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Memória e Educação ob jet ivo s 27AULA M t d lMeta da aula Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de: • Estabelecer a relação entre memória e cultura. • Distinguir a memória como processo contextualizado e memória como processo “mecanizado”. Discutir o papel da memória no processo ensino-aprendizagem. C E D E R J70 Fundamentos da Educação 4 | Memória e Educação INTRODUÇÃO Você se lembra das cantigas de roda que costumava cantar com outras crianças no pátio da escola ou durante as brincadeiras nas calçadas perto de casa? Você se lembra das regras para jogar amarelinha ou pique-esconde? Provavelmente, a resposta é sim. Você se lembra de ter feito algum esforço para memorizar as letras e regras dessas brincadeiras? Provavelmente, a resposta é não. A que fatores podemos atribuir tais respostas? A facilidade com que podemos recordar fatos de nossa infância pode estar associada ao fato de estarmos mergulhados em uma situação na qual o prazer e a interação com os amigos eram importantes, talvez os melhores momentos que podemos recordar. Os adultos não estavam presentes para interferir, e a brincadeira criava situações nas quais as novidades consistiam em curiosidade e desafi o. Aprender e lembrar novas regras e atividades não exigia que tivéssemos de recorrer a anotações para que as decorássemos. Nem havia o risco de esquecer. Caso isso acontecesse, era só perguntar, pois sempre haveria alguém pronto a dizer o que era necessário. O erro, portanto, não se constituía em objeto de punição ou de reprovação. Por que podemos, enfi m, nos lembrar, já adultos, de letras e canções de nossa infância, depois de tanto tempo? Por que esquecemos tantas coisas aprendidas na escola? RECORDAR E ESQUECER: PROCESSOS QUE NOS AJUDAM A VIVER Para melhor discutir tal proposição, vamos levar em consideração o trabalho da Antropologia, que nos oferece conhecimentos muito interessantes sobre o lembrar e o esquecer. Marc Augé é um antropólogo francês contemporâneo que se dedica a estudar a sociedade ocidental e suas características particulares. Ele agrega a tal discussão seus conhecimentos adquiridos como pesquisador na África, onde permaneceu por anos. Dentre outros livros que escreveu, existe um particularmente dedicado à refl exão sobre a memória e o esquecimento: Les formes de l’oubli (As formas do esquecimento). Nele encontramos o seguinte comentário: (...) os relatos são sempre o fruto da memória e do esquecimento, de um trabalho de composição e de recomposição que traduz a tensão exercida pela expectativa do futuro sobre a interpretação do passado” (1998, p. 55). C E D E R J 71 A U LA 2 7 M Ó D U LO 3 A palavra tensão nos faz pensar em algo que pode se romper. A tensão tem a ver com um esforço intelectual – a concentração – ou a tensão do espírito – a atenção. Sendo assim, a memória e o esquecimento, tanto quanto o passado e o futuro, podem ser pensados como elementos elásticos que requerem concentração e atenção. Eles estão sempre juntos, em frágil equilíbrio. No entanto, a memória tem um caráter mágico, quase inexplicável, que é a presença do passado no presente. Além disso, o esquecimento é, também, enigmático. Todos os humanos lembram e esquecem. Lembramo-nos, num instante, o que há pouco parecia impossível de ser recuperado. Esquecemo-nos do que parecia de imensa importância. Ao mesmo tempo, não é possível dizer “esqueça”, já que tal ordem impossibilita o que ela mesma determina. MEMÓRIA E CULTURA A contribuição que a Antropologia tem nos oferecido é a de podermos reconhecer a memória e o esquecimento como processos não apenas individuais mas, também, relativos àquilo que se refere às vivências coletivas que compõem os ritos de uma determinada cultura. Marc Augé nos aponta três formas de esquecimento que se manifestam em práticas culturais. 1) O retorno: seu propósito é o de “...recuperar um passado perdido esquecendo o presente e o passado recente – que confundimos facilmente – para restabelecer uma continuidade com o passado mais antigo...” (p. 76). O candomblé, no Brasil, nos faz reconhecer essa forma de esquecimento. Em seus ritos, as entidades míticas dominam as pessoas por meio da música, que adquire um ritmo que se intensifi ca gradualmente, durante um período de tempo. As pessoas presentes no terreiro dançam até uma tensão máxima, transformando-se nas entidades africanas trazidas pelos escravos durante a colonização. Todos sabemos da importância política e social das mães-de-santo. 2) A suspensão: refere-se à suspensão do passado e do futuro. É uma experiência que permite um jogo de inversão, como por exemplo, mulheres que imitam homens; homens que se vestem de mulheres ou escravos que se proclamam reis. O carnaval é uma festa na qual podemos verifi car essa C E D E R J72 Fundamentos da Educação 4 | Memória e Educação forma de esquecimento. As primeiras e as mais autênticas manifestações do carnaval foram criadas e desenvolvidas pelos negros descendentes de escravos nas escolas de samba. Nos desfi les, vemos toda a criatividade popular que se revela nas fantasias e nos temas de suas músicas. A porta- bandeira e o mestre-sala vestem-se com as mais belas roupas, tais como um príncipe e uma princesa. As baianas mostram seus maravilhosos vestidos rendados, demonstrando possuir uma riqueza que só os nobres teriam. Na realidade, eles são todos pessoas humildes que, naqueles instantes, tornam-se o objeto do olhar de toda uma população e passam a ser reis, rainhas, príncipes e princesas. 3) O começo ou o recomeço: esse termo designa o contrário da repetição. Ele signifi ca uma “inauguração radical”. Seu propósito é encontrar o futuro, esquecendo-se do passado, e criar condições de um novo nascimento que abre portas para diferentes possibilidades, sem que haja o privilégio de apenas um. O recomeço anuncia uma nova consciência do tempo. A Bíblia nos dá um exemplo da necessidade do esquecimento: a história de Ló e de sua mulher. Para que eles pudessem fugir vivos de Sodoma, Deus ordenou que não olhassem para trás, caso contrário seriam transformados em estátuas de sal. O esquecimento os salvaria, o que não aconteceu com a mulher, que, nostálgica e apegada ao passado, olhou para trás. Nesse caso, o vínculo com o passado representou não apenas a perda de tudo o que Ló e sua mulher possuíam, mas a morte. Podemos, então, nos dar conta de que há mecanismos sociais para o esquecimento, o que indica sua importância para que ocorram transformações, como o caso do recomeço. Compreendemos, assim, que as sociedades desenvolveram uma capacidade sensível através de seus ritos, a fi m de que o indivíduo e o grupo estabeleçam relações não-cristalizadas, podendo ter mobilidade e autorizados socialmente à transformação. C E D E R J 73 A U LA 2 7 M Ó D U LO 3 MEMÓRIA E COTIDIANO Podemos considerar que o esquecimento é, também, um processo que nos permite dormir e acordar todos os dias. Para que possamos adormecer a cada noite, é necessário “passar uma borracha” nos acontecimentos nos quais estamos mergulhados cotidianamente para, no dia seguinte, recomeçarmos. Muitas vezes, o recomeçar quer dizer que revemos e repensamos os fatos, podendo perceber melhor seu signifi cado e, então, tomar decisões. É necessário enfatizar que o esquecimento radical não nos permite dar continuidade à vida. Para ser e existir é preciso lembrar, mas – você se lembra do Memorioso, de Jorge Luis Borges? – a tensão entre lembrança e esquecimento é uma companheira diária. A ruptura e a continuidade, a desordeme a ordem são fatores que permitem que se possa olhar para o futuro. Um exemplo interessante extraído da literatura clássica é a história do conde de Monte Cristo. O romance, escrito por Alexandre Dumas no século XIX, relata a trajetória de um homem que fi cou preso injustamente durante muitos anos, conseguiu fugir, descobriu um tesouro e dedicou outros tantos anos de sua vida à vingança. O conde de Monte Cristo não conseguiu esquecer o mal que lhe fi zeram e tratou de destruir, planejada e minuciosamente, a vida de todos aqueles que considerou seus algozes. No entanto, nosso herói não se deu conta de que o mundo para onde voltou havia mudado. A experiência de ter sido prisioneiro durante uma parte de sua vida o havia ferido de tal forma que a dor da traição era insuportável. Ele tornou-se um juiz terrível e, também, um algoz. Sua vida era apenas a vingança. Monte Cristo conseguiu realizar o que desejava sem perceber que Mercedes, seu grande amor, ainda o amava. Ele a rejeitou e a afastou, julgando-a culpada porque ela havia se casado com um dos homens que odiava. Monte Cristo alcançou seus objetivos, e o livro termina quando ele decide viajar para a América, solitário para, então, tudo recomeçar. Esse recomeço signifi ca que Monte Cristo compreendeu a necessidade de esquecer, de deixar para trás o passado para poder olhar para o futuro. O esquecimento não se refere apenas ao desaparecimento de lembranças desagradáveis, mas ao fato de deixarmos para trás aquilo que não é mais possível recuperar. No caso em questão, o perdão. C E D E R J74 Fundamentos da Educação 4 | Memória e Educação 1. Conte um pouco de sua história para mim. Quero saber mais de você! Feche os olhos e pense num fato, numa experiência em sua vida quando, para continuar, você precisou esquecer, como o fez o conde de Monte Cristo. Trata-se, aqui, de um esquecimento relacionado a deixar lembranças uins para trás, perdoar e continuar vivendo. ________________________________________________________________ ________________________________________________________________ ________________________________________________________________ ________________________________________________________________ ________________________________________________________________ ________________________________________________________________ _________________________________________________________________ _________________________________________________________________ _________________________________________________________________ _________________________________________________________________ _________________________________________________________________ _________________________________________________________________ _________________________________________________________________ _____________________________________________________________ _____________________________________________________________ RESPOSTA COMENTADA Repare que, para dar seguimento a sua vida, o conde de Monte Cristo teve que deixar no passado lembranças dolorosas e perdoar para, assim, poder ser capaz de enxergar novas possibilidades. Pois então, espero que você possa fazer o mesmo e perceber que o esquecimento, a lembrança são processos dinâmicos e indissociáveis. ATIVIDADE EXERCITANDO A MEMÓRIA Até agora, esta aula tem tratado a memória como um fenômeno de caráter social. Apontou-se a importância de seu papel como elemento possibilitador de socialização e seu valor no viver social. O objetivo a ser alcançado é o de chamar a atenção para uma visão antropológica que permite que se tenha uma compreensão mais ampla do que a de simplesmente ver a memória como um arquivo ou um músculo que deve ser exercitado. Freqüentemente encontramos tal concepção sendo aplicada nas escolas, o que faz com que os alunos entendam o ato de estudar como sendo o mesmo que memorizar, ou seja, decorar. C E D E R J 75 A U LA 2 7 M Ó D U LO 3 O verbo decorar signifi ca “aprender de memória”, mas também “adornar, enfeitar, embelezar”. Pode-se encontrar os dois signifi cados no dicionário (AURÉLIO, p. 524), e verifi ca-se que usamos a expressão “de cor” para aquilo que foi memorizado. É interessante pensar que, em francês, diz-se par coeur, o que equivale a “de cor”. A expressão francesa, se traduzida, signifi ca “de coração” ou “pelo coração”. Por outro lado, quando decoramos no sentido de embelezar fazemos alguma coisa que nos dá prazer ou para tornar um ambiente agradável, ou mesmo, para receber amigos ou pessoas a quem damos valor. Então, decorar, nos dois sentidos, tem relação com ações que envolvem os afetos, a experiência do prazer, o que tem a ver com os nossos desejos. Pode-se pensar que o ato de decorar não se refere a uma ação mecânica e desprovida de sentido. O ato de decorar (memorizar) deve, antes de tudo, estar relacionado ao desejo de aprender alguma coisa que nos diz algo, que nos faz melhores e mais valorizados, ou seja, mais belos. Por que temos, então, de decorar datas, tabuada, nomes, lugares e assim por diante? Tal prática tem valor educativo? A resposta é sim e não. Memorizar não tem valor educativo quando tal prática é desprovida de qualquer signifi cado para o aluno. Decorar os nomes dos afl uentes do rio Amazonas, das serras do estado do Ceará, das capitais dos países asiáticos ou os nomes dos bandeirantes torna-se, por exemplo, apenas um ato de repetição mecânica para se fazer uma prova. Se o rio Amazonas ou os acidentes geográfi cos citados como exemplo forem apresentados como coisas, dizer ou escrever seus nomes numa prova torna-se um ato meramente reprodutivo e sem sentido para quem o faz. Além disso, a facilidade em memorizar pode dar uma falsa impressão de inteligência. Há pessoas que são capazes de decorar um catálogo telefônico inteiro, sem que isso queira dizer que sejam capazes de, por exemplo, resolver problemas, analisar situações, interpretar fatos, compreender textos, interagir positivamente com os pares ou criar algo de novo. Memorizar adquire um valor afi rmativo se o que se memoriza estiver situado dentro de um contexto e fi zer sentido. Exemplifi cando: imagine que uma festa está sendo organizada. Muitas crianças estarão presentes, e vários grupos serão organizados para que cada um deles apresente poemas recitados, pequenas peças de teatro ou um espetáculo de dança. Cada uma dessas atividades sugere que textos e movimentos sejam memorizados. No entanto, as crianças trabalham com afi nco e decoram com facilidade. Todos estão envolvidos e muito animados com a C E D E R J76 Fundamentos da Educação 4 | Memória e Educação ATIVIDADE festa. Adultos e crianças interagem com satisfação, já que todos têm um objetivo a alcançar, juntos. Numa festa, há congraçamento, diversão e, ao mesmo tempo, muita seriedade. Pense no quanto se aprende e como uma festa se torna inesquecível! 2. Responda oralmente, em aproximadamente cinco segundos, a cada pergunta: a. Que país foi campeão da Copa do Mundo de futebol em 1970? b. Qual o coletivo de lobo e de camelo, respectivamente? c. Qual a capital do Piauí? d. Quando, onde e como foi o seu primeiro beijo? e. Qual o nome de sua primeira escola? f. Qual o nome de sua primeira professora? g. Qual era o presidente do Brasil durante a Segunda Guerra Mundial? h. Quantos anos têm seus pais? i. Qual o nome de seu(sua) primeiro(a) namorado(a)? j. Quais os afl uentes do lado esquerdo do rio Amazonas? RESPOSTA COMENTADA Você deve ter percebido que os itens a, b, c, g e j pedem uma resposta exata e exigem uma memorização ligada ao ato de decorar. As demais questões falam de experiências pessoais e podem remetera lembranças boas ou ruins. Quando você tem lembranças de fatos pessoais, está em contato com conteúdos que fazem sentido para você, o que lhe permite respondê-las mais rapidamente. Logo, elas são mais signifi cativas, estão ligadas a fatores emocionais. Concluindo, tudo o que nos remete a experiências vividas com intensidade e emoção é mais fácil de lembrar. CONCLUSÃO A discussão em torno da memória nos leva sempre a pensar sobre nossas histórias pessoais, mas também sobre o que vivemos em conjunto com nossos amigos, parentes e colegas. Muitas das práticas que realizamos em nosso cotidiano são constituídas por processos que se tornaram naturalizados e, por vezes, desconhecemos que eles se constituíram ao longo de muitos anos e que são o resultado de práticas antigas. C E D E R J 77 A U LA 2 7 M Ó D U LO 3 Freqüentemente, tornamo-nos instrumentos de situações e não nos damos conta de como esses instrumentos são histórica e socialmente elaborados, e por isso perdemos a noção de seu valor social. Um exemplo disso é a valorização excessiva, nos dias de hoje, do corpo magro, em detrimento de se reconhecer e respeitar as diferenças. Ao recuperarmos memórias históricas, entramos em contato com modelos ligados a outras formas de viver. Por vezes, vemo-nos assumindo atitudes e práticas que não deixam de ser meras repetições sem que façamos o exercício crítico delas, como a possibilidade de aceitarmos, sem discussão nem crítica, a forma como as notícias são dadas na televisão. Pensar sobre a memória é pensar sobre histórias, as muitas que habitam nosso dia-a-dia e que nos pressionam a uma submissão a modelos preestabelecidos. O trabalho do educador, seja em que âmbito for, exige desse profi ssional uma postura de pesquisador, ou seja, uma postura que demanda que estejamos sempre prontos a nos fazer perguntas. Há um pensador que diz que a resposta mata a pergunta. O que isso quer dizer? Talvez, o silêncio, isto é, ao se responder a uma pergunta, inviabilizamos outras descobertas, outras idéias, outras soluções. Esquecemos de continuar a perguntar, esquecemos de lembrar. ATIVIDADE FINAL Em sua cidade existem, provavelmente, datas que são celebradas com festas abertas a todos. Pense na festa mais importante. Como ela se confi gura? Quem a organiza? As pessoas mais velhas de sua cidade a comparam com as festas de antigamente? Como e quando ela se iniciou? Entreviste dois ou três habitantes mais idosos e reconstrua a história da festa escolhida por você. Em seguida, elabore um texto de no máximo 20 linhas, contando a história dessa festa. Leve sua resposta ao pólo para apresentação e discussão como os colegas e o tutor. ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ C E D E R J78 Fundamentos da Educação 4 | Memória e Educação ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ O fenômeno do esquecimento pode se dar, principalmente, como processo social e coletivo de grande importância. A memória é vista como processo que deve estar incorporado a um contexto, e que funciona bem quando associado a situações que têm um signifi cado. R E S U M O
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