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Apostila de Antopologia Cultural

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ANTROPOLOGIA CULTURAL
1
ANTROPOLOGIA CULTURAL
Graduação
ANTROPOLOGIA CULTURAL
13
U
N
ID
A
D
E 
1
CULTURA: UM CONCEITO POLISSÊMICO
E DINÂMICO
Caro(a) Aluno(a),
É com enorme satisfação que recebemos você para cursar a disciplina
Antropologia Cultural.
Nessa unidade, iniciaremos nossos estudos abordando o problema da
variabilidade das culturas humanas no tempo e no espaço. Em seguida,
buscaremos mapear os diversos sentidos associados ao conceito de cultura,
mostrando seus antecedentes históricos e suas correlações com o
desenvolvimento da concepção antropológica.
Estamos certos de que a partir de agora e no decorrer das outras
unidades, você desenvolverá uma nova perspectiva para perceber e analisar
a intensa diversidade das formas de comportamentos, crenças, valores e
estilos de vida que marcam as relações humanas em contextos sociais
historicamente configurados.
OBJETIVOS DA UNIDADE:
• Reconhecer a variação cultural como dado constitutivo das
diferentes sociedades humanas;
• Perceber que as culturas humanas variam em ritmos e
modalidades diversas no tempo e no espaço;
• Compreender o caráter polissêmico e dinâmico do conceito de
cultura;
• Correlacionar o conceito de cultura e diversidade no contexto
das sociedades contemporâneas;
• Conhecer os antecedentes históricos do conceito de cultura e
sua importância para a gênese do campo antropológico;
• Compreender a posição antropológica diante das teorias
deterministas.
PLANO DA UNIDADE:
• Cultura e Diversidade: uma temática antropológica e
contemporânea
• Cultura: dos sentidos comuns à concepção antropológica.
• Duas concepções básicas de cultura e as relações entre elas.
• Antecedentes históricos do conceito de cultura.
• As noções de “Kultur” e “Civilization”.
• O conceito de cultura de Tylor: a reunião de todas as
possibilidades de realização humana.
• A gênese da Antropologia como campo de saber
• Cultura: aquisição ou inatismo?
Seja bem-vindo à primeira unidade de estudo!
Desejamos a você sucesso em sua aprendizagem!
UNIDADE 1 - CULTURA: UM CONCEITO POLISSÊMICO E DINÂMICO
14
CULTURA E DIVERSIDADE: UMA TEMÁTICA ANTROPOLÓGICA E
CONTEMPORÂNEA
A variedade das manifestações culturais é um dado que parece
acompanhar o desenvolvimento da história da humanidade. Em diferentes
épocas, tempos e lugares o homem nunca deixou de se questionar sobre o
mundo que o envolve e de organizar, de formas diversas, a vida em sociedade.
Esta diversidade de formas não se restringe apenas ao plano das relações
sociais que os homens mantém entre si quando em interação. Ela possui um
espectro bem mais amplo, englobando diferentes modos de ocupar o espaço
geográfico e territorial; de explorar e de transformar os recursos naturais;
de organizar o plano de suas ações presentes e de criar visões projetivas
do futuro; de conceber a vida e de expressar a realidade.
Se lançarmos o olhar para cada uma destas formas, perceberemos com
facilidade a multiplicidade de exemplos que a história registra. De uma
perspectiva que considere uma temporalidade mais distante e remota, é
significativo à curiosidade que os antigos sítios arqueológicos de civilizações
passadas ainda exercem sobre nós. Olhamos com espanto e admiração
criações como as pirâmides do Egito, os hieróglifos encontrados nas tumbas
dos faraós, a fabricação de utensílios domésticos, de instrumentos de caça e
pesca, a confecção de esculturas, objetos de adornos e a arte rupestre
desenvolvida por povos que habitaram diferentes partes do mundo como a
Península Ibérica e o continente sul-americano. Em todos esses casos, trata-
se de testemunhos estéticos que revelam como estes povos utilizaram a
forma e o grafismo como um instrumento de linguagem capaz de representar
seu pensamento, suas crenças e seus modos de vida traduzindo uma relação
direta entre o homem, a natureza e o universo.
De uma perspectiva que leve em conta uma temporalidade mais próxima
e presente, a constatação desta diversidade de manifestações culturais nas
formas de organização da vida social não se coloca como um dado excludente.
Pelo contrário, ela se impõe com força e sugere uma enorme riqueza de
traços, formas e nuances em suas variações. Se tomarmos como foco de
observação à família brasileira verificaremos, sem muitas dificuldades,
mudanças pontuais quanto ao padrão de atitudes que informam as maneiras
de pensar e agir dos nossos antepassados quando confrontado com àquelas
que adotamos no cenário da vida contemporânea.
O ingresso da mulher no mundo do trabalho é exemplo ilustrativo dessa
mudança, na medida em que alterou a posição que ela tradicionalmente
ocupou no seio de uma sociedade que, durante muito tempo, esteve marcada
pelo regime patriarcal como foi o caso da oligarquia rural brasileira.
Atualmente, convivendo lado a lado, com a posição de mãe e esposa que
tradicionalmente ocupou, a inserção da mulher no mundo do trabalho, ampliou
sua esfera de atuação na sociedade, diversificando não apenas os papéis
sociais a serem desempenhados, mas também, sua rede de relações sociais.
Correlativamente, alteraram-se também as normas e os critérios
utilizados para a escolha e a definição do cônjuge visando o estabelecimento
Arte Rupestre: rupestre –
termo que se origina do
latim rupes, - “rocha”, tendo
entrado no vernáculo
através do francês, com a
significação de “gravado na
rocha”. A arte rupestre
representada nas pinturas
gravadas em rocha, nas
paredes das cavernas,
constitui assim, um
testemunho vivo que
atesta ao mundo
contemporâneo, não
apenas, a existência de
várias civilizações
desaparecidas, como
também, ilustra a
existência do passado
longínquo do homem no
tempo.
ANTROPOLOGIA CULTURAL
15
das relações matrimoniais. No mundo contemporâneo, esta escolha deixou
de ser uma prerrogativa dos pais, alicerçada à época em relações de
compadrio que determinavam um conjunto de obrigações recíprocas e trocas
mútuas entre redes familiares diversas, como também, em esforços
conjugados visando à manutenção de interesses econômicos e políticos; e,
passou a constituir um atributo que embora sujeito à interferência de
inúmeros fatores, funda-se prioritariamente no desejo pessoal e na vontade
individual de cada parceiro.
A variedade das manifestações culturais não se reduz apenas a uma
questão de temporalidade como procuramos mostrar até aqui. É preciso que
ampliemos o foco da nossa visão no sentido de perceber que a diversidade
das formas culturais se estende também no espaço. Assim, quando lançamos
nosso olhar para povos e grupos humanos situados em outros continentes
ou em regiões do mundo afastadas e distantes da nossa própria sociedade,
uma enorme multiplicidade de práticas, hábitos, comportamentos, crenças e
costumes entram em cena provocando, muitas vezes, em nós, um sentimento
de estranhamento e perplexidade.
Se esta diversidade é, por um lado, facilmente constatada por nós quando
observamos, por exemplo, as variedades lingüísticas que caracterizam os
diferentes povos do mundo, por outro lado; não podemos deixar de considerar
que de modo semelhante, o mesmo ocorre quanto às formas pelas quais
estes mesmos povos expressam suas visões de mundo e seus valores
culturais. É no centro desta perspectiva, que podemos situar algumas
variações de atitudes diante de fatos existenciais aparentemente comuns.
As práticas e as interdições alimentares das diferentes sociedades
humanas demonstram bem esta colocação. Assim, enquanto rãs e escargots
são considerados iguarias preciosas na culinária francesa, para os hindus o
consumo da carne de vaca constitui uma proibição, o mesmo se dando entre
os muçulmanos no que diz respeito à ingestão da carne de porco. Ritose
práticas corporais constituem outro conjunto de dados que, quando
comparados, reforçam esta diferenciação. Se em algumas praias de países
europeus o nudismo é uma prática socialmente aceita e tolerada entre
banhistas, o mesmo não acontece em países islâmicos, nos quais, muitas
vezes, é vedado à mulher a liberdade de expor o próprio rosto em locais
públicos.
Como você pode notar, poderíamos estender nossa lista elencando uma
imensa quantidade de exemplos que não nos deixam negar, mas que pelo
contrário, corroboram a constatação quanto à permanência da diversidade
cultural quando olhamos comparativamente para diferentes povos, grupos
e sociedades humanas situadas em espaços geográficos e territoriais
distintos. Entretanto, é necessário que, novamente, redirecionemos o nosso
olhar em busca de um outro tipo de percepção.
Neste sentido, o convite que fazemos é para que possamos,
conjuntamente, ajustar o foco da nossa visão para um campo de observação
mais estreito e mais próximo que leve em conta uma única e mesma sociedade.
Feito isso, a questão fundamental que nos motiva e que tentaremos responder
UNIDADE 1 - CULTURA: UM CONCEITO POLISSÊMICO E DINÂMICO
16
consiste em saber se a diversidade das formas culturais é um dado que se
mantém no interior de uma mesma sociedade quando vista a partir de sua
singularidade. Ou seja, se olharmos para o interior de uma determinada
sociedade qualquer, é possível perceber e detectar formas diferenciadas
no seu modo de organizar internamente as relações entre os homens e o
mundo ou estão as mesmas pautadas em um todo homogêneo e uniforme?
Para discutirmos esta questão e facilitarmos a sua compreensão, tomemos
como ponto de observação a nossa própria sociedade, isto é, a sociedade
brasileira vista em sua totalidade. Considerando o caráter estreito e íntimo
que marca a relação que mantemos com a mesma, procuremos mapear os
sentidos das nossas percepções.
De um ponto de vista mais abrangente, nos salta aos olhos sem grandes
dificuldades, diferenças significativas que envolvem, por exemplo, o estilo de
vida de um homem que mora e trabalha no meio rural, em contraposição com
aquele adotado por um habitante que vive nas grandes metrópoles dos
centros urbanos brasileiros. Vistos assim, campo e cidade parecem constituir
pelo menos aparentemente, pólos opostos de uma mesma realidade quando
se trata de comparar as relações que os homens estabelecessem entre si e
o contexto que os envolvem conforme habitem um ou outro destes espaços
sociais tão distintos.
Embora compartilhem de algumas características em comum, como a
língua, uma complexa e diferenciada rede de significados pode ser percebida
demarcando limites fronteiriços nos padrões identitários constituídos. Estes
limites apontam para formas extremamente diferenciadas de se conceber e
exprimir trajetórias e biografias pessoais, de desenvolver as atividades de
produção e lazer, de se relacionar com as tradições religiosas, com os
fenômenos da natureza e com o desconhecido.
Desta forma, há um estilo de vida marcado por um ritmo de trabalho
acelerado, regulado por uma intensa diversificação de tarefas e por pressões
econômicas que estabelecem para o indivíduo, metas rígidas a serem
cumpridas como critério base de avaliação do desempenho profissional em
um mercado de trabalho altamente concorrido e competitivo, no qual as
relações de produção parecem constituir o eixo que sustenta e define os
padrões de consumo, as expectativas de crescimento e os projetos para o
futuro, se contrapõe um outro estilo, fundado em critérios bastante diferentes.
Assim, contrariamente ao que ocorre nas grandes metrópoles onde a
vida, na maioria das vezes, se desenrola de forma distanciada do contato
direto com a natureza, a vida no campo parece eleger justamente a natureza,
como sua âncora e referência básica. É em torno dela que se estruturam,
não apenas as relações de produção, mas todo um outro conjunto de práticas
e ações por meio das quais a sociedade simbolicamente expressa sua visão
de mundo e externaliza seus valores culturais.
Da relação com a terra deriva uma nova maneira do grupo perceber e se
relacionar com o tempo e com o espaço. As estações do ano são marcadores
temporais fundamentais para a definição do ritmo das atividades laborais,
na medida em que estabelecem a época propícia para o plantio, para a
ANTROPOLOGIA CULTURAL
17
procriação do gado e para a colheita, como contribuem também, para a criação
de um outro calendário que reorganiza a vida social estabelecendo os
períodos de festa e celebração aos santos padroeiros, a temporada das
chuvas, a chegada da estiagem, ao fim da seca e a fartura da colheita, cada
um deles envolvendo musicalidades, oralidades, práticas corporais e
gestualidades diferenciadas. Ao tempo cronológico une-se, assim, um outro
tempo: um tempo cósmico, religioso e humano que carrega o espaço de
outras dimensões de significado.
Se ao prosseguir em nosso esforço comparativo, reduzirmos o espectro
da nossa abordagem para um ponto de vista mais localizado que considere
somente os centros urbanos brasileiros como foco de observação, ainda
assim, a diferenciação das formas culturais no interior de uma mesma
sociedade parece se evidenciar. Assim, quando observamos a geografia
urbana das grandes metrópoles brasileiras, como é o caso das cidades do
Rio de Janeiro e São Paulo, a divisão do espaço habitável em “centro” e
“periferia” se apresenta como um dado representativo para se pensar esta
diferenciação.
Traduzidas pelo senso comum englobante através de pares de oposição
como “morro” versus “asfalto” ou “moradores de cima” versus “moradores de
baixo” esta divisão, muito mais do que uma mera distribuição diferenciada da
população no espaço geográfico e arquitetônico da cidade, indica um outro
tipo de separação. Se nos questionarmos a respeito dos critérios utilizados
para classificar e dividir os moradores que habitam estas duas áreas distintas
não é difícil constatar que por detrás dos mesmos, reside toda uma outra
série de marcadores sociais que em conjunto concorrem para legitimar esta
separação entre ambos. Eles sinalizam, na verdade, para a profunda
desigualdade social existente em um país cingido pela divisão de classes
sociais cuja ordem econômica vigente impõe limites estruturais, ao
posicionamento das mesmas no interior do sistema capitalista, constituindo
assim, um campo de forças no qual o conflito de interesses parece ser a
regra e não a exceção.
Em outras palavras, a oposição “morro” versus “asfalto” indica não apenas
a forma pela qual a população está geograficamente distribuída no cenário
urbano das cidades contemporâneas. Ela também revela as desigualdades
sociais que subjazem a esta distribuição no que diz respeito ao poder
econômico dos diferentes grupos sociais que, a depender da renda familiar,
da condição financeira, do capital político e cultural que cada um detém,
definirão formas mais ou menos diretas de acesso às políticas públicas e
institucionais destinadas às áreas da saúde, educação, habitação, transporte,
segurança, cultura e lazer, dentre outras.
Como, no exemplo anterior, é importante que você observe que também
neste caso, a distribuição diferenciada dos grupos sociais no interior do espaço
urbano não ocorre sem que, simultaneamente, as práticas e as ações
humanas sejam revestidas de novas significações e dimensões de sentido
que demarcam os sinais distintivos de suas identidades específicas e dos
estilos de vida que a partir delas se configuram. Fato ilustrativo desta
UNIDADE 1 - CULTURA: UM CONCEITO POLISSÊMICO E DINÂMICO
18
colocação refere-se à importância dos bailes “funks”, que em sua organização
e efetividade, mobilizamtodo um repertório simbólico no qual música, ritmos,
compassos, melodias, letras, danças e oralidades compõem um todo unificado
que parece traduzir a oposição “morro” versus “asfalto” de que falávamos
anteriormente.
 Por meio deles, os “moradores de cima” ritualizam a experiência subjetiva
da desigualdade estrutural vivenciada face aos “moradores de baixo” e
fortalecem em ritmo de festa e celebração, os vínculos que dão unidade aos
fragmentos existenciais. Neste processo, no qual o figurativo funciona mais
do que o conceitual, parece haver uma estreita e íntima correlação entre o
deslocamento geográfico a que são compelidos a exercitar cotidianamente
ao descer o “morro” e, um outro tipo de deslocamento social em torno do
qual associam a idéia de ascensão e projeção social ao chegar no “asfalto”
que inverte estas oposições, resignificando a aparente contradição entre
“pobreza material” versus “riqueza simbólica”.
Diante do exposto e independentemente do espaço social considerado
– campo ou cidade – a resposta a nossa pergunta inicial parece caminhar,
portanto, no sentido de uma posição que toma como legítima a seguinte
afirmativa: as culturas humanas não constituem totalidades homogêneas e
nem realidades estanques e isoladas. Muito pelo contrário, relações marcadas
por diferenças sociais fundadas em critérios como classe social, faixa etária,
grau de escolaridade, relações de gênero e parentesco entre outros, situam
os homens de forma desigual no tecido social e contribuem para tornar as
culturas humanas um mecanismo simbólico que expressa tais diferenciações,
ao mesmo tempo em que constitui, o terreno firme sob o qual estas mesmas
diferenciações se apóiam e ganham força.
Deste modo é importante que você fique atento ao caráter dinâmico que
envolve as diferentes formas pelas quais as culturas humanas se manifestam
no tempo e no espaço, seja no que tange a abordagem analítica de uma
sociedade particular, seja no que toca o estudo comparativo de várias
sociedades. Aliás, é sempre bom lembrar que só nos é possível falar em
diferenciação exatamente por que os grupos humanos estão em permanente
contato e interação. Por outro lado, isto não significa postular que estas
interações tenham sempre conduzido as sociedades humanas a relações
pacíficas e harmônicas. Como vimos em exemplos anteriores, aqui também
uma série de fatores entram em pauta conduzindo muitas vezes a relações
marcadas por tensões e conflitos entre interesses econômicos e políticos
diversos, cujas conseqüências, na maioria dos casos, resultaram como a
própria historiografia demonstra na subjugação de uma cultura aos critérios
de uma outra considerada dominante, como teremos a oportunidade de
abordar de forma mais detalhada ao longo dos nossos estudos.
No entanto, para que você possa visualizar melhor as colocações acima,
tomemos para efeito de uma breve ilustração: a situação dos grupos
indígenas brasileiros. Por mais isolados e distanciados que estejam e tenham
suas próprias particularidades quanto às formas de perceber a realidade e
de organizar a vida social, estes grupos não puderam, ao longo da história,
ANTROPOLOGIA CULTURAL
19
evitar o contato com a sociedade nacional cujas políticas de expansão
produziu não só impactos significativos no modo de utilização e apropriação
dos recursos naturais, como introduziu também novas crenças, valores e
concepções de mundo que desagregaram a estrutura social destes grupos,
colocando muitas vezes sob ameaça a própria sobrevivência, e,
conseqüentemente, a possibilidade de continuidade de suas existências
concretas.
No conjunto, as diferentes constatações que tivemos a oportunidade de
observar a partir de todos os exemplos aqui discutidos, nos permite definir
alguns pressupostos básicos que devem nortear daqui para frente a nossa
reflexão teórica a respeito da variabilidade das culturas humanas. Procure
ficar bem atento e vamos a eles:
1. As culturas humanas se desenvolveram no tempo e no espaço
em ritmos e modalidades extremamente variáveis, embora seja
possível identificar entre as mesmas, pontos de convergência
que sinalizam para tendências globais, já que constituem
produtos de uma mesma espécie viva, o homo sapiens.
2. A variedade das culturas humanas é um dado constitutivo das
diferentes sociedades, seja quando consideradas de uma forma
particularizada, seja quando situadas em uma perspectiva
comparativa que as coloca em relação.
3. As culturas humanas são resultantes de processos históricos
específicos que possibilitaram o seu desenvolvimento. Deste
modo, os elementos que compõem internamente seu repertório
de valores devem ser analisados de forma situada e
relacionalmente aos contextos históricos particulares nos quais
se configuraram.
4. As culturas humanas não constituem totalidades homogêneas
e nem realidades estanques. Há uma enorme multiplicidade de
critérios de diferenciação dos grupos sociais no interior das
sociedades humanas que as tornam extremamente
heterogêneas e diversificadas.
5. As culturas humanas se desenvolveram de modo dinâmico e
variável em decorrência do permanente contato e interação que
puderam estabelecer ao longo da história. Destas interações
resultaram relações nem sempre pacíficas entre as diferentes
sociedades humanas cujas conseqüências merecem estudos
mais sistemáticos e detalhados.
A partir destes pressupostos, é importante que você perceba como o
estudo da variabilidade cultural constitui um aspecto de fundamental
relevância para a compreensão das sociedades contemporâneas. Se
tomarmos como base das nossas reflexões, a consideração de que as culturas
humanas constituem mecanismos simbólicos e de significação, através dos
quais as diferentes sociedades externalizam e expressam seus próprios
valores e visões de mundo, diversas razões podem ser apontadas para
justificar esta relevância. Sugerimos a você que pense, cuidadosamente, a
UNIDADE 1 - CULTURA: UM CONCEITO POLISSÊMICO E DINÂMICO
20
respeito de algumas destas razões a partir das considerações que
apresentamos a seguir.
Em primeiro lugar, o estudo da variação cultural nos permite compreender
um pouco mais a respeito de nós mesmos e da nossa própria sociedade, na
medida em que através dele, podemos colocar em discussão os limites das
nossas próprias atitudes, posições e valores nos diferentes espaços sociais
em que estamos inseridos e com os quais interagimos de forma permanente
e contínua.
Em segundo lugar, e correlativamente, esta discussão abre espaço para
o diálogo com a diferença – uma problemática central da abordagem
antropológica – contribuindo para a superação de atitudes preconceituosas
que, na maioria das vezes, nos conduzem a posturas marcadas pela rigidez
e pela intolerância que nos impedem de reconhecer a humanidade dos outros
coletivos sociais com os quais nos relacionamos.
Finalmente, esta discussão nos possibilita articular o pensamento através
de um duplo movimento. De um lado, ela nos permite identificar as diferentes
formas de interação da nossa própria sociedade com outras sociedades que
lhe são distintas e, de outro; problematizar contextualmente nossas próprias
diferenças internas, contribuindo assim, para a percepção e o conhecimento
da nossa própria identidade enquanto nação.
Diante destes parâmetros, é fundamental que procuremos não apenas
entender ao longo da história do desenvolvimento das sociedades humanas,
os vários significados que foram atribuídos ao termo cultura, como também
que busquemos identificar as razões e os sentidos de tanta variabilidade.
Este é o conteúdo que abordaremos a seguir, no próximo tópico dessa nossa
primeira unidade de estudos.
CULTURA: DOS SENTIDOS COMUNS À CONCEPÇÃO ANTROPOLÓGICANo domínio do senso comum onde prevalece o uso da linguagem coloquial,
a palavra cultura constitui um termo difuso que engloba uma imensa variedade
de situações e fatos sociais e remete a uma enorme multiplicidade de sentidos
e significados, o que nos permite afirmar, por conseguinte, que ela possui
um caráter polissêmico e dinâmico.
Vejamos então, alguns dos significados atribuídos ao termo e os diferentes
usos que dele são feitos, enquanto instrumento discursivo informalmente
utilizado, nos diferentes espaços sociais que compõem as sociedades
humanas, tentando localizar nestes usos as situações e/ou fatos que são
por ele designados.
Cultura pode ser um termo cujo significado remete para a esfera da
educação estando, portanto, correlacionado ao estudo, ao conhecimento,
ao processo de escolarização e formação acadêmica. Neste sentido, o termo
pode ser usado para diferenciar os grupos sociais conforme o grau de instrução
e de acesso à formação educacional institucionalizada. Fala-se assim, que
“Fulano é muito culto” como uma forma de se referir a alguém que estudou
Polissemia: Fenômeno que
consiste em reunir, em
atribuir vários sentidos a
uma mesma palavra.
ANTROPOLOGIA CULTURAL
21
muito, cuja escolaridade o diferencia do indivíduo leigo, destituído desta
formação. O termo parece assim, envolver gradações entre os indivíduos.
Ou seja, a depender do grau de instrução, do conhecimento formal adquirido
através do processo de escolarização, o indivíduo é classificado como “mais”
ou “menos” culto.
Por cultura pode-se também designar uma certa dimensão ou domínio
da vida social que comporta formas de expressão artísticas diferenciadas
tais como as artes plásticas, a música, a dança, as artes cênicas e a literatura
em suas mais diversas modalidades, gêneros e estilos. Neste caso, o termo
cultura parece estar associado à idéia de “erudição”, refinamento e
sofisticação no gosto. É importante que você observe que aqui também, o
termo pode ser utilizado como um instrumento de diferenciação e classificação
de indivíduos ou grupos no interior do sistema social conforme ocorra ou
não, a possibilidade de acesso a estas formas de expressão artísticas.
Pode-se também falar de cultura tomando como referência o conjunto de
elementos e manifestações que expressam a tradição coletivamente
compartilhada por um determinado grupo social. O termo englobaria assim,
todo o repertório de crenças, lendas, hábitos culinários, interdições
alimentares, cantigas folclóricas, festas e cerimônias típicas, atitudes
religiosas, variedades lingüísticas, formas de vestuário, adotadas e
incorporadas no imaginário simbólico e cognitivo de um povo. Neste sentido,
o termo cultura parece estar correlacionado à idéia de “popular”, de tudo
aquilo que é usual e corriqueiramente percebido e compreendido facilmente
por qualquer membro da sociedade.
O termo cultura pode ainda relacionar-se ao conjunto de objetos,
instrumentos e utensílios que sobreviveram ao longo do tempo e que
constituem vestígios que nos fazem saber a respeito da existência e dos
modos de vida de civilizações passadas. Neste caso, cultura refere-se ao
conjunto das realizações materiais de sociedades extintas e que compõe
atualmente, o acervo dos sítios arqueológicos.
Finalmente, pode-se ainda utilizar o termo cultura para definir e
caracterizar uma determinada época da história de uma sociedade. Desta
forma, fala-se, por exemplo, em “cultura pop”, “cultura hippie”, “cultura de
massa”, etc. Neste caso, para cada época considerada, um conjunto de
elementos diferenciados é utilizado visando demarcar as concepções e os
estilos de vida então adotados pelos grupos sociais.
No que diz respeito a esta última, por exemplo, os meios de comunicação
englobando desde o rádio, o cinema, até a mídia impressa e televisiva são
instrumentos fundamentais não apenas, de divulgação e transmissão de
informações, como também, de difusão de valores que estimulam e
prescrevem determinados estilos e modos de vida (maneiras de se divertir,
de se vestir, de se comunicar, de escrever, de sentir, de morar, de alimentar,
etc) que uma vez reproduzidos e compartilhados por um grande contingente
populacional parecem legitimar a idéia de uma homogeneidade e
padronização da vida e dos modos de conceber o mundo e se posicionar
diante da realidade. É neste contexto que falamos com freqüência na “cultura
UNIDADE 1 - CULTURA: UM CONCEITO POLISSÊMICO E DINÂMICO
22
da nossa época”, na “cultura contemporânea” para nos referirmos ao nosso
modo atual de viver.
Diante de tanta variação é previsível, que num primeiro momento, sejamos
tomados por uma sensação de dispersão que mais parece contribuir para
confundir o pensamento do que propriamente para esclarecer acerca da
especificidade do termo cultura. Assim, para que possamos resolver este
impasse inicial e criar condições que possibilitem a continuidade das nossas
discussões é preciso que adotemos uma estratégia metodológica capaz de
direcionar nossas reflexões no estudo da cultura.
Desta forma, propomos que, ao invés de nos determos na análise das
variações do termo propriamente dito, concentremos o foco da nossa
atenção, primeiramente, no esforço de compreender as razões que motivaram
esta variabilidade buscando identificar em seu fluxo e dinamicidade, algumas
pistas que possam indicar pontos de aproximação que lhes forneça um certo
tipo de unidade.
DUAS CONCEPÇÕES DE CULTURA E A RELAÇÕES ENTRE ELAS
Se observarmos atentamente as situações antes descritas, veremos que,
a despeito dos diferentes significados atribuídos ao termo cultura, todos
parecem convergir para um terreno comum alicerçado em torno de dois
pressupostos básicos. O primeiro deles, ancora-se no entendimento da
cultura como um dado constitutivo da humanidade como um todo. Um dado
que acompanhou a história do seu desenvolvimento no tempo e no espaço
compondo seu repertório e que, portanto, lhe confere sua marca permanente
e distintiva.
Deste primeiro postulado deriva uma concepção de cultura que engloba
indiscriminadamente todos os aspectos e elementos que compõem uma
determinada realidade social. Ou seja, cultura diz respeito a todas as
manifestações e realizações materiais que atestam a existência social de
diferentes povos e grupos inseridos no interior de uma determinada
sociedade, incorporando, inclusive, as diferentes formas de conceber o mundo
e de expressar a realidade social. Assim, podemos nos referir às culturas
americana, chinesa, italiana, do mesmo modo que, nos referimos às culturas
yanomami, apinayé, ou então, a cultura dos antigos maias, incas e astecas.
Tanto em um caso como no outro, o que está em jogo é a referência ao
conjunto de características que particularizam cada um destes grupos
humanos no tempo e no espaço, sejam elas materiais ou não.
O segundo postulado, apóia-se na compreensão de que cultura refere-
se às particularidades e às singularidades que dão forma e expressão a
diferentes realidades sociais. Deste postulado, decorrer uma outra concepção
de cultura cuja ênfase pauta-se nas formas abstratas, representacionais e
simbólicas que expressam as diferentes maneiras de conceber a realidade
social no interior de uma determinada sociedade. Cultura assim, diz respeito
a uma esfera, a uma dimensão ou domínio específico da vida social. Nesta
acepção, podemos falar da cultura brasileira nos referindo, por exemplo, às
ANTROPOLOGIA CULTURAL
23
particularidades da sua literatura, da sua língua, da sua música, enfim, das
formas de expressão que dão para os grupos sociais, que nela vivem,
significação e sentido à concretude do mundo.
Em torno destes dois postulados básicos, a preocupação com o
entendimento da variabilidadedas formas culturais foi se intensificando, à
medida em que, paralelamente, o contato e a interação entre os grupos,
povos e sociedades humanas avançaram ao longo da história indicando uma
tendência à formação de uma civilização mundial. Para que possamos
compreender como se desencadeou este processo, que forças e tensões
impulsionaram sua ocorrência, propomos como segundo critério da nossa
orientação metodológica que procuremos mapear as idéias e os contextos
históricos que lhe forneceram suporte e que contribuíram para tornar a
problemática da cultura, objeto privilegiado de um campo específico do saber,
qual seja, a Antropologia.
A análise destes contextos constituirá a partir de agora, a pauta das
nossas discussões ao longo do terceiro tópico desta unidade de estudos.
Procure manter-se concentrado para que você possa compreender, de forma
clara e consistente, os conceitos e os elementos em torno dos quais esta
discussão se estruturou.
ANTECEDENTES HISTÓRICOS DO CONCEITO DE CULTURA: AS NOÇÕES DE
“KULTUR”, “CIVILIZATION” E O CONCEITO DE TYLOR
Como temos procurado mostrar a você, a constatação da variabilidade
cultural é um dado constitutivo da humanidade. Ela esteve presente de forma
permanente e contínua no decorrer do processo de desenvolvimento da
história das sociedades humanas representando, portanto, um mecanismo
fundamental para a compreensão das suas diferentes formas de expressão
tanto no tempo, como também, no espaço.
A despeito desta constatação, o termo cultura atravessou uma longa
trajetória até que pudesse se tornar objeto de estudos mais sistemáticos e
detalhados, que lhe conferissem status teórico dentro de um campo do
saber voltado para a análise de sua especificidade, do seu alcance e da sua
importância para a compreensão da dinâmica envolvida com o processo de
diferenciação das sociedades humanas.
Como você pôde perceber no tópico anterior, a polissemia que reveste
o uso do termo cultura, não indica apenas a dificuldade de sua apreensão
em um sentido único e absoluto. Ela vai além e se coloca como um aspecto
que atesta a trajetória polêmica que o termo enfrentou até ocupar um lugar
de destaque no âmbito das chamadas Ciências Sociais como um todo, e,
especialmente, na Antropologia. Até que este processo se configurasse, o
termo cultura esteve marcado pela amplitude conceitual e foi alvo de
preocupações diversas estando intimamente correlacionado ao problema das
descontinuidades sociais e nacionais que ao longo dos séculos XVII e XVIII
assolaram o continente europeu.
UNIDADE 1 - CULTURA: UM CONCEITO POLISSÊMICO E DINÂMICO
24
Dentro deste contexto, sua origem remonta aos esforços dispendidos
por intelectuais alemães no sentido de compreender o desenvolvimento da
história das sociedades humanas a partir do repertório de crenças, costumes
e valores que demarcam suas particularidades e definem suas identidades
específicas, considerando-se para tanto, as condições materiais que deram
suporte e viabilizaram a sua ocorrência. Trata-se de uma preocupação que
vai ao encontro e reflete a situação política da Alemanha à época: uma nação
dividida em várias unidades políticas e que carecia, portanto, de uma
expressão que pudesse traduzir o “espírito”, a identidade do povo alemão
na ausência de uma organização política comum.
Desta forma, em fins do século XVIII e no início do século seguinte, o
termo germânico “Kultur” foi amplamente utilizado para expressar todos os
aspectos espirituais de uma comunidade. Em contraposição, o termo francês
“Civilization” era então utilizado para expressar principalmente todas as
realizações materiais de uma sociedade. Nesta segunda acepção, o termo
ganha um duplo contorno.
De um lado, servia para designar uma cultura dominante no processo de
desenvolvimento da história da humanidade como um todo, opondo-se assim,
à selvageria e à barbárie, traduzindo, portanto, a própria marca da civilização
então representada pelas conquistas e avanços tecnológicos do mundo
ocidental. Nesta perspectiva, a discussão sobre cultura se insere no contexto
do expansionismo colonial europeu e aponta para a idéia de progresso.
De outro lado, o termo servia para demarcar e diferenciar o estilo de vida
das camadas dominantes de uma sociedade expressando polidez,
refinamento e sofisticação nos modos de conduta adotados por elas – a
corte francesa, mais especificamente – em oposição ao restante da população
então excluída do acesso à educação formal, à arte, à religião e à ciência.
Neste caso, a discussão sobre cultura refere-se a uma espécie de “civilização
dos costumes” (Elias, 1994) e sinaliza para a idéia de tradição como forma de
expressão que dá singularidade e particulariza os diferentes povos.
Na passagem do século XIX para o século XX, estes dois termos –
“Kultur” e “Civilization” – foram sintetizados por Edward Tylor (1832-1917)
em uma obra clássica da Antropologia intitulada “Primitive Culture” (1871) a
partir da seguinte definição:
 “Cultura ou civilização tomado em seu amplo sentido etnográfico
é este todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral,
leis, costumes ou quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos
pelo homem enquanto membro da sociedade” (Tylor, 1871:1).
Com esta definição, Tylor englobava simultaneamente todas as
possibilidades de realização humana – materiais e não-materiais – abrindo
assim, uma nova perspectiva para se pensar a problemática da cultura, cujas
conseqüências serão decisivas para a delimitação do campo antropológico.
Vejamos a seguir como historicamente esta situação se configurou.
ANTROPOLOGIA CULTURAL
25
A GÊNESE DA ANTROPOLOGIA COMO CAMPO DE SABER
Do ponto de vista histórico, a passagem do século XIX para o XX, retrata
um momento em que, como decorrência do expansionismo colonial europeu,
o contato entre diferentes povos, grupos e sociedades humanas se intensifica,
ao mesmo tempo, em que ainda sob a tutela do primeiro, reforça-se o poderio
das nações industrializadas da Europa sobre sociedades antes isoladas e
que foram, gradativamente, subjugadas e incorporadas ao âmbito de
influência da visão de mundo européia.
Trata-se, portanto, de um momento em que o expansionismo colonial
europeu muda de sentido. Ou seja, passado o período inicial da descoberta
dos chamados “povos exóticos” um novo desafio se impõe: adequar estes
povos não mais como mão de obra escrava a serviço do sistema capitalista,
mas como consumidores em potencial de um grande mercado internacional
em expansão.
Como decorrência das dificuldades impostas por este desafio, a
preocupação com o problema da variabilidade cultural ganha novos impulsos
e passa a ser tratado como uma questão científica. É neste contexto que a
cultura emerge como categoria teórica e passa a ser sistematicamente
estudada pelas recém criadas Ciências Sociais e, mais diretamente, pela
Antropologia. Diversos fatores contribuíram para que isto se tornasse possível.
O primeiro deles, diz respeito à ruptura com a visão religiosa que,
fortemente alicerçada no Cristianismo, constituía a fonte de explicação do
mundo e fornecia à Europa o modelo básico para a interpretação da realidade
e para a compreensão das relações sociais. O rompimento com esta visão a
favor da adoção de uma atitude laica se deu em associação com um outro
conjunto de preocupações, que podem ser sintetizadas pelo esforço de
compreensão da origem da sociedade e de suas transformações.
A tentativa de entender o homem não mais como produto da criação
divina, aproximou as Ciências Sociais, e tambéma Antropologia, do campo
de estudos desenvolvidos pelas Ciências Naturais, em especial, a Biologia.
Em conseqüência, o estudo do mundo social se aliou às teorias biológicas de
cunhoevolucionista – Teoria da Evolução das Espécies – culminando com o
predomínio de uma visão sobre a humanidade, na qual a mesma é considerada
como uma espécie animal que se originou a partir de outras formas de vida
e que se encontra, portanto, imersa em um processo de evolução passível
de ser estudado tal qual o mundo natural desde que em observância às
condições materiais sob os quais se assenta.
Nesta perspectiva, a cultura passa a ser concebida como o mecanismo
diferenciador básico do homem face às outras espécies vivas e, também,
como o instrumento que permite distinguir as populações do mundo entre si.
Apesar de em ambos os casos, o termo cultura ainda permanecer marcado
pela amplitude conceitual, é importante ressaltar a sua vinculação com a
produção científica do conhecimento no século XIX em função de duas razões
correlatas.
UNIDADE 1 - CULTURA: UM CONCEITO POLISSÊMICO E DINÂMICO
26
Embora a percepção da variedade das formas de vida seja um dado
antigo na história da humanidade, será no século XIX que esta questão vai
ser tomada como objeto de análise de um campo específico do saber – a
Antropologia – e que se pretendeu fundado em bases científicas. Trata-se
assim, de um período no qual se discute, pela primeira vez, a possibilidade
de se aplicar ao estudo do homem os mesmos métodos até então
empregados nas ciências da natureza.
Esta situação provocará uma profunda alteração epistemológica nos
modelos que serviam de base para se pensar o homem e a sociedade. De
sujeito do conhecimento o homem passa ao status de objeto da ciência, o
que implicará em uma mudança de olhar que abre a possibilidade de se
questionar sobre os limites e os fundamentos de suas atitudes e valores
diante do mundo no plano de sua existência empírica e concreta e, não mais,
em uma ordem divina e transcendente, na qual parece mover-se através de
forças e determinações sobre as quais não possui nenhum controle.
O segundo fator que merece destaque na consolidação da moderna
concepção de cultura refere-se, como já assinalamos anteriormente, ao
avanço do Ocidente em direção aos outros povos do mundo. Desta forma,
se de um lado, o expansionismo colonial propiciou ao mundo ocidental a
ampliação de seu poderio político e econômico através da conquista de novos
territórios colocados sob o seu julgo; de outro lado, ele impôs uma
problemática central para o estudo das sociedades humanas: o acirramento
do contato com a diferença.
Da perplexidade inicial diante daqueles que acabavam de ser
descobertos forja-se assim, uma questão fundamental: como explicar o
“nativo”? Como se relacionar com ele e garantir, a um só tempo, a sua
incorporação e sua adequação aos novos mercados econômicos em
expansão? A resposta que o Ocidente deu a esta questão, embora tenha
inicialmente, legitimado sua posição dominante nas relações internacionais
de poder, através da imposição de suas concepções de mundo aos povos
então subjugados ao seu controle, traz em si o germe daquilo que
posteriormente, já no século XX, possibilitará o desenvolvimento de sua
autoconsciência em face da finitude e da relatividade de sua própria existência.
No conjunto, estas duas questões explicam, em parte, o porquê do
termo cultura e não civilização ter sido tomado pela Antropologia como objeto
privilegiado de investigação. Enquanto a idéia de civilização parece pressupor,
aprioristicamente, uma continuidade territorial e espacial dada; a noção de
cultura caminha em uma direção que parece sugerir a existência de uma
espécie de ligação “espiritual” entre os homens que independe de limites
territoriais e de fronteiras geográficas previamente estabelecidas.
Esta ligação parece unir a condição particular que singulariza e
individualiza a existência de cada ser humano no plano de suas vidas concretas
a um mundo coletivo que se funda em um universo social cingido por valores
que podem ser compartilhados. Ou seja, através desta ligação, o homem
extrapola os limites impostos pelo plano de sua condição natural,
biologicamente herdada enquanto espécie viva, e se insere em um universo
Epistemologia: Do grego,
epistéme, ciência. Estudo
crítico dos princípios,
hipóteses e resultados
das ciências já
constituídas, e que visa a
determinar os
fundamentos lógicos, o
valor e o alcance delas;
teoria da ciência, estudo
do grau de certeza do
conhecimento científico
em seus diversos ramos.
ANTROPOLOGIA CULTURAL
27
artificial pautado em regras de conduta e valores abstratos por ele mesmo
construído “enquanto membro da sociedade” como nos coloca Tylor.
Diante do exposto, podemos agora, explicitar os postulados básicos que
irão compor o projeto antropológico que se esboçou na passagem do século
XIX para o século XX, e que, ainda hoje se faz presente, permeando com
diferentes ênfases teóricas a discussão em torno da problemática da cultura.
Qual seja, um projeto marcado pelo esforço permanente de conciliar a
dualidade existente entre a unidade biológica do homem enquanto espécie
viva e a diversidade cultural. Um projeto que busca, a partir de diferentes
matrizes teóricas, articular a pretensão de construir uma teoria universal
das sociedades humanas e que, ao mesmo tempo, possa descrever o que
elas possuem de particular.
A compreensão deste esforço de articulação, além de se colocar como
um dado fundamental para o entendimento do contexto histórico que
possibilitou a gênese da Antropologia como campo de saber, se apresenta
também, como um aspecto que esclarece e informa sobre o estado atual de
sua prática no estudo e abordagem das sociedades contemporâneas, como
teremos a oportunidade de ver um pouco mais adiante.
Por agora, considerando estes dois postulados e novamente
retomando a famosa definição de Tylor exposta nas páginas anteriores, cabe-
nos finalmente uma pergunta: deriva a cultura de aptidões inatas transmitidas
ao homem por mecanismos biológicos geneticamente herdados ou a cultura
refere-se a um atributo adquirido socialmente pelo homem através da
aprendizagem? É a esta questão que tentaremos responder no próximo
tópico de nossos estudos tomando como referencial básico às perspectivas
teóricas construídas pela Antropologia.
 Entretanto, antes de iniciarmos mais esta etapa, sugerimos a você
que procure ler o conteúdo até aqui apresentado com bastante atenção de
forma a não deixar nenhuma dúvida pendente. Assim, releia-o quantas vezes
julgar necessário, recorra às sugestões de leitura complementar, faça uso
de fichamentos e resumos, e, principalmente, interaja conosco através do
ambiente virtual de aprendizagem. O importante é que você faça uso de
todos os recursos didáticos disponíveis, de forma a garantir que sua
compreensão analítica do conteúdo apresentado, e, conseqüentemente, sua
aprendizagem, efetivamente se concretize.
CULTURA: AQUISIÇÃO OU INATISMO?
Desde que a problemática da cultura se legitimou no final do século
XIX e no princípio do século XX, como objeto de análise privilegiado da
Antropologia, muito já se discutiu e se produziu em termos da literatura
especializada, no sentido de explicar a sua origem e de demonstrar a sua
forma de atuação na vida social e, em especial, nas atitudes e nos modos de
comportamento desenvolvidos pelo homem.
Resguardando-se às especificidades próprias que envolvem as diversas
posições analíticas erigidas em torno desta temática, todas parecem ter como
UNIDADE 1 - CULTURA: UM CONCEITO POLISSÊMICO E DINÂMICO
28
ponto de partida a questão que mencionamos anteriormente. Qual seja:
deriva a cultura de aptidões inatas transmitidas ao homem por mecanismos
geneticamente herdados ou constitui a cultura um atributo adquirido pelo
homem através da aprendizagem no decurso de suasocialização em um
determinado grupo ou sociedade?
Acompanhando a história das sociedades humanas desde a
Antiguidade, a busca de uma resposta para esta questão é um dado que
pode ser confirmado a partir de um rápido exame dos exemplos registrados
pela historiografia. Para efeito de uma breve ilustração observemos a
afirmação do arquiteto romano Marcus V. Pollio:
“Os povos do sul têm uma inteligência aguda, devido à raridade da
atmosfera e do calor; enquanto os das nações do Norte, tendo se
desenvolvido em uma atmosfera densa e esfriados pelos vapores dos
ares carregados têm uma inteligência preguiçosa” (Citado por Laraia,
1989:14).
Se não quisermos recuar tanto no tempo, o mesmo esforço de diálogo
com esta questão pode ser facilmente constatado se consideramos o processo
de formação da nossa própria sociedade, isto é, a sociedade brasileira quando
vista em sua totalidade. Na tentativa de explicar os elementos que
contribuíram para a formação sócio-histórica da nossa identidade nacional,
são antigas as pressuposições que alegam termos herdados a “preguiça”
dos índios, a “lascividade” dos negros e a “estupidez” dos portugueses.
Nesta mesma linha de raciocínio, são velhas também um conjunto de
imagens que circulam no nosso senso comum e que atribuem capacidades
ou características inatas a diferentes grupos humanos sejam eles, parte
integrante da nossa própria sociedade, sejam eles, oriundos de outros
lugares do mundo. Desta forma, fala-se com freqüência que os mineiros são
por natureza “desconfiados”, os baianos “lentos” e “preguiçosos”, enquanto
que os paulistas são “sérios” e “trabalhadores” ao passo que os cariocas
são “brincalhões” e “espertos”. Do mesmo modo, afirma-se com recorrência
que os judeus são “negociantes” e “avarentos”, que os americanos são
“empreendedores” e “interesseiros”, que os japoneses são “traiçoeiros”,
“cruéis” e “disciplinados”, que a raça branca é mais “inteligente” e
“desenvolvida” do que a raça negra.
Esta mesma lógica de raciocínio parece se fazer presente até mesmo
quando procuramos explicar diferenças pontuais em termos das atitudes,
comportamentos e escolhas individuais. Com muita regularidade, afirma-se,
por exemplo, que “Fulano nasceu com a matemática nas veias” para justificar
e explicar as habilidades de um indivíduo em operar com o raciocínio lógico.
De modo semelhante, diz-se que “Beltrano tem um dom natural para a pintura,
pois herdou esta qualidade do pai” ou que “Cicrano tem sangue azul nas veias”
para distinguir a posição social de um indivíduo diante de outro a partir da
condição econômica ou cultural, por exemplo.
Além disto, frases como “a raça caça”, “tal pai, tal filho”, “graveto não
caí longe do pau”, “filho feio não tem pai” são metáforas populares que
também ilustram o mesmo modo de se proceder quando se trata de explicar
ANTROPOLOGIA CULTURAL
29
modos de conduta, temperamentos e personalidades individuais à luz de
características supostamente derivadas da transmissão genética. Nesta
direção, são comuns frases do tipo “Meu filho tem este temperamento difícil,
pois, herdou a teimosia do avô” ou “Por mais que se tente mudar, fulano continua
agindo com a mesma agressividade herdada do pai”.
De um modo ou de outro, em todos estes exemplos, o comportamento
humano, apesar de sua enorme variedade de formas, parece estar sempre
condicionado e determinado, seja por fatores internos a ele impostos por
sua própria natureza genética – o chamado determinismo biológico – seja
por fatores externos derivados da sua relação com o meio ambiente – o
chamado determinismo geográfico.
Quando inserida dentro deste contexto, a resposta a nossa questão
inicial parece reforçar a perspectiva que tende a conceber a cultura como um
produto derivado de aptidões inatas transmitidas ao homem por mecanismos
geneticamente herdados, ou então, e correlativamente, como um produto
decorrente das respostas dadas pelo homem aos vários desafios colocados
pelas intempéries da natureza (vendavais, tempestades, terremotos, secas,
glaciações, maremotos, vulcões, etc) à sua sobrevivência.
Decorre desta perspectiva uma “visão instrumentalista ou utilitarista da
cultura” (Da Matta, 1987:41) segundo a qual o homem teria sido feito aos
poucos a partir de uma série de “estratos” que foram se sobrepondo um ao
outro, até que finalmente, ele atingisse sua forma definitiva. Assim, num
primeiro momento, há o predomínio do plano físico e biológico, onde o homem
embora sendo parte da natureza, com ela precisa solitariamente lutar para
garantir a sua sobrevivência em um ambiente hostil e ameaçador.
Em seguida, há o predomínio do plano social e cultural, no qual o homem
enquanto espécie viva aparece como um ser gregário que, dotado de uma
inteligência superior em relação aos demais animais consegue, através do
exercício de suas capacidades mentais biologicamente herdadas, aprender
pela experiência a dominar a natureza se adaptando assim, ao conjunto de
desafios que lhe são por ela impostos no meio em que vive.
O problema de explicar a diversidade do comportamento humano a
partir deste tipo de visão fortemente ancorada em um viéis determinista é
que quase sempre ela desemboca em uma espécie de reducionismo
naturalista que tende a conceber o homem como um ser meramente
instrumental que se fez em oposição à natureza, tendo como único e exclusivo
propósito a intenção de dominá-la através do desenvolvimento de recursos
tecnológicos, que se supõe conduzi-lo a evolução e ao progresso.
Calcado neste tipo de perspectiva, nosso olhar fica obscurecido e deixa
de enxergar a diferença como um dado que constitui, inexoravelmente, o
humano. Trabalha-se com universalidades e generalidades que, uma vez,
focalizando exclusivamente o homem em detrimento das sociedades e das
culturas, nos impedem de perceber as particularidades sob as quais se fundam
as relações humanas e o caráter singular que define as maneiras pelas quais
elas se inscrevem no mundo social em sua totalidade.
UNIDADE 1 - CULTURA: UM CONCEITO POLISSÊMICO E DINÂMICO
30
Assim, desconsidera-se o aspecto dialético que constitui e envolve a
dinamicidade destas relações, o que nos possibilitaria perceber como o homem
atuando sobre a natureza, transformou também a si mesmo, criando formas
diversas de organização social, reelaborando seus esquemas cognitivos e
emocionais e resignificando com novos sentidos sua experiência vivida ao se
colocar no mundo.
Apesar de todos estes equívocos é importante ressaltar que, durante
um longo período da história das sociedades humanas, as teorias de cunho
deterministas se firmaram como fonte legítima de explicação para a diversidade
das formas de comportamento e modos de conduta adotados pelo homem
na vida social. Isto conduziu não apenas a atitudes marcadas pela intolerância
e pela intransigência no convívio com a diferença, como serviu também, como
um instrumento político de dominação cultural de uma sociedade em face de
outra.
Além disto, por meio delas, as teorias racistas ganharam um forte
impulso e por muito tempo, contribuíram para justificar a dominação colonial
e legitimar a crença na supremacia de uma raça e/ou cultura tida como superior
sobre outra considerada como inferior. Em alguns momentos da história, esta
justificativa foi inclusive respaldada pelo próprio campo intelectual como bem
ilustra, a teoria desenvolvida pelo criminalista italiano, Cesare Lombroso
(1853-1909), ao propor uma correlação de sentido entre a tendência para
comportamentos criminosos e desviantes e a aparência física dos indivíduos.
Nesta mesma linha de raciocínio, tanto a escravização negra, como a
pacificação indígena, quanto o extermínio judeu pelo nazismo, dentre tantos
outros fatos da história,constituem exemplos, que nos servem como
balizadores deste uso político das teorias deterministas e apontam para as
conseqüências trágicas geradas sobre a vida social em decorrência da sua
plena propagação e aceitação como fonte de explicação para o problema da
diversidade cultural.
A partir do século XIX as teorias deterministas e todo o tipo de racismo
dela decorrente começaram a ser alvo de uma série de críticas que lhe foram
dirigidas pelas então recém estabelecidas Ciências Sociais. Estas críticas
entraram na pauta de discussão das várias disciplinas inseridas no âmbito
destas ciências, e conduziram a uma nova forma de se conceber a cultura
contribuindo para que a mesma efetivamente se legitimasse do ponto de
vista teórico como um campo de investigação especialmente tratado pela
Antropologia.
Relatos etnográficos produzidos pela Antropologia a partir deste
período a respeito dos diferentes povos do mundo nos dão conta da
inconsistência destas teorias para a explicação do comportamento humano
quando se leva em consideração, a dualidade que mencionamos
anteriormente entre a unidade biológica da espécie humana e a diversidade
cultural.
Desta forma, diferentemente de uma perspectiva ancorada no
predomínio das teorias deterministas, a posição da moderna Antropologia
tem se estruturado em outras bases de reflexão. O seu esforço tem sido no
Dialética: Arte do
diálogo, da discussão e
da argumentação.
Refere-se também ao
desenvolv imento de
processos gerados por
oposições que
provisor iamente se
resolvem em unidades.
ANTROPOLOGIA CULTURAL
31
sentido de mostrar que diferenças mesológicas ou somatológicas não
explicam por si só a diversidade do comportamento humano. Se assim o
fosse, não poderíamos explicar, por exemplo, como a divisão social do trabalho
pôde se diferenciar tanto de uma sociedade para outra, como também, no
interior de uma mesma sociedade a depender da época histórica considerada.
Neste ponto, o que se observa é que o disformismo sexual que
caracteriza fisiologicamente a espécie humana, não foi capaz de, por si mesmo,
estabelecer critérios rígidos e homogêneos para a divisão das tarefas a serem
desempenhadas por homens e mulheres na vida social. Muito pelo contrário,
a despeito das diferenças de gênero, o homem distribuiu de forma
extremamente heterogênea o conjunto destas tarefas como nos indica, por
exemplo, a atual incorporação e participação das mulheres nas forças
armadas, nas organizações policiais, no setor de transportes urbanos, na
construção civil, dentre tantos outros.
É sempre bom lembrar que, em todos estes campos profissionais, a
execução das atividades laborais sob o argumento da “natureza pesada” e
da “necessidade do uso da força física” constituiu até bem pouco tempo
atrás, um domínio da vida social vedado à mulher e restrito, exclusivamente,
à atuação masculina. Ao que tudo indica, esta restrição se apoiou por um
longo período, na aceitação da crença de que, em função de diferenças
biológicas, o desempenho profissional da mulher se daria supostamente em
um ritmo insatisfatório quando comparado àquele apresentado pelo homem.
Esta situação vem sendo atualmente questionada por dados historiográficos
indicando a fragilidade deste tipo de pressuposição.
Neste contexto, a posição que a Antropologia advoga funda-se no
sentido de mostrar que a cultura, longe de derivar de um conjunto de aptidões
inatas transmitidas geneticamente ao homem, é na verdade, resultante de
um longo processo de aprendizagem que o envolveu no decurso de sua
socialização em um determinado grupo ou sociedade. Vejamos de forma mais
detalhada os argumentos construídos, visando fornecer sustentabilidade a
esta posição.
Para tanto, é preciso que recapitulemos a definição de cultura
estabelecida por Edward Tylor e que foi apresentada a você nas páginas
anteriores. Através dela, a cultura foi pela primeira vez considerada como
todo comportamento socialmente apreendido pelo homem englobando,
portanto, tudo aquilo que independe de características inatas a ele
transmitidas geneticamente por imposição da sua condição biológica. Como
nos coloca o próprio autor:
“Cultura ou civilização tomado em seu amplo sentido etnográfico é
este todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral,
leis, costumes ou quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos
pelo homem enquanto membro da sociedade”. (Tylor, 1871:1).
Desta definição podemos observar duas conseqüências basilares para
a compreensão do assunto a que estamos tratando. Em primeiro lugar, por
Mesológicas: Diferenças
que dizem respeito à
relação entre os seres e o
seu meio ambiente:
ecologia.
Somatológicas: Diferenças
que dizem respeito ao
corpo, organicamente
falando, com exclusão do
psiquismo.
UNIDADE 1 - CULTURA: UM CONCEITO POLISSÊMICO E DINÂMICO
32
seu intermédio, o homem foi colocado dentro da ordem da natureza o que
possibilitou que o mesmo fosse concebido como uma espécie viva envolvida
no plano de seus condicionamentos fisiológicos e de suas determinações
concretas e não mais como um produto da criação divina e sobrenatural.
Em seguida, retirado desta ordem sobrenatural inicia-se um processo
que propiciará cada vez mais o distanciamento entre o plano natural e o
plano cultural. Animal dotado de uma condição biológica superior às demais
espécies vivas, o homem pôde dispor de dois mecanismos fundamentais
que contribuíram para aperfeiçoar e tornar mais eficiente a sua estrutura
orgânica, quais sejam, o desenvolvimento da linguagem, e, mais
especificamente, a comunicação oral e a capacidade de criar uma enorme
variedade de objetos e instrumentos materiais que foram sistematicamente
colocados em uso na sua relação com a natureza. Isto significa dizer que, se
para sobreviver enquanto espécie viva o homem precisou lutar, como de fato
lutou contra as forças da natureza, ele o fez de uma maneira que o distinguiu
radicalmente dos demais seres vivos.
Diferentemente de todas as espécies vivas, o homem constitui o único
ser que se adaptou a condições ambientais e climáticas extremamente
desfavoráveis à sua sobrevivência, sem que para isto precisasse passar por
mudanças anatômicas altamente significativas em termos do seu aparato
biológico. Ele nasceu sem asas, mas criou os meios para voar. Embora sem
nadadeiras inventou os meios necessários para navegar. Construiu sua
moradia e se protegeu dos vendavais, das tempestades e do calor. Da própria
natureza retirou seu alimento vencendo a fome e a sede, como também,
confeccionou sua vestimenta enfrentando o frio e a neve. Tudo isto sem
alterar substancialmente sua estrutura física original.
Desta forma, atuando sobre o plano de suas determinações biológicas
geneticamente herdadas, o homem foi além e construiu o seu próprio processo
evolutivo. Ele se adaptou ao meio ambiente e criou, ele mesmo, as condições
necessárias a esta adaptação o que nos leva a admitir, como nos sugere
Geertz (1973), que ao longo do processo evolutivo do organismo do homo
sapiens houve uma espécie de “interpenetração histórica” entre suas aptidões
inatas e as aquisições culturais, ou seja, “a mão e a ferramenta se co-
determinam”.
Além disto, uma vez dotado da capacidade de comunicação oral e de
simbolização, o homem pôde se desprender da concretude e da materialidade
do mundo e representar mentalmente a realidade objetiva fornecendo-lhe
sentido e significação. Esta capacidade permitiu que ele criasse um conjunto
de regras abstratas que o inseriu em um mundo artificial por ele mesmo
construído. Como nos coloca Peter Berger:
“O mundo humano é imperfeitamente programado pela sua própria
constituição. É um mundo aberto. Ou seja, um mundo que deve sermodelado pela própria atividade do homem. Comparado com os outros
mamíferos superiores, o homem está em um mundo que precede o
seu aparecimento. Mas a diferença destes, este mundo não é
simplesmente dado, pré-fabricado diretamente para ele. O homem
precisa então, fazer um mundo para si”. (Berger, 1985:18).
ANTROPOLOGIA CULTURAL
33
Esta incompletude e plasticidade que caracterizam a espécie humana
de que nos fala Berger, nos permitem compreender como o homem pôde,
extrapolar a dimensão “instintual” do seu organismo e à diferença das demais
espécies vivas, romper a barreira da mera repetição dos seus atos. Ou seja,
através do pensamento analítico ele pôde resignificar as ações e as atitudes
dos seus antepassados, submetendo-se a um processo de aprendizagem
que sendo coletivamente compartilhado com os seus semelhantes o tornou
um animal social cada vez mais marcado e constituído pela cultura.
É importante que você observe que o esforço da Antropologia em
legitimar a tese que considera o homem como um animal eminentemente
cultural, não significa postular em absoluto que aspectos e condicionamentos
fisiológicos e/ou ambientais não exerçam influência sobre o comportamento
humano. Trata-se apenas de mostrar como o homem pôde, a partir de uma
mesma origem biológica, responder de formas absolutamente diversas a
necessidades orgânicas e a limites existenciais comuns.
Em outras palavras, o esforço da Antropologia tem se caracterizado
pela tentativa de mostrar como que, embora compartilhando com as demais
espécies vivas de um conjunto de necessidades básicas comuns derivadas
da sua condição natural, o homem, à diferença destas, foi dotado de um
mecanismo diferenciador básico: a cultura. Este mecanismo não está
previamente determinado em suas veias ou no seu código genético. Ele é
socialmente adquirido pelo homem através de um longo processo de
aprendizagem que se efetiva na convivência com seus semelhantes.
Desta forma pode-se afirmar que o homem diferentemente das outras
espécies vivas, herdou biologicamente a capacidade de criar um mundo
artificial – a cultura – que o permitiu responder e atender a suas necessidades
básicas mediante um conjunto de regras abstratas e, portanto, externas ao
seu corpo físico e biológico. Pela mediação da cultura podemos entender
assim como o homem pôde criar hábitos extremamente diversos para atender
às necessidades básicas comuns envolvidas com a sua sobrevivência tais
como: a alimentação, o sono, a atividade sexual, etc.
Ou seja, se o atendimento a estas necessidades é um dado inexorável
a sua sobrevivência, as escolhas do tipo de alimento a ser consumido, por
exemplo, assim como as formas de servi-lo à mesa, a adequação do tipo de
refeição às diferentes situações sociais (casamento, churrasco, formatura,
aniversário, etc), às diferentes faixas etárias, à condição econômica irão variar
significativamente de grupo para grupo, de sociedade para sociedade.
É do conjunto destas variações que podemos concluir que, se por um
lado, a necessidade de se alimentar constitui um dado que é biologicamente
herdado pelo homem em função da sua condição natural, tal como ocorre
como os demais seres vivos, por outro lado, as formas pelas quais o homem
irá suprir e atender a esta necessidade, não estão determinadas em suas
veias, em seu código genético, tal como acontece com os outros seres vivos.
Elas dependem e se alicerçam em regras abstratas simbolicamente construídas
pelo homem na vida social.
UNIDADE 1 - CULTURA: UM CONCEITO POLISSÊMICO E DINÂMICO
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Diante de todas estas considerações podemos sintetizar, finalmente,
os postulados básicos adotados pela Antropologia no esforço de explicar a
diversidade do comportamento humano quando inserida no âmbito da cultura.
Procure não desviar o foco da sua atenção e vamos a eles:
1. A cultura não deriva de aptidões inatas transmitidas ao homem
pela herança genética. Ela constitui um atributo adquirido pelo
homem através de um longo processo de aprendizagem a que
foi submetido no decurso de sua socialização em um
determinado grupo ou sociedade.
2. O homem compartilha com as demais espécies vivas de um
conjunto de necessidades básicas biologicamente herdadas. No
entanto, diferentemente destas espécies, ele respondeu a estas
necessidades de forma radicalmente diversa em função mesmo
da sua condição biológica, que o tornou capaz de simbolizar e
abstrair a concretude do homem. Ou seja, através da palavra,
o homem pôde representar mentalmente as coisas do mundo
sem precisar para isso, tocá-las, manuseá-las ou manipulá-las.
3. Ao contrário dos demais seres vivos, o homem atuou sobre o
seu próprio processo evolutivo na medida em que, pôde se
adaptar a condições ambientais e naturais extremamente
adversas criando, ele mesmo, os meios necessários a esta
adaptação.
4. Diferentemente dos demais seres vivos, o homem mantém com
o mundo uma dupla relação. Ele é parte da natureza enquanto
espécie viva, mas ao mesmo tempo, pôde se construir de um
modo que o permitiu ir além das condições naturais a ele
impostas, seja no que diz respeito a sua própria estrutura
interna e orgânica, seja no que tange às suas relações com o
meio externo no qual se insere.
Para a Antropologia se há, portanto, algo de particular nesta espécie
única que é o homem, é a sua capacidade infinita de criar modos de vida
absolutamente distintos a partir de uma mesma condição natural. Como nos
colocam Gilberto Velho e Eduardo Viveiros de Castro:
“(...) A cultura ergue-se como a instância humanizadora que dá
estabilidade às reações comportamentais e funciona como o mecanismo
adaptativo básico da espécie. Mas a humanização do homem se faz de
várias maneiras. Literalmente a cultura faz e fez o homem. A variedade
dos comportamentos culturais baseia-se em certos mecanismos
biológicos. Mas o que distingue o humano é a elaboração particular
sobre esta base natural”. (Velho e Viveiros de Castro, 1980:6)
ANTROPOLOGIA CULTURAL
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LEITURA COMPLEMENTAR:
Aprofunde seus estudos lendo os seguintes textos:
ELIAS, Norbert. Da sociogênese dos conceitos de “civilização” e
“cultura”, In: O Processo Civilizador. Uma História dos
Costumes. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2ª ed, v. 1, 1994,
p.23-64.
GEERTZ, Clifford. O impacto do conceito de cultura sobre o
conceito de homem. In: A Interpretação das Culturas, Rio de
Janeiro, Editora Guanabara, 1989, p.45-66.
VELHO, Gilberto e VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O Conceito
de cultura e o estudo das sociedades complexas. Rio de
Janeiro, Cadernos de Cultura USU (Universidade Santa
Úrsula), ano 2, nº 2, 1980.
É HORA DE SE AVALIAR!
Lembre-se de realizar as atividades desta unidade de estudo,
presentes no caderno de exercício! Elas irão ajudá-lo a fixar o
conteúdo, além de proporcionar sua autonomia no processo de
ensino-aprendizagem. Caso prefira, redija as respostas no
caderno e depois as envie através do nosso ambiente virtual de
aprendizagem (AVA). Interaja conosco!
Nesta unidade você estudou o problema da variabilidade das culturas
humanas no tempo e no espaço e suas correlações com o desenvolvimento
da concepção antropológica. Na próxima unidade, estudaremos como a
Antropologia sistematizou seus conceitos a partir de diferentes escolas
teóricas visando explicar a dualidade existente entre a unidade biológica da
espécie humana e a diversidade cultural.
Bons estudos e até lá!

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