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A questão agrária no Brasil: das sesmarias ao agronegócio César Benjamin 1 Comecemos pelo começo. Todos sabem que o Brasil foi colônia. Mas, ao contrário de muitos outros países que também viveram essa condição, nós não fomos nação antes de sermos colônia. Nascemos colônia. A formação da sociedade brasileira não foi um processo autônomo, mas sim um episódio da expansão do moderno sistema mundial, centrado na Europa. Com baixa densidade populacional, território ocupado de forma rarefeita e fragmentada, economia organizada de fora para dentro (e voltada para fora), sociedade cindida pela escravidão e desprovidos de Estado nacional, nascemos como uma "não-nação", apenas território colonizado para abastecer de produtos os mercados dos países centrais. Com o tempo, porém, desenvolveram-se aqui características novas, portadoras de outro sentido potencial para o Brasil. A densidade populacional aumentou. Os ciclos econômicos determinados de fora provocaram sucessivas crises, que levaram regiões inteiras à decadência, súbita ou gradativa. Desenvolveram-se atividades voltadas para um incipiente mercado interno. O povo empreendeu suas lutas. Tudo isso pôs em marcha tendências que apontavam para transformar aquela "não-nação" em uma nação, criando para ela um estatuto novo, diante de si e do mundo. Eis aí, talvez, uma chave de leitura para o longo curso de nossa história: nosso sentido de futuro tem sido dado pela capacidade - maior em certos momentos, menor em outros -- de transformar aquela "não-nação" original em uma nação, dotada de uma organização institucional e um sistema econômico voltados para satisfazer as necessidades de uma população cidadã. 2 Obtivemos êxitos nessa caminhada: em nossos quinhentos anos de história, muita coisa mudou, apontando para o futuro. Também conhecemos fracassos: outras características permaneceram mais ou menos iguais, mantendo vivo o passado. Entre estas últimas, destaca-se a predominância da grande propriedade no mundo rural brasileiro, uma constante em nossa trajetória. A tomada de posse do território pelo rei de Portugal -- primeiro grande ato de grilagem, que inaugura a própria história do Brasil -- foi seguida, cerca de trinta anos depois, pelo estabelecimento das imensas capitanias hereditárias e a organização de uma economia primário-exportadora. A sociedade era regida pelo direito feudal português, o qual só cairia em desuso com a Independência, três séculos depois. Da primeira Assembléia Nacional Constituinte do novo país, em 1823, resultou uma Constituição que, tendo em vista o nosso tema, apresenta uma característica surpreendente: não legislou (nem estabeleceu que se legislasse depois) sobre a propriedade da terra, que se tornou um bem livre, como a água e o ar. Pelo menos dois motivos explicam essa omissão: a terra era extremamente abundante, em relação à população; e a grande maioria dos trabalhadores rurais era formada de escravos. Assim, o acesso à terra era naturalmente uma prerrogativa dos senhores, pois os trabalhadores estavam retidos pela força dentro dos limites das grandes fazendas. A escravidão servia como fiadora da economia latifundiária, base do poder das oligarquias. Porém, na medida em que o tempo avançava, século XIX adentro, ficava cada vez mais claro o caráter anacrônico da escravidão. Crescentemente defendida dentro do país e exigida pela potência dominante, a Inglaterra, a Abolição tornou-se inevitável. O 2 problema das elites passou a ser como e quando aceitá-la. Problema grave, pois em um país tão grande e desocupado, em que a terra era um bem livre, como se poderia gerenciar o fim da escravidão sem desarticular a economia primário-exportadora, baseada no latifúndio, que era o fundamento do poder oligárquico? Como se impediria o que, na época, se chamava "fuga de braços"? Ou seja, como se conseguiria manter a mão-de-obra presa às fazendas e evitar a formação de uma economia camponesa que esvaziasse as grandes plantações, libertando de fato a população do controle oligárquico? Surgiu daí a nossa primeira Lei de Terras, em 1850, que definiu um novo princípio: desaparecia a terra livre, e o acesso legal à propriedade fundiária passava a depender de doações da Coroa ou de processos de compra e venda. Desde 1822, como vimos, a terra era livre, mas os trabalhadores eram escravos. Quando se aproximava o dia em que os trabalhadores seriam livres, a terra foi aprisionada. As antigas sesmarias ficaram com os grandes senhores; as terras devolutas, com a Coroa e seus amigos, que passaram a receber glebas imensas, depois negociadas por dinheiro. Os pobres foram impedidos de ter acesso legal à propriedade. A estrutura agrária resultante, a ideologia que a acompanha e a concepção jurídica que a legitima nunca foram profundamente reformadas. Assim, na segunda metade do século XIX, permeando Império e República, a questão da escravidão se desdobrou em questão agrária. Vale lembrar que essa não foi a norma usada em muitos outros países, inclusive naqueles que hoje lideram o mundo capitalista. Na maior parte do território dos Estados Unidos, por exemplo, o processo de ocupação foi o ato gerador do direito. Cada família que se dispusesse a ocupar um pedaço de terra suficiente para morar e produzir era apoiada pelo Estado e tornava-se proprietária diante da lei. Esse modelo de repartição gerou uma imensa malha de pequenas e médias propriedades, onde se praticava a agricultura familiar. Em torno dela, constituiu-se uma matriz social indutora da modernização. Nosso direito agrário, que surgiu para defender e consolidar o monopólio da terra, agiu em sentido contrário: ao dissociar propriedade e ocupação -- legitimando a desocupação e criminalizando a ocupação -- não serviu para organizar o uso do território segundo as necessidades da sociedade. A economia brasileira continuou a absorver a técnica moderna apenas em pólos exportadores altamente concentrados e a alijar a população dos benefícios de qualquer processo modernizador. 3 Foi preciso esperar a década de 1920 -- e, principalmente, a crise de 1929 -- para que o modelo agrário-exportador, baseado na grande propriedade, fosse seriamente questionado entre nós. A intelectualidade brasileira, bem como segmentos esclarecidos das classes médias, civis e militares, pregam então, enfaticamente, a necessidade de superar as múltiplas manifestações do nosso atraso evidente. Naquele momento histórico, essa preocupação teria de conduzir ao problema da industrialização, já que a indústria, desde o século XIX, era o setor por excelência portador e indutor do progresso. Por manter nossa população rural -- cerca de 80% do total -- alijada do progresso técnico e de qualquer possibilidade de integração ao mercado interno, a estrutura agrária passa a ser vista como um obstáculo à industrialização. Como a ampliação desse 3 mercado era considerada um elemento decisivo para viabilizar a expansão da base industrial, a reforma agrária passa a ser defendida como uma precondição para a modernização do país. Os caminhos da história do Brasil mostraram-se, mais uma vez, tortuosos. Foi grande a influência de oligarquias rurais na Revolução de 1930, marco histórico da opção industrializante que, nas décadas seguintes, provocou uma profunda mutação na estrutura produtiva e na sociedade brasileiras. O latifúndio estava representado no novo pacto de poder, com força suficiente para impedir qualquer processo reformista que ameaçasse suas bases de sustentação. O continuísmo prevaleceu amplamente no mundo rural brasileiro. Porém, contrariando as expectativas de muitos dos nossos melhores intelectuais dessa época, issonão impediu que o processo de industrialização caminhasse com rapidez. Pois tal processo, entre nós, não se orientou para a criação de um mercado de massas -- ou seja, a rápida ampliação do mercado interno, com a incorporação da população trabalhadora --, tendo sido impulsionado principalmente pela substituição de importações. A ação do Estado, garantindo a compra dos excedentes de café invendáveis no mercado internacional em crise, sustentou a renda dos grupos que comandavam a economia primário-exportadora. Agora, porém, essa renda em moeda nacional não resultava mais de exportações efetivas, que gerassem divisas em moeda forte. A demanda de produtos industriais, a ela associada, não podia ser coberta por importações. Abriu-se assim amplo espaço para a produção interna de bens industriais que antes eram importados, impulsionando um processo de industrialização coerente com o padrão de distribuição de renda previamente existente e que não exigiu a incorporação das massas rurais. A sobrevivência do velho latifúndio e a aceleração da industrialização mostraram-se compatíveis no Brasil, cabendo ao primeiro dois importantes papéis na dinâmica da nova economia em formação: sustentar a pauta de exportações, que era exclusivamente agrícola, de modo a viabilizar a importação de máquinas, equipamentos, combustíveis e outros produtos essenciais à própria industrialização; e enviar para as cidades a população sobrante do campo, que viria a formar a moderna classe operária brasileira. Seja por mostrar-se funcional ao novo modelo, seja por manter grande peso político em um país de maioria rural, o latifúndio exportador garantiu sua sobrevida. 4 A questão agrária se recolocou com força na década de 1960, no contexto das pressões populares por reformas que fizessem chegar ao povo brasileiro os benefícios da modernização econômica, a essa altura muito visível. A pressão reformista foi interrompida pelo golpe militar de 1964. Mas, nos anos seguintes, permaneceu na ordem do dia a necessidade de modernizar as relações de trabalho e os métodos de produção agrícola, no contexto de uma economia já predominantemente industrial. Como se sabe, a própria indústria necessita de uma agricultura moderna, demandante de tratores, insumos, sementes, etc., e produtora de bens intermediários a serem processados em fábricas, o que exige especificações bastante rígidas, sob controle da indústria. Por outro lado, a deterioração das contas externas, que se tornou dramática na década de 1970, a partir do primeiro choque do petróleo e da sucessão subseqüente de choques externos, reforçou a necessidade de modernizar a produção agrícola, para ampliar as exportações. O Estado interveio com vigor para induzir a agricultura a 4 aumentar sua produtividade em um ritmo muito superior ao demandado pela própria sociedade brasileira. Tais políticas modificaram profundamente os modos de produzir nas regiões agrícolas mais avançadas, novamente sem alterar a estrutura agrária. A agricultura brasileira aumentou enormemente sua produtividade. Para muitos estudiosos, isso significava o fim da questão agrária como problema pendente no Brasil. O "tempo histórico" da reforma havia passado. Afinal, para que fazer reforma agrária, se a estrutura tradicional de propriedade não impedira a industrialização do país, se a maioria da população já era urbana e se a agricultura capitalista mostrava potencial para expandir sua produtividade em níveis adequados? Reforma agrária para quem e para quê? Mais uma vez, a história do Brasil se mostrou tortuosa. Enquanto muitos anunciavam o fim da questão agrária, ela se reatualizava com grande vigor, por três motivos principais. O primeiro foi a formação de uma capacidade de produção agrícola que não encontra mercado, a não ser em conjunturas de alta nos preços internacionais e em situações favoráveis em termos de câmbio, relações de troca e esquemas de financiamento, fatores que a própria agricultura não controla. Isso faz com que a moderna agricultura brasileira seja, ao mesmo tempo, muito produtiva e muito vulnerável. Dependente do mercado externo, pressionada pelos custos dos insumos que adquire da indústria, refém do cálculo capitalista e integrada em complexos agroindustriais (na condição de elo fraco), ela se descapitaliza e se desorganiza com facilidade, ao contrário do que acontecia com o setor agrícola tradicional, muito menos produtivo e muito mais auto-suficiente. O segundo aspecto da crise agrária que se avoluma no fim do século XX é a formação de um excedente de mão-de-obra sem destinação minimamente certa, pois a desestruturação da policultura tradicional, que propiciava ocupação estável da terra, foi feita, como vimos, sem alterar a estrutura de propriedade. Em seu lugar, não surgiu uma moderna agricultura baseada na pequena e média produção -- independente ou cooperativada --, que também seria capaz de assegurar ocupação estável da terra. Como conseqüência, reduziram-se dramaticamente as oportunidades de emprego no campo, por causa da crescente mecanização, e grande parte da própria população empregada na agropecuária se urbanizou, com a expulsão em massa de trabalhadores residentes e sua transformação em diaristas. O morador, o colono, o meeiro, o parceiro desapareceram de vastas áreas. Ao mesmo tempo, enormes contingentes de pequenos proprietários foram arruinados -- em um processo que continua --, passando a disputar um lugar ao sol fora da agricultura, em ocupações precárias, quase sempre indo morar nas cidades. Assim como a solução das elites para a questão da escravidão se desdobrou em questão agrária a partir da segunda metade do século XIX, a questão agrária jamais solucionada se desdobrou em questão urbana na segunda metade do século XX. Questão que se tornou dramática: hoje, 40% da população brasileira estão concentrados em apenas nove regiões metropolitanas, que se tornaram ingovernáveis. Em terceiro lugar, a modernização foi muito seletiva, atingindo determinadas regiões e setores de produção, de modo que aumentou o hiato tecnológico na agricultura brasileira, tornada muito mais heterogênea. Como regra geral, a produção de alimentos ficou para trás, resultado de um processo de modernização conservadora que beneficiou essencialmente a agricultura de exportação, acentuando o tratamento diferenciado que 5 ela sempre recebeu no Brasil. É uma herança da fase primário-exportadora que predominou na maior parte de nossa história. Nos países desenvolvidos, ocorreu o inverso: neles, o segmento agrícola considerado mais importante sempre foi, e continua sendo, o direcionado para os respectivos mercados internos. Em síntese: realizada nos moldes descritos e visando a atender interesses do grande capital industrial e financeiro, a modernização da agricultura brasileira, que manteve intocada a velha estrutura de propriedade, gerou potencial produtivo sem mercado certo (deixando o setor à mercê de crises sucessivas), multidões sem trabalho (não só no campo, mas também nas cidades) e maiores desigualdades regionais e setoriais. 5 Tudo isso convergiu para produzir uma aguda -- e, para muitos, surpreendente -- reatualização da questão agrária, não prevista pela maioria dos intelectuais e recolocada na ordem do dia pela mobilização dos próprios trabalhadores rurais. Uma reatualização em novos moldes, como não poderia deixar de ser, pois o cenário do mundo rural brasileiro apresenta diferenças marcantes em relação à época em que a questão agrária foi debatida no contexto do projeto desenvolvimentista. Sintetizemos algumas delas, de caráter estrutural. Primeiro: a urbanização -- não só da população em geral, mas tambémda força de trabalho que se mantém vinculada a atividades agrícolas -- diminuiu enormemente o peso político do latifúndio. Como o preço médio das terras também caiu, a realização da reforma agrária tornou-se muito mais fácil. Por outro lado, hoje são mais favoráveis as condições de organização de movimentos de trabalhadores rurais em caráter permanente e em âmbito nacional. Segundo: o pomo da discórdia da questão agrária -- a terra agricultável -- se tornou potencialmente abundante, com a garantia de acesso a um território muito ampliado. Apesar de sua enormidade territorial, o Brasil permaneceu até tempos mais ou menos recentes como um pequeno país, de ocupação principalmente litorânea, de agricultura concentrada em alguns poucos pólos exportadores ou em torno dos centros urbanos consumidores. Toda a hiléia, todo o cerrado não contavam; a pampa e a caatinga contavam precariamente, para uma pecuária extensiva ou para uma agricultura miserável. Nas últimas décadas, as redes de transportes, energia, informações e comunicações, a integração bancária e as novas tecnologias agrícolas tornaram economicamente viável o acesso a um território muito maior, possibilitando o efetivo aproveitamento de enormes extensões, antes marginais. Onde havia um grande país geográfico, surgiu um grande país efetivo. Terceiro: as regiões de fronteira agrícola, que sempre desempenharam o papel de "áreas de manobra" da sociedade brasileira, foram praticamente fechadas, implantando-se nessas áreas novas (Centro-Oeste, Amazônia Meridional, Cerrado Setentrional) uma estrutura agrária ainda mais concentrada do que aquela predominante nas áreas velhas. A grande expansão do território agrícola se deu durante o regime militar, que financiou e subsidiou diretamente a apropriação das terras novas por grandes empresas, além de apoiar oligarquias regionais que -- por meio de grilagem, doação ou compra a preço simbólico -- também se apropriaram das antigas terras de fronteira. A incorporação de novos territórios foi feita reproduzindo-se neles uma estrutura altamente concentrada, contrariando as expectativas de muitos intelectuais que pensaram a questão agrária durante o ciclo desenvolvimentista. Eles imaginavam essa ocupação associada à 6 expansão de cinturões de pequenas e médias propriedades, num processo que alteraria naturalmente o grau de concentração da propriedade rural. Não foi o que ocorreu. Em vez de ser amortecido, o conflito pela terra se ampliou e se nacionalizou. Quarto: a agricultura familiar que havia sido incorporada à vaga de modernização capitalista nas décadas de 1960 e 1970, especialmente no Sul, mergulhou em profunda crise, pois, com grande apoio do governo, os pólos de expansão da agricultura capitalista se deslocaram para o Centro-Oeste e o Cerrado Setentrional, onde a produção de grãos para exportação é bem mais barata. Nessas áreas, o grande capital não encontra uma agricultura familiar a ser incorporada na base da cadeia agroindustrial, como ocorria com o modelo em forma de pirâmide, no Sul. Terras planas com baixa densidade populacional -- que, se necessário, podem facilmente ser esvaziadas de gente -- se prestam para a produção em larga escala, mecanizada e diretamente operada pelo grande capital. Quinto: a atividade agrícola que se modernizou está voltada, como vimos, para a exportação e/ou para a produção de bens intermediários demandados pela agroindústria. Integra cadeias produtivas das quais é o elo fraco, pois o controle delas está nas mãos do capital industrial e financeiro. As empresas mais fortes, especialmente multinacionais, não se dedicam a atividades de plantio, mas sim ao processamento industrial, à circulação e à comercialização, interna e externa. É nessas esferas que aumenta o valor agregado dos produtos e se definem, de um lado, a remuneração do produtor e, de outro, os preços que serão pagos pelo consumidor. Tal como ocorre em outros setores, essas esferas controladoras estão sujeitas a crescente desnacionalização, que terá conseqüências importantes para a inserção internacional do Brasil. O hemisfério americano tende a ocupar posição de destaque na oferta mundial de bens agrícolas, pois a Ásia é forte demandante desses bens e a Europa vive uma situação de relativo equilíbrio entre suas próprias oferta e demanda. Nas Américas, por sua vez, Estados Unidos e Brasil se destacam como as duas economias de maior potencial para ocupar o espaço de uma demanda mundial em ascensão. O controle do agribusiness brasileiro pelo capital norte-americano está nos conduzindo a uma posição de exportadores de segunda linha, usados na regulação de um mercado mundial comandado pelos Estados Unidos. 6 Listamos acima algumas novas características estruturais do meio rural. Do ponto de vista conjuntural, os dados disponíveis mostram uma crise gravíssima no agro brasileiro. Em um trabalho preparado a pedido do próprio governo, o professor Guilherme Dias, da Universidade de São Paulo, divide o setor em um segmento patronal e outro familiar. No primeiro grupo, com cerca de 1,1 milhão de estabelecimentos, 88 mil (ou 8%) são considerados capitalizados e viabilizados; 790 mil (71%) são considerados "doentes", sem condições de investir; e 240 mil (21%) estão sucateados. No segundo grupo, com cerca de 3,7 milhões de estabelecimentos, 700 mil (19%) sobrevivem em condições precárias e 3 milhões (81%) estão inviabilizados. Esses números são coerentes com os resultados apresentados pelo mais recente censo agropecuário do IBGE, que mostra "forte redução no uso de mão-de-obra e no número de propriedades agrícolas, com retração da área plantada (...). As conseqüências desse processo foram a concentração da riqueza e dos ganhos de produtividade." O censo aponta também uma "transferência do eixo dinâmico do setor para a pecuária, com 7 redução da área cultivada, das terras em descanso, das pastagens e das florestas pertencentes a estabelecimentos agrícolas. (...) Um milhão de estabelecimentos rurais deixaram de existir. (...) Em dez anos o Brasil perdeu 10 milhões de hectares antes cultivados, dos quais ¼ correspondiam a culturas permanentes. Esse movimento representa uma importante reversão da tendência verificada na década anterior [1980], quando houve ganho de 12,1 milhões de hectares de área cultivada." Os números são avassaladores. Numa ponta, quase 53% dos proprietários detêm menos de 3% da área, enquanto menos de 1% detêm 44% da área (a concentração, na verdade, é muito maior, pois esses números deixam de fora milhões de famílias de trabalhadores rurais que não têm nenhuma terra). O mesmo IBGE informa que os estabelecimentos com menos de 10 hectares usam 65% de sua área com lavouras, enquanto os estabelecimentos com 10 a 100 hectares usam 28%. Grosso modo, eles correspondem à agricultura familiar. Já os estabelecimentos com 1.000 a 10.000 hectares usam 6% de sua área, enquanto os com mais de 10.000 hectares mantêm plantios em apenas 2% das terras que ocupam. Na média, o Brasil utiliza com lavouras apenas 14% de sua área agricultável total, mantendo na ociosidade mais de 100 milhões de hectares bons. Tal uso pouco intensivo da terra, como se vê, tem relação direta com a predominância da grande propriedade. Os estabelecimentos com menos de 100 hectares ocupam 21% da área, mas respondem por 38% do investimento total, empregam 81% da mão-de-obra ocupada no meio rural e respondem por 47% do valor da produção agropecuária (incluindo-se aí o suprimento de 56% de alimentos e matérias-primas vegetais e de 67% da oferta interna de alimentos de origem animal). Numa palavra, a agricultura familiar, mesmo praticamente sem apoio, éque gera comida e emprego, dois itens nos quais a contribuição das propriedades de mais de 10.000 hectares é rigorosamente insignificante. A produção brasileira de grãos, por sua vez, avança muito lentamente, mantendo-se há vários anos em torno de 90 milhões de toneladas (para efeito de comparação, registre-se que a China, com menor quantidade de terras agricultáveis que o Brasil e muito menor disponibilidade de água, colhe 425 milhões de toneladas, resultado direto de sua opção pelo fortalecimento da agricultura familiar). 7 O padrão do mundo rural brasileiro tornou-se completamente anacrônico. Aquela agricultura que produzia fundamentalmente bens de exportação e enviava gente para as cidades era funcional, sob certo ponto de vista, na fase primário-exportadora e nos primórdios da industrialização. Hoje, as cidades não precisam de mais gente, e a pauta de exportações não depende mais, fundamentalmente, de produtos agrícolas. O novo papel da agricultura, ao contrário, deve ser reter mão-de-obra no campo (reabsorvendo parte da população expulsa nas últimas décadas), apoiar a rede de pequenas e médias cidades (para desconcentrar as atividades dinâmicas) e baixar o custo da alimentação (para ampliar o mercado interno de todos os demais bens). Para redesenhar o setor, de modo a que ele cumpra essas novas funções, a reforma agrária é imprescindível. As vantagens da agricultura de base familiar são evidentes: tornando-se o setor mais homogêneo, sua produtividade média tende a ser maior; sendo melhor a distribuição da renda, os gastos em consumo tendem a distribuir-se pelo conjunto da população, aumentando o mercado de bens de uso comum, produzidos internamente, muitas vezes localmente. O multiplicador da renda da agricultura familiar -- ou seja, sua capacidade 8 de estimular outras atividades econômicas - é incomparavelmente superior ao da agricultura baseada na grande propriedade. Uma reforma abrangente, articulada a políticas de desenvolvimento regional, ocupação territorial e expansão da produção, será decisiva para dinamizar amplas áreas do interior do país, pois as cidades de pequeno e médio porte -- que são cidades de serviços -- gravitam em torno da atividade agrícola. A predominância da população urbana não deve obscurecer o fato de que, em termos absolutos, a população rural mantém dimensões consideráveis (cerca de 36 milhões de pessoas). E a existência de 3.300 municípios com menos de 25 mil habitantes dá uma idéia aproximada da extensão geográfica de nossa "economia interior" que pode ser estimulada, com forte impacto sobre a geração de empregos e a desconcentração da população. 8 Nunca houve condições tão favoráveis para a decisão, que precisa ser de natureza política, de eliminar o latifúndio. Ele já não tem a força de outrora. Há grandes contingentes de população desejosos de trabalhar a terra; uma nova tecnologia agrícola está disponível, alterando as condições de produção no campo e abrindo amplas regiões à exploração economicamente viável; o isolamento rural foi rompido pelas estradas e as redes de comunicação; a população se urbanizou, diminuindo o peso político dos caciques rurais. É a-histórico que a sociedade brasileira continue a se submeter a grupos que assentam seu poder e sua autoridade no controle monopolista da terra, herança de um passado colonial e escravocrata. O Brasil atual assiste, aliás, a um fenômeno incomum e notável: o desejo de retorno à terra de populações maltratadas nas cidades, as quais esgotaram sua capacidade de absorver mais gente. Em um período em que o desemprego coloca na ordem do dia a necessidade de alterar a matriz de ocupação da mão-de-obra, pois a indústria perdeu sua capacidade de absorção, e em uma sociedade em que a demanda por alimentos permanece elevada, a existência de terra vazia, de pessoas dispostas a cultivá-la e de capacidade técnica disponível configura uma potencialidade rara, que nosso país não pode recusar-se a usar. Solos propícios à agricultura já são um fator escasso no mundo. Por tudo isso, o Brasil volta a viver, no início do século XXI, um momento histórico em que o latifúndio passa a ser -- e precisa ser -- questionado. Uma transformação profunda da estrutura agrária abriria imediatamente enorme espaço de manobra para gerar empregos no campo e também nas cidades. Do ponto de vista histórico, esse processo integraria o necessário acerto de contas com nosso passado colonial, o passado de "não- nação", e representaria um gigantesco passo à frente no trânsito, a que me referi no início, na direção de uma nação plenamente constituída. (julho de 2001) Disponível em: <http://www.soeaa.org.br/61_soeaa/_word/trabalho_cesar_01.doc>. Acesso em: 20 ago. 2010.
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