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4 o ius gentium e o advento dos juristas

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O JUS GENTIUM E O ADVENTO DOS JURISTAS
Quanto uma ou ambas as partes envolvidas em um litígio não era um cidadão romano, era inadequado aplicar o direito civil na solução da disputa. Inicialmente, quando os não-cidadãos ainda eram presença rara, os romanos recorriam à ficção de que o estrangeiro era um cidadão, de modo a trazer o caso à jurisdição civil. Após a derrota dos cartagineses nas Guerras Púnicas do século III a.C., contudo, o domínio territorial romano se estendeu por todo o oeste do Mediterrâneo, e o número de não-cidadãos em contato diário com romanos cresceu a um nível que se teve que trazê-los ao âmbito do direito, expressamente, como estrangeiros em território romano (peregrinos). Em 242 a.C. um segundo pretor foi introduzido na administração da Justiça, para lidar especificamente com os casos em que uma ou ambas as partes não possuíam a cidadania romana; em razão disto, este segundo pretor foi denominado pretor peregrino, enquanto o outro designou-se como pretor urbano.
O direito civil (dos cives, cidadãos) era uma prerrogativa exclusiva do cidadão romano, motivo de grande orgulho e, portanto, não podia ser estendido indiscriminadamente a estrangeiros. No terceiro século antes de Cristo, a cidadania era vista como um privilégio que distinguia os romanos de outros povos, e deles esperava-se que observassem parâmetros mais rígidos de conduta do que quaisquer outros estrangeiros. A Lei Opiana, de 215 a.C., requeria às matronas romanas que usassem vestimentas mais simples, sem excessos de ornamentos, enquanto as mulheres estrangeiras podiam transitar por Roma vestidas com opulência, em cores vivas e com profusão de adornos em ouro. Mas ainda que o direito fosse especialmente exigente em relação à conduta dos cidadãos, as disputas entre peregrinos, pelo menos, tinham que ser decididas segundo regras inequivocamente estabelecidas, tanto quanto os litígios entre romanos.
O problema de estabelecer-se que direito aplicar aos estrangeiros foi resolvido de um modo singularmente pragmático. Os romanos reconheceram no seu direito a existência de dois tipos de instituições jurídicas; um era tipicamente seu e abrangia aquelas peculiarmente romanas, tais como a transferência solene de propriedade. As instituições pertencentes a esta primeira categoria, marcadas que eram por sua especificidade cultural, deveriam ser (e eram), portanto, reservadas somente aos cidadãos. Já quanto às instituições pertencentes ao segundo tipo, tais como muitos dos remédios pretorianos, consideravam os romanos que elas integravam o direito dos povos civilizados. Elas formavam, em conjunto, aquilo a que os romanos denominavam ius gentium (direito das gentes), ou direito das nações, em contraste com o tradicional direito civil.
O ius gentium estava disponível tanto para os romanos quanto para os peregrinos. A noção de um direito inerente às “gentes” em geral, incluindo os romanos, permitiu que estes lidassem com um problema posto pela presença cotidiana dos peregrinos vivendo sob governo romano. Mais tarde, quando se especulou acerca das razões pelas quais tais regras de direito eram reconhecidas universalmente (nos termos do que se entendia como povos civilizados), sugeriu-se que o motivo seria o de que elas estariam fundadas não na prática costumeira, mas no bom senso, ou “razão natural”, de que todos os homens compartilhariam como manifestação de sua natureza humana. Por isso, o direito dos povos veio a ser freqüentemente referido como direito natural (ius naturale). Tornou-se aceita a noção de que o direito dos povos e o direito natural fossem similares, exceto pela presença, no primeiro, da instituição da escravidão. Sabia-se que esta se encontrava presente em todas as sociedades antigas e era, pois, parte integrante do direito das nações; mas era igualmente claro que não se tratava de algo ditado pelo senso comum e que, portanto, não poderia integrar o direito natural.
Mais tarde, ainda no período republicano, o sistema per formulas e os remédios suplementares disponíveis para os litigantes tornaram-se cada vez mais técnicos, demandando a atuação de experts para dar o necessário aconselhamento. Nem o pretor nem tampouco o iudex, ou ainda os advogados que representavam as partes diante daqueles, possuíam conhecimento aprofundado do direito; portanto precisavam, eventualmente, de ajuda especializada. A partir da segunda metade do século III a.C. tem-se notícia de uma classe de especialistas no direito, os juristas, que não exerciam qualquer papel formal na administração da justiça, mas que estavam, em contrapartida, preparados para explicar o direito para aqueles que tomavam parte no “drama legal”, os operadores do direito. De início, estes especialistas não eram pagos por seus serviços, pois consideravam seu trabalho como forma de prestar um serviço público�. Eles assumiram a custódia da lei, papel que anteriormente coubera aos pontífices; mas, ao contrário destes, atuavam abertamente e em público.
O trabalho dos juristas romanos, desde o início, relacionou-se a casos concretos. Suas funções eram de sugerir fórmulas ou defesas apropriadas para determinadas situações fáticas, bem como de redigir documentos tais como contratos e testamentos, os quais deveriam provocar apenas os efeitos desejados pelos contratantes, e não outras conseqüências não previstas nem pretendidas. O peso das opiniões desses juristas de fins da república apoiava-se inteiramente em suas respectivas reputações, e aqueles que vieram a se tornar mais respeitados tiveram sua contribuições para o direito recolhidas em “digestos” (compilações de doutrina), servindo como referência para casos similares que viessem a ocorrer no futuro. Os juristas ocupavam-se sobremaneira do direito privado e normalmente não lidavam com questões criminais, religiosas ou de direito público. O direito relativo a estes tópicos era derivado do direito civil, que veio a se tornar, com o tempo, sinônimo de direito privado.
Tradução parcial da obra “Roman Law in European History”, de Peter Stein
� Ver em Ferraz Jr., “Intodução”, no capítulo introdutório, a afirmativa de que o direito na polis (o que se estende à civitas), deriva da ação, uma atividade virtuosa inerente à relação entre cidadão e cidade-estado e que se diferencia do trabalho e do labor. O autor, inspirado em Hannah Arendt, caracteriza cuidadosamente este tipo de atividade, contextualizando-a adequadamente. Tal caracterização auxilia a nossa compreensão da natureza e da motivação do trabalho realizado pelos juristas romanos, entendimento este dificultado pela ausência da ação nas sociedades contemporâneas.

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