosos conhecimentosqueforamsetornandonecessáriospara queacasapudesseserconstruída,sempresabendoqueo queparecetudoseráumaformadesimplificaçãodetoda a complexidadequenão se revelaà primeiravista. Calcular,medir,serrarrespeitandoo veiodamadeira, lixarsemarranhar,usaromarteloparapregarospregos comcuidadoparanãobaternodedoeparanãoentortar *. 60 61 11'1i) " o sentido da Escola Do baú da memória: histórias de professora ; 1 ' ! ' L, , o prego,colardoispedaçosdemadeirajuntando-osbem, escolheracordatinta,misturarospigmentosparachegar àcordesejada,esperarsecarparasódepoisdesecapoder pintar o nomedocachorro,pintar comcuidadoparanão borrar. Tantos conhecimentosúteis à vida e em geral esquecidospelaescola. . . Ao fazer a casa, aprendiam também noções de equilíbrio, de tamanho, de altura, de largura, de profundidade,dequantidade,dequalidade,dediferença" detodoe partes,deespaçoexternoe espaçointerno,de vazio,detextura,debrilho edefosco,deduroe demole, de resistente e de frágil. E aprendiam também a solidariedade;a cooperação,a participação,a troca, o respeito às pessoas,aos animais e aos materiais, a economia,o aproveitamentoea redefiniçãodemateriais queseopõeaodesperdícioeaoconsumismo,a alegriade fazerjuntoedeaprenderjunto,oamorquesurgedofazer junto e aprenderjunto. Muito mais aprenderam aquelas crianças. Aprenderamsemter aula destaou daqueladisciplina separadamente,poistudotinhaavercomtudo,poistinha a ver com a vida. Aprenderamfazendo,investigando, descobrindo, trpcand,o, experimentando, ousando. Aprenderam errando e acertando, com certezas e incertezas,aprenderamporquesepermitiamterdúvid~s, expressá-Iase procurarexplicaçõesou soluçõespara as inúmeras dúvidas.Aprenderamsendoaceitasem suas diferenças. Aprenderam ao serem aceitas enquanto legítimosoutrose aceitandoo outroenquantolegítimo outro,conformediz nossomestreMaturana queapesar d~ser biólogotanto nos tem ensinadosobreeducação. Aliás, Maturana confirmacomseuinteresseabrangente,que o "especialista"que só sabede sua "especialidade" em geral não sabesequer de sua especialidade,pois seguindoa recomendaçãodeoutromestre,EdgarMorin, nossoconvidadoespecialparaestelivro,háquesereligar os saberespara sechegara conhecero todo.Ou melhor dizendo,háqueseconheceremaspartesparaseconhecer otodo,bemcomo,sósepodemconheceraspartesquando seconheceo todo. Bem, contei apenas duas histórias de escola,de professorae decrianças,de ensinoe de aprendizagem. Poderia contarvinteou duzentasou duasmil, poiseste meu baú de memórias de professoras a cada dia se avolumacomnovashistóriasdequemestánas salasde aula dasescolasbrasileirase queapesardetudoresiste aorolocompressordoprojetoneoliberalqueseapresenta como"aúnicaalternativa". Quemconheceescolasabequeo queconteié o que acontecedesdesemprenasescolas...quandoa almanão é pequena. 111 I , 1I1 i;, . 62 63 .tIf
Compartilhar