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A questão agrária no Brasil

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A questão agrária no Brasil: das sesmarias ao agronegócio 
César Benjamin 
 
1 Comecemos pelo começo. Todos sabem que o Brasil foi colônia. Mas, ao contrário de 
muitos outros países que também viveram essa condição, nós não fomos nação antes de 
sermos colônia. Nascemos colônia. A formação da sociedade brasileira não foi um 
processo autônomo, mas sim um episódio da expansão do moderno sistema mundial, 
centrado na Europa. 
Com baixa densidade populacional, território ocupado de forma rarefeita e fragmentada, 
economia organizada de fora para dentro (e voltada para fora), sociedade cindida pela 
escravidão e desprovidos de Estado nacional, nascemos como uma "não-nação", apenas 
território colonizado para abastecer de produtos os mercados dos países centrais. 
Com o tempo, porém, desenvolveram-se aqui características novas, portadoras de outro 
sentido potencial para o Brasil. A densidade populacional aumentou. Os ciclos 
econômicos determinados de fora provocaram sucessivas crises, que levaram regiões 
inteiras à decadência, súbita ou gradativa. Desenvolveram-se atividades voltadas para 
um incipiente mercado interno. O povo empreendeu suas lutas. Tudo isso pôs em 
marcha tendências que apontavam para transformar aquela "não-nação" em uma nação, 
criando para ela um estatuto novo, diante de si e do mundo. Eis aí, talvez, uma chave de 
leitura para o longo curso de nossa história: nosso sentido de futuro tem sido dado pela 
capacidade - maior em certos momentos, menor em outros -- de transformar aquela 
"não-nação" original em uma nação, dotada de uma organização institucional e um 
sistema econômico voltados para satisfazer as necessidades de uma população cidadã. 
2 Obtivemos êxitos nessa caminhada: em nossos quinhentos anos de história, muita 
coisa mudou, apontando para o futuro. Também conhecemos fracassos: outras 
características permaneceram mais ou menos iguais, mantendo vivo o passado. Entre 
estas últimas, destaca-se a predominância da grande propriedade no mundo rural 
brasileiro, uma constante em nossa trajetória. A tomada de posse do território pelo rei de 
Portugal -- primeiro grande ato de grilagem, que inaugura a própria história do Brasil -- 
foi seguida, cerca de trinta anos depois, pelo estabelecimento das imensas capitanias 
hereditárias e a organização de uma economia primário-exportadora. A sociedade era 
regida pelo direito feudal português, o qual só cairia em desuso com a Independência, 
três séculos depois. 
Da primeira Assembléia Nacional Constituinte do novo país, em 1823, resultou uma 
Constituição que, tendo em vista o nosso tema, apresenta uma característica 
surpreendente: não legislou (nem estabeleceu que se legislasse depois) sobre a 
propriedade da terra, que se tornou um bem livre, como a água e o ar. Pelo menos dois 
motivos explicam essa omissão: a terra era extremamente abundante, em relação à 
população; e a grande maioria dos trabalhadores rurais era formada de escravos. Assim, 
o acesso à terra era naturalmente uma prerrogativa dos senhores, pois os trabalhadores 
estavam retidos pela força dentro dos limites das grandes fazendas. A escravidão servia 
como fiadora da economia latifundiária, base do poder das oligarquias. 
Porém, na medida em que o tempo avançava, século XIX adentro, ficava cada vez mais 
claro o caráter anacrônico da escravidão. Crescentemente defendida dentro do país e 
exigida pela potência dominante, a Inglaterra, a Abolição tornou-se inevitável. O 
 2 
problema das elites passou a ser como e quando aceitá-la. Problema grave, pois em um 
país tão grande e desocupado, em que a terra era um bem livre, como se poderia 
gerenciar o fim da escravidão sem desarticular a economia primário-exportadora, 
baseada no latifúndio, que era o fundamento do poder oligárquico? Como se impediria o 
que, na época, se chamava "fuga de braços"? Ou seja, como se conseguiria manter a 
mão-de-obra presa às fazendas e evitar a formação de uma economia camponesa que 
esvaziasse as grandes plantações, libertando de fato a população do controle 
oligárquico? Surgiu daí a nossa primeira Lei de Terras, em 1850, que definiu um novo 
princípio: desaparecia a terra livre, e o acesso legal à propriedade fundiária passava a 
depender de doações da Coroa ou de processos de compra e venda. 
Desde 1822, como vimos, a terra era livre, mas os trabalhadores eram escravos. Quando 
se aproximava o dia em que os trabalhadores seriam livres, a terra foi aprisionada. As 
antigas sesmarias ficaram com os grandes senhores; as terras devolutas, com a Coroa e 
seus amigos, que passaram a receber glebas imensas, depois negociadas por dinheiro. 
Os pobres foram impedidos de ter acesso legal à propriedade. A estrutura agrária 
resultante, a ideologia que a acompanha e a concepção jurídica que a legitima nunca 
foram profundamente reformadas. Assim, na segunda metade do século XIX, 
permeando Império e República, a questão da escravidão se desdobrou em questão 
agrária. 
Vale lembrar que essa não foi a norma usada em muitos outros países, inclusive 
naqueles que hoje lideram o mundo capitalista. Na maior parte do território dos Estados 
Unidos, por exemplo, o processo de ocupação foi o ato gerador do direito. Cada família 
que se dispusesse a ocupar um pedaço de terra suficiente para morar e produzir era 
apoiada pelo Estado e tornava-se proprietária diante da lei. Esse modelo de repartição 
gerou uma imensa malha de pequenas e médias propriedades, onde se praticava a 
agricultura familiar. Em torno dela, constituiu-se uma matriz social indutora da 
modernização. 
Nosso direito agrário, que surgiu para defender e consolidar o monopólio da terra, agiu 
em sentido contrário: ao dissociar propriedade e ocupação -- legitimando a desocupação 
e criminalizando a ocupação -- não serviu para organizar o uso do território segundo as 
necessidades da sociedade. 
A economia brasileira continuou a absorver a técnica moderna apenas em pólos 
exportadores altamente concentrados e a alijar a população dos benefícios de qualquer 
processo modernizador. 
3 Foi preciso esperar a década de 1920 -- e, principalmente, a crise de 1929 -- para que 
o modelo agrário-exportador, baseado na grande propriedade, fosse seriamente 
questionado entre nós. A intelectualidade brasileira, bem como segmentos esclarecidos 
das classes médias, civis e militares, pregam então, enfaticamente, a necessidade de 
superar as múltiplas manifestações do nosso atraso evidente. Naquele momento 
histórico, essa preocupação teria de conduzir ao problema da industrialização, já que a 
indústria, desde o século XIX, era o setor por excelência portador e indutor do 
progresso. 
Por manter nossa população rural -- cerca de 80% do total -- alijada do progresso 
técnico e de qualquer possibilidade de integração ao mercado interno, a estrutura agrária 
passa a ser vista como um obstáculo à industrialização. Como a ampliação desse 
 3 
mercado era considerada um elemento decisivo para viabilizar a expansão da base 
industrial, a reforma agrária passa a ser defendida como uma precondição para a 
modernização do país. 
Os caminhos da história do Brasil mostraram-se, mais uma vez, tortuosos. Foi grande a 
influência de oligarquias rurais na Revolução de 1930, marco histórico da opção 
industrializante que, nas décadas seguintes, provocou uma profunda mutação na 
estrutura produtiva e na sociedade brasileiras. O latifúndio estava representado no novo 
pacto de poder, com força suficiente para impedir qualquer processo reformista que 
ameaçasse suas bases de sustentação. O continuísmo prevaleceu amplamente no mundo 
rural brasileiro. 
Porém, contrariando as expectativas de muitos dos nossos melhores intelectuais dessa 
época, issonão impediu que o processo de industrialização caminhasse com rapidez. 
Pois tal processo, entre nós, não se orientou para a criação de um mercado de massas -- 
ou seja, a rápida ampliação do mercado interno, com a incorporação da população 
trabalhadora --, tendo sido impulsionado principalmente pela substituição de 
importações. A ação do Estado, garantindo a compra dos excedentes de café 
invendáveis no mercado internacional em crise, sustentou a renda dos grupos que 
comandavam a economia primário-exportadora. Agora, porém, essa renda em moeda 
nacional não resultava mais de exportações efetivas, que gerassem divisas em moeda 
forte. A demanda de produtos industriais, a ela associada, não podia ser coberta por 
importações. Abriu-se assim amplo espaço para a produção interna de bens industriais 
que antes eram importados, impulsionando um processo de industrialização coerente 
com o padrão de distribuição de renda previamente existente e que não exigiu a 
incorporação das massas rurais. 
A sobrevivência do velho latifúndio e a aceleração da industrialização mostraram-se 
compatíveis no Brasil, cabendo ao primeiro dois importantes papéis na dinâmica da 
nova economia em formação: sustentar a pauta de exportações, que era exclusivamente 
agrícola, de modo a viabilizar a importação de máquinas, equipamentos, combustíveis e 
outros produtos essenciais à própria industrialização; e enviar para as cidades a 
população sobrante do campo, que viria a formar a moderna classe operária brasileira. 
Seja por mostrar-se funcional ao novo modelo, seja por manter grande peso político em 
um país de maioria rural, o latifúndio exportador garantiu sua sobrevida. 
4 A questão agrária se recolocou com força na década de 1960, no contexto das pressões 
populares por reformas que fizessem chegar ao povo brasileiro os benefícios da 
modernização econômica, a essa altura muito visível. A pressão reformista foi 
interrompida pelo golpe militar de 1964. Mas, nos anos seguintes, permaneceu na 
ordem do dia a necessidade de modernizar as relações de trabalho e os métodos de 
produção agrícola, no contexto de uma economia já predominantemente industrial. 
Como se sabe, a própria indústria necessita de uma agricultura moderna, demandante de 
tratores, insumos, sementes, etc., e produtora de bens intermediários a serem 
processados em fábricas, o que exige especificações bastante rígidas, sob controle da 
indústria. Por outro lado, a deterioração das contas externas, que se tornou dramática na 
década de 1970, a partir do primeiro choque do petróleo e da sucessão subseqüente de 
choques externos, reforçou a necessidade de modernizar a produção agrícola, para 
ampliar as exportações. O Estado interveio com vigor para induzir a agricultura a 
 4 
aumentar sua produtividade em um ritmo muito superior ao demandado pela própria 
sociedade brasileira. 
Tais políticas modificaram profundamente os modos de produzir nas regiões agrícolas 
mais avançadas, novamente sem alterar a estrutura agrária. A agricultura brasileira 
aumentou enormemente sua produtividade. Para muitos estudiosos, isso significava o 
fim da questão agrária como problema pendente no Brasil. O "tempo histórico" da 
reforma havia passado. Afinal, para que fazer reforma agrária, se a estrutura tradicional 
de propriedade não impedira a industrialização do país, se a maioria da população já era 
urbana e se a agricultura capitalista mostrava potencial para expandir sua produtividade 
em níveis adequados? 
Reforma agrária para quem e para quê? Mais uma vez, a história do Brasil se mostrou 
tortuosa. Enquanto muitos anunciavam o fim da questão agrária, ela se reatualizava com 
grande vigor, por três motivos principais. 
O primeiro foi a formação de uma capacidade de produção agrícola que não encontra 
mercado, a não ser em conjunturas de alta nos preços internacionais e em situações 
favoráveis em termos de câmbio, relações de troca e esquemas de financiamento, fatores 
que a própria agricultura não controla. Isso faz com que a moderna agricultura brasileira 
seja, ao mesmo tempo, muito produtiva e muito vulnerável. Dependente do mercado 
externo, pressionada pelos custos dos insumos que adquire da indústria, refém do 
cálculo capitalista e integrada em complexos agroindustriais (na condição de elo fraco), 
ela se descapitaliza e se desorganiza com facilidade, ao contrário do que acontecia com 
o setor agrícola tradicional, muito menos produtivo e muito mais auto-suficiente. 
O segundo aspecto da crise agrária que se avoluma no fim do século XX é a formação 
de um excedente de mão-de-obra sem destinação minimamente certa, pois a 
desestruturação da policultura tradicional, que propiciava ocupação estável da terra, foi 
feita, como vimos, sem alterar a estrutura de propriedade. Em seu lugar, não surgiu uma 
moderna agricultura baseada na pequena e média produção -- independente ou 
cooperativada --, que também seria capaz de assegurar ocupação estável da terra. Como 
conseqüência, reduziram-se dramaticamente as oportunidades de emprego no campo, 
por causa da crescente mecanização, e grande parte da própria população empregada na 
agropecuária se urbanizou, com a expulsão em massa de trabalhadores residentes e sua 
transformação em diaristas. O morador, o colono, o meeiro, o parceiro desapareceram 
de vastas áreas. Ao mesmo tempo, enormes contingentes de pequenos proprietários 
foram arruinados -- em um processo que continua --, passando a disputar um lugar ao 
sol fora da agricultura, em ocupações precárias, quase sempre indo morar nas cidades. 
Assim como a solução das elites para a questão da escravidão se desdobrou em questão 
agrária a partir da segunda metade do século XIX, a questão agrária jamais solucionada 
se desdobrou em questão urbana na segunda metade do século XX. Questão que se 
tornou dramática: hoje, 40% da população brasileira estão concentrados em apenas nove 
regiões metropolitanas, que se tornaram ingovernáveis. 
Em terceiro lugar, a modernização foi muito seletiva, atingindo determinadas regiões e 
setores de produção, de modo que aumentou o hiato tecnológico na agricultura 
brasileira, tornada muito mais heterogênea. Como regra geral, a produção de alimentos 
ficou para trás, resultado de um processo de modernização conservadora que beneficiou 
essencialmente a agricultura de exportação, acentuando o tratamento diferenciado que 
 5 
ela sempre recebeu no Brasil. É uma herança da fase primário-exportadora que 
predominou na maior parte de nossa história. Nos países desenvolvidos, ocorreu o 
inverso: neles, o segmento agrícola considerado mais importante sempre foi, e continua 
sendo, o direcionado para os respectivos mercados internos. 
Em síntese: realizada nos moldes descritos e visando a atender interesses do grande 
capital industrial e financeiro, a modernização da agricultura brasileira, que manteve 
intocada a velha estrutura de propriedade, gerou potencial produtivo sem mercado certo 
(deixando o setor à mercê de crises sucessivas), multidões sem trabalho (não só no 
campo, mas também nas cidades) e maiores desigualdades regionais e setoriais. 
5 Tudo isso convergiu para produzir uma aguda -- e, para muitos, surpreendente -- 
reatualização da questão agrária, não prevista pela maioria dos intelectuais e recolocada 
na ordem do dia pela mobilização dos próprios trabalhadores rurais. Uma reatualização 
em novos moldes, como não poderia deixar de ser, pois o cenário do mundo rural 
brasileiro apresenta diferenças marcantes em relação à época em que a questão agrária 
foi debatida no contexto do projeto desenvolvimentista. Sintetizemos algumas delas, de 
caráter estrutural. 
Primeiro: a urbanização -- não só da população em geral, mas tambémda força de 
trabalho que se mantém vinculada a atividades agrícolas -- diminuiu enormemente o 
peso político do latifúndio. Como o preço médio das terras também caiu, a realização da 
reforma agrária tornou-se muito mais fácil. Por outro lado, hoje são mais favoráveis as 
condições de organização de movimentos de trabalhadores rurais em caráter permanente 
e em âmbito nacional. 
Segundo: o pomo da discórdia da questão agrária -- a terra agricultável -- se tornou 
potencialmente abundante, com a garantia de acesso a um território muito ampliado. 
Apesar de sua enormidade territorial, o Brasil permaneceu até tempos mais ou menos 
recentes como um pequeno país, de ocupação principalmente litorânea, de agricultura 
concentrada em alguns poucos pólos exportadores ou em torno dos centros urbanos 
consumidores. Toda a hiléia, todo o cerrado não contavam; a pampa e a caatinga 
contavam precariamente, para uma pecuária extensiva ou para uma agricultura 
miserável. Nas últimas décadas, as redes de transportes, energia, informações e 
comunicações, a integração bancária e as novas tecnologias agrícolas tornaram 
economicamente viável o acesso a um território muito maior, possibilitando o efetivo 
aproveitamento de enormes extensões, antes marginais. Onde havia um grande país 
geográfico, surgiu um grande país efetivo. 
Terceiro: as regiões de fronteira agrícola, que sempre desempenharam o papel de "áreas 
de manobra" da sociedade brasileira, foram praticamente fechadas, implantando-se 
nessas áreas novas (Centro-Oeste, Amazônia Meridional, Cerrado Setentrional) uma 
estrutura agrária ainda mais concentrada do que aquela predominante nas áreas velhas. 
A grande expansão do território agrícola se deu durante o regime militar, que financiou 
e subsidiou diretamente a apropriação das terras novas por grandes empresas, além de 
apoiar oligarquias regionais que -- por meio de grilagem, doação ou compra a preço 
simbólico -- também se apropriaram das antigas terras de fronteira. A incorporação de 
novos territórios foi feita reproduzindo-se neles uma estrutura altamente concentrada, 
contrariando as expectativas de muitos intelectuais que pensaram a questão agrária 
durante o ciclo desenvolvimentista. Eles imaginavam essa ocupação associada à 
 6 
expansão de cinturões de pequenas e médias propriedades, num processo que alteraria 
naturalmente o grau de concentração da propriedade rural. Não foi o que ocorreu. Em 
vez de ser amortecido, o conflito pela terra se ampliou e se nacionalizou. 
Quarto: a agricultura familiar que havia sido incorporada à vaga de modernização 
capitalista nas décadas de 1960 e 1970, especialmente no Sul, mergulhou em profunda 
crise, pois, com grande apoio do governo, os pólos de expansão da agricultura 
capitalista se deslocaram para o Centro-Oeste e o Cerrado Setentrional, onde a produção 
de grãos para exportação é bem mais barata. Nessas áreas, o grande capital não encontra 
uma agricultura familiar a ser incorporada na base da cadeia agroindustrial, como 
ocorria com o modelo em forma de pirâmide, no Sul. Terras planas com baixa 
densidade populacional -- que, se necessário, podem facilmente ser esvaziadas de gente 
-- se prestam para a produção em larga escala, mecanizada e diretamente operada pelo 
grande capital. 
Quinto: a atividade agrícola que se modernizou está voltada, como vimos, para a 
exportação e/ou para a produção de bens intermediários demandados pela agroindústria. 
Integra cadeias produtivas das quais é o elo fraco, pois o controle delas está nas mãos do 
capital industrial e financeiro. As empresas mais fortes, especialmente multinacionais, 
não se dedicam a atividades de plantio, mas sim ao processamento industrial, à 
circulação e à comercialização, interna e externa. É nessas esferas que aumenta o valor 
agregado dos produtos e se definem, de um lado, a remuneração do produtor e, de outro, 
os preços que serão pagos pelo consumidor. Tal como ocorre em outros setores, essas 
esferas controladoras estão sujeitas a crescente desnacionalização, que terá 
conseqüências importantes para a inserção internacional do Brasil. O hemisfério 
americano tende a ocupar posição de destaque na oferta mundial de bens agrícolas, pois 
a Ásia é forte demandante desses bens e a Europa vive uma situação de relativo 
equilíbrio entre suas próprias oferta e demanda. Nas Américas, por sua vez, Estados 
Unidos e Brasil se destacam como as duas economias de maior potencial para ocupar o 
espaço de uma demanda mundial em ascensão. O controle do agribusiness brasileiro 
pelo capital norte-americano está nos conduzindo a uma posição de exportadores de 
segunda linha, usados na regulação de um mercado mundial comandado pelos Estados 
Unidos. 
6 Listamos acima algumas novas características estruturais do meio rural. Do ponto de 
vista conjuntural, os dados disponíveis mostram uma crise gravíssima no agro 
brasileiro. Em um trabalho preparado a pedido do próprio governo, o professor 
Guilherme Dias, da Universidade de São Paulo, divide o setor em um segmento patronal 
e outro familiar. No primeiro grupo, com cerca de 1,1 milhão de estabelecimentos, 88 
mil (ou 8%) são considerados capitalizados e viabilizados; 790 mil (71%) são 
considerados "doentes", sem condições de investir; e 240 mil (21%) estão sucateados. 
No segundo grupo, com cerca de 3,7 milhões de estabelecimentos, 700 mil (19%) 
sobrevivem em condições precárias e 3 milhões (81%) estão inviabilizados. 
Esses números são coerentes com os resultados apresentados pelo mais recente censo 
agropecuário do IBGE, que mostra "forte redução no uso de mão-de-obra e no número 
de propriedades agrícolas, com retração da área plantada (...). As conseqüências desse 
processo foram a concentração da riqueza e dos ganhos de produtividade." O censo 
aponta também uma "transferência do eixo dinâmico do setor para a pecuária, com 
 7 
redução da área cultivada, das terras em descanso, das pastagens e das florestas 
pertencentes a estabelecimentos agrícolas. (...) Um milhão de estabelecimentos rurais 
deixaram de existir. (...) Em dez anos o Brasil perdeu 10 milhões de hectares antes 
cultivados, dos quais ¼ correspondiam a culturas permanentes. Esse movimento 
representa uma importante reversão da tendência verificada na década anterior [1980], 
quando houve ganho de 12,1 milhões de hectares de área cultivada." 
Os números são avassaladores. Numa ponta, quase 53% dos proprietários detêm menos 
de 3% da área, enquanto menos de 1% detêm 44% da área (a concentração, na verdade, 
é muito maior, pois esses números deixam de fora milhões de famílias de trabalhadores 
rurais que não têm nenhuma terra). O mesmo IBGE informa que os estabelecimentos 
com menos de 10 hectares usam 65% de sua área com lavouras, enquanto os 
estabelecimentos com 10 a 100 hectares usam 28%. Grosso modo, eles correspondem à 
agricultura familiar. Já os estabelecimentos com 1.000 a 10.000 hectares usam 6% de 
sua área, enquanto os com mais de 10.000 hectares mantêm plantios em apenas 2% das 
terras que ocupam. Na média, o Brasil utiliza com lavouras apenas 14% de sua área 
agricultável total, mantendo na ociosidade mais de 100 milhões de hectares bons. Tal 
uso pouco intensivo da terra, como se vê, tem relação direta com a predominância da 
grande propriedade. 
Os estabelecimentos com menos de 100 hectares ocupam 21% da área, mas respondem 
por 38% do investimento total, empregam 81% da mão-de-obra ocupada no meio rural e 
respondem por 47% do valor da produção agropecuária (incluindo-se aí o suprimento de 
56% de alimentos e matérias-primas vegetais e de 67% da oferta interna de alimentos de 
origem animal). Numa palavra, a agricultura familiar, mesmo praticamente sem apoio, éque gera comida e emprego, dois itens nos quais a contribuição das propriedades de 
mais de 10.000 hectares é rigorosamente insignificante. A produção brasileira de grãos, 
por sua vez, avança muito lentamente, mantendo-se há vários anos em torno de 90 
milhões de toneladas (para efeito de comparação, registre-se que a China, com menor 
quantidade de terras agricultáveis que o Brasil e muito menor disponibilidade de água, 
colhe 425 milhões de toneladas, resultado direto de sua opção pelo fortalecimento da 
agricultura familiar). 
7 O padrão do mundo rural brasileiro tornou-se completamente anacrônico. Aquela 
agricultura que produzia fundamentalmente bens de exportação e enviava gente para as 
cidades era funcional, sob certo ponto de vista, na fase primário-exportadora e nos 
primórdios da industrialização. Hoje, as cidades não precisam de mais gente, e a pauta 
de exportações não depende mais, fundamentalmente, de produtos agrícolas. O novo 
papel da agricultura, ao contrário, deve ser reter mão-de-obra no campo (reabsorvendo 
parte da população expulsa nas últimas décadas), apoiar a rede de pequenas e médias 
cidades (para desconcentrar as atividades dinâmicas) e baixar o custo da alimentação 
(para ampliar o mercado interno de todos os demais bens). Para redesenhar o setor, de 
modo a que ele cumpra essas novas funções, a reforma agrária é imprescindível. As 
vantagens da agricultura de base familiar são evidentes: tornando-se o setor mais 
homogêneo, sua produtividade média tende a ser maior; sendo melhor a distribuição da 
renda, os gastos em consumo tendem a distribuir-se pelo conjunto da população, 
aumentando o mercado de bens de uso comum, produzidos internamente, muitas vezes 
localmente. O multiplicador da renda da agricultura familiar -- ou seja, sua capacidade 
 8 
de estimular outras atividades econômicas - é incomparavelmente superior ao da 
agricultura baseada na grande propriedade. 
Uma reforma abrangente, articulada a políticas de desenvolvimento regional, ocupação 
territorial e expansão da produção, será decisiva para dinamizar amplas áreas do interior 
do país, pois as cidades de pequeno e médio porte -- que são cidades de serviços -- 
gravitam em torno da atividade agrícola. A predominância da população urbana não 
deve obscurecer o fato de que, em termos absolutos, a população rural mantém 
dimensões consideráveis (cerca de 36 milhões de pessoas). E a existência de 3.300 
municípios com menos de 25 mil habitantes dá uma idéia aproximada da extensão 
geográfica de nossa "economia interior" que pode ser estimulada, com forte impacto 
sobre a geração de empregos e a desconcentração da população. 
8 Nunca houve condições tão favoráveis para a decisão, que precisa ser de natureza 
política, de eliminar o latifúndio. Ele já não tem a força de outrora. Há grandes 
contingentes de população desejosos de trabalhar a terra; uma nova tecnologia agrícola 
está disponível, alterando as condições de produção no campo e abrindo amplas regiões 
à exploração economicamente viável; o isolamento rural foi rompido pelas estradas e as 
redes de comunicação; a população se urbanizou, diminuindo o peso político dos 
caciques rurais. É a-histórico que a sociedade brasileira continue a se submeter a grupos 
que assentam seu poder e sua autoridade no controle monopolista da terra, herança de 
um passado colonial e escravocrata. 
O Brasil atual assiste, aliás, a um fenômeno incomum e notável: o desejo de retorno à 
terra de populações maltratadas nas cidades, as quais esgotaram sua capacidade de 
absorver mais gente. Em um período em que o desemprego coloca na ordem do dia a 
necessidade de alterar a matriz de ocupação da mão-de-obra, pois a indústria perdeu sua 
capacidade de absorção, e em uma sociedade em que a demanda por alimentos 
permanece elevada, a existência de terra vazia, de pessoas dispostas a cultivá-la e de 
capacidade técnica disponível configura uma potencialidade rara, que nosso país não 
pode recusar-se a usar. Solos propícios à agricultura já são um fator escasso no mundo. 
Por tudo isso, o Brasil volta a viver, no início do século XXI, um momento histórico em 
que o latifúndio passa a ser -- e precisa ser -- questionado. Uma transformação profunda 
da estrutura agrária abriria imediatamente enorme espaço de manobra para gerar 
empregos no campo e também nas cidades. Do ponto de vista histórico, esse processo 
integraria o necessário acerto de contas com nosso passado colonial, o passado de "não-
nação", e representaria um gigantesco passo à frente no trânsito, a que me referi no 
início, na direção de uma nação plenamente constituída. (julho de 2001) 
 
Disponível em: <http://www.soeaa.org.br/61_soeaa/_word/trabalho_cesar_01.doc>. 
Acesso em: 20 ago. 2010.

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