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GALLO,2000.Transversalidade e ducação pensando uma educação não disciplinar

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o sentido daEscola
--{/ç~ .,-, , r ::::v
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li
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i~I,
1"
I';
:'
1992.
LEVY,Pierre.As tecnologiasda inteligência.Rio deJaneiro:Ed. 34,
1993.
MATURANA,Humberto;VARELA,Francisco.A árvoredoconhecimento.
Campinas:EditorialPSY, 1995.
MARGULIS;SAGAN.Microcosmos- four millionyearsof microbial
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MOLES,AbrahamA. As ciênciasdo impreciso.Rio de Janeiro:
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~
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Transversalidadee educação:
pensandoumaeducação
não-disciplinar*
LEFEBVRE, Henri. Lógicaformal/lógicadialética.Rio deJaneiro:
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VIGOTSKY,L. S. Pensamentoe linguagem.S. Paulo: Martins Fontes,
1991.
Vivemoshoje, nós que nos dedicamosà educação,
qual ÉdiposdiantedaEsfinge.Ou deciframoso enigma
queo monstronoscolocaousomosdevoradospor ele.No
processoeducativo,serdevoradopelaEsfingeépassara
fazerpartedosistemaeducacionalvigente,tornar-semais
uma engrenagemdessamáquinasocial,reproduzindo-a
a todoinstanteemnossosfazerescotidianos.A condição
de não ser mais uma engrenagemé sermoscapazesde
decifrarosenigmasqueacrisenaeducaçãonosapresenta,
cónseguindosuperaressemomentoderupturas.
GAIvLO,s(lv~o. Tra-nsv0rsvvtCcLcutbe"eduC-a-q'êw:
ECiilsavrvc0U:Yn~ culuw..-~ rL-M.,dt'5C-('pft'na.r.In.:
'ALVG5,N llela;/IAR-GIA) R~lnQ Le.t+e.CO(9~'O 5eY\hJo
dA esGOlCt.g~to ck JalWív-o: ppJ(:ft)~ooo.
16
.Este textoé resultadode uma bricolagem.departes de três outros..Dois
apresentadosnoGT deCurrículodaANPEd em1995e 1996:Conhecimento,
Transversalidade e Currículo e Saberes,Transversalidadee Poderes;o
terceiro, um antigo texto sobreinterdiscÍplinaridade(1990),Educaçãoe
Interdisciplinaridade,publicadonon. 17daRevistaImpulso,daEd.Unimep.
.. ProfessordoDepartamentodeFilosofiaeHistóriadaEducaçãodaUNICAMP
e doDepartamentodeFilosofiadaUNIMEP. MembrodoGT deFilosofiada
ANp,Ed,ondeapresentoutrabalhossobrecurrículo.AutordeartigosnoBrasil
e noexterior.
. ~
17 ,,#;
o sentido daEscola
Transversalidade e educação: pensandoumaeducação...
Os enigmasnãosãopoucos;a crisena educaçãoé
multifacetada.Um dosseusaspectosdiz respeitoao
próprioconceitodeeducaçãoeacomoaescolaseorganiza
paramaterializá-Io:a funçãodaescolaemnossosdiasé
instruir,ouseja,transmitirconhecimentos?Ouéeducar,
i isto é, formarintegralmenteumapessoa?
l
Educação e instrução não se excluem, mas se
complementam.Ou melhor,a educaçãoabarcaa própria
instruçãoe a completa;'formandooindivíduointelectual
esocialmente,duasrealidadesnaverdadeindissociáveis.
A instrução é o ato de instrumentalizar o aluno,
fornecendoa eleos aparatosbásicospara quepossase
relacionarsatisfatoriamentecoma sociedadee comseu
mundo.A instruçãotrabalhaaaquisiçãodasferramentas
~ecomunicação:a língua materna,'queelebasicamente
já dominana forma oral, será tambémassimiladana
forma'escrita,estendendoe alargandoos horizontesda
comunicação.Além da língua materna, outras ainda
podemsertrabalhadas,garantindoumaprofundamento
do conhecimentoda própria língua original e abrindo
novasperspectivas.Por outro lado,temosa linguagem
matemática,que é imprescindívelpara a comunicação
científica.Ajuda na articulaçãológica das mensagens
comoum todo e abre caminho para a apreensãodos
conhecimentoscientíficos,o desvendardossegredosdo
mundo. De posse das ferramentas básicas para a
comunicaçãoe o entendimento,a instrução procura
tambémforneceraos alunos os conhecimentosbásicos
sobre o mundo e sobre a sociedade,traduzidos nas
disciplinas física, química, biologia, que integram a
cosmologia,isto é, os conhecimentoshumanossobreo
Universo, e nas disciplinas geografia e história, que
mostramcomoo homemrelaciona-secomseuespaçoe
suamarchasocialatravésdostempos.
Mas a educaçãonãoseresumeàtransmissãodesses
conhecimentos;umapessoadepossedetaisinstrumentos
aindanãoestáaptaarelacionar-secomomundoecoma
sociedadede maneira plena, autêntica e satisfatória:
falta-lhe ainda uma postura diante da realidade,uma
formadeseutilizar dessesaparelhos,umapersonalidade
,definida.Mas comoseensinaumapostura,comoseforma
a personalidade?
Antes detudo,é bomlembrar quea posturanãoé
adquiridaapenasna escola:já na família enasdiversas
instituiçõessociaisa criançavai tomandocontatocom
uma série de realidades que a levam a assumir
determinadasposturas,sendoquecomopassardotempo
elavai filtrandoalgumas,cristalizandooutras,formando
ocaráter,apersonalidade.Mas, enaescola,comosedáo
processo?Seráqueaformaçãodapersonalidadeacontece
por meiodeum aprendizadodireto,análogoàqueleque
ocorrGcomos~onhecimentossobreo mundo?É óbvioque
18 ;,.p
19
o sentido daEscola Transversalidade e educação: pensandouma educação...
il
'~
1
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I1
li
não. Não se adquire postura por meio de discurso.
Exemplificando:nãoécomintermináveisaulasdeética,nas
quaisum professorapresentae repeteospreceitosmorais
dasociedade,queoalunoconseguiráassumir,emsuavida,
posturasmoralmentecorretaspautadasporessespreceitos.
A formação do aluno jamais acontecerá pela
assimilação de discursos, mas sim por um processo
microssocialemqueeleé levadoa assumirposturasde
liberdade,respeito,responsabilidade,ao mesmotempo
em que percebe essas mesmas práticas nos demais
membrosque participamdestemicrocosmocomquese
relacionano cotidiano.Uma aula dequalquerdisciplina
constitui-se,assim,empartedoprocessodeformaçãodo
aluno,nãopelodiscursoqueoprofessorpossafazer,mas
peloposicionamentoqueassumeemseurelacionamento
comosalunos,pelaparticipaçãoquesuscitaneles,pelas
novasposturasqueelessãochamadosa assumir.É claro
queesseprocessonãoficaconfinadoà saladeaula;todas
as relações que o aluno trava no ambiente escolar - com
outros alunos, com funcionários, com o staff
administrativo, enfim, com toda a comunidade- são
passosna construçãodesuapersonalidade.
Para formar integralmenteo aluno não podemos
deixar de lado nenhuma d~ssasfacetas: nem a sua
instrumentalização,pelatransmissãodoscont,eúdos,nem
sua formação social, pelo exercício de posturas e
relacionamentosque sejamexpressãoda liberdade,da
autenticidadeedaresponsabilidade.A esseprocessoglobal
podemos,verdadeiramente,chamarde educação.Deste
ponto de vista, os conteúdosa seremtrabalhadossão
expressãoda instrução, enquantoque as posturasde
trabalhoindividual e coletivosetraduzemno métodode
trabalhopedagógico.A educaçãoé,pois,umàquestãode
método.
Sedesejamosumaeducaçãocomtaiscaracterísticas,
elas precisam estar materializadas nos currículos de
nossasescolas.Infelizmente,nãoé bemisso quevemos
ao analisá-los...
Compartimentalizaçãodossaberes
e currículosescolares
A realidade do ensino contemporâneoé a
compartimentalizaçãodo conhecimento,fenômeno
constituintedeumtodomaior,aespecializaçãodosaber.
Nas sociedadesantigas,a produçãodoconhecimento
fazia-seemrespostaàsnecessidadesdeexplicaçãodeuma
realidademisteriosaqueeraexperimentadanodia-a-dia,
espantandoosnossosancestraiselevando-osaformularquestõesfundamentaisemtornodosentidodavidaedo
universo.As respostasentãoconstruídasestavam
inseridasnaquelecontextosocialeeramnecessariamente
globalizantes:misturavamreligiosidade,engenhosidade
e praticidade.Destemodo,osprimeirosconhecimentos
sobreo mundoconstruídospelohomemnãoestavam
dissóciados,mastodosbrotavamdeumpontocomume
procuravamexplicá-Io;ao surgir a astronomia,a
observaçãosistemáticadosastrosno céu,apareciaa
necessidadedemedirseusmovimentos,metrificá-Ios,
dandomaiorimpulsoà matemáticae à geometria;a
explicaçãodosmovimentosqueocorriamnaTerraeno
Universo levavamà física a maiores avançosna
matemática,eassimsucessivamente.
Como crescenteacúmulodosaber,e'ntretanto,foi
ocorrendoumaespecializaçãocadavezmaisradical:um
físico,por~xemplo,écadavezmenosummatemático,no
20 21
1.::"i
o sentido daEscola Transversalidade e educação: pensandouma educação...
,;i
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sentido de que não mais estuda a matemáticaem si
mesma- comoumNewtoncontemporâneo- masapenas
se utiliza dosprocessosmatemáticosjá existentespara
poderequacionaras questõesteóricascomquetrabalha
na física.E o mesmoocorrecomasdemaisciências,pois
quantomais conhecimentossãoacumuladossobreuma
determinadafacetado saber,mais difícil fica para que
cada indivíduo domine a totalidade do conhecimento
globalsobrea realidade.
Uma ilustração bastante prática desta brutal
especializaçãodosaberpodemosencontrarna medicina.
Antigamente,eramuitocomumafigurado"clínicogeral",
ummédicoqueprocuravaentenderasdoençasdopaciente
comoumprocessosomáticoglobal,envolvendoentãotodo
o organismo e mais as ansiedades e contradições
psicossociais do indivíduo. Com o crescimento dos
conhecimentosmédicosacercado corpohumano,esta
posturamédicafoi cadavezmaisrelegadaaum segundo
plano,enquantoficavacadavezmaisimportanteafigura
do "especialista",um profissionalque conhecea fundo
um dos aspectosou sistemas de nosso corpo. Desta
maneira,hojeécomumqueconsultemosumcardiologista
que se esforçarápara descobrirpossíveisfalhas e/ou
disfunçõesemnossocoraçãoou sistemacirculatório,na
maioriadasvezessemdar-secontadequeestesistema,
tomadoisoladamente,perdetodoseusentido,poiséparte
deum organismomuitomaisabrangente...
É óbvioquea perspectivadaespecializaçãotraz-nos
inúmerosbenefíciose,promoveimensosavançosnoconhe-
cimento,maséprecisoquenãopercamosdevistaaneces-
sidadedecompreendersempreessasespecializaçõescomo
partedeum todocomplexoeinter-relacionado,sobpena
de desvirtuarmoso próprio conhecimentoadquiridoou
construído.
Mas qualarelaçãodetudoissocomaeducação?Acon-
tecequeoprocessoqueocorrecomamedicinaéemblemático,
é análogoàquelequeaconteceuhistoricamentecomo co-
nhecimentohumanosobreo Universo,naaventura.dosa-
berqueAugusteComtedescreveucomoaevoluçãodopen-
samentomitológico,teológicoefilosóficoparaopensamen-
tocientífico.Mesmodiscordandodacegafénapositividade
daciência,éinegáveloprogressodaciênciaedatécnicaao
longodahistóriadahumanidade.À medidaqueaumentaa
quantidadedeconhecimento,fica mais difícil percebera
relaçãoentreasváriasáreaseasváriasperspectivas,pro-
cessoestequeacabaporculminarna abstraçãoquevive-
moshoje:ototalalheamento,a completadissociaçãoentre
osváriosconhecimentos.E todoesseprocessodecorrente
daconstruçãohistóricadosconhecimentoscientíficosrefle-
te-senoscurrículosescolares:elessãoosmapasondeesse
territórioarrasadopelafragmentaçãoficamaisevidente.
Quandoassistea uma aula dehistória,cadaaluno
abrea gavetinhadeseuarquivomentalondeguardaos
conhecimentoshistóricos;ao final da aula, fechaessa
gavetinha e abre aquela referente à matéria a ser
estudadana próximaaula, e assimpor diante...E como
cada uma das "gavetinhas"é estanque,semnenhuma
relJlçãocomasdemais,osalunosnãoconseguemperceber
que todosos conhecimentosvivenciadosna escolasão
perspectivasdiferentesdeumamesmaeúnicarealidade,
parecendocada um deles autônomoe auto-suficiente,
quandona verdadesó podeser compreendidoemsua
totalidadecomopartedeumconjunto,peçaímpardeum
imensopuzzlequepacientementemontamosaolongodos
séculose dosmilênios.
Mas a disciplinarizaçãodoscurrículosescolaresnão
reflete apenas a compartimentalizaçaodos saberes
científicos.Nelaestáembutidatambémaquestãodopoder.cl. <.
23
22
;,I:
:\
o sentido daEscola Transversalidade e educação: pensandouma educação...
11
iI
o sabereopoderpossuemumelomuitoíntimode
ligação:conheceré dominar.E conhecemoso velho
preceitodapolítica:dividirparagovernar.O processo
históricodeconstruçãodas ciênciasmodernasagiu
atravésda divisãodomundoemfragmentoscadavez
menores,deformaapoderconhecê-Iosedominá-Ios.No
desejohumanodeconheceromundoestáembutidoseu
desejosecretodedominaromundo.
Por suavez,a educaçãosempreestevetambém
permeada pelos mecanismos de controle. E a
disciplinarizaçãopossibilita essecontrolesobreo
aprendizado(o quê,quando,quantoe comoo aluno
aprende)e tambémumcontrolesobreopróprioaluno.
A disciplinatambémestárelacionadaaocomportamento,
nãoapenasàaprendizagem.Disciplinaroalunoétambém
fazercomqueelepercebaseulugarsocial.A disposição
cartográficadeumasaladeaula,sejaelaqualfor,é
sempreumadisposiçãoestratégicaparaqueoprofessor
possadominarosalunos,poisnestaconcepçãodeescola
oaprendizadosópodeacontecersobdomínio.Paradizer
deoutraforma,umasaladeaulanuncaé caótica,há
sempreumaordemimplícitaque,sevisapossibilitara
açãopedagógica,traz tambéma marcadoexercíciodo
poder,quedeves~rsofridoeintrojetadopeloaluno.
Valeressaltarqueacompartimentalizaçãodosaber
e o exercíciodo poderna escolasãosustentadose
intensificadospeloaparelhoburocráticoescolardoqual
nós,professores,somosfiéisinstrumentos,comnossos
programas,livros-texto,diáriosdeclasseetc.Destemodo,
querelaçãopodehaverentreumaauladehistóriaeuma
d~geografiaouumadeciências?
o.quedevemosinferirdestabreveanálisedoprocesso
históricodeconstruçãodosaberéquearesponsabilidade
pelodesviodaespecialização,queacabaporseverrefletido
naestruturadenossaeducação,nãopodeserimputadaaos
professoresnem,muitomenos,aosalunos.Resultadodesse
processohistóricodefragmentação,nossoensino- também
, fragmentado-.:. nãofala davida,queé multiplicidade
articulada,masdeumcenárioirreal,ondecadasabertem
o seulugarenãosecomunicacomosdemais..
Os professores podem ter uma participação
extremamenteimportanteno processode rompercom
essa tradição alienante e superar essa contradição
históricaentreo sabere a realidade.
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l
il
:1,
~
Comopodemosfazerisso?Quebrando,na medidade
nossaspossibilidades- semdúvida alguma, sensivelmente
limitadas pela burocracia escolar -, a compartimen-
talizaçãodequeé vítima nossosistemaeducacional.Po-
demostentarfazerdenossoscurrículosnovosmapas,não
maismarcadosporterritóriosfragmentados,mastentan-
doultrapassarfronteiras,vislumbrarnovosterritóriosde
integraçãoentreossaberes.Um doscaminhospossíveisé
o da interdisciplinaridade.
A interdisciplinaridadee seuslimites
f
Desdeos anosde 1980,a questãoda interdisci-
plinaridadetemestadomuitoemmodanosdebatesedu-
cacionais;ecomotodacoisaimportanteque,derepente,
viramodismo,esvazia-sedesentido.Muitagenteusaesse
conceitocomoumtrava-línguas,umapalavradecujosig-
nificadonãofaza menoridéia,masqueé inseridano
discursoparadarumcertoar de"il1telectualidade",de
modernidade.E umaquestãodeextremaimportânciavira
brincadeirad~criança...~.
I
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L
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24 25 .,/r::
o sentido daEscola Transversalidade e educação: pensandouma educação...
Vamos então em busca de seu sentido. A
interdisciplinaridade,deacordocomGuy Palmade,tem
recebido diferentes definições: integração interna e
conceitualquerompea estruturadecadadisciplinapara
construirumaaxiomáticanovaecomuma todaselascom
oobjetivodedarumavisãounitária deum setordosaber
(na visão de Soler);intercâmbiosmútuose integrações
recíprocasentreasváriasciências.Tal cooperaçãoresulta
numenriquecimentorecíproco(naperspectivadePiaget).
Ainda segundoeste autor, a interdisciplinaridade foi
adjetivadadasmaisvariadasformas,porepistemólogose
estudiososdaquestão:interdisciplinaridade auxiliar;
interdisciplinaridadecomplementar;interdisciplinaridade
composta;interdisciplinaridadedeengrenagem;interdisci-
plinaridadeestrutural;interdisciplinaridadeheterogênea;
interdisciplinaridade linear; interdisciplinaridade
restritiva;interdisciplinaridadeunificadora.Todasessas
adjetivaçõesdenotamdiferentesformasdecompreensão
da questãoe detentarpraticarum trânsitoprofícuopor
entreasdiferentesdisciplinas.
Ainda temos alguns outros conceitos:a jJseudo-
interdisciplinaridade;apluridisciplinaridade, queseria
a justaposiçãode disciplinas diversas mais ou menos
"próximas"no campbdo conhecimento.Cooperaçãode
, carátermetodológicoe instrumentalentre elas,não de
umaintegraçãoconceituale interna.
Mas os epistemólogos,aindanão satisfeitoscomos
efeitosda interdisciplinaridade,criaram a transdisci-
plinaridade: integraçãoglobaldevárias ciências.Supe-
rior à interdisciplinaridade,quenão apenascobririaas
inve'stigações ou reciprocidades entre projetos
especializadosdeinvestigação,mastambémsituariatais
relaçõesnumsistematotalquenãoteriafronteirassólidas
entreas disciplinas.Parte-sedofatodequea naturezaé
~
únicaetenta-sechegaraconhecê-Iacomoé,prescindin-
dodasdivisõesarbitrariamenteimpostaspelohomemà
ciência(Soler).Esta,porsuavez,tambémrecebeualgu-
masadjetivações,comotransdisciplinaridadeampliada
etransdisciplinaridadelocal.
Mas, apesarde todaessaprofusãoconceitual,o
sentido geral da interdisciplinaridade parece-me
transparente:éaconsciênciadanecessidadedeuminter-
relacionamentoexplícitoe diretoentreas disciplinas
todas.Em outraspalavras,a interdisciplinaridadeé a
tentativade superaçãodeum processohistóricode
abstraçãodoconhecimentoqueculminacoma total
desarticulaçãodosaberquenossosestudantes(etambém
nós,professores)têmodesprazerdeexperimentar.
Mas as propostasinterdisciplinaresnãosurgiram
porummeroacaso.Aconteceque,desdemeadosdoséculo
XX, o movimentohistórico de especializaçãoe
compartimentalizaçãonaproduçãodossaberes,doqual
já falamos,derepentejá nãodácontaderespondera
certasquestõesquearealidadenosmostra.Começaram
asurgirproblemasqueasciênciasmodernas,estanques
em suas identidadesabsolutas,não sãocapazesde
resolver- e, àsvezes,nemmesmodeabordar.
Um bom exemploencontramosnos problemas
ecológicos:elesnãopodemserabarcadosapenaspela
biologia,ou apenaspela geografia,ou apenaspela
química,ouapenaspelapolíticaetc.A ecologiaconstitui-
senumnovoterritóriodesaber,marcadopelainterseção
devárioscamposdesaberes,comoestesjá citados,além
de muitos outros. Podemoschamaros problemas
ecológicosdeproblemashíbridos.
Será quepodemoschamara ecologiadeciência?
Particularment~,prefiroquenão;pensoqueganhamhoje.
c.'~;
26 27
o sentido daEscola Transversalidade e educa~ão: pensandoumaeducação...
asáreasquenãosãoimediatamenteidentificadascomo
"científicas",poisisso dá a elasumaaberturamuito
maior,paraquepossamvaler-sedeoutrasabordagens
aoscamposdesaberes,deformanãocompartimentada.
Assimcomoaecologia,aeducaçãoéumadessasáreas,e
emlugardeesforçarmo-nosparafazerdelaumaciência,
deveríamosaceitaro fatodequeelaé muitomaisum
espaçodeinterseçãodesaberesmúltiplos...Mas issoé
assuntoparaoutromomento.
As propostasinterdisciplinares- comtodasas suas
adjetivaçõesemesmoosoutrosconceitospróximosaela,
de multidisciplinaridadee transdisciplinaridade-
surgiramexatamenteparapossibilitaresselivretrânsito
pelossaberes,rompendocomsuasfronteirasebuscando
respostasparaassuntoscomplexoscomoosecológicose
os educacionais,por exemplo.Devemos,portanto,
perguntar:a interdisciplinaridadedácontaderomper
comasbarreirasentreasdisciplinas?
Temoquenão;emboraelapossasignificarumgrande
avançoemrelaçãoàdisciplinarizaçãopuraesimples,não
é,porém,umrompimentodefinitivocomasdisciplinas.
A afirmaçãodainterdisciplinaridadeéa afirmação,em
última instância,da disciplinarização:sópoder.emos
desenvolverumtrabalhointerdisciplinarsefizermosuso
das várias disciplinas. E, se a fragmentaçãoe
compartimentalizaçãodossaberesjá nãodãocontade
respondera váriosproblemasconcretoscomquenos
defrontamosemnossocotidiano,precisamosbuscarum
sabernão-disciplinar,quea interdisciplinaridadenão
seria capazdenos fornecer.Para pensarproblemas
híbridos,necessitamosdesabereshíbridos,paraalémdos
saberesdisciplinares.
O mesmosedáquandolevamosa questãoparaos
currículosescolares.A interdisciplinaridadecontribui
paraminimizarosefeitosperniciososdacompartimen-
talização,masnãosignificaria,deformaalguma,oavanço
. para um currículonão-disciplinar.
Pensandoa possibilidadede uma
educaçãonão-disciplinar
Sedesejamospensardefatoa possibilidadedeuma
educaçãonão-disciplinar, é necessário que tentemos
visualizar o conhecimentoe seuprocessodeconstrução
deoutramaneira.Tradicionalmente,usamosa metáfora
daárvoreparacompreendero campodosváriossaberes.
O troncoda "árvoredo saber"seria a própria Filosofia,
queoriginariamentereunia emseuseioa totalidadedo
conhecimento;comocrescimentoprogressivoda"árvore",
adubadaintensamentepelacuriosidadee sededesaber
própriadoserhumano,elacomeçaadesenvolverosgalhos
das mais diversas "especializações" que, embora
mantenham suas estreitas ligações com o tronco -
nutrem-se de sua seiva e a ele devolvema energia
conseguida pela fotossíntese das folhas em suas
extremidades,num processode mútua alimentação/
fecundação- apontampara as mais diversasdireções,
não guardandoentresi outrasligaçõesquenãosejamo
troncocomum,que não sejaa ligaçãohistóricade sua
genealogia.Para sermaispreciso,asciênciasrelacionam-
setodascomseu"troncocomum"- pelomenosnoaspecto
formal e potencialmente-, emboranão consigam,no
contextodesteparadigma,relacionarem-seentresi.
O paradigmaarbóreoimplicaumahierarquizaçãodo
saber, comoforma de mediatizar e regular o fluxo de~:.
I1I
1\
28 29
.'Y'
o sentido da Escola
i' informações pelos caminhos internos da árvore do
conhecimento.A frondosa árvore que representa os
saberesapresenta-osdeformadisciplinar:fragmentados
(os galhos)e hierarquizados(osgalhosramificam-see
não se comunicamentre si, a não sei quepassempelo
tronco).
Mas será,defato,queopensamentoeoconhecimento
seguema estrutura propostapor esteparadigma?Não
serátal paradigmaum modelocompostoposteriormente
e sobrepostoaoconhecimentojá produzido,comoforma ~
deabarcá-Io,classificá-loe,assim,facilitaroacessoa ele
e seudomínio,passandomesmoa determinara estrutu-
ra de novosconhecimentosa seremcriados?Se assim
for,nãoseriarazoávelconjeturarqueopensamentopro-
ceda- ou possa proceder- de outra maneira, menos
hierarquizadae maiscaótica?
Para pensaranovadimensãoquenoséimpostapelos
problemashíbridos,comoosecológicoseoseducacionais,
precisamosde outra metáfora,pois a árvorejá não dá
conta. Os filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix
Guattari apresentaramumaalternativainteressante,ao
falarem no rizoma. A metáforado rizoma subvertea
ordemda metáforaarbórea,tomandocomoparadigma
aquele tipo de ca.uleradiciforme de alguns vegetais,
formado por uma miríade de pequenas raízes
emaranhadasemmeioapequenosbulbosarmazenatícios,
colocandoemquestãoarelaçãointrínsecaentreasvárias
áreas do saber, representadascada uma delas pelas
inúmeraslinhasfibrosasdeumrizoma,queseentrelaçam
eseengalfinhamformandoumconjuntocomplexonoqual
oselementosremetemnecessariamenteunsaosoutrose
mésmopara foradopróprioconjunto.
O paradigmarizomáticoéregidopor seisprincípios
básicos:
30
Transversalidade e educação: pensando uma educação...
r
a) PRINCÍPIODECONEXÃO- Qualquerpontodeumrizoma
pode ser/estar conectadoa qualquer outro; no
paradigma arbóreo, as relações entre pontos
precisamsersempremediatizadasobedecendoauma
determinada hierarquia e seguindo uma ordem
intrínseca.
b) PRINCÍPIODEHETEROGENEIDADE- Dadoquequalquer
conexão é possível, o rizoma rege-se pela
heterogeneidade; enquanto- que na árvore a
hierarquiadasrelaçõeslevaa umahomogeneização
dasmesmas,no rizomaissonãoacontece.
c) PRINCÍPIODEMULTIPLICIDADE-O rizomaé sempre
multiplicidadequenãopodeserreduzidaà unidade;
umaárvoreéumamultiplicidadedeelementosquepode
ser"reduzida"aosercompletoeúnicoárvore.Omesmo
nãoacontececomorizoma,quenãopossuiumaunidade
quesirvadepivôparaumaobjetivação/subjetivação:o
rizomanãoésujeitonemobjeto,masmúltiplo.
d) PRINCÍPIO DE RUPTURAA-SIGNIFICANTE- O rizomanão
pressupõe qualquer processode significação, de
hierarquização.Emborasejaestratificadoporlinhas,
sendo,assim,territorializado,organizadoetc.,está
sempresujeitoàs linhas defuga queapontampara
novas e insuspeitasdireções.Embora constitua-se
nummapa,comoveremosaseguir,orizomaésempre
um rascunho, um devir, uma cartografia a ser
traçadasempree novamente,a cadainstante.
e) PRINCÍPIODE CARTOGRAFIA- O rizomapodeser
mapeado,cartografadoe tal cartografianosmostra
que elepossuientradasmúltiplas; isto é, o rizoma
pode ser acessadode infinitos pontose pode daí
remetera quaisqueroutrosemseuterritório.
f) PRINCÍPIODEDECALCOMANIA- Osmapaspodem,no
en~nto,ser:copiados,reproduzidos;colocarumacópia
31 .,(;'
o sentido daEscola Transversalidade e educação: pensandouma educação...
I1
sobre o mapa nem sempre garante, porém,uma
sobreposiçãoperfeita.O inversoéanovidade:colocaro
mapasobreas cópias,os rizomassobreas árvores,
possibilitandoosurgimentodenovosterritórios,novas
multiplicidades.
Destamaneira,a adoçãodeum novoparadigmado
sabersignifica,ao mesmotempo,outraspossibilidades
de abordagemdo próprio conhecimento.O paradigma
rizomáticorompe,assim,coma hierarquização- tanto
noaspectodopodere daimportância,quantonoaspecto
das prioridades na circulação - que é própria do
paradigmaarbóreo.No rizoma sãomúltiplas as linhas
de fuga e portanto múltiplas as possibilidades de
conexões,aproximações,cortes,percepçõesetc.Aoromper
comessahierarquiaestanque,orizomapede,porém,uma
novaformadetrânsitopossívelporentreseusinúmeros
campos de saberes; podemos encontrá-Ia na
transversalidade.
Félix Guattari desenvolveu a noção de
transversalidadeparatratardasrelaçõesentrepacientes
e terapeutas,substituindo a relação de transferência
proposta por Freud. A transferência é hierárquica e
unitária, pois ocorre apenas entre o terapeuta e seu
paciente, de forina individualizada. Preocupado em
desenvolverumaterapêuticacoletivaenão-hierárquica,
Guattari propôs a transversalidade, comoforma de
atravessaras relaçõesentreas pessoas.Mais tardeeste
conceitofoi estendidopara o conhecimento,e alguns
começaram a falar em saberes transversais, que
atravessamdiferentes camposd.econhecimento,sem
identificar-senecessariamentecomapenasum deles.
Podemos,assim,tomara noção4etransversalidade
e aplicá-Iaaoparadigmarizomáticodosaber:elaseriaa
matriz da mobilidadepor entre os liames do rizoma,
abandonandoos verticalismos e horizontalismosque
vemosno paradigmada árvore,substituindo-osporum
fluxo que podetomar qualquer direção,semnenhuma
hierarquiadefinidadeantemão.
As propostasdeumainterdisciplinaridadepostashoje
sobrea mesaapontam,no contextode uma perspectiva
arbórea,para integraçõeshorizontaise verticaisentreas
várias ciências;mima perspectivarizomática,podemos
apontarparaumatransversalidadeentreasváriasáreas
dosaber,integrando-as,senãoemsuatotalidade,pelomenos
deformamuitomaisabrangente,possibilitandoconexões
inimagináveispormeiodoparadigmaanterior.Assumira
transversalidadeé transitarpeloterritóriodosabercomo
assinapsesviajampelosneurôniosemnossocérebro,uma
viagemaparentementecaóticaqueconstróiseu(s)sentido(s)
à medidaquedesenvolvemossuaequaçãofractal.
Nestaperspectiva,podemosafirmarquea proposta
interdisciplinar,emtodosos seusmatizes,apontapara
uma tentativa de globalização, esse cânone do
neoliberalismo,queremeteaoUno, aoMesmo,tentando
costuraro incosturávelde uma fragmentaçãohistórica
dossaberes.A transversalidaderizomática,porsuavez,
aponta para o reconhecimento da pulverização, da
multiplicização,paraorespeitoàsdiferenças,construindo
possíveistrânsitospelamultiplicidadedossaberes,sem
procurarintegrá-Iosartificialmente,masestabelecendo
policompreensõesinfinitas.
Para a educação,as implicações são profundas.
A aplicaçãodo paradigma rizomáticona organização
curriculardaescolasignificariauma:r.evoluçãonoprocesso
educacional,pois substituiria um acessoarquivístico
estanqueao cQp.hecimentoquepoderia,no máximo,ser. '.
III
1I
€
32 33
o sentido daEscola
Transversalidade e educação: pensandoumaeducação...
I
I
Ii
'It
intensificadoatravésdostrânsitosverticaisehorizontais
deuma açãointerdisciplinarquefossecapazdevencer
todasasresistências,massemconseguirvencer,defato,
a compartimentalização,por um acessotransversalque
elevariaaoinfinitoaspossibilidadesdetrânsitoporentre
os saberes.O acessotransversal significaria o fim da
compartimentalização,pois as gavetasseriam abertas;
reconhecendo a multiplicidade das áreas do
conhecimento,trata-se de possibilitar todoe qualquer
trânsitopor entreelas.
O máximopossívelpara a educação,nocontextodo
paradigmaarbóreo,seriaarealizaçãodeumaglobalização
aparente - e falsa! - dos conteúdoscurriculares. No
contextorizomático,deixandodeladoessailusãodoTodo,
a educaçãopoderiapossibilitara cadaalunoum acesso
diferenciadoàsáreasdosaberdeseuparticularinteresse.
Issosignificaria,claro,odesaparecimentodaescolacomo
conhecemos, pois romper-se-ia com todas as
hierarquizaçõese disciplinarizações,tanto no aspecto
epistemológicoquantono político.Mas possibilitariaa
realização de um processo educacional muito mais
condizentecomas exigênciasdacontemporaneidade.
O rompimentpdasb,arreirasdisciplinaresnocampo
epistemológicoenocampopedagógicosignifica,comonão
poderiadeixar de ser, um rompimentoeminentemente
político,poisaltera sensivelmenteo equilíbriodeforças
queconstituiasteiasdepoder.Hoje,podemosdizerque
as grandesquestõespolíticas devemser resolvidasno
campodofluxodeinformações.
. O acessoao fluxo informacional é atualmente a
principal.táticapolítica.Estruturam-secomohorizontes
de possibilidades tanto um totalitari::;motão intenso
quanto jamais sonhado,mesmoem 1984 de Orwell,
quanto uma democracia direta também até agora
inimaginável.A chaveparaambose o quedefiniráume
outro é justamentecomose dará o acessoao fluxo de
informações.Centralizartal acessoseráfornecerasbases
para o totalitarismo;descentralizá-Ioao limite será,ao
contrário, a senha para o acesso a um mundo
democratizado.Qual das duas utopiasse realizarávai
depender,evidentemente,de comoagiremosenquanto
humanidade.
Se assumimostais perspectivas,a próprianoçãode
escola muda radicalmente, para não ficarmos
estritamentecoma noçãodecurrículo.Qualquerespaço
social podeser o lugar do aprendizado,do acessoaos
saberesedesuacirculaçãoepartilha,inclusiveopróprio
espaçodotrabalho.
**.*
Diantedetalpanorama,simplesrevisõescurriculares
nas escolas, mesmo as mais radicais e ainda que
implementadorasdeperspectivasinterdisciplinares,não
darãocontade produzire fazercircular os saberesnão-
disciplinarese ascompetênciassolicitadaspelacaóticae
híbrida realidadecontemporânea.Ela exigedenós que
nosdebrucemossobreasquestõesdaeducação,commuito
maisempenhoe esforçodepensamentocriativo.
Rompercoma disciplinarização,tarefapossívelpela
adoçãodeoutroparadigmadesaber,comoo rizomático
queproponhoaqui,significatambémredesenharomapa
estratégicodopodernocampoda(s)ciência(s)enocampo
da educação,colocandoas relaçõesnoutra dimensão.
A transversalidade do conhecimentoimplica possibi-
lidades de escolase de currículosem muito dÍferentes
daquelasquehojeconhecemos,novosespaçosdeconstrução
. \~
34 35 ..'
o sentido da Escola Transversalidade e educa~ão: pensando umaeducação...
e circulaçãode saberesquandoa hierarquizaçãojá não
seráa estruturabásica,esituaçõesatéentãoinsuspeitas
poderãoemergir.
É por isso que peço ao leitor a atenção de não
confundira propostadetransversalidadequeapresento
aqui com aquela que o MEC vem desenvolvendonos
Parâmetros Curriculares Nacionaispara o Ensino
Fundamentale Médio.A propostadoMEC representa,
talvez,um certoavançoemrelaçãoà disciplinarização,
mas de forma algum'aum passopara sua superação.
Propõe a organizaçãodo currículo em ciclose não em
sériese,para o primeiroe segundociclos,a organização
emáreasenãoemdisciplinas;masjá nosciclosseguintes
processa-sea disciplinarização.A maior novidadeestá
naquiloquedenominamdetemastransversais:assuntos
de interesse social (como ética, meio ambiente,
sexualidade dentre outros) que devem permear,
"atravessar"o conteúdodetodasas disciplinas.
Mas a novidadedostemastransversaisnão passa
de uma tentativa de colocar em prática a idéia de
interdisciplinaridade,já queas disciplinas- ou áreas-
são mantidas como estruturação básica do plano
curriculardaescol~.Pensoqueestapropostanãodáconta
de desvendaro enigmaquea Esfinge da educaçãonos
apresenta;a suaadoçãosignificará,quandomuito,uma
novaforma,talvezmaissimpática,desermosengolidos
pelomonstro.Pensoquepararesolveroenigmadevemos
sermaisousados,ebuscarsoluçõesmaiscomplexas,mas
tambémmaiscriativasequepermitamodesenhodeum
novofuturo.
controleseexerçadeformamaisdiluídaetambémmais
intensa,dando-nosapenasumailusãodeautonomia,ou
então de uma educaçãoe uma sociedadeem que a
autonomiasejaum fato,numarealidademais solidária
e maisdemocrática.
Nem o objetivodefornecer"receitas"decomodeve-
se ou pode-setrabalhar de forma interdisciplinar ou
transversal,nemmuitomenosdesenvolverumaanálise
de"especialista"sobreoassuntosãoobjetivosdestetexto;
antes apenaso de convidaros colegasà reflexãoe ao
debate, rompendoacima de tudo as nossas próprias
amarras,aquelasquenosancoramnosportossegurosde
nossas especialidades, alheios aos monstros e às
tormentas que povoamos mares desconhecidosdas
demaisáreasdeconhecimento.
De nossacriatividadee denossaaçãopolíticae
capacid~dedeinfluênciadependeráo delineament'ode
um processoeducativoe deumasociedadeemqueo
Semdúvidaalguma,ébastantedifícilparaqualquer
professor trabalhar na perspectiva de uma
transversalidade,dadoquefomos,nóspróprios,formados
de maneiracompartimentalizadae de certomodo
"treinados"paratrabalhardessaforma,reproduzindonos
alunosasestruturasdos"arquivosmentaisestanques".
Entretanto,comovimos,esseensinocompartimentalizado
'levaa umaabstraçãodoreal,poiso mundoformaum
todocomplexoemultifacetado,umapluralidadedeinter-
relaCionamentos.Devemoslembrarqueoaluno,na"sutil
inocência"de sua virgindadeacadêmicaapreendeo
mundocomoessapluralidade,compreendendo-aounão;
fica,assim,bastantecomplicadoparaelasassimilaras
compartimentalizaçõesquelhe oferecemosna escola.
Umadasprimeirasbarreirasnaeducaçãodascrianças-
ecertamenteumadasmaisdifíceisd~sertransposta- é
essapercepçãointuitivaemuitasvezesinconscienteda
multiplicidadedoreal,queelasprecisamabstrairpara~.
'"
36 37
o sentido da Escola Transversalidade e educação: pensandouma educação...
assimilar a compartimentalizaçãode saberesquelhe é
impostapor nós,professores.
Se, no lugar de partirmos de racionalizações
abstratasdeum saberpreviamenteproduzido,começar-
mos O processoeducacionalna realidadeque o aluno
vivenciaemseucotidiano,poderemoschegara umaedu-
caçãomuitomaisintegrada,semdissociaçõesabstratas;
àpartea novafilosofiadeeducaçãoqueimplicaessapos-
tura e mesmoa nova visão de mundoque ela suscita,
tambémexperimentaríamos,comessaposturapedagó-
gica,uma sensívelmelhoriano aproveitamentoerendi-
mentodosalunos,poisaquelabarreiraintuitivanãomais
precisariaserultrapassada.
Sei queestamos,nós professores,emlarga medida
compése mãosatadospelahurocraciaescolar.O quepo-
demosfazerépouco,masapequenaaçãotransformadora
no espaçoemquesomosautônomospodeter umareper-
cussãoe um resultadomaiordo queo queimaginamos;
semdúvida,nomínimoconseguiremosmaisdoqueinsis-
tindonapálidaapatiaconformistaquenosreduza meros
"reprodutoresdamesmice".
enquantooutrascompõema cosmologiacontemporânea
e outras ainda procuram explicitar a vivência e a
apreensãohistórica doespaçohumano. O mínimoque
podemosesperaréqueoalunoconsigacompreenderessas
inter-relaçõesbásicasentreas disciplinasqueestudae,
num segundoestágio,possa perceberas relaçõesda
apreensãodoespaçohistóricocoma cosmologia,eassim
por diante.
Não podemos,porém,perderdenossohorizonteque
a utopiaquenosguiaé algobemmaior:a construçãode
uma concepçãodesaberquevislumbrea multiplicidade
sema fragmentação;um currículoe umaescolana qual
as crianças possamaprender sobre o mundo em que
vivem,ummundomúltiploecheiodesurpresas,epossam
dominar as diferentesferramentasque permitamseu
acessoaos saberespossibilitados por es~.emundo, e
possamaprendera relacionar-secomos outrose como
mundoemliberdade.
Somentequandolograrmosalcançaressadimensão
teremosdefatodesvendadooenigmacomquea Esfinge-
Educaçãonosaterroriza.
Paraascondiçõesatuaisdenossaeducação,pensoque
aspostur~sdesejáveisseriamaquelasqueprocurassem
minimizarasaparênciasdacompartimentalização,dado
quenãopodemosvencê-Iadeimediato,entranhadaque
estáemnossoscurrículos.Cadaprofessorpoderia,para
começar,tentarmostrarqueosconteúdosqueensinaem
suasaulasnãoestãoisolados,masserelacionamde
algummodocomtudoo maisqueo alunoaprendena
escola.Seria de grandeimportânciaqueos alunos
percebe?semaquiloqueeujá apresentavanoinício;que
determinadasdisciplinassãoferrament~sinstrumentais
que auxiliam na compreensãodos conhecimentos,
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.,..
40 41
GA/l.,~lAJ~1'hCL kd-e.120ba1i ~ rnernÓnQ:
~i5+VviQ,5de froFes~íQ. !n.; ALV~slrJifcG:j
GAWAJ f<9i'YtCtLeite(or9s.).Osenhclv d.~
0scofOv.'RI'OeLe Janeiv-o J J>P&A,:2x;oo.
Do bàú da'memória:
históriasde professora
Regina Leite García>I-
Tersidoprofessoraprimária,portantosanos,tantosque
já mefazemserreconhecidapormaisdeumageraçãode
professoraseprofessoresenaverdadenuncatersaídoda
escola,poisquea elavoiteisempre,mesmodepoisde
aposentada,agoravoltandonacondiçãodepesquisadora,me
fazterumbaúq.ememórias,ondeestãoguardadastantas
histórias,algumasvividaspormim,outrascontadaspor
tantasprofessorasquefuiconhecendo.Fuiassimmetornando
umacontadoradehistóriasdeescolas,deprofessoras,de
alunosealunas,históriasenfimsobreeducação.
Há poucotempoli umanotasobrea ColeçãoGrió,2
quemeajudoua entenderopapelquealgumasdenós
temosdesempenhadoemnossalutaemdefesadaescola
pública,tãodesrespeitadaemnossopaísetãoimportante
nalutamaiorpelademocratizaçãodasociedade.Fez-me
atécompreendermelhorporqueresolvemosorganizar
.Professoratitular emAlfabetizaçãoda Faculdadede Educaçãoda UFF -
UniversidadeFederalFluminense.MembrodoGT deCurrículodaANPEd.
AutoradeartigospublicadosnoBrasilenoexterior.
2 Coleçãojublicadap~laEditoraMazza.
II
11\
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43
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f
l .
o sentido daEscola Do baú da memória: histórias de professora
estacoleçãodelivrosemquepretendemosdenunciaro
processo de destruição da escola pública e de
desmoralizaçãodaprofessoraeanunciaraltoembomsom
queaescolapúblicanãoestámortaequeasprofessoras
nãodesistiramdelutarpelasobrevivênciadela.Nãonos
conformávamoscoma explicaçãodadapor tantas
autoridadeseducacionaisounão,paraofracassoescolar,
ao localizá-Iona má formaçãodo professor.Quero
contraporaessaavaliação,umaoutrahistória,quefala
deoutrolugaredeondefalamaquelasquenãoconcordam
comtal significaçãoquantoao problemadofracasso
escolar.
É destahistóriaquesetratanestetexto,trazendo
falasquevêmdedentrodaescola,falasdequemestá
concentrada/empenhadaemestabelecernasaladeaula
um espaçorico de aprendizagenssignificativaspara
. alunose alunase usa todasas suasenergiasparacriar
alternativaspedagógicasquepossamfavoreceressas
aprendizagens.Sãofalasdequemvivecorrendodeuma
primeiraescolanapartedamanhã,paraumasegundaescola
napartedatardeequemuitasvezesaindasaicorrendopara
umaescolanoturna,para,nofinaldomês,poderpagartodas
ascontase...conseguirsobrevivermaisummês...uff,vitória!...
Comestavida,emqueotempoéinimigo,poiscorremaisdo
queoindispensávelpara,alémdatriplajornadadetrabalho,
poderdarcontadacasa,dosfilhos,edesermulher,impossível
seriaencontrartempoparafalar,parasedefenderde
acusaçõestãoinjustas,difícilencontrartempoparase
organizarcoletivamente,paraqueasuavozisoladapudesse
ganharforça,produzirecoe serouvidanoespaçosocial
maisamplosomando-seaoutrasvozesatéchegaraosque
estãonopoderparaque,lá chegandofortee vigorosa,
obrigasseápensarnalutaheróicadasprofessQrasqueficaram
naescola,apesardetudoetodos,e seficaram,éporque
acreditamqueháalgodemuitoimportanteaserfeitoaí
equesóelaspodemfazer,coisaquenenhumcomputador,
televisãooukitpedagógicopodefazeremseulugar.
Seasprofessorasvivemnessacorridacontraotempo,
semlhessobrartempoparaescreversobresuashistórias,
resolviassumiro papeldogriôe,pedindo-Iheslicença,
metornarescreventedehistóriasquefalamdesuas
históriasquenãoescrevem,poiso tempodelasépouco
paranãomaisquesobreviver.
Comoos griôs,tenhotransmitidooralmente,em
minhasandançaspeloBrasil,eagoratambémporescrito,
nestelivro,eemtantosoutrosquejáescrevi,ashistórias
dasprofessorasquenãodesistemdelutarpelaqualidade
da escolapública,contribuindoparaa preservaçãoda
memóriadacategoriamagistério.
E aomesmotempo,vourecolhendohistóriasdepro-
fessorasporestepaísafora,levandodelugarparalugar
as históriasquemecontam.Essashistóriasnarradas
pelasprofessorasvãoconstituindoumamemóriacoletiva
que, espero,possa contribuir p~rarecuperarum
autoconceitopositivoeumsentimentodepotênciacria-
dora,queumdiaasprofessorastiveram,já quehojese
ássisteaumaaçãoorquestradadedesmoralizaçãoapar-
tir dafalsaidéiadequeaescolarisonhaefrancamorreu
equeagoraéprecisoeficiênciaqueacompanhea lógica
domercado.
Partedestatarefadivulgadoraeorganizativa,trata-
sedestetexto,emquemevalhodaescritaparaampliar
aspossibilidadesdeminhafunçãogriô.Minhaintenção
é quE(fí<iUeclaroserapráticaum loeusdeproduçãode
conh~im_entosquemuitasvezesantecipaoqueateoria
maistardeafirmaseraverdadecientífica.
. t}
44 45
.,.t
o sentido da Escola
Do baú da memória: histórias de professora
Tiremosentãodobaúdememóriasalgumashistórias
escolhidasa esmo,poistantashá quebastaabrir o baú
queelaspulamprocurandoespaçopara falar.
abrir novoscaminhoslevandoa pontosdiversos,ouseja,
aoaparecimentoe reconhecimentodadiferença.
Antes dorelatodeLúcia, é precisoqueeu digaque
elanãofaznuncaplanejamentofechado.Ela traz a cada
dia algumas idéias, que nem sempre se mostram
oportunas,poisoqueindicaa pertinênciadoplanejadoé
a reaçãodosalunose alunasdaturma.Quandoaturma
sinaliza queaquilo que Lúcia trouxeracomoassuntoa
ser tratadono dia, nãoé o queresponderiaaointeresse
dascrianças,elarapidamentemuda,eguardaparaoutro
dia, poisprocuraestarsempresintonizadacoma turma
(Barbier, sociólogofrancês, chamaria a isso escuta
sensível; meu grupo de pesquisa, todas educadoras
brasileiras,ampliaesteconceitoeafirmaa "sensibilidade
dossentidos",uma formadeapreensãodoreal quenão
se limita à simplesapreensãointelectual).O queLúcia
nãodeixadefazeréregistrartudoo queacontecea cada
diaemsuasaladeaula.Segundoela,esteéoseutesouro
eseutermômetro.É poresseregistrodeclassequeLúcia
sepautaparacontrolaro quefaz,yomofazeporquefaz.
Mais do quequalquercontrole'externo,é à própria
professoraquecabecontrolaro desenvolvimentodeseu
trabalho.Mais doquequalquerprovaunificada,éporali
que Lúcia se pauta para ir avaliando as crianças e
redirecionandoa sua prática pedagógica,poispor tudo
que observo em seu cotidiano de professora
comprometida,ela sabequeo sentidoverdadeiramente
educativo da avaliação é a possibilidade de ser
replanejada a ação pedagógica e não de controlar,
classificar, rotular, discriminar e excluir os alunos e
alu~Na sala de aula de Lúcia, Eros é bem-vindoe
ab~ alaspara a expressãodamultiplicidade.
VamosportantoaoregistrodeLúcia que,apartir de
um.temaini'êial-umjogodoBrasilnaCopadoMundo-
Primeirahistória- Copado mundopodeser
umainteligenteoportunidadede
trabalhartransversalmente
Lúcia, professorana BaixadaFluminensenoRio de
Janeiro, chegaà escolano dia seguintedojogoBrasil x
Marrocos e transforma a sala de aula numa "zorra",
segundo a servente, "bagunça", segundo algumas
professoras, "caos", segundo a diretora. O que foi
acontecendo durante aquele dia e nos dias que se
seguiramobrigoua servente,asprofessorase a diretora
a repensaremo queafinal ézorra,bagunçae caosnuma
saladeaulae,até,semteremlidoPrigogine,aprenderem
na prática quedo caospodesurgir uma novaformade
organizaçãomais criativa e livre - um novoespaçode
liberdade - em que cada aluno e aluna podiam se
aventurarpor diferentesáreasdoconhecimentoa partir
deseuprópriointeressee assimfazendochegara novas
sínteses.A surpreendentemultiplicidadedesaberesque
decorreudoprocessoque abria espaçopara saberesjá
conhecidospor alguns e criava possibilidadespara a
emergênciadesaberesnovospara todos,evidenciavaa
riqueza da diferença,em que as fronteiras da divisão
disciplinareramrompidase a disciplinaautoritáriaera
substituída pela alegria espontâneado descobrire do
conhecer. Da homogeneidade forçada da escola
tradicional, em que todos caminham pelos mesmos
caminhosjá antescaminhadose que levamao mesmo
ponto,ou seja, à repetição;a heterogeneidade,de fato
comuma todosos grupos,ao ser respeitada,possibilita
46 47 ",
"
o sentido da Escola
Do baú da memória: histórias de professora
transformoua saladeaula num "caos"(naavaliaçãode
quemsóconseguevercomosolhosdojá visto,ouseja,da
mesmice)e, a partir do caosinicial, criou um clima de
participação,curiosidade,interesse,prazer, aprendiza-
gens,o quemobilizouosdesejosdaprópriaprofessorae
deseusalunosealunasa seengajaremnumricoproces-
sodeinvestigação,descobertas,aprendizagens.Vejamos,
acompanhandooregistro,o queaconteceu,comoaconte-
ceu e quais os "conteúdosprogramáticos"tratadosdu-
rante os dias que se seguiramao dia dojogo Brasil x
Marrocos.
Dia17dejunhode1998.
Hoje,quandoentreinasalaencontreias crianças
alvoraçadas.Sentiquenãodavaparadaro itemdo
programaquetinhaplanejado.Pretendiahojeensinar
tantacoisaimportanteparaatalprovaconjuntadaescola
equeseeunãodesseoprogramaascriançasseferrariam.
Mascomoeupossoensinaro quedizemqueépreciso
queascriançasaprendamseelassóqueremfalarno
jogoBrasilxMarrocos?Eusempredesconfioquenãoé
possívelquetodasascriançasdevamaprenderasmesmas
coisasnamesmahora.Eunãoseicomoéquesepode
serconstrutivistaeensinarasmesmascoisasnamesma
horaparapessoasdiferentes.Oueunãoentendioqueé
essenegóciodeconstrutivismo,queemtodasasreuniões
nosdizemqueéo moderno,ouoqueasupervisoradiz
quenóstemosquecumprir- osParâmetrosCurriculares
Nacionais(PCNs)-,nãotêmnadaa ver.Eudesconfio
quenemelassabem.Deixapralá,porqueoqueinteressa
équeasminhascriançasaprendamalereescreverbem
.eaprendamapensar,queénissoqueeuacredito.
Bem,'quandoeuvi quenãoiaconseg~irseguiro que
tinhaplanejado,penseirápidoque"seMaoménãovai
àmontanha,amontanhavaiaMaomé".Emvezdetentar
impordisciplina,deixeirolaraconversa.Aíelesetambém
elascomeçaramacomentaro jogo,afazerperguntase
eucompreendiquepodiatransformaraquelafa/açãoem
aula.Ficaaté difícil anotartudo queas crianças
aprenderame tudoqueeu entendiqueelaspodiam
continuaraaprender.
Seguindoafaladascrianças,eufuipuxandoconversae
ensinandoummontede coisas.O melhoré queas
criançasiamdescobrindocoisase ensinandoumasàs
outras.
EstudamosondeficaoBrasileondeficaoMarrocos.Ainda
bemquenaminhaescolatemummapadomundoque
eumandeibuscarnasaladadiretora.Fuimostrandono
mapaondeficao Brasil,(ascriançasacharamo Brasil
imensoeocompararamcomosoutrospaísesdaAmérica),
aAméricaLatina("porquesechamaAméricaLatina?"),
ospaísesdaAméricaLatinaqueestãojogandonaCopa.
Jáqueeuestavacomomapanafrente,mostreiaAmérica
doSuleaAméricadoNorteealgunsmeninosdisseram
queotimedosEstadosUnidosédepernadepaueque
nãoiachegaràsfinais.Eeutiveasurpresadeverqueas
criançassabemumaporçãodepalavraseminglês.Da
AméricadoSuleAméricadoNortepassamosparanorte
e sul,lesteeoeste,e eujá estavaensinandoospontos
cardeais.Olharparao mapae ir identificandoospaíses
quejá conheciameaprendendoosquenãoconheciam
melevouaIhesensinaraidéiadefronteira- ospaísesque
têmfronteiracomo Brasileosquenãotêm.
Asperguntasiamsurgindoeeuiarespondendoou,como
jádisse,asprópriascriançasiamdescobrindoasrespostas.
Podeatéparecerumabagunçaefaltademanejodeclasse
daminhapf!Jte,masatéqueeuacheimuitointeressante..
48 49 f:
o sentido da Escola Do baú da memória: histórias de professora
Ascoisasquepodiamparecersoltaseatécaóticasiam
se ligandoàsoutrasquestõesquesurgiame tudoia
fazendosentido.Istomefezpensarseo melhorparaas
criançasaprendereméseguiroprogramaouoqueagora
substituiuos programas,quesãoosPCNs.Comose
explicaria,então,sedaformacomoestavaacontecendo,
euviaqueascriançasaprendiammaisecommuitomais
prazer.Eraumaquestãodematemáticaaqui,umade
geografiaali,umadehistóriaacolá,umaatividadede
artederepente,e música,etelevisão,e escrita,muita
escrita.Eracomoseficassetudopipocandomasacabasse
tudojunto.a quejuntavaeraaCopadoMundo.Nessa
horamedásaudadesdequandonóstínhamosreuniões
pedagógicase podíamosdiscutira nossaprática
pedagógicaeumasajudavamasoutras,oquehojepor
causadosduzentosdiasobrigatóriosnãodámais.
Éincrívelcomoascriançasaprendemmuitomaisdoque
mandao programaquandoelasestãoenvolvidasna
própriaaprendizageme quandoa professoraestá
ensinandooqueIhesinteressa.Eusempremepergunto
setemsentidodizerquenãosepodeensinarcertascoisas
a certascriançasantesqueelasatinjama maturidade.
A minhaexperiênciamemostraquequandoa criança
estáinteressadaelaaprende,comoestáacontecendo
agoracomestacoisadeCopadoMundo.a quemefaz
pôremquestãoo conceitodematuridade.Precisoler
maissobreisto.Afinal,teoriaserveparaisso.A gente
descobrenapráticaevaiconfirmarnateoria.Seriabom
sepráticoseteóricostivessemumdiálogopermanente.
Nós,aspráticas,exerceríamosanossapráticacommais
segurança.Masachotambémqueosteóricospoderiam
,aprenderumpoucocoma nossaexperiência.Todos
aprenderiamcomo diálogo.
Quandoeumostreio Marrocosnomapaascrianças
quiseramsaberquelínguasefalanoMarrocosecomo
eunãosabia,propusqueagentefizesseumapesquisa,
procurandonosjornaisenoslivros.Nodiaseguinte,elas
vieramtodascontenteseorgulhosasporquedescobriram
quelásefalafrancêseárabe.Quiseramsaberporquese
falafrancêsnaFrançae tambémnoMarrocos.Ensinei
quenaÁfricasefalamaisdeumalínguaporquefalama
línguadocolonizadorea línguadopovonativo.Como
fuifalardecolonizadorecolonizado,látiveeudefalar
sobreaaçãocolonizadoradoseuropeus,daescravidão,
daslutaspelaindependência.
A impressãoquemedá,agoraqueeuestouescrevendo
sobreo queaconteceu,équeascriançasiampuxando
fios e cadafio traziaumassuntoe queos fiosse
emaranhavamcomoseganhassemnovasformas,e as
formasmuitasvezessemodificavamenovasformas
apareciam.É assimcomoumcaleidoscópio,queestá
sempremudandoefazendosurgirnovasformas,novas
cores,semnuncavoltaràformaoriginal.Liberdadeéo
quemeocorre.Que lindoviverumasituaçãode
aprender/ensinarcriandoemliberdade!
AscriançassozinhasforamdescobrindoondeficaaÁfrica
doSul,a Escócia,aAlemanha,a Itália,a Inglaterra,o
. Chileequeriamsaberondeficacadaumdospaísesque
estãojogandonaCopae quelínguasefalaemcada
país.Nuncaviestascriançastãoanimadasparaaprender.
a interessanteéquecadaaprendizagemprovocavauma
novacuriosidade.Depoisdedescobriremondeficamos
países,aprenderamoqueécontinente.("EntãoaFrança
é naEuropae o Brasilé naAméricaLatina"),o queé'
oceano("TemumoceanoAtlânticoentreo Brasile a
França?Entãooaviãopassaporcimadooceano?Então
nãopode:i!rdecarropraFrança?").
~
50 51
o sentido daEscola
Do baú da memória: histórias de professora
Asperguntasvinhamcomoenxurrada.Etodosfalavam
aomesmotempo.Resolvipôrumacertaordemnaquela
aparentebagunçae propusquecadaumlevantasseo
braçoparafalarequeosoutrosesperassemasuavez,
respeitandoa faladocolegaoudacolega.Deucerto.
Achoquerespeitoseaprendevivendoo respeitopelo
outro,enãoouvindodiscursosobrerespeito.Incrívelé
queotemponãodeuparaencontrarrespostasparatudo
o queascriançasqueriamsaber.Porissoaquelaaula
duroumaisdeumasemanaeeuvoucontinuararegistrar
tudooqueascriançasforammeobrigandoaensinar.
Comoeujá escrevi,elasquiseramsaberaslínguasque
cadaseleçãofalaenósfomospesquisar.Depoisestudamos
ascoresdasbandeiras;umaselasjátinhamvistonojornal
ounatelevisão,outrasforamprocurarnumlivroqueuma
dasmeninastrouxedecasa.Eforamfazendoacontade
quecorapareciamaisnasbandeirase dequecores
apareciammenose dequantasbandeiraselasagora
conheciam.Discutiramqualabandeiramaisbonitaepedi
quecadaumajustificasseporquepreferiaumabandeirae
nãooutra.Achoimportantequeascriançasaprendama
respeitarasdiferençasdegosto,deescolha,porqueassim
elasvãoaprendendoaviverdemocraticamente.
Enquantoestudávamosasbandeiras,algumascriançasquiseramdesenhá-Ias,outraspreferirampintareoutras
fizerambandeirinhascompapel,colaemadeira.Quando
asbandeirasforamficandoprontasiamsendocolocadas
emnossomural,queficoulindo.Pareciaumaoutra
bandeira(quemdisseissofoio Pedroquegostamuito
dedesenharequetemalmadeartista).
Co.moalgumascriançastinhamvistonatelevisãoas
músicaseasdançasmarroquinas,com~çaramaperguntar
sobreasroupas("Homemandavestidodemulherno
Marrocos?Escocêstambém,né?Parececarnaval"),
comentaramobatuquequeosmarroquinosfizeramantes
do jogo("parececoma nossaescoladesamba")e
acharammuitagraçanosescocesestocandogaitadefole.
O paidoJorge,queéárabe,mandouumdiscodemúsica
árabeenósouvimosjuntos.Nodiaseguinte,aMariado
Céutrouxeumfadoe umafantasiadeportuguesa.Foi
umbarato.Nóscombinamosfazerumafestacomos
paiseasmãescomasmúsicasdecadalugar.O Zeferino
dissequevaitrazerumforróeeuacheiótimo,poistodas
ascriançassesentiramorgulhosasdesuaorigem.Acho
queéassimqueseconstróiumademocracia.
Difícilfoiquandoelesquiseramsaberoqueéhoo/igan.
Bem,eurespondiquesãocomoos funks,queestão
sempreaprontando.
Muito legalfoi vero interessecomqueascrianças
trabalharamdurantetodaa semanae tantacoisaque
aprenderam.Estudamosjuntostantacoisasobreo
mundo,passandopelamatemática,pelageografia,pela
história,pelaarte,pelamúsica,pelaslínguasepelanossa
língua,porquetudoqueeraestudadoeraescritoelido.
Eracomosenósfôssemospasseandopelasdisciplinas
semficarmosparadosnelasetirandodecadaumaaquilo
quenahoranosinteressava.
Achoquefoi importanteaproveitara CopadoMundo
paraensinartantacoisaparaascrianças.Voucontinuar
a trazerparaasaladeaulaaquiloemqueascrianças,
comotodosos brasileiros,estãomaisinteressadas- a
conquistado pentacampeonatoparao Brasil.Não
importaquea CopadoMundonãosejapartedoque
estálistadonosPCNs,o queimportaéqueascrianças
aprenderammuitomaise melhordoqueseeufosse
seguiro qL+;.eos PCNs mandama genteensinar..
52
...r,
53
,.,"
o sentido da Escola Do baú da memória: histórias de professora
E eu tenho de admitir que aprendi muito também.
Aprendisobretantacoisaquetivede pesquisar,poisnão
sabia,e aprendisobresermelhorprofessora.
põe-sea pesquisare, pesquisando,reflete sobreo que
descobre. No entanto, como nem sempre encontra
explicaçõespara o que descobre,vai buscarna teoriao
que,comseusprópriosrecursosteóricos,não consegue
dar conta.Exe.mplodissoé quandoa suaintuiçãopõeem
questãooconceitodematuridadecomopré-requisitopara
a aprendizagem.Ela intui, masnãoconsegueexplicar,o
queafazdispor-seabuscarnateoriaajustificativateórica
parasuaintuição.Intuiçãoquenóssabemosestarafinada
comaspesquisasmaisavançadasquecriticamopróprio
conceitodematuridadeequepostulamqueamaturidade
sedánumcontinuumequeacadaatingimentodeníveis
dematuridadevãoserevelandonovosaspectosdeuma
imaturidadequeacompanhaa todosos sereshumanos
por toda a vida. Lúcia estátrilhando um caminhoque
rompecomas análisessimplificadorase,aofazê-Io,vai
compreendendoqueorealécomplexoecomotal deveser
analisadopara podersermaisbemapreendido.
Quandoela refletesobrea relaçãoentreospráticos
eosteóricos,estáanunciandooqueBoaventuradeSousa
Santospropõecomo"segundaruptura epistemológica",
que seria, emseudizer,o reencontroentrea teoriae a
prática, fertilizando-se a teoria e enriquecendo-sea
prática.
Eu diriaqueLúciaéumaexcelenteprofessoraporque
estásempreatentaao queaconteceno cotidianodesua
saladeaulaeporque,estandosempreatenta,podeseguir
as pistas que o complexoprocesso de apropriação/
construçãodeconhecimentosdeseusalunose alunasa
desafiaa investigar.Lúcia nãoserecusaasuasintuições,
ao contrário, segue-as,decifra-as, ~prendecom elas
porqueousapenetrarematalhossemmesmosaberaonde
podemdar. É corajosa.Além de tudo é estudiosae vai
;li.
Meu comentário
Lúcia,aprofessoraquevenhoacompanhandonodia-
a-dia de sua sala de aula, queatua comuma turma de
crianças de terceira série, não fica presa à divisão
disciplinar,maspermitequeosconhecimentosvãosendo
construídoscomorizomas,comoraízesdaquelecapimque
o povo chama de tiririca, que brotam num lugar e
reaparecemem outro, que se aproximame se afastam
comonuma dançasemcoreografiapredefinida,emque
sãoos própriosrizomasquelivrementee caoticamente
constroemacoreografia.A metáforaempregadaporLúcia
de fios que vão sendo puxados e que fazem um
emaranhadodefiosadquirindonovasformas,meparece
rica, pois nosconvidaa puxar outrosfios e criar outros
emaranhadosnumprocessodeinstigantecriação.
No final, aquelascriançashaviamaprendidomuito
maisdoqueaparecerelacionadoemqualquerprograma
ou livro didáticopara turmasdeterceirasériee é Lúcia
quemconstatae reflete sobreos resultadosatingidos.
Lúcia é, semdúvida,o quealgunsteóricos,entreeleso
Shõn, denominamprofessorareflexiva.Eu diria mais -
porqueLúcia é comprometidacoma aprendizagemde
seus alunos e portanto inconformadacom o fracasso
escolar,assumeuma posturainvestigativa,mostrando-
seuma professora-pesquisadora.Ela quersaberporquê
alguns alunos e a,lunas não aprendem ou não se
interessampor aprendero quea ela,professora,parece
importantequesejaaprendido.Por querercompreender,
F
54 55
o sentido daEscola Do baú da memória: histórias de professora
buscarna teoria as respostaspara o quenãoconsegue
explicardesuaprática.Lúcia éumaboarespostaàqueles
quedescrêemdacapacidadedecriar dasprofessoras.
Abaixou-separaperguntaràmeninaporquechoravae
Rosinhalhecontouqueestavachorandoporqueseuavô
lhederaumcachorrinhoequeamãenãolhepermitira
levarparaa escola.Mercedesconvenceua meninaa
entrare lheprometeuqueiriavero queseriapossível
fazer.Asduasentraramjuntasnasaladeaulae,logo,
logo,MercedespôsemdiscussãooproblemadeRosinha,
sugerindoquepensassemjuntosoquepoderiaserfeito.
Unsdiziamquecachorronãodeveentrarnaescola
porquefazsujeira,outrosdiziamqueseelescuidassem
docachorroelenãofarianadae quepoderiaatéficar
bemquietinhoeseacostumarcomaturma.Depoisde
muitaargumentaçãoecontra-argumentaçãoacabaram
chegandoaumconsenso.Ascriançasiriamemcomissão
perguntarsea diretorapermitiriaa presençadeum
cachorronaescola,e,seelapermitisse,iriamescrever
para a mãede Rosinhadizendoq/Je todos se
responsabilizariampelocachorrinho.
Assimfizeram.Nomesmodia,foramjuntosfalarcoma
diretora,tendoantesplanejadooquediriam,quemfalaria
primeiroeo queo gruposeresponsabilizariaporfazer.
NãoprecisodizerqueMercedesfoi comascrianças,
orgulhosasdasuagenerosidadeemrelaçãoàcolegae
desuacapacidadedeorganização.Adiretora,apesarde
relutante,acaboucedendocomalgumascondições- não
poderiaaparecerqualquersujeiradecachorro,aturma
équeteriaa responsabilidadedealimentaro bichinho,
nadadecorreriapeloscorredoresdaescola,e,antesde
tudo,eraprecisoqueamãedeRosinhaconcordasse.
Àmedidaquesesentiucompreendidaeajudada,Rosinha
paroudechoraresuaexpressãodetristezadesapareceu
deseurosto,fazendoreaparecero brilhodeseusolhos
cordemel~. "
Segundahistória- Umaclassedeeducaçãoinfantil
ondecomtão pouco,tantoseaprende
,11
Comonas históriasinfantis,eu voucontaruma
históriaquecomeçacomoeraumavez.
Eraumavezumaprofessoradeeducaçãoinfantil,que
naqueletempotodoschamavamjardimde infância.
Trabalhavanumaescolanaperiferiade Recife,em
Pernambuco.Todasasmanhãsvinhaparaaescolatrazendo
umasacolacheiadebadulaquesquequandoelaabriana
saladeaulapareciaa cartoladomágico- iamsaindo
fantasias,fantoches,livrosdehistória,chapéus,bonecas,
bolas,caixinhas,eseimaisoquê.Nuncaeramasmesmas
coisas,o quefascinavaascriançasquesemprese
surpreendiamcomasnovidades.Mercedes,aprofessora
dequemfalo,recolhiatudoqueencontravae pediaa
todosqueguardassemparaa suaturmatudoquenão
quisessemmais.Osamigosbrincavamcomela,dizendo
queelaeraaMariaTrapeira.Maselanemsetocava,pois
tudoistoqueeuestoucontandofoielaprópriaquemme
contoueachandomuitagraça.Aliás,umadascoisasque
maismeimpressionouemMercedesfoioseubomhumor
eacapacidadederirdesimesma,oquemepareceuma
característicadaspessoasinteligentes.
Mercedesmerelatoumuitasexperiênciasqueviveu
comoprofessoradecriançasatéseisanos.Voumelimitar
a.contarumadasinúmerashistóriasquemecontouequemuitomeensinaram.
Umdia,Mercedeschegouàescolaeencontrouumade
suasalunas,aRosinha,acocoradanochãoechorando.
1I
li!
1
\
'I I
I ii II
56 57
ti" ,
li'
o sentido daEscofa Do baú da memÓria: histórias de professora
I
I
I
I i
II i
Ao voltaremparaa saladeaula,a professorapropôsque
fizessemjuntosumacartaparaa mãedeRosinha.Eassim
fizeram. A carta ficou imensa, pois todos queriam
participar.Mercedes ia escrevendono quadrode giz o
que cada umadas criançasia dizendo.À medidaque a
cartaia sendoescrita,as criançasa liam,aindaque não
soubessemlercomo a escolaexige.Mas comotudo que
estava escrito era o registro da fala de alguma das
crianças,ficavafácil "ler". Terminadaa carta,depoisde
lerema escritafinal e com um ar muito importantede
quemseorgulhado queacabadefazer,algumascrianças
quiseramfazerdesenhos,pinturas,colagenssobreo que
as tinha mobilizadotanto. Uma dascriançasquis fazer
umdesenhonaprópriacartaeo fez.Os demaistrabalhos
foram colocadosno muralda sala.
Quando parecia que tudo estava acabado, alguém
lembrouque cartaprecisadeenvelope.Mercedesentão
ensinou como se pode fazer um envelopecom papel,
tesoura, cola e régua.A régua apareceude dentro da
sacolamágicada professora,masera precisoensinaro
queé umarégua,paraqueserveecomoseusa.Mercedes
o fez e as criançasforam aprendendoa ler uma régua.
De repente,em vez de fazer o envelope,elasestavam
querendomediras mesas,o tamanhodos pés,a janela,
a porta; tudo o que viam queriammedir.Mas como a
régua não era suficientementegrande, a professora
, ensinoucomose pode "medirsomandoos pedacinhos".
A mediçãoduroutantotempoque,de repente,bateuo
sinal de saída e o envelope não havia sido feito.
Combinaramentãoquefariamo envelopenodiaseguinte
. assimquechegas,semàescola.Combinaramtambémque
aqueleseriaum segredodaturmaeque ninguémfalaria
sobre a carta, para que ela fosse um<=!-surpresapara a
mãede Rosinha.
No dia seguinte,as criançaschegarambemcedoe logo
'quiseramfazeroenvelope.Decidiramqueeramelhorfazer
váriosenvelopeseescolhero maisbonito,o quefoi aceito
portodasascrianças.Fazeros envelopesfoi ummomento
de grandeconcentração,poisestaeraa primeiravezque
o faziam. Alguns envelopes ficaram tortos, outros
lambuzados,outrosficarammuitopequenosparacabera
carta.Finalmenteescolheramo envelopequeIhespareceu
o maisbemfeito e no qualcoubessea carta.
Meu comentário
Ascriançasestavamdesenvolvendoosensoestético,
alémdeaprenderemconceitosmatemáticosa partirde
umasituaçãodevidaqueasmobilizara.Nãoépreciso
dizer que se alfabetizavamno melhor sentido de
alfabetização,poisaleituraeaescritaiamacontecendo
comuma funçãopráticadenecessidadee desejode
comunicaçãoatravés da linguagem escrita. Ao
desenharem,pintaremefazeremcolagensdesenvolviam
a linguagemplástica.Ao prepararema colae astintas
necessitaramdeconhecimentosdequímica,poisumavez
queaescolanãodispunhaderecursosparacomprarcola
é tintas,era necessárioprepararosmateriaiscomos
recursosde quedispunham,aindaquetalveznema
professorapretendesseestardandoauladequímica.Aliás
osconhecimentosiamaparecendonamedidaemquese
tornavamnecessáriosparaasoluçãodosproblemasque
seapresentavam.Nadaeragratuito,nadaeraapenas
"dever",nadaeraapenasaula.Emnenhummomentoa
divisãodisciplinar,mas,comonavida,o conhecimento
er~religadonassituaçõespráticasq~eseafiguravam.
Além dessesconhecimentosvisíveis,aprendiam
impottantes~onhecimentosinvisíveis.Aprendiama
;1", 58 ..f}59
":.'
o sentido daEscola Do baú da memória: histórias de professora
i I
solidariedade,quandosemobilizaramcomosofrimento
de Rosinhae se dispuserama ajudá-Iaa resolvero
problema.Aprendiama participaçãoe a organização,o
respeitopelapalavradooutro,e a lutarpelodireitoà
palavra.Aprendiamaargumentar,apersuadir,a fazer
alianças,a criarestratégiaspara.enfrentarproblemas.
Aprendiamaassumircompromissosearesponsabilidade
dequemosassume.Aprendiamsedesenvolvendoe se
desenvolviamaprendendo.
Confirmavaaprofessoraoquejá sabia- queasala
deaulapodeserumespaçodeimensoprazerealegriae
quenãosãoincompatíveiso aprendere o prazer,ao
contrário,talvezo quedemelhorseaprendana escola
sejaoprazerdeaprender.
É precisodizerqueahistóriadocachorrodeRosinha
aindarendeumuito.
Nodiaseguinteforamemcomitiva,acompanhadospela
professoraàcasadeRosinhaparatentarconvencersua
mãedequeocachorropodiaircomsuadonaàescolae
queseriamuitobem-vindo.Depoisdemuitaconversa,a
mãedeRosinhaacaboucedendo,admitindoque"de
vezemquando"ocachorropoderiaircomRosinha,mas
queseatrap,alhasse,nuncamaiselapermitiriaqueele
fosse.Jávoltaramparaaescolacomocachorrinhoque,
comoaindanãotinhanome,ficousendochamado'Dógui.
Foiumalvoroço,poistodosqueriampegaroDógui,dar
comida,atébanhoquiseramdar,masa diretoranão
permitiu.Momentodefrustraçãoquenãoduroumuito,
poislogosurgiuoutraidéia.
"EuachoqueoDóguiprecisadeumacasa.Vamosfazer?"
. Tera idéiaé fácil,fazeré quesãoelas;pensoua
professora.Eaopensar,falou: '
"Vamosentãoplanejarcomosefazumacasadecachorro
eoqueéprecisoparaconstruí-Ia."
As criançasquiseramprimeirodesenhara casaque
queriamfazer.Umadasmeninasquistambémescrever
o nomedocachorronaportaeMercedeslheensinou,
escrevendonoquadro.Éclaroquemuitosoutrostambém
escreveramonomedocachorronacasaquedesenharam.
Escolhidoomodelodecasa,agoraeraprecisolevantaro
queserianecessárioparaconstruí-Ia.Eforamregistrando:
madeira,serrote,pregos,martelo,cola,pincel,lixa,tinta,
edividindotarefas:unstrariammadeira,outrospincele
colademadeira,outroslixas,e assim,cadaumadas
criançassedispôsatrazeraquiloquejá tinhaemcasa.
Nodiaseguintenemtudoapareceu,poisnemtodosos
paisacreditaramnahistóriadocachorroenacasapara
ele.
Mercedescompreendeuquenadasepodefazernaescola
sema adesãodospaise resolveuchamá-Iosparauma
reuniãodepaisemães.Nemtodosospaisemãesvieram,
masosquecomparecerampassarama colaborare o
materialapareceu.Ea construçãodacasadocachorro
começoucomgrandealegria.
Meucomentário
Para quemacompanhou,ficafácil dizertodosos
conhecimentosqueforamsetornandonecessáriospara
queacasapudesseserconstruída,sempresabendoqueo
queparecetudoseráumaformadesimplificaçãodetoda
a complexidadequenão se revelaà primeiravista.
Calcular,medir,serrarrespeitandoo veiodamadeira,
lixarsemarranhar,usaromarteloparapregarospregos
comcuidadoparanãobaternodedoeparanãoentortar
*.
60 61
11'1i) "
o sentido da Escola Do baú da memória: histórias de professora
;
1
'
! '
L,
,
o prego,colardoispedaçosdemadeirajuntando-osbem,
escolheracordatinta,misturarospigmentosparachegar
àcordesejada,esperarsecarparasódepoisdesecapoder
pintar o nomedocachorro,pintar comcuidadoparanão
borrar. Tantos conhecimentosúteis à vida e em geral
esquecidospelaescola. . .
Ao fazer a casa, aprendiam também noções de
equilíbrio, de tamanho, de altura, de largura, de
profundidade,dequantidade,dequalidade,dediferença"
detodoe partes,deespaçoexternoe espaçointerno,de
vazio,detextura,debrilho edefosco,deduroe demole,
de resistente e de frágil. E aprendiam também a
solidariedade;a cooperação,a participação,a troca, o
respeito às pessoas,aos animais e aos materiais, a
economia,o aproveitamentoea redefiniçãodemateriais
queseopõeaodesperdícioeaoconsumismo,a alegriade
fazerjuntoedeaprenderjunto,oamorquesurgedofazer
junto e aprenderjunto.
Muito mais aprenderam aquelas crianças.
Aprenderamsemter aula destaou daqueladisciplina
separadamente,poistudotinhaavercomtudo,poistinha
a ver com a vida. Aprenderamfazendo,investigando,
descobrindo, trpcand,o, experimentando, ousando.
Aprenderam errando e acertando, com certezas e
incertezas,aprenderamporquesepermitiamterdúvid~s,
expressá-Iase procurarexplicaçõesou soluçõespara as
inúmeras dúvidas.Aprenderamsendoaceitasem suas
diferenças. Aprenderam ao serem aceitas enquanto
legítimosoutrose aceitandoo outroenquantolegítimo
outro,conformediz nossomestreMaturana queapesar
d~ser biólogotanto nos tem ensinadosobreeducação.
Aliás, Maturana confirmacomseuinteresseabrangente,que o "especialista"que só sabede sua "especialidade"
em geral não sabesequer de sua especialidade,pois
seguindoa recomendaçãodeoutromestre,EdgarMorin,
nossoconvidadoespecialparaestelivro,háquesereligar
os saberespara sechegara conhecero todo.Ou melhor
dizendo,háqueseconheceremaspartesparaseconhecer
otodo,bemcomo,sósepodemconheceraspartesquando
seconheceo todo.
Bem, contei apenas duas histórias de escola,de
professorae decrianças,de ensinoe de aprendizagem.
Poderia contarvinteou duzentasou duasmil, poiseste
meu baú de memórias de professoras a cada dia se
avolumacomnovashistóriasdequemestánas salasde
aula dasescolasbrasileirase queapesardetudoresiste
aorolocompressordoprojetoneoliberalqueseapresenta
como"aúnicaalternativa".
Quemconheceescolasabequeo queconteié o que
acontecedesdesemprenasescolas...quandoa almanão
é pequena.
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