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Antígona: Direito à Resistência na Grécia Antiga

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ANTÍGONA: ENTRE NÓMOS E DIKÉ E O DIREITO À RESISTÊNCIA 
 
 
Gabriela Simões Pereira1- FURG 
Alana Ferreira dos Santos2- FURG 
 
RESUMO: O artigo objetiva analisar Antígona sob a perspectiva jurídica. De início, explora-se 
a importância da religião para a formação das instituições gregas, principalmente para o 
Direito e, após, busca-se harmonizar as interpretações da obra construídas por Hegel e pelos 
Schlegel para, só então, construir uma interpretação da estória à luz do Direito, abordando 
questões acerca do que torna legítima uma lei emanada do poder instituído, bem como as 
razões que levam à obediência das normas e o motivo pelo qual pode ser reconhecido o 
direito de Antígona a transgredi-las. 
PALAVRAS-CHAVE: Antígona, lei, legitimidade, direito à resistência. 
 
INTRODUÇÃO 
 
Antígona situa-se na metade da carreira literária de Sófocles, em meados de 442 a.C., 
ocasião em que se vivia o auge da democracia estabelecida por Clístenes, ao final do século 
VI a.C. Nesse contexto político da polis, o comparecimento aos concursos trágicos de Teatro 
era, mais do que uma atividade cultural e recreativa, um dever político dos cidadãos. Sousa 
(1978, p. 6) é crucial quando afirma que ars gratia artis nunca existiu na Grécia clássica, de 
 
1
 Graduanda em Direito; e-mail: gabrielasimõespereira@gmail.com. 
2
 Graduanda em Direito; e-mail: alanafsantos@gmail.com. 
 
forma que todos os textos traziam sempre críticas e reflexões do quadro social, o que não se 
diferencia em Antígona. 
É fundamental recordar que os poemas na Antiguidade Clássica eram redigidos em 
rolos de papiro e sua comunicação era oral. Das pessoas que preenchiam os lugares no teatro 
para prestigiar as apresentações das tragédias, raros eram aquelas que viriam a obter uma 
cópia do texto. A oralidade, ressaltada por Sousa (Idem, p. 5) abrangia toda a literatura grega. 
Em contraponto, tem-se na atualidade a possibilidade de ler e reler as tragédias, verso 
a verso. Destaca-se também o fato de que os textos destinavam-se à representação teatral, 
sendo assim, as palavras escritas compõem significados incompletos quando não associados 
às imagens representadas. Esse aspecto muitas vezes prejudica a interpretação, porquanto 
palavras escritas e recitadas podem constituir significados distintos tão somente pela 
entonação que lhes é dada; isso sem levar em conta os cenários, roupas, tonalidade das falas, 
músicas e dança que também incorporavam as cenas. 
É importante, destarte, ter em mente que qualquer interpretação produzida fora do 
contexto histórico da obra seria relativa; maculada pela mudança das circunstâncias e pela 
ótica do intérprete que unge de subjetividade a obra e que dela extrai, pondera e critica 
segundo sua perspectiva. 
Tendo em vista a forte influência cultural e política da Grécia Clássica para a 
Modernidade, bem como o pungente debate sobre o fundamento, legitimidade e limite das 
leis, objetiva-se realizar uma interpretação, levando em conta as dificuldades já descritas, de 
Antígona. Almeja-se, em primeiro plano, reconstruir o contexto literário, passando pela 
abordagem do que era o sagrado na polis grega e da relevância do religioso e, a seguir, 
desenvolver uma análise das interpretações já consagradas da obra para, então, reflexionar 
sobre a legitimidade e o fundamento da lei na estória. 
 
Utilizar-se-ão os termos Estado, sociedade, público, privado, lei, soberania, entre 
outros, latu senso, sem fazer referência à compreensão moderna. Sem dúvida alguns 
anacronismos serão cometidos considerando a limitação de um artigo de pesquisa pelo que 
não torna possível aprofundar a análise de alguns conceitos, assim como pela insuficiência do 
vocabulário contemporâneo. Portanto, quando da utilização dos referidos termos, fazem-se 
necessárias as referidas escusas e ressalva. 
 
1. BREVE ANÁLISE DO CICLO TEBANO 
 
Grande parte dos mitos referentes à Antiguidade Grega faz parte do ciclo tebano, 
envolvendo em sua temática a cidade de Tebas e sua família real, com as figuras lendárias de 
Laio, Édipo, Etéocles, Polinices e Antígona. Laio, filho de Lábdaco, rei de Tebas, imperou na 
cidade tendo recebido dos deuses uma maldição que assolaria a toda sua família: seu filho, 
quando adulto, o mataria e desposaria sua esposa, Jocasta. Preocupado com o destino 
anunciado pela profecia, Laio abandonou o menino no campo, pregando-lhe os dois pés para 
impedir que fugisse. 
Frustrando os planos de Laio, o menino acaba sendo encontrado por um pastor, que 
lhe batiza com o nome de Édipo (edi podos: pés furados) e o entrega ao rei de Corinto por 
quem é criado. Adulto, Édipo se dirige à Delfos e lá conhece a profecia que havia, anos antes, 
sido descrita ao seu pai. Imaginando que fazia referência aos seus pais adotivos, Édipo foge 
de Corinto e caminha em direção à Tebas. Ao se aproximar da cidade, encontra um 
desconhecido com quem discute, levando o ignoto à morte – era Laio -. Ao chegar à Tebas, 
Édipo descobre uma cidade abalada pela presença da Esfinge, espécie de demônio da 
mitologia grega, a quem ele derrota quando decifra seu enigma (“Qual a criatura que pela 
manhã tem quatro pés, ao meio-dia tem dois, e pela tarde tem três?”). 
 
Em honra a Édipo, por livrar Tebas da Esfinge, a cidade lhe oferece o trono e o 
casamento com a rainha – Jocasta, sua mãe – com quem tem quatro filhos. Anos após, Édipo 
e Jocasta vão à Delfos e descobrem o parricídio e o incesto; em desespero, Jocasta comete 
suicídio e Édipo queima os próprios olhos e exila-se de Tebas, acompanhado por sua filha 
Antígona. 
Após a morte de Édipo, Antígona retorna à Tebas e encontra seus dois irmãos 
combatendo pelo trono: Polinices, na conhecida expedição dos sete contra Tebas, provoca a 
morte de Etéocles; porém, também não sobrevive. Como castigo pela traição, Creonte – 
sucessor do trono, irmão de Jocasta –, lança a ordem de que Polinices não poderia ser 
sepultado. Antígona obstina-se a descumprir o édito de Creonte e dar sepultura ao corpo de 
seu irmão. 
 
Da casa do Labdácidas 
as velhas maldições 
eu vejo acumular-se 
umas sobre as outras. 
Nem uma geração 
a outra livra, antes 
algum deus a derruba, 
sem remissão. Agora, 
uma luz que brilhava 
nas raízes extremas 
do palácio de Édipo 
dos deuses infernais 
o cutelo sangrento 
a demência do verbo 
a loucura da Erínia 
de novo a extingue. (vs. 593-6073) 
 
 
3
 Todas as citações de Antígona foram extraídas da tradução de PEREIRA, Maria Helena da Rocha. 6ª Ed. 
Lisboa: Fundação Calouste Guberman, 2010. 
 
Todos os males ocorridos aos descendentes de Laio aparecem referidos em Antígona 
como advindos da maldição divina recebida por aquele, em Delfos. A maldição vivida por 
Édipo e por seus filhos remonta à execração feita ao pai: a linhagem real é destinada a um 
tortuoso caminho de desgraça. 
 
1.1 ANTÍGONA DE SÓFOCLES: 
 
Antígona é o terceiro livro da trilogia tebana de Sófocles, composta também por 
Édipo-Rei e Édipo em Colono. A tragédia divide-se em partes que anteriormente Aristóteles 
definiu em sua Poética: prólogo, párodo, episódios, estásimos e êxodo (1993, p. 33). Os 
episódios e estásimos aparecem em número de cinco, tendo o quarto episódio a forma de uma 
lamentação (kommós). A tragédia orbita no embate entre Antígona e Creonte acerca do 
sepultamento de Polinices. É, em um plano maior, o duelo entre um imperativo ético e 
cultural-religioso e a lei posta pelo poder político personificado em Creonte. 
O édito de Creonte subtraiu de Polinices as honras de morte; o insulto ao seu corpo e 
à sua memória era a punição ao crime de fratricídio que provocara: seria deixado ao relento 
para ser devorado por aves de rapina e cães famintos. Qualquer um que desafiasse ir contra o 
éditopagaria com a sua vida. Antígona conversa com sua irmã: 
 
Ismene: Acaso pensas em dar-lhe sepultura, quando isso está interdito à cidade? 
Antígona: Sim, a esse irmão que é meu e teu, ainda que o não queiras. Não me 
acusarão de o ter atraiçoado. 
Ismene: Ó desvairada, que to proíbe Creonte! 
Antígona: A ele não lhe é dado separar-me dos meus. 
(vs. 44-47) 
 
Trava-se um duelo entre diké e Thémis; uma tensão entre os imperativos 
estabelecidos pela crença religiosa da polis e o direito advindo do poder político. Creonte 
 
personifica o segundo quando segue a postura do governante e ordena a punição de Polinices, 
opositor de Tebas na guerra e esbraveja frente à desobediência de Antígona que viola seu 
édito e põe em derrocada sua autoridade: 
 
Não me farei passar por mentiroso perante o país. Antes vou matar. Sobre isso, ela 
bem pode invocar o deus da consanguinidade. Porque na verdade, se eu educar os 
meus parentes por nascimento a serem desordeiros, mais ainda o serão os de fora. 
(...) aquele a quem a cidade elegeu, força é que o escutem em questões de pouca 
monta, nas justas como nas contrárias. Não há calamidade maior do que a anarquia. 
É ela que perde os Estados, que deita por terra as casas, que rompe as filas das 
lanças aliadas. (vs. 655-679) 
 
Antígona desafia o poder de Creonte, contudo, antes disso, ela incita a discussão 
acerca do limite da autoridade do rei no momento em que se encaminha para desobedecer às 
leis dos homens em desacordo com as crenças e a cultura. É o conflito indissolúvel entre o 
dever para com os ritos religiosos, a tradição, a família e as exigências do Estado: 
 
Creonte: E ousaste, então, tripudiar sobre estas leis? 
Antígona: É que essas não foi Zeus que as promulgou, nem a Justiça, que coabita 
com os deuses infernais, estabeleceu tais leis para os homens. E eu entendi que os 
teus éditos não tinham tal poder, que um mortal pudesse sobrelevar os preceitos, não 
escritos, mas imutáveis dos deuses. (...) E, se morrer antes do tempo, direi que isso é 
uma vantagem. Quem vive no meio de tantas calamidades, como eu, como não há-
de considerar a morte um benefício? E assim, é dor que nada vale tocar-me este 
destino. Se eu sofresse que o cadáver do filho morto da minha mãe ficasse insepulto, 
doer-me-ai. Isto, porém, não me causa dor. E se agora te parecer que cometi um acto 
de loucura, talvez louco seja aquele que como tal me condena. (vs. 459-410) 
 
Antígona, quando foi pega em flagrante cobrindo o corpo de seu irmão com pó pela 
segunda vez, foi levada até Creonte, que a condena à morte. Hémon tenta dissuadi-lo 
demonstrando seu amor por Antígona. O debate entre os dois acorre também no que se refere 
ao poder do soberano, que para Creonte está localizado com exclusividade na figura do rei: 
“Creonte: E a cidade é que vai prescrever-me o que devo ordenar? (...) É portanto a outro, e 
 
não a mim, que compete governar este país? (vs. 734-736); já para Hémon, com uma visão 
associada à democracia, esse poder está presente, também, na figura do povo: “Não há Estado 
algum que seja pertença de um só homem.” (vs. 737). 
Apesar da discussão com o filho, Creonte permanece irredutível na sentença 
determinada à Antígona. O Coro, que até então permanecia inerte frente às argumentações do 
soberano, apenas exaltando seu poder, após a irredutibilidade de Creonte e a manifestação de 
Antígona, que se segue, ao ser levada ao rochedo onde seria encerrada até a morte, parece 
mais complacente com a moça condenada, mas mantém-se fiel à lei do soberano: 
 
A piedade é digna de respeito, 
mas o poder, p’ra quem o detém, 
não deve jamais ser transgredido. 
Do teu ânimo a teimosia te perdeu. 
(vs. 872-875) 
 
Seguindo a perspectiva de Bowra (1960 apud SOUSA, 1978, p. 7) de que as obras de 
Sófocles estão situadas sobre dois pilares, o do real e do ilusório, seria válida a compreensão 
de que até bem próximo ao desfecho da tragédia o coro ainda encarna a ilusão, onde o total 
encobrimento da realidade não permite que perceba a inocência de Antígona, confirmando, 
apenas, as razões de Creonte. 
Com um papel semelhante ao de Hémon, Tirésias, o adivinho, aparece à cena e busca 
mudar a opinião de Creonte aproximando a vox populi da vox Dei, ambas que, não 
surpreendentemente, mantêm consonância. Trazendo à tona aspectos cruciais da religião 
grega, Tirésias ataca Creonte e profere a maldição de que o seu reinado irá cair em profunda 
moléstia. 
Depois de ouvir Tirésias, Creonte dialoga com o coro, ambos já convencidos do erro 
cometido pelo rei. Posteriormente, Creonte parte para sepultar Polinices com as próprias mãos 
 
e, logo a seguir, libertar Antígona. Entretanto, já era tarde: Antígona se enforcara dentro do 
rochedo e Hémon, que a encontrara momentos antes, também tirara sua própria vida. Ao 
chegar com o corpo de Hémon, um mensageiro informa o suicídio de Eurídice provocado pela 
notícia da morte do filho. Emblematicamente, a tragédia se encerra como o coro: 
 
Para ser feliz, bom-senso é mais que tudo. 
Com os deuses não seja ímpio ninguém. 
Dos insolentes palavras infladas 
pagam a penas dos grandes castigos; 
a ser sensato os anos lhe ensinaram. 
(vs. 1349-1353) 
 
Em Antígona, o confronto dos vivos com a morte extirpa a linhagem da casa do 
Labdácidas. A maldição dita a Laio não só se confirma, mas se reitera nas gerações 
subsequentes, os descendentes carregam a chaga “hereditária”: a tragédia é o desfecho que 
desenraiza a família. 
 
2. A RELIGIÃO NA GRÉCIA ANTIGA: OS RITUAIS FÚNEBRES 
 
Para compreender as instituições gregas dever-se atentar para um processo de 
introspecção quanto às crenças acerca da vida e da morte dos antigos e a relação dessas com o 
sagrado. É a partir da divinização dos mortos, da religião doméstica, do culto aos 
antepassados e da glorificação da alma que decorrem todas as demais regras de conduta 
imperantes nessa sociedade. O Direito Privado grego tem seu nascedouro nas crenças 
religiosas. Conforme demonstra Coulanges (1998, p. 3-4): 
 
Mas, se ao lado destas instituições e destas leis, colocarmos as suas crenças, os fatos 
tornar-se-ão mais claros e a sua explicação apresentar-se-á por si mesma. Se, 
remontando às primeiras idades desta raça, isto é, ao tempo e que este povo fundou 
 
as suas instituições, observamos a ideia então concebida do que fosse ser humano, 
de vida, de morte, de segunda existência, do principio divino, notaremos uma íntima 
relação entre estes juízos e as regras antigas do direito privado, entre os ritos destas 
crenças e as suas instituições políticas. 
 
As crenças são comparadas às leis políticas, contudo, são mais imperativas e coativas 
do que essas. A polis retira suas regras da religião: “Essa mesma religião, depois de haver 
espalhado e aumentado a família, estabeleceu uma associação maior, a cidade, e governou-a 
na mesma disciplina que a da família.”(Idem, 1998, p. 4). Assim, dos preceitos religiosos se 
originaram todas as demais instituições. 
Dentre as mais antigas crenças e de maior relevância, encontra-se o credo em uma 
segunda existência após a morte. Antes mesmo do reinado dos filósofos e da teoria platônica 
da metempsicose, os gregos “Encaravam a morte, não como decomposição do ser, mas como 
simples mudança de vida.” (Ibidem, 1998, p. 7). Não acreditavam que o espírito imortal, uma 
vez livre do corpo, animar-se-ia em outro. Igualmente, não acreditavam que o espírito iria ou 
para o céu ou para uma região de luz. 
Nesse sentido, o credo era de que, após a morte, a alma e o corpo permaneciam 
habitando o mundo terrestre, jazendo entre os vivos, em um segundo plano de existência. Os 
ritos fúnebres revelam como a polis grega compreendia a vida e a morte, consoante Fustel 
(Ib., 1998, p. 8): 
 
Os ritos fúnebres mostram-nos claramente como, quando se colocava um corpo notúmulo, se acreditava em que, ao mesmo tempo, se punha lá algo vivo. Virgílio, 
descrevendo sempre com tanta precisão e escrúpulo as cerimônias religiosas, 
termina a sua narrativa dos funerais de Polidoro com estas palavras: “Encerramos a 
alma no túmulo.” Igual expressão se encontra em Ovídio e em Plínio, o Moço. 
 
 
O culto aos mortos era o culto aos antepassados. A lei proibia aqueles não 
pertencentes à família do morto de realizarem os ritos fúnebres, até mesmo de aproximarem-
 
se do túmulo. Toda a religião era limítrofe à casa, configurando-se a religião domiciliar, 
situação em que cada família possui seus deuses, objetos de veneração, personificados por 
seus antepassados. Os antigos acreditavam que o morto conservava-se homem, perpetuado 
em sua essência, na sepultura – sua nova morada. Por isso, nunca deixavam de enterrar junto 
com o corpo alguns objetos de uso pessoal do morto. 
 
O alimento que a família lhe leva destina-se efetivamente ao morto, e 
exclusivamente a este. A prova do que aqui afirmamos temo-la no fato de que o leite 
e o vinho serem derramados sobre a terra do túmulo; ainda no de se abrir um buraco 
para fazer chegar os alimentos sólidos até o morto; e mais no de que, quando se lhe 
imolava alguma vítima, todas as suas carnes eram queimadas para que nenhum vivo 
delas pudesse compartilhar. (Ib., 1998, p. 12-13) 
 
Em sua morada, o morto usufruiria tudo que merecia de modo proporcional à sua 
vida terrena: habitava uma região imensamente mais espaçosa do que o túmulo, gozando ou 
padecendo, de acordo com seus vícios e virtudes. Era necessário que o corpo fosse coberto 
por terra e cinzas para, assim, permanecer ligado à alma. A alma sem sepultura era miserável, 
errante; dar-lhe uma morada era proporcionar sua felicidade, seu descanso, seu acalanto. O 
calvário da alma era seu não sepultamento. 
 
Em vão aspirava ao repouso que amava, depois das agitações e trabalhos desta vida; 
ficava condenada a errar sempre (...). Atormentaria então os vivos, enviando-lhes 
doenças, devastando-lhes as searas, atormentando-os com aparições lúgubres, para 
deste modo os advertir de que tanto o seu corpo como ela própria queriam sepultura. 
(Ib., 1998, p. 10) 
 
O ritual fúnebre era complexo, repleto de fórmulas e de tradição enraizada. Da 
mesma forma que havia fórmulas que propiciavam às almas o conforto do túmulo e a 
tranquilidade da morte, existiam fórmulas capazes de evocar a alma enterrada e fazê-la vagar 
pela terra. Nesse liame, compreende-se que na cultura grega antiga: “Temia-se menos a morte 
 
que a privação da sepultura. Porque na sepultura está o repouso e a bem-aventurança eterna.” 
(Ib., 1998, p. 11). Por isso, em Atenas, a lei punia os crimes considerados mais cruéis com o 
pior suplício, porquanto condenava a alma ao sofrimento eterno: a privação do sepultamento. 
Era essa a penalidade aplicada ao fratricídio. 
Consoante o destaque de Coulages, parecem caricatas e truãs as crenças dos antigos 
quando analisadas pelo olhar atual. Entretanto, são essas crenças que atribuem suportes 
simbólicos, ligam-se ao ethos e tornam repletas de valoração as instituições domésticas e 
sociais. A maior inquietação humana é a compreensão da vida e da morte. É a partir das 
elaborações de valores e crenças perante esses temas primevos que a polis atribui aos demais 
substratos de sua organização social a mesma lógica de pensamento. 
 Os rituais e hábitos para com os mortos, inicialmente caracterizados como crenças, 
logo se transmutaram em regras de conduta. O rito passou ao patamar de obrigação. A polis 
cultivava uma verdadeira religião da morte, cujos dogmas logo se reduziram em nada, mas 
cujos ritos perduraram até o triunfo do Cristianismo. Há um contínuo processo de sacralização 
dos mortos e de divinização da morte. 
 
3. O SENTIDO DO DRAMA DE ANTÍGONA À LUZ DOS VALORES EQUIVALENTES (HEGEL) E 
DO RELIGIOSO (IRMÃOS SCHLEGEL) 
 
Eberlein (in SOSA, 1978, p. 19) menciona duas vertentes interpretativas da obra, 
ambas no princípio do sec. XIX. De um lado, a teoria defendida por Hegel e embasada no 
duelo de valores igualmente legítimos, no confronte entre Antígona e Creonte, a primeira 
representando a esfera privada da família (philoi); e o segundo, a pública, do Estado (kratós). 
De outra banda, segundo os irmãos Schlegel, figura a compreensão de que o drama é 
 
eminentemente religioso, sendo Antígona a executora da vontade dos deuses, a voz que 
profere e defende valores supra-humanos. 
Lesky (1995, p. 308) alude à Antígona como a obra que mais exprimiu os 
pensamentos de Sófocles e, no entanto, por um longo tempo, foi um de seus escritos 
desconhecidos. A reviravolta deve-se à interpretação concedida por Hegel, em sua Estética 
(II, 2, 1) por meio da tese da igual legitimidade dos valores de Estado e família, vez que 
equivalentes. 
Para Hegel, Estado e família formavam uma antítese na obra e a isso se deve a 
gênese do trágico. Sendo os valores philoi e kratós equivalentes, não há outro desfecho 
possível: por necessidade ou pela fortuna, os princípios antagônicos se arruínam, quando se 
busca afirmar a ambos, num mesmo tempo, a validade absoluta. A equivalência de seus 
valores impede que se sopese, pondere e, quando do embate, não é possível fazer com que um 
se sobressaia ao outro: 
 
Hegel enfatiza o conflito de princípios da humana existência, em si mesmo 
justificados, e reconhece, no entrechocar-se de dois direitos necessários, o dualismo 
fender-se do mundo, que, na finitude não podem achar um ajustamento 
(EBERLEIN, in SOUSA 1978, p. 19). 
 
O desenvolvimento de cada princípio, para ser completo, exige, pois, que os 
personagens em luta se afirmem como totalidades, como existências concretas, de modo a 
estarem também sob o império daquilo que combatem o que acarreta a consequência de o 
prejuízo que infligem a outrem atingir precisamente o que se harmoniza com a sua própria 
natureza. Assim, Antígona, que vive sob o poder de Creonte, é ela própria filha de rei e a 
noiva de Hémon, filho do rei, de modo que deve obediência às ordens do príncipe. Creonte é 
também pai e esposo, deveria respeitar a santidade do sangue e não ordenar nada que fosse 
contrário à piedade. Tanto a Creonte como à Antígona é imanente aquilo contra o qual são 
 
ambos arrastados e destruídos pelo que faz parte da esfera de sua própria vida (Cf. HEGEL, 
1997, p. 611). 
Os Schlegel incorporaram à obra uma visão divinizada, na contramão de Hegel, 
defendendo que não existe qualquer choque de direitos equipotentes em duelo. Para eles, o 
conflito é travado entre os homens e os deuses: Antígona é a voz divina, enquanto Creonte 
personifica a maldade, a oposição às ordens e ao bem divino. Deste modo, sendo os valores 
de planos distintos, posto ser o divino a esfera suprema (a própria excelência), nesse duelo a 
moral humana sucumbe ao etéreo. 
 
Pelo contrário, só o que domina o drama é o conflito entre o humano e o divino, em 
consequência de uma revolução no sentido da vertical – conflito que de antemão se 
decide por força de preponderância de uma esfera divina, e que, afinal, se desvela 
como a suicida rebelião do inferior e condicionado contra o superior, o geralmente 
válido e sempre vitorioso. Efetivamente, enquanto, segundo a outra interpretação, 
dois valores se trituram um ao outro, situados na mesma base (‘iguais potências 
morais’, Hegel), não se pode falar agora de equivalência e contradição, pois o divino 
tudo fundamenta e tudo abraça, de modo que a revolta contra o valor em si, já está 
refutada de princípio e, por consequência da inatacabilidade dos deuses, se volta 
contra o arrogante. (EBERLEIN in SOUSA 1978, p. 19) 
 
Antígona ambicionava o bem e, na interpretação dos Schlegel, jaz na obra como 
mártir, dotada de bondade semelhante à dos deuses, de extrema devoção e fidelidade ao 
divino.Por oposição, Creonte é aquele que despreza o reinado dos deuses e quer fazer valer a 
sua lei tirânica e profana. 
A parir dos ângulos de Hegel e dos irmãos Schlegel formou-se uma acalorada 
discussão acerca de Antígona e, desde então, fecundou-se a importância do tratamento 
moderno da tragédia. Eberlein, sensatamente, foi capaz de arrazoar que as duas óticas 
poderiam ser confluentes. Assiste razão à tese de Hegel quando se tem como objeto a primeira 
parte da tragédia. Portanto, levando-se em consideração a intervenção de Creonte no primeiro 
 
episódio é nítido o conflito de interesses e de direitos entre o Estado e a família, conforme já 
havia sido vívido no Prólogo. 
 
As (duas) frentes estão claramente determinadas. Vemos o tirano, terrível em seu 
ódio contra o inimigo da cidade, e Antígona, grande em seu orgulhoso amor pela 
família, pronta para levar a sua unilateral vontade até às últimas consequências. 
(Idem, 1978, p. 22) 
 
A posteriori, transpassado o conflito entre valores, Sófocles volta-se para o ethos dos 
personagens, para o fundamento da ação de Antígona e de Creonte. É o que o crítico 
denomina viragem, porque a atenção é destinada para aspectos personalíssimos, a ação dos 
personagens e seus baldrames. Dessa forma, no segundo episódio a cena se redesenha 
encaminhando a tragédia para uma trama teológica. Nesse ponto, Antígona entra em 
consonância com o divino e invoca a lei não escrita do Olimpo; nem por isso o rei e seu 
princípio foram postos absolutamente em cheque, pois ele poderia fundamentar sua lei em 
equivalente direito, “mas pessoalmente perde-se de suas ‘razões’ desde que desdenha apelar 
para elas e já, de modo algum, age em conformidade com o seu direito” (Ib., 1978, p. 22, 
grifo do autor). 
Quanto mais Antígona aproxima-se de um fundamento teológico para suas ações, 
tanto mais Creonte perde-se em impor indiscriminadamente a sua lei, como afirmação de seu 
poder tirânico. Por algum tempo ainda se visualizam tonalidades da tensão dos valores, porém 
a situação é extirpada quando Antígona enfrenta a morte com tamanha pureza, certeza da 
legitimidade de seu direito e consciência de estar agindo conforme o querer divino. A partir 
de então, a questão religiosa adentra ao centro do drama. 
 
No Kommós caiem todas as subjetivas [pessoais!] motivações de seu ato, dando 
lugar ao veredito da própria consciência, ciente da sua consonância com os deuses. 
Com isto a sublevação de um indivíduo contra a lei do estado, torna-se subitamente 
 
em culto religioso, na pressuposição, evidentemente, que vem à luz na cena Hémon, 
essa lei não coincide com a vontade do povo e é, pura e simplesmente, 
desmascarada, como imoral e injuriosa para os deuses. (Ib., 1978, p. 23) 
 
O encontro com o divino confere à Antígona a leveza da morte já que principia a 
entender o seu sacrifício com naturalidade. De tal maneira, Antígona eleva-se e liberta-se da 
culpa pelo desrespeito às prescrições da polis, e essa culpabilidade pelo agir em 
desconformidade com a lei recai totalmente sobre Creonte: 
 
Seguramente, no começo, passa por justo senhor da polis; como seu representante, 
defende com todo direito (...) o seu estado contra as pretensões de uma família. Mas, 
na luta, Creonte é sobrepujado por Antígona, porque sua grandeza humana prova-se 
insuficiente. Combatendo em seu favor, o tirano trai, passa a passo, o princípio que 
quer proteger. (...) Creonte não tem o direito de reivindicar a defesa de qualquer 
valor para si, qualquer principio. Pois o que ele defende não é um valor absoluto, 
mas só ele, em sua finita subjetividade. Desde aí, Creonte e o princípio do Estado já 
se encontram efetivamente separados.(Ib., 1978, p. 23) 
 
No duelo, o tyranos poderia utilizar todos os artifícios para sobrepujar Antígona e, 
finalmente, legitimar suas ações como sendo àquelas voltadas para o bem da polis, mas cede 
espaço para a insurrecionada irmã de Polinices. A desproporcionada gana de afirmar seu 
poder e autoridade gera, por consequência, a corrupção dos valores de Estado que deveria 
representar. Ao passo que trai o que deveria proteger, consagra a voz de Antígona, torna-a 
heroína. 
 
4. UMA INTERPRETAÇÃO DA OBRA: A AUTORIDADE, A (I)LEGITIMIDADE E O LIMITE DA 
LEI 
 
Pelo viés jurídico, a tragédia proporciona uma reflexão sobre o que torna legítima 
uma lei emanada do poder instituído, bem como as razões que levam à obediência das normas 
 
e o motivo pelo qual é reconhecido o direito a transgredi-las. O cenário é o conflito entre 
nómos (lei) e diké (justiça) ou phýsis (natureza das coisas), como destaca Eberlein (cf. Ib., 
1978, p. 23), com maior intensidade no princípio da obra até o segundo episódio e no 
Kommós. 
A transgressão de Antígona ao édito do tyranos (aquele que conquista o poder pelo 
mérito) é contrária ao Direito, uma vez que o Direito ático previa que o cadáver de Polinices 
permanecesse insepulto. Quanto à Ismene, frente à submissão ou à morte, prefere aquietar-se; 
no íntimo, ela não visualiza a possibilidade de enfrentar o soberano, a um, porque ele é 
homem e, relativamente ao gênero, a mulher grega era, culturalmente, submissa; a dois, 
porque Creonte é o rei. 
A philia que impulsiona Antígona é a identidade com seus entes queridos, sua fé e a 
cultura grega para com os mortos. Sua postura é uma ruptura com os deveres da vida cívica, 
já que oposta à lei. No entanto, é a fidelidade com a diké atemporal, a lealdade para com a 
família. Entende que a polis não pode fazê-la escolher entre renunciar à fraternidade do seio 
familiar e a obediência às leis políticas. 
Apesar de suas razões, ainda assim a ação de Antígona estaria infundada, posto ser o 
não enterro do traidor da polis apoiado em costume. Até então, Creonte teria ao seu favor, 
além do decreto, toda a tradição tebana. Porém, a situação modifica-se no deslinde da estória 
e o rei, na tentativa de estabelecer a ordem e legitimar o poder, acaba desvirtuando os valores 
que harmonizavam a vida política, o que causa a derrocada não só do seu reinado, mas 
também de toda a família real. 
Ocorre que a ação de Antígona poderia ser simplesmente contornada pelo tyranos. 
Creonte poderia ter invocado do Direito ático o instituto do eksorimós, o qual impedia que os 
ladrões e traidores fossem enterrados dentro dos limites da cidade (Cf. Tucídides I 138 apud 
SOUSA, 1978, p. 22). Chamando ao seu favor as leis de Tebas e os costumes, Creonte teria 
 
assegurado a legitimidade de suas ações e Antígona apenas agiria como uma insubordinada 
sem um agudo fundamento. 
Em verdade, a proibição de Creonte vai demasiadamente longe, afora o que era 
estabelecido pelo Direito tebano. A privação de sepultura no território pátrio poderia ser 
suprida pela efetivação dos ritos fúnebres no solo vizinho. A cominação aplica a Polinices não 
poderia ser mais esbravejante do que foi, ao ponto de Creonte ordenar que seu corpo ficasse 
ao relento, sob a guarda, para que os cães e as aves o devorassem. O revanchismo do rei 
supera o admissível e, embevecido de poder, age arrediamente, à revelia da lei. 
O tyranos perverte a sua autoridade, põe-se, inveteradamente, a afirmar o poder sem 
limites do Estado e, em decorrência, o seu poder inabalável. A obstinação pelo domínio, 
autoridade, força e coerção corrompe a sua intenção primordial de proteger a polis de 
inimigos e traidores, tanto que sua investida em prol da ordem transforma-se na própria 
desordem do seu reinado. “Este Creonte é a voz do Estado que conhece os seus direitos, mas 
também os seus limites. Impele-o a imoderação que ignora tudo o que não seja ela própria, 
pois se apresenta com pretensões de autoridade.” (LESKY, 1995, p. 309) 
A perversão dos atos do tyranos não é causada porque é algoz, um ser 
intrinsicamente malvado; mas sim, pois, para Creonte, o Estado é ilimitado e supremo, e,como projeção, ao governante não se podem impor restrições. É uma paixão patológica 
exacerbada pelo poder que o leva a praticar qualquer ato para perpetuar sua soberania. 
 
A hybris de Creonte move-o a desgraça, incontida, paixão por um poder, que o seu 
momentâneo detentor devia considerar como apenas delegado. Essa paixão por um 
poder vai-se agravando de cena em cena até o fim do quinto episódio, porque a átê a 
converteu em insaciável loucura, em tão caótica excessividade, que nenhuma 
potencia humana ou divina poderia contê-la. (SOUSA, 1978, p. 18) 
 
 
Na compreensão grega, o excesso é o aspecto primordial do dionisíco, o incontido ou 
o mal contido é o que o caracteriza. Em contradição ao apolínio que era a contenção, a 
prudência. É pelo excesso que Creonte é acometido pela loucura e, por ela, ele torna-se tão 
algoz que sucumbe como Antígona, com a diferença de que ela suicida-se como forma de 
libertação e transcendência ao divino, como anuncia Lesky (1995, p. 309): “Mal Creonte 
pronuncia a condenação à morte de Antígona, inicia-se também o caminho que conduz ao seu 
derrube.” 
Nesse sentido, pode-se entender a tragédia como uma resistência a Creonte, sendo o 
tyranos aquele que personifica o excesso do poder, a usurpação da autonomia do cidadão, a 
incontinência do Estado, a arbitrariedade da lei. 
 
A Antígona não é um drama de tese, mas, através da acção e do sofrimento destas 
personagens, manifesta-se com suficiente clareza o problema de o Estado poder 
aspirar a ter a última palavra ou também ele dever respeitar as leis que não tiverem a 
sua origem nele e que, portanto, permanecem sempre subtraídas à sua intervenção 
(Ibidem, 1995, p. 309) 
 
Por essa perspectiva, Antígona não escolhe sepultar Polinices, pois se trata de um 
imperativo ético e não uma opção. Ela se coloca contra o édito, discorda de sua autoridade e 
legitimidade. Ao agir dessa maneira, Antígona não teme a sua morte, sua ação atende à lei do 
amor aos seus, o que coloca sua visão de justiça em dissonância com o Direito pervertido pela 
tirania. Ao seu irmão morto, portanto, ela pratica uma homenagem. 
 5.1 DIREITO À RESISTÊNCIA? 
O confronto entre Antígona e Creonte é, sobretudo, o confronto entre as leis do poder 
político e as leis da tradição, dos costumes e da religião. De um lado, a (i)legitimidade do 
Direito personificada por Creonte, com aporte na autoridade de quem governa e na utilidade 
do decreto (como deixar impune um traidor da polis?). De outro, a legitimidade das normas 
 
não escritas situadas na cultura religiosa, nos costumes e na tradição dos rituais fúnebres, com 
razões advindas da fé, do amor e do cuidado fraternal. 
Nesse ponto, consolida-se o embate da esfera política com a religiosa. Todavia, 
diferentemente de uma sociedade secular Moderna, situação em que o Estado se desvencilhou 
da religião, pelo menos teoricamente, a Grécia Antiga não aceitava disjunção, - as leis divinas 
não entravam em contradição com o Direito. A religião era doméstica, ou seja, era privada; 
enquanto a política, pública. Contudo, da concepção de sagrado e das crenças religiosas 
nascem as demais regras de convívio interpessoal e de gestão da coisa pública. Portanto, por 
mais que as práticas religiosas e políticas fossem restritas a ambientes diversos, elas 
caminhavam em harmonia de passos. 
Creonte, ao impor seu decreto, trouxe a tensão entre os dois polo. Logo, Antígona 
vê-se obrigada a desobedecer às leis de Tebas para seguir uma lei maior, advinda da cultura. 
O político invadiu uma área que não lhe pertencia. Seguindo a contextualização feita, o 
sepultamento dos entes queridos é um valor arraigado à cultura que o impedir seria ferir a 
ordem natural. Trata-se de um princípio no qual estava baseada a sociedade grega, sua 
manifestação cultural e religiosa e que, portanto, não estaria disponível ao soberano e não 
poderia ser negado à população. Desse modo, Creonte extrapolou o limite de 
discricionariedade que tornava legítimo seu reinado, ocasião em que assumiu o risco do 
confronto. Desde aí, Antígona surge para questionar a autoridade incontida e ressaltar os 
valores que extrapolam a própria noção do governar. 
Poder-se-ia, anacronicamente, remeter à ideia de direito à resistência. Esse direito 
seria uma forma legítima de violar a lei quando sua instauração carece de legitimidade e do 
que é compreendido como justo perante os parâmetros éticos, morais e sociais. De tal modo, a 
postura de desobedecer, embora ilegal, pode ser considerada legítima tendo em vista que a 
transgressão da lei pode ser instrumento para a correção de possíveis erros e abusos do 
 
legislador ou de quem a aplica. Tem-se que a desobediência não é em si mesma uma conduta 
repreensível: depende dos fundamentos da ação, sejam eles legítimos ou ilegítimos, para 
formar um juízo de valor. 
Porém, nesse ponto, instaura-se um novo problema. Admitir que a transgressão não é 
repreensível se seus fundamentos forem justos não seria acolher a possibilidade de uma crise 
endógena do sistema jurídico? Ou seja, uma auto aniquilação, como se o Direito fosse a 
serpente Ouroboros que devora sua própria cauda? 
Considerando que a lei entendida com ilegítima não gera ordem porque peca na 
relação de justiça que deveria expressar e, além disso, desmotiva a obediência, a crise 
endógena seria fruto da obediência cega e não da obstinada rebelião. O cerne é a questão do 
respeito à reciprocidade entre o governo e os anseios dos cidadãos. O caos é viver sob a égide 
de uma lei injusta e não na desobediência do direito considerado ilegítimo. 
Outrossim, não é qualquer ato do poder instituído que merece obediência, porquanto 
a sociedade não transacionou sua faculdade de obedecer às leis injustas. O direito à resistência 
persiste quando o comando legal viola o cuidado de si. O fazer o que é considerado injusto é, 
de certo modo, uma violação da cidadania e, obviamente, dos valores do sujeito moral. 
Enquanto a obediência é um ato de liberdade do sujeito moral frente à instituição de 
um poder, a subordinação é a supressão do livre-arbítrio e da cidadania. Em última análise, 
acatar as deliberações do que se considera ilegítimo é estar em constante estado de 
subordinação. 
 
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 
 
O embate entre Creonte e Antígona é o duelo entre nómos e diké. A tensão que se 
manifesta ao desenrolar da obra se dá a partir da lógica política violenta do tyranos que ultraja 
 
o povo e ilegítima o poder quando ultrapassa qualquer limite, utilizando-se da força e da 
autoridade desmedida para validar sua lei, assim como quando não respeita os ditames dos 
princípios religiosos do povo tebano: força de ânimo à ordem do Estado. 
O Direito grego e todas as demais instituições têm seu nascedouro nas crenças 
religiosas. As crenças são comparadas às leis. É da religião que a polis retira suas regras, sua 
legitimidade e seus costumes. O direito posto, fundado nas razões de um único homem, levou 
todos os envolvidos à tragédia. Tal fato suscita questionar até que ponto a lei pode ser imposta 
e qual o dever de obediência dos cidadãos. O limite da lei positiva deve-se pautar pelos 
anseios da população, o que lhe confere legitimidade em uma democracia e, de certa forma, 
eficácia, pois amoldada aos costumes. 
Em Antígona se aborda a questão da (i)legitimação da lei e do poder, da autoridade e 
do limite dessa autoridade. Nessa seara, a importância da obra Antígona está no fato de que 
ela transcende os questionamentos sobre religião e Direito e adentra ao debate de como se 
pode alcançar a justiça por meio da esfera jurídica: vê-se uma lição que valoriza a importância 
dos princípios do povo na validação das leis vigentes, na legitimidade do poder do próprio 
Estado. 
A lei do governante, porque ditada por aquele que foi eleito/escolhido para reinar, 
ganhariaum estatuto ontológico superior ao humano? A legitimidade da lei é pautada apenas 
por quem a faz? Não seria um contrassenso lhe dar validade e legitimidade acima dos anseios 
humanos e, portanto, acima das razões daqueles que as criaram ou decidiram quem deveria 
criá-las? Como uma criação humana, uma ficção dos homens, pode sobrepujar a eles 
próprios? No império da lei resta espaço para a autonomia dos sujeitos? 
Conclui-se, insatisfatoriamente, que desafiar o Direito posto é um exercício de 
renovação e de reconstrução de valores que possibilita a congruência entre os anseios do 
cidadão e a legislação, bem como, mediante a provocação, o desenvolvimento do próprio 
 
Direito, em um processo dialógico. Por conseguinte, o direito à resistência, antes de ser uma 
ulceração no Direito, é a eclosão de seu potencial de renovação. Até porque, a diké apenas 
floresce em oposição ao monólogo, à unilateralidade. 
 
REFERÊNCIAS 
 
ARISTÓTELES. Poética. Tradução, prefácio, introdução, comentário e apêndices de Eudoro 
de Sousa. 5ª Ed. São Paulo: Ars Poética, 1993. 
COULANGES, Numa Denis Fustel de. A cidade antiga; Tradução de Fernando de Aguiar. 
São Paulo: Martins Fontes, 4ª ed., 1998. 
EDERLIN, E. Sobre as diversas interpretações de Antígona de Sófocles in SOUSA, Eudoro. 
Uma leitura da Antígona. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1978. 
HEGEL, G.F.W. Curso de Estética – O sistema das artes. Tradução de Álvaro Ribeiro e 
Orlando Vitorino. São Paulo: Martins Fontes, 1ª ed. 1997. 
LESKY, Albim. História da literatura grega. Lisboa: Fundação Calouste Guberman, 1995. 
SÓFOCLES. Antígona. Introdução, versão do grego e notas de Maria Helena da Rocha 
Pereira. 6ª Ed. Lisboa: Fundação Calouste Guberman, 2010. 
SOUSA, Eudoro. Uma leitura da Antígona. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 
1978.

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