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Psicologia do Desenvolvimento Autores Ercília Maria de Paula Fernando Wolff Mendonça 2.a edição 2009 © 2007-2009 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais. P324 Paula, Ercília Maria de. ; Mendonça, Fernando Wolff. / Psicologia do Desenvolvimento. / Ercília Maria de Paula. Fernando Wolff Mendonça. 2. ed. — Curitiba : IESDE Brasil S.A. , 2009. 164 p. ISBN: 85-7638-585-6 1. Psicologia do desenvolvimento 2. Comportamento humano – desenvolvimento 3. Aprendizagem I. Título II. Mendonça, Fernando Wolff. CDD 155 Todos os direitos reservados. IESDE Brasil S.A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482 • Batel 80730-200 • Curitiba • PR www.iesde.com.br Sumário Apresentação ............................................................................................................................7 Aspectos históricos da Psicologia ............................................................................................9 As diferentes linhas do pensamento psicológico ..................................................................................... 10 O desenvolvimento humano ..................................................................................................................... 15 Atividades ................................................................................................................................................ 15 Dicas de estudo ........................................................................................................................................ 16 Vygotsky: vida e obra – a história de um gênio .....................................................................19 Vygotsky e a sua visão da realidade ......................................................................................................... 20 Atividades ................................................................................................................................................ 23 Dicas de estudo ........................................................................................................................................ 24 Bases epistemológicas: o processo de humanização .............................................................25 Atividades ................................................................................................................................................ 28 Dicas de estudo ........................................................................................................................................ 29 Processo de humanização: comportamento animal versus comportamento humano ............31 A cultura ................................................................................................................................................... 33 A significação ........................................................................................................................................... 34 Atividades ................................................................................................................................................ 36 Dicas de estudo ........................................................................................................................................ 37 A função do instrumento e do símbolo ..................................................................................39 Atividades ................................................................................................................................................ 43 Dicas de estudo ........................................................................................................................................ 44 A formação de conceitos elementares ....................................................................................45 Atividades ................................................................................................................................................ 48 Dicas de estudo ........................................................................................................................................ 49 Formação de conceitos científicos .........................................................................................51 Atividades ................................................................................................................................................ 54 Dicas de estudo ........................................................................................................................................ 55 Piaget 1 .................................................................................................................................. 57 Introdução ................................................................................................................................................ 57 O desenvolvimento mental segundo Piaget ............................................................................................ 58 Atividades ................................................................................................................................................ 62 Dicas de estudo ........................................................................................................................................ 63 Piaget 2: estágios do desenvolvimento ..................................................................................65 O que são os estágios ............................................................................................................................... 65 Atividades ................................................................................................................................................ 71 Dicas de estudo ........................................................................................................................................ 72 Piaget 3: o desenvolvimento da inteligência ..........................................................................73 Aprendizagem .......................................................................................................................................... 74 Texto complementar ................................................................................................................................. 76 Atividades ................................................................................................................................................ 79 Dicas de estudo ........................................................................................................................................ 80 Wallon e a Psicologia Genética ..............................................................................................81 Aspectos biográficos ............................................................................................................................... 81 Fundamentos epistemológicos ................................................................................................................. 82 Atividades ................................................................................................................................................ 85 Dicas de estudo ........................................................................................................................................ 86 Wallon e o desenvolvimento da consciência .........................................................................87 As leis reguladoras .................................................................................................................................. 87 Os estágios ..............................................................................................................................................88 Atividades ................................................................................................................................................ 91 Dicas de estudo ........................................................................................................................................ 92 A obra de Sigmund Freud ......................................................................................................93 Biografia ................................................................................................................................................... 93 Contextualização histórica da Psicanálise ............................................................................................... 95 Texto complementar ................................................................................................................................. 99 Atividades .............................................................................................................................................. 100 Dicas de estudo ...................................................................................................................................... 101 Evolução dos instintos ........................................................................................................103 Fase oral ................................................................................................................................................ 104 Fase anal ................................................................................................................................................. 104 Fase fálica .............................................................................................................................................. 105 Fase de latência ..................................................................................................................................... 106 Fase genital ............................................................................................................................................ 107 A construção do aparelho psíquico ....................................................................................................... 107 Atividades .............................................................................................................................................. 108 Dicas de estudo ...................................................................................................................................... 108 Mecanismos de defesa .........................................................................................................109 Sublimação ............................................................................................................................................ 109 Negação ..................................................................................................................................................110 Projeção ..................................................................................................................................................110 Introjeção ................................................................................................................................................111 Identificação ............................................................................................................................................111 Formação reativa .....................................................................................................................................112 Isolamento ...............................................................................................................................................112 Anulação .................................................................................................................................................112 Deslocamento .........................................................................................................................................112 Idealização ..............................................................................................................................................113 Conversão ................................................................................................................................................113 Regressão ...............................................................................................................................................113 Racionalização .......................................................................................................................................113 Princípio fundamental da teoria psicanalítica ........................................................................................114 O professor e a teoria freudiana da aprendizagem ..................................................................................114 Texto complementar ................................................................................................................................117 Atividades .............................................................................................................................................. 120 Dicas de estudo ...................................................................................................................................... 121 Erik Erikson: o desenvolvimento psicossocial ...................................................................123 Formação da personalidade ................................................................................................................... 124 Crise psicossocial .................................................................................................................................. 124 Desenvolvimento contínuo .................................................................................................................... 125 Estágios psicossociais ............................................................................................................................ 125 Atividades .............................................................................................................................................. 130 Dicas de estudo ...................................................................................................................................... 131 A Psicologia Cognitiva: o processamento da informação ....................................................133 Linhas de pesquisa emprocessamento da informação ............................................................................ 135 Contribuições para os dias de hoje ........................................................................................................ 137 Atividades .............................................................................................................................................. 138 Dicas de estudo ...................................................................................................................................... 139 As inteligências múltiplas de Howard Gardner ..................................................................141 O que são as múltiplas inteligências? ..................................................................................................... 141 Critérios para existência da inteligência ................................................................................................ 142 Os tipos de inteligência de Gardner ...................................................................................................... 143 Atividades .............................................................................................................................................. 145 Dicas de estudo ......................................................................................................................................146 A inteligência triárquica de Robert Sternberg .....................................................................147 A inteligência e o mundo interno .......................................................................................................... 148 A inteligência e a experiência ............................................................................................................... 149 A inteligência e o mundo externo .......................................................................................................... 149 Atividades .............................................................................................................................................. 150 Dicas de estudo ...................................................................................................................................... 151 A importância das perspectivas psicológicas do desenvolvimento .....................................153 Atividades .............................................................................................................................................. 156 Dicas de estudo ...................................................................................................................................... 157 Referências ...........................................................................................................................159 Apresentação E ste livro foi preparado para que você acompanhe as aulas de Psicologia do Desenvolvimento e aprofunde seus conhecimentos sobre as mudanças de comportamento humano durante as mais diferentes fases da vida. Nele, você encontrará subsídios essenciais para sua prática profissional; ao longo das aulas, além de entrar em contato com o contexto histórico do surgimento dessa disciplina, conhecerá suas diferentes correntes, alguns dos principais estudiosos e as contribuições contemporâneas a esse campo. Para que você possa fixar o que aprendeu, o livro traz atividades abertas e exercícios, e também sugestões de leitura e de filmes, os quais ilustram os debates e podem ajudá-lo a perceber a aplicação dos conceitos aprendidos na prática. Aspectos históricos da Psicologia Ercília Maria de Paula* Fernando Wolff Mendonça** Embora tenha sido uma das ciências mais antigas da humanidade, a Psicologia foi considerada como pré-científica durante muitos anos, pois defendia o dualismo do corpo e da alma. Acreditava-se que os “desvios” de comportamento humano ocorriam em decorrência dos espíritos que habitavam o corpo físico. O pensamento mítico era predominante e as diferenças comportamentais eram explicadas em função dos deuses e dos fenômenos sobrenaturais. De acordo com Davidoff (1983), a preocupação da Psicologia esteve voltada, no século XIX, para o estudo do cérebro, dos nervos e dos órgãos dos sentidos. Esse período é considerado o início da Psicologia científica, que utilizava diferentes procedimentos experimentais para explicar a mente humana. Com o tempo, a Psicologia foi se expandindo em diferentes correntes e sua linguagem também foi sendo popularizada. Habitualmente, usamos o termo psicologia para as características de comportamento das pessoas que encontramos no cotidiano. É comum usarmos expressões como: – Hoje estou psicologicamente afetado. – Você percebeu como ela ficou abalada emocionalmente? – Saí da loja com produtos que não queria comprar: aquele vendedor usou de muita psicologia para me convencer. – José, eu vim falar com você porque você tem muita psicologia para ouvir as pessoas. Essa forma popular de falarmos da Psicologia não representa, de fato, o fazer do psicólogo no seu dia-a-dia. Esse psicologismo, utilizado no cotidiano por muitas pessoas, ressalta o impacto que a ciência da Psicologia vem causando, por suas ações e seu fazer junto às pessoas. Porém, distante de toda essa realidade, a Psicologia veio buscando sua identidade como trabalho científico. Muito mais que a simples observação dos fenômenos cotidianos, ela procura estabelecer um critério sistematizado para analisar os fenômenos humanos inseridos na realidade cotidiana. Sendo assim, busca se diferenciar do senso comum para se tornar efetivamente uma disciplina científica. Para tanto, vem buscando fundamentos teóricos e científicos, bem como metodológicos, que proporcionem esse posicionamento diante da sociedade contemporânea. Doutora em Educação pela UFBA. Mestra em Educação pela USP. Pedagoga pela Uni- camp. Professora do Ensino Superior. Mestre em Educação pela UFPR. Especialista em Peda- gogia Terapêutica pela Univer- sidade Tuiuti do Paraná. Fono- audiólogo pela PUCPR. Psicologia do Desenvolvimento 10 As diferentes linhas do pensamento psicológico Como decorrência dessa necessidade de se colocar socialmente como ciência, muitas correntes foram se estabelecendo na Psicologia, tentando entender como o ser humano poderia ser concebido. Mostraremos algumas delas e seus principais pressupostos. Estruturalismo Tem como seus principais representantes o psicólogo e fisiologista alemão Wilhelm Wundt (1832-1920) e o psicólogo americano Edward Bradford Titchener (1867-1927). No começo do século XX, Wundt e Titchener discutiram com pensadores da época o conceito de mente e certas condições do método da introspecção científica. O objeto de estudo desta escola é a consciência mediante a introspecção e a auto-observação controlada. A mente, ou consciência imediata, não é algo substancial, mas somente processos elementares da atividade mental: sensação, sentimento e imagem. Para Davidoff (1983), a Psicologia experimental de Wundt estuda as operações mentais centrais, como atenção, intenções e metas. Os sujeitos desses estudos são treinados para descrever, da forma mais objetiva possível, suas experiências com determinados estímulos de cores, sabores e odores. Wundt interessava-se por anatomia e sua vida acadêmica era voltada para a pesquisa fisiológica sobre as percepções sensoriais. O sistema da introspecção, proposto e praticado nos laboratórios de Wundt, refletia o método que os psicólogos utilizavam para que os sujeitos das pesquisas relatassem suas experiências internas em relação aos estímulos ambientais. Esses relatos eram os julgamentos e as observações conscientes dos sujeitos sobre o tamanho, a intensidade e a duração dos estímulos. A partir desses experimentos e relatos, Wundt descrevia a maneira como a consciência humana era estruturada. Funcionalismo Seus representantes mais destacados são o pedagogo e filósofo americano John Dewey (1859-1952) e o filósofo americano William James (1842-1910). Eles incorporam a concepção do naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882) afirmando que a mente humana e a conduta humana são adaptativas e que o ponto central da Psicologia está na ação ou na conduta. Para Dewey e James, o que a consciência possui é menos importante do que aquilo que ela faz. Segundo esses autores, não existe produção mental que não seja acompanhada de uma modificação corporal. Além disso, eles apresentam a relação estímulo-resposta como a proposta metodológica de seu trabalho. A Psicologia Funcionalista interessa-se em compreender como ocorre o funcionamento e a adaptação da mente dos indivíduos no meio em que esses indivíduos se inserem. De acordo com Schultz (1992), o funcionalismo estuda as influências das crenças no comportamento emocional e corporal das pessoas, bem Aspectos históricos da Psicologia 11 como investiga a formação dos conceitos de acordo com as necessidades humanas. Para esta corrente, as pessoas apresentam comportamentos diferenciados em relação aos estímulos que recebem. Não existe uma única resposta aos estímulos: as respostas variam conforme os comportamentos adaptativos das pessoas. Portanto, a consciênciae as sensações são mutáveis. O funcionalismo investigou a estrutura psicológica de diferentes populações – como animais, crianças, povos primitivos e deficientes – para descobrir as variações nas organizações mentais desses grupos. Gestalt Questionando o reducionismo proposto pelo estruturalismo e pelo funcionalismo, a Gestalt prega que o todo é maior que a soma de suas partes, assim buscando ser uma Psicologia integrativa de caráter globalista. Propõe que para entender o todo é preciso analisá-lo em sua configuração, analisando e integrando as suas partes constituintes. Segundo Davidoff (1983), a Gestalt surgiu como protesto contra o estruturalismo, principalmente contra a prática de reduzir experiências complexas a elementos simples. A invenção do cinema foi a demonstração de como uma série de fotografias e imagens imóveis, quando eram rapidamente apresentadas, transformavam-se em imagens contínuas. Dessa maneira, verificava-se que o filme projetado na tela esboçava o todo das partes que o compunham. O movimento aparente não podia ser compreendido, portanto, sem as análises de todos os seus componentes. A Gestalt é uma corrente muito significativa no estudo das percepções e também contribui para a compreensão dos indivíduos como parte de um campo mais amplo que inclui o organismo e o meio. Conexionistas Para o psicólogo americano Edward Lee Thorndike (1874-1949), o comportamento do sujeito é modelado pelo ambiente e segue leis que o direcionam. E esse comportamento só será efetivo se for condicionado por três princípios: lei do efeito – a aprendizagem se manterá ou não segundo as conseqüências que produz (reforçamento); lei do exercício – a importância da prática para que se mantenham as conexões nervosas e se fortaleça o aprendido; lei da disposição – se não existe disposição, não se produz comportamento aprendido, pois é a disposição que permite o comportamento. Thorndike propunha conexões entre estímulos e respostas e seus experimentos envolviam o uso de animais. Um dos seus estudos clássicos foi a experiência que realizou com um gato privado de alimentos que ficou em uma caixa fechada com vários trincos. Para sair da caixa, o animal tinha que encontrar a alavanca correta para acessar o alimento, que estava do lado de fora. Por meio da lei do exercício, com diversas tentativas de ensaio e erro (empurrar, farejar e dar patadas), o gato Psicologia do Desenvolvimento 12 conseguiu abrir a alavanca. Em outras situações – quando o animal era recolocado na caixa, acionava a alavanca e conseguia o alimento –, manifestava-se a lei do efeito. A comida era sua recompensa e funcionava como um reforço positivo. Porém, quando o gato acionava a alavanca e não encontrava o alimento, sua resposta era enfraquecida. O uso prolongado da resposta incorreta fazia com que a resposta fosse sendo extinta, pois funcionava como um reforço negativo. Portanto, para os conexionistas, um comportamento poderia tanto ser reforçado como esquecido se não fossem realizadas as conexões necessárias: se o animal não encontrasse uma maneira de alcançar o alimento desejado, não havia disposição para realizar a ação. Psicanálise Para o médico austríaco Sigmund Freud (1859-1939), pai da Psicanálise, os processos psíquicos são de natureza inconsciente e os processos conscientes não são senão atos isolados ou fracionados da vida total. Segundo Freud, determinados impulsos instintivos, que podem ser unicamente de natureza sexual, desempenham um papel entre as causas das enfermidades nervosas, psíquicas, e colaboram na gênese das mais altas criações culturais, artísticas e sociais. A Psicanálise considera que os processos mentais não ocorrem ao acaso: existem razões para os acontecimentos humanos, os sentimentos ou as ações. De acordo com Bock (2000), a Psicanálise busca o significado oculto das nossas ações, o qual é expresso por meio de gestos, palavras ou sonhos. Na educação, a Psicanálise assume um papel significativo no estudo da afetividade, dos recalques, das repressões, das projeções, das transferências e dos mecanismos de defesa vivenciados nas relações entre professores e alunos. Reflexologia O fisiologista russo Ivan Sechenov (1829-1905) e o fisiologista e psicólogo soviético Ivan Petrovich Pavlov (1849-1936) descobriram os mecanismos reguladores da conduta, os quais podem ser inibidos ou intensificados pelos mecanismos de estímulo e resposta. Pavlov propõe que as atividades nervosas superiores podem ser estudadas pelo procedimento do reflexo condicionado. Assim, o condicionamento é assumido como técnica fundamental, o que permite descobrir as condições para que, frente ao estímulo, haja uma resposta que não lhe pertence. Por meio de pesquisas realizadas com cães, Pavlov demonstrou como um comportamento pode ser condicionado. Em seus estudos, ele observou que, se a comida era ofertada aos cães associada ao som de uma campainha, essa ação fazia com que esses animais, com o passar do tempo, já começassem a salivar quando ouviam o sinal da campainha. Esse aspecto representava um reflexo condicionado e essa resposta só ocorria em função de uma conexão existente entre o estímulo (o som) e a resposta (a comida). O processo de condicionamento não ocorre somente com os animais, mas também no cotidiano das pessoas. Alguns exemplos (acordar ao som do despertador, Aspectos históricos da Psicologia 13 atender ao som do celular, dormir em horários determinados) representam que o organismo está condicionado a oferecer determinadas respostas em função dos estímulos gerados. Condutivismo Esta é a base de uma Psicologia eminentemente prática, sem nada de introspecção, tendo como objetivos a predição e o controle da conduta. São seus representantes os psicólogos americanos John Broadus Watson (1878- 1958), Clarck Leonard Hull (1884-1952), Edward Chace Tolman (1886-1959) e Burrhus Frederic Skinner (1904-1990). Este último propõe o condutivismo radical ou behaviorismo, segundo o qual toda conduta humana é completamente determinada, nunca havendo liberdade de escolha. O termo behaviorismo deriva da palavra inglesa behavior, que significa “comportamento”. Skinner, um dos principais representantes desta corrente, observava que o comportamento humano podia ser modelado. De acordo com Fadiman (1986), em um dos seus experimentos Skinner observou que se, após realizar uma ação positiva, uma criança recebia uma bala, esse ato reforçava os comportamentos positivos dessa criança. Entretanto, se essa mesma criança realizava comportamentos de birra com a mãe todas as vezes que freqüentava uma loja, com o intuito de que sua mãe comprasse brinquedos, e se essa criança fosse atendida nos seus apelos, a mãe estava reforçando comportamentos negativos de sua filha. Portanto, ao estudar os reflexos, Skinner investigava a ocorrência desses reflexos e as respostas desejadas e indesejadas. A teoria condutivista é criticada na educação por estudar formas de recompensas no processo educacional, formas de controle do comportamento e por enfatizar o ensino programado, que centraliza o processo educacional no professor. Psicologia soviética O psicólogo russo Lev Semionóvitch Vygotsky (1896-1934) estudou as capacidades humanas (como cada um é capaz, com as ajudas adequadas, de desenvolver uma habilidade) e define consciência como o autêntico objeto de estudo da Psicologia: a consciência é a função mais especializada do cérebro e se desenvolve no contexto das relações sociais. Em suas investigações sobre os processos neuropsicológicos da mente humana, Vygotsky teve a colaboração do neurologista russo Aleksandr Romanovitch Luria (1902-1977). A origem russa de Vygotsky contribuiu para que seus estudos recebessem influência do socialismo e estivessem voltados para as interações sociais e a construção coletivado conhecimento. Para ele, o ensino não estava somente centrado no professor, mas em todos os integrantes da sala de aula. A Psicologia soviética discutia a não-universalidade de padrões de desenvolvimento. Nesta corrente, a estrutura e o funcionamento do psiquismo humano são construídos de acordo com a cultura dos indivíduos. Psicologia do Desenvolvimento 14 Psicologia humanista Propõe a clara distinção entre homens e animais: os homens têm uma natureza específica comum a outros homens e possuem uma natureza individual, que é única e sem repetição. Portanto, cada sujeito deve ser estudado como é, sem preestabelecimento de juízos ou conceitos. A Psicologia humanista se baseia em alguns princípios, como os de o homem: ser mais que uma soma de partes; ser a essência em um contexto humano; viver de forma consciente; ter condições de escolha; ser orientado para metas. Os maiores representantes desta corrente são o psicopedagogo americano Carl Rogers (1902-1987) e o psicólogo americano Abraham Maslow (1908-1970). O humanismo na educação prioriza a pessoa que aprende e a escola deve ensinar valores democráticos ao aluno, levando-o à autodireção. Assim, a aprendizagem transcende os limites cognitivos, afetivos e motores; a educação deve ter qualidade de um envolvimento pessoal e a pessoa precisa ser tratada como um todo; a avaliação reside no educando; o aluno auxilia a realizar o planejamento, a formular questões, a discutir problemas referentes ao grupo e a avaliar as conseqüências de suas escolhas; o professor precisa ser um facilitador da aprendizagem e estabelecer um clima de receptividade entre os alunos. Cognitivismo O objetivo principal desta corrente é a atividade humana de um sujeito que busca, escolhe, elabora, interpreta, transforma, armazena e reproduz a informação proveniente do meio ambiente ou do seu interior. Direcionado por um objetivo, esse sujeito planeja, programa, executa e corrige a ação em processo até o término dessa ação. O biólogo e filósofo suíço Jean Piaget (1896-1980) concebe o conhecimento como um conjunto de estruturas cognitivas que permitem à criança adaptar-se ao ambiente. E ele chama de epistemologia genética ao seu campo de estudo, sobre as origens e os estágios da inteligência e do conhecimento na criança. Os teóricos do processamento da informação estabelecem correlação entre os comportamentos humanos e os ordenadores de modelos virtuais, que processam informações mediante mecanismos de entrada, processamento e saída de informações, assim como acontece com o sistema cerebral humano. A partir disso, esses teóricos propõem um sistema de modelos de funcionamento da mente humana. Aspectos históricos da Psicologia 15 Piaget buscou nas crianças a origem do conhecimento. No início de suas pesquisas, ele realizava observação direta do comportamento de seus três filhos. Com o tempo, foi sistematizando seu método de investigação para entender a lógica infantil. Para ele, o desenvolvimento cognitivo ocorria por meio de processos constantes de desequilíbrio e equilibração. Ou seja, a cada interação do indivíduo com um objeto desconhecido, o indivíduo assimilava as estruturas desse objeto e, posteriormente, acomodava as características desse objeto ao seu pensamento. Dessa maneira, novos elementos eram incorporados à estrutura mental dos indivíduos e, em sucessivos processos de desequilíbrio e equilibração, os sujeitos construíam conhecimentos. O desenvolvimento humano A partir dessas diferentes abordagens e pontos de vista sobre o comportamento humano, buscaremos um referencial que nos permita entender como nos constituímos como sujeitos. Para tanto, partimos de algumas premissas. Em primeiro lugar, o princípio de que o ser humano não é um sujeito acabado ao nascimento: ele se constitui ao longo de seu desenvolvimento e de maneira tão peculiar e única que exige um estudo organizado para serem conhecidas as formas e as condições em que um sujeito vai se formando ao longo de sua vida. Para tanto, faz-se necessário que a Psicologia do Desenvolvimento estude, com base nos teóricos que admitem tais condições de desenvolvimento da criança, o processo de constituição de cada um. Posteriormente, deve ser claro que devemos levar em conta a condição de existência de cada um de nós a partir desse processo contínuo. Assim, teóricos que tenham essa óptica são eleitos para nosso estudo: as perspectivas psicanalítica, cognitivista e interacionista são as escolhidas para discutirmos, ao longo deste material, como se dá o comportamento humano a partir do desenvolvimento, da infância até a maturidade. E dessa forma poderemos construir um referencial teórico útil na relação que manteremos com a criança ao longo do processo de escolarização. 1. Escolha três amigos de sua sala de aula e discuta com eles as questões abaixo. São as características psicológicas humanas um atributo da espécie ou um processo de desenvolvimento gradual e aprendido? Psicologia do Desenvolvimento 16 Nas perspectivas teóricas apresentadas, quais dão prioridade ao desenvolvimento proporcionado pelo meio, quais dão prioridade ao biológico e quais propõem uma visão interativa de sujeito humano? 2. Discuta com seus amigos quais as características diferenciais entre o que pensa uma criança e o que pensa um adulto dentro do ponto de vista psicológico. 3. Das correntes psicológicas estudadas, qual defende a afirmativa de que “toda conduta humana é completamente determinada, nunca havendo liberdade de escolha”? CARPIGIANI, Berenice. Psicologia: das raízes aos movimentos contemporâneos. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2004. Para entender melhor a teoria psicanalítica, assistir ao filme: Freud Além da Alma (EUA, 1962), com direção de John Huston. Abordagem dos problemas vivenciados por Freud para que a Psicanálise fosse aceita como ciência e também as principais idéias da teoria freudiana. Aspectos históricos da Psicologia 17 Para entender melhor a teoria behaviorista, há dois filmes, conforme abaixo. Laranja Mecânica (Inglaterra, 1971), com direção de Stanley Kubrick. Narra a vida do líder de um grupo de jovens violentos e torturadores que é preso e, na cadeia, são realizados experimentos e apresentadas diversas formas de controle do seu comportamento e sua consciência. O Show de Truman (EUA, 1998), com direção de Peter Weir. Apresenta uma pessoa que tem sua vida transmitida para os Estados Unidos inteiro em canal de TV paga, mas não sabe o que está acontecendo, não sabe que tudo o que ocorre ao seu redor é fictício, até o dia em que descobre a farsa. O filme retrata os limites do controle do comportamento na vida humana. Psicologia do Desenvolvimento 18 Vygotsky: vida e obra – a história de um gênio P ara compreender o direcionamento da obra de Vygotsky, é necessário compreender um pouco o percurso vivido pelo homem Lev Semenovich Vygotsky, bem como o contexto histórico e social em que ele estava inserido. Dessa forma, é necessário analisar as influências recebidas da família, do clima intelectual e social da época em que viveu. Vygotsky nasceu em 5 de novembro de 1896, em Orsha, uma pequena cidade na Bielo-Rússia (alguns livros trazem a data de 17 de novembro, mas não consideraram que o antigo calendário russo trazia 12 dias de diferença em relação ao ocidental). Era descendente de uma família de origem judaica. Viveu sua infância em Gomel, na companhia dos pais e dos sete irmãos. Foi uma infância marcada por um ambiente desafiador em termos intelectuais e tranqüila quanto ao aspecto econômico: o pai era bancário e a mãe, professora formada, dedicou-se à criação dos filhos. Eles foram os principais organizadores da biblioteca pública da cidade, da qual todos os filhos e amigos eram ativos freqüentadores.Até os 15 anos, sua educação ocorreu em casa, acompanhada pelo tutor Solomon Asphiz. Desde muito jovem, ele se mostrava um estudante dedicado, um amante das artes e da literatura. Em sua casa, havia uma biblioteca onde estudava sozinho ou na companhia de amigos. Um aspecto marcante na sua formação foi o aprendizado de diferentes idiomas, o que lhe permitiu contato com textos de diversas línguas. Aos 17 anos, completou o curso secundário, recebendo medalha de ouro por seu brilhante desempenho. Por sua origem étnico-religiosa, enfrentou dificuldades para ingressar no ensino superior: a Universidade de Moscou oferecia apenas 3% das vagas para estudantes judeus. Para conseguir seu ingresso, Vygotsky participou de um sorteio. Em 1914, iniciou seus estudos no curso de Medicina, opção que, apoiada por seus pais, poderia lhe proporcionar uma vida estável, mas depois de um mês se transferiu para Direito e Literatura. Como trabalho de conclusão de curso, apresentou um estudo sobre Hamlet, de Shakespeare, obra que mais tarde se tornaria o livro Psicologia da Arte, no qual discute a influência da literatura no indivíduo. Vygotsky começou sua carreira profissional aos 21 anos, após a Revolução Russa. No período entre 1917 e 1923, ele lecionou e proferiu várias palestras sobre temas ligados à Literatura, além de fazer crítica literária. Duas características marcantes definem o estudioso nessa época: o seu retorno à medicina (mesmo já sendo renomado, freqüentou o primeiro ano com naturalidade, junto aos alunos mais novos) e sua aptidão para a leitura (seu amigo Luria o definiu como um “leitor em diagonal”, sem dizer que o que Vygotsky lia não eram novelas românticas). Seu interesse pela Psicologia surgiu de forma mais sistemática a partir do contato com crianças com problemas congênitos. Vygotsky trabalhou intensamente no início do período pós-revolucionário e, a partir de suas experiências, passou a pensar em alternativas que pudessem auxiliar no desenvolvimento dessas crianças. Ele estudava os problemas neurológicos das crianças para compreender o funcionamento psi- cológico do homem. Sua atividade acadêmica foi muito diversificada. Atuou nas áreas de Psicologia, Psicologia do Desenvolvimento 20 Pedagogia, Filosofia, Literatura e de atendimento aos portadores de necessidades especiais. Para entender o funcionamento da mente humana, iniciou suas pesqui- sas com crianças que não possuíam os padrões considerados “normais”. Vygotsky considerava que era preciso ir além dos pressupostos e dos objetivos do desenvol- vimento humano. Para ele, o desenvolvimento variava consideravelmente segun- do as tradições e as circunstâncias culturais de diferentes comunidades. Naqueles anos, seus estudos sobre os grandes pensadores da época o colocaram em contato com as mais diferentes obras do seu tempo e suas preocupações com um ideal de sociedade o faziam decisivamente mais próximo das obras de Marx e Engels. Em 1919, descobriu ser portador de tuberculose, doença que o mataria 15 anos mais tarde, mas que em momento algum lhe tirou a tenacidade e a obstinação. Em sua carreira, 1924 é um marco: a partir desse ano, Vygotsky se dedicou de forma mais sistemática ao estudo da Psicologia, tendo realizado uma palestra no 2.º Congresso Psiconeurológico e causando espanto e admiração em pesquisadores renomados que viram aquele jovem de 28 anos abordar, com clareza e de forma revolucionária, as idéias acerca do estudo do comportamento consciente humano. Depois disso, ele foi convidado a trabalhar no Instituto de Psicologia de Moscou, mudando-se para essa cidade e dando início à construção de sua obra. Foi também aos 28 anos que ele se casou, e dessa união teve duas filhas. Em 11 de junho de 1934, morreu em Moscou. A produção de Vygotsky foi vasta. Porém, como ele faleceu aos 37 anos de idade, muitos de seus textos não expressavam detalhes dos seus experimentos e pesquisas. De todo modo, a produção de Vygotsky era revolucionária para sua época pelo fato de romper com a estagnação da Psicologia e das ciências educacionais de então. É preciso destacar que as obras de Vygotsky foram ignoradas no Ocidente até 1962 por problemas políticos e pela situação de isolamento que a União Soviética apresentava em relação aos centros europeus e americanos de produção do conhecimento. Vygotsky e a sua visão da realidade A obra de Vygotsky é inovadora, contrapondo-se às visões correntes na sua época. Nas primeiras décadas do século XX, a Psicologia estava dividida em duas tendências. O grupo ligado à filosofia empirista encarava a Psicologia como ciência natural, devendo deter seu olhar na descrição das formas exteriores do comportamento. Este primeiro grupo ignorava os fenômenos complexos da atividade consciente, especificamente humana. Os empiristas defendiam que as pesquisas realizadas sobre o comportamento deveriam ser comprovadas por raciocínio dedutivo. Também enfatizavam os estudos dos comportamentos observáveis e desprivilegiavam pesquisas voltadas para o estudo de comportamentos que se manifestavam de forma subliminar, ou seja, no insconsciente humano. Para os empiristas, os comportamentos deveriam ser analisados e testados. Vygotsky: vida e obra – a história de um gênio 21 O outro grupo, fundamentado na filosofia idealista, acreditava que a vida psíquica não pode ser alvo de estudo de uma ciência objetiva, já que era manifestação do espírito. Este segundo grupo ignorava as funções mais complexas do ser humano e se detinha na descrição subjetiva de tais fenômenos (REGO, 1995). Os idealistas acreditavam que não era possível tratar o homem somente como resultado da interferência de um mundo físico e social. Eles procuravam entender o homem na sua totalidade, uma vez que o psiquismo sempre deveria ser visto na sua relação com o mundo. No 2.º Congresso Psiconeurológico, o mais importante evento de Psicologia na época, Vygotsky buscou superar essa situação usando o método dialético marxista ao apresentar palestra sobre “A metodologia da investigação reflexológica e psicológica”, na qual expôs as bases de um pensamento para além da perspectiva vigente na Psicologia, propondo uma Psicologia de caráter materialista (MOLL, 2002). A Psicologia materialista procurava entender os fenômenos e o psiquismo humano a partir da interação dos aspectos biológicos e sociais no desenvolvimento. O homem, em uma relação dialética, era ao mesmo tempo produto e produtor das relações sociais. O cérebro, para os materialistas, não era somente um órgão, mas também um sistema aberto e flexível cujo funcionamento era construído na própria história dos homens. O desenvolvimento biológico não era descontextualizado, mas pensado em uma relação direta com o desenvolvimento social. Sendo assim, a cultura transformava as pessoas, seus valores e representações. Sobre essas bases, Vygotsky pretendia construir uma nova Psicologia, uma teoria marxista do pensamento humano. Essa nova forma de pensar a construção do humano deveria incluir: A identificação dos mecanismos cerebrais subjacentes a uma determinada função: a explicação detalhada da sua história ao longo do desenvolvimento, com o objetivo de esclarecer as relações entre formas simples e complexas daquilo que aparentava ser o mesmo comportamento; e, de forma importante, deveria incluir a especificação do contexto social em que se deu o desenvolvimento de comportamento. (COLE; SCRIBNER apud VYGOTSKY, 1984). Esse grande projeto conta com a colaboração de um grupo de pesquisadores, incluindo Alexander Romanovich Luria e Alexei Nikolaievich Leontiev, principais colaboradores de Vygotsky. Juntos, eles construíram a chamada tróica (“trinca”), da qual Vygotsky era o líder e que representava toda a efervescência da época pós-revolucionária. O grupo se encontrava com freqüência, aproximadamente seishoras de cada vez, duas vezes por semana. Durante uma década de trabalho, Vygotsky e seu grupo se dedicaram à construção de uma nova Psicologia abordando diferentes temas relacionados ao desenvolvimento humano. Houve buscas incessantes sobre a formação do homem, em todos os referenciais da época, e o grupo realizou experiências ao longo de muitas pesquisas. Com a impossibilidade de acompanhar as pesquisas mais distantes, eram enviadas expedições pela Rússia em busca de dados que pudessem ilustrar Psicologia do Desenvolvimento 22 as suas perspectivas sobre o papel da cultura na constituição do sujeito. Luria e Leontiev foram os principais pesquisadores dessas expedições, cujos resultados podiam ser estudados profundamente pelos membros do grupo de pesquisa e, após as conclusões, era Vygotsky quem se encarregava da redação final da obra. A teoria elaborada por Vygotsky ficou conhecida como teoria sócio-histórica ou teoria histórico-cultural. Para o autor, “o mundo psíquico que temos hoje não foi nem será sempre assim, pois sua caracterização está diretamente ligada ao mundo material e às formas de vida que os homens vão construindo no decorrer da história da humanidade” (BOCK, 2000, p. 86). Segundo essa visão, o homem é um ser ativo, histórico, e social e dessa forma sua ação deixa na natureza marcas e produtos que serão apropriados pelos demais integrantes do núcleo social mediante as atividades praticadas. Além disso, o uso das ferramentas transforma as pessoas e a sociedade em que elas vivem. O uso dos instrumentos é um conceito expressivo na teoria de Vygotsky, pois está associado ao trabalho e às transformações da natureza. De acordo com Oliveira (1997, p. 28), “é o trabalho que, pela ação transformadora do homem sobre a natureza, une homem e natureza e cria a cultura e história humana”. No trabalho se realizam as ações coletivas e a construção dos instrumentos. Na história da humanidade, a evolução dos instrumentos demonstra como os homens foram construindo estratégias para se adaptarem e transformarem o meio social. No processo de alimentação, por exemplo, é possível verificar como as diferentes culturas foram elaborando múltiplas maneiras de conceber a forma e a estruturação coletiva de suas refeições. Os povos ditos primitivos foram elaborando ferramentas para poderem se alimentar. As mãos em concha e os objetos da natureza eram utilizados para beber água. Estes objetos foram os instrumentos precursores da invenção das colheres. Os objetos e materiais cortantes foram sendo adaptados e se transformaram em facas. Os galhos serviam como garfos. Estas foram algumas pequenas amostras da evolução do trabalho humano. Para Oliveira (1997), os animais também utilizam instrumentos, porém, de forma rudimentar. A autora cita os exemplos dos chimpanzés, que usam varas para conseguir alimentos distantes. Todavia, os animais não produzem os instrumentos com os mesmos objetivos que os homens. A característica de preservar a função dos instrumentos e transmiti-las de geração para geração é um aspecto da cultura humana. A apropriação desses instrumentos elaborados historicamente e a internalização dos modos de agir ocorrem no convívio social. Oliveira (1990) citou o caso verídico das meninas-lobo Amala e Kamala, na década de 1920 na Índia. Abandonadas pequenas na selva, elas aprenderam a conviver com os animais. Quando foram encontradas, andavam, comiam e se comunicavam como os lobos. Durante um determinado tempo, ficaram internadas em uma instituição, mas tiveram poucos avanços nos aspectos sociais e cognitivos. Amala morreu com dois anos de idade e Kamala conseguiu sobreviver até os nove anos. Porém, Vygotsky: vida e obra – a história de um gênio 23 Kamala necessitou de seis anos para andar e, quanto à linguagem, apresentava um vocabulário bem precário. Essa situação representa a maneira como o convívio social possibilita criar condições para o aparecimento da consciência. Para Davis e Oliveira (1990), os homens, quando transformam a natureza e aprimoram seus instrumentos, estão desenvolvendo suas funções mentais superiores, como percepção, atenção, memória e raciocínio. Nesse processo, também estão formando suas personalidades. Cabe à Psicologia do Desenvolvimento, portanto, conhecer e compreender a forma de estruturação do comportamento humano e dos processos de aprendizagem. 1. Pesquise e comente com os seus colegas a influência da revolução socialista de 1917 no pensa- mento de Vygotsky. 2. Pesquise o significado da expressão homem concreto, levando em conta a teoria de Karl Marx. 3. Nas afirmativas abaixo, existe um enunciado que não corresponde à teoria materialista de Vygotsky. Marque com um X esse enunciado. a) O materialismo busca entender os fenômenos e o psiquismo humano. b) O materialismo compreende o homem como produto e produtor das relações sociais. Psicologia do Desenvolvimento 24 c) O materialismo defende que o homem relaciona-se somente com os materiais. d) O materialismo é construído na história dos homens. 4. Qual o nome atribuído à teoria de Vygotsky? a) Comportamentalista. b) Behaviorista. c) Histórico-cultural. d) Cognitivista. LEITE, Luci Banks; GALVÃO, Izabel. (Orgs.) A Educação de um Selvagem: as experiências pedagógicas com Jean Itard. São Paulo: Cortez, 2000. História de um garoto selvagem, conhecido como Victor de Aveyron, que viveu nos anos de 1801 a 1806 na França. O livro é composto por diversos artigos de pesquisadores brasileiros que enfocam as angústias, as dores e os prazeres, bem como os saberes da Psicologia e das experiências educacionais daquela época, utilizados por Jean Itard, um médico e pedagogo que desejava integrar Aveyron à sociedade. Também é mostrado o difícil processo de humanização daquele menino. Indicação de filme: O Enigma de Kaspar Hauser (Alemanha, 1975), com direção de Werner Herzog. O filme retrata a vida de Kaspar Hauser, um garoto que apareceu numa praça de Nuremberg, em maio de 1828. Era um estranho, ninguém sabia quem era ou de onde vinha. Durante muitos anos, ele ficou trancado em um porão. Não sabia andar nem falar. Tinha aproximadamente 15 ou 16 anos de idade. O filme reflete a respeito da forma como as interações sociais foram sendo construídas entre o garoto e a comunidade. Também apresenta a maneira como as pessoas procuraram inseri-lo nos processos civilizatórios daquele local. 1 René Descartes (1596-1650), filósofo e matemá- tico francês. Autor de Regras para a Direção do Espírito (1628), Discurso sobre o Mé- todo (1637) e Princípios da Filosofia (1644). Sua primei- ra preocupação foi fundar um método que permitisse o pensamento claro e distinto. Para o pensamento cartesia- no, a racionalidade do mundo físico e biológico se expressa exclusivamente em termos de causa e efeito. Bases epistemológicas: o processo de humanização A Formação Social da Mente, uma das mais conhecidas obras de Vygotsky, marca uma das principais idéias da corrente sócio-histórica elaborada por ele, que não buscava descobrir a natureza da mente como uma colcha de retalhos, mas sim, com base no pensamento e no método marxistas, “saber de que modo a ciência tem de ser elaborada para abordar os estudos da mente” (VYGOTSKY, 1998, p. 10). Assim, o materialismo histórico deriva da influência de Marx em sua obra, enquanto para o materialismo dialético ele procurou fundamentação em Engels. Sobre suas bases marxistas se assentam os princípios da sua visão acerca da construção de uma ciência psicológica: os fenômenos devem ser estudados em permanente transformação; ao transformar a natureza com a sua atividade, o homem transforma também a si mesmo; o conhecimento só pode ser construído a partir da essência dos fenômenos e não da aparência, ou seja, é preciso conhecer sua gênese;a consciência é determinada pelo modo de vida concreta dos sujeitos. Ele dirige dura crítica ao sistema cartesiano, proposto por Descartes (1649), pela incompletude de sua abrangência nas questões de Psicologia. Tinha uma admiração profunda pela obra de Spinoza (1675), que buscava uma relação monista (unificada) para o problema do corpo e da mente. Para Vygotsky, além de não possibilitar o entendimento das funções tipicamente humanas, as tendências cartesianas acabavam por gerar uma crise na Psicologia. O filósofo Descartes1 era mecanicista e considerava que o corpo é um conjunto de reflexos regido pelas leis da física e da mecânica. Para Carpigiani (2004), o pensamento cartesiano estava voltado para a separação da mente e do corpo (alma e espírito) e considerava que a única interação possível entre essas estruturas ocorria por meio da glândula pineal. De acordo com Descartes, essa glândula era localizada na base do cérebro e responsável pela memória e pelo pensamento. Todavia, embora o pensamento cartesiano enfatizasse essa característica da dualidade, não concebendo o homem como um ser único, suas afirmativas, para a época, contribuíram para as pesquisas na área da anatomia. Até aquele momento, os estudos sobre o corpo humano eram condenados pela Igreja, que afirmava que os corpos são sagrados e, portanto, intocáveis. Dessa maneira, os corpos humanos não podiam ser estudados. Descartes argumentava que os corpos dos animais eram como máquinas sem alma e, por isso, podiam ser dissecados e estudados. Nesse sentido, a separação entre corpo e mente favoreceu as pesquisas anatômicas. No entanto, o pensamento de Descartes não considerava a influência que a mente exerce sobre o corpo. Psicologia do Desenvolvimento 26 Segundo Wertheimer (1982), o filósofo Benedito Spinoza2 descrevia de forma mais lógica e geométrica o comportamento humano. Spinoza discorreu sobre a epistemologia e a ética e propôs uma solução para o problema do corpo e da alma, desenvolvendo a perspectiva monista, que sustentava a unidade entre mente e corpo como substâncias unitárias. Na teoria sócio-histórica, Vygotsky entendia a construção da inteligência humana a partir da vertente interacionista, que conjugava o corpo com a alma. Também defendia a complementaridade dos aspectos biológicos e sociais no desenvolvimento humano. Essa teoria considera que é por meio das suas interações com outros seres humanos que o homem se constrói. Em outras palavras, o homem não nasce homem e sim com possibilidades de humanizar-se nas interações que estabelece ao longo da vida. Ao pensar assim, Vygotsky alia-se à perspectiva marxista de que o homem ao longo de sua existência tem produzido, pelo trabalho, transformações de natureza social e material. Nascidos nesse contexto, os sujeitos devem se apropriar dessas transformações para poderem participar da sociedade. Entendida como instrumentos, essa produção permitiu que o homem atuasse sobre o meio – utilizando mediadores materiais, a priori, e simbólicos, a posteriori (PINO, 2000) – para promover sua relação com o outro e com a natureza. Assim, no seu nascimento, o sujeito encontra os elementos pertinentes à sua realidade, ou seja, ele interage com a tecnologia instrumental e simbólica vigente. Pode-se tomar um exemplo da necessidade do conhecimento digital para assim participar mais intensamente das transformações que o conhecimento gera na realidade dos dias de hoje. As mediações simbólicas que o homem constrói ao longo de sua existência estão relacionadas à invenção dos signos, que são elementos da cultura humana e orientam o pensamento. Na atualidade, quando uma mãe está grávida, já existe um instrumental tecnológico desenvolvido por gerações anteriores que vão mediar as futuras interações do seu bebê com o mundo. Ao longo da evolução das espécies, os homens foram elaborando diferentes instrumentos adaptados às crianças, como brinquedos, utensílios para a alimentação, e mesmo o mobiliário infantil. Além desses instrumentos, também foram sendo construídas representações sociais. Em diferentes culturas, a cor azul está associada ao sexo masculino e a cor rosa, ao sexo feminino. Portanto, mesmo antes de nascer, a criança já está imersa em um conjunto histórico de instrumentos, representações, signos e símbolos. A partir do nascimento, essa criança vai aos poucos se familiarizando e compreendendo seus significados. Tais símbolos e representações são expressos de várias formas em função das diversidades culturais. Assim, as características tipicamente humanas não estão prontas no nascimento: desenvolvem-se no decorrer da vida. As funções psicológicas superiores do ser humano surgem da interação dos fatores biológicos, que são parte da constituição física do Homo sapiens, com fatores culturais, que evoluíram através de dezenas de milhares de anos de história humana. (LURIA, 1994, p. 60). Para Vygotsky, as funções psicológicas superiores são: 2 Baruque de Spinoza (1632-1677), também chamado Benedito de Spinoza, filósofo holandês. Grande parte de sua obra foi publicada postu- mamente: Ética (1661-1675), Tratado sobre a Reforma do Entendimento (1662) e Trata- do Político (1676-1677). Seu maior objetivo foi transmitir uma mensagem libertadora diante de todas as servidões. Sua idéia moral sobre o homem se estende para a vida em so- ciedade: a cidade existe pela reunião de todos no espírito de liberdade. Bases epistemológicas: o processo de humanização 27 a capacidade de solucionar problemas; o uso da memória; a formação de conceitos; o desenvolvimento da linguagem. Reunidos, esses aspectos compõem as características eminentemente humanas. O processo de desenvolvimento das funções psicológicas superiores e de novas formas de atividade mental é um processo ativo e de interações que permitem a construção de ações partilhadas e modificações nos ambientes. Isso é percebido quando comparamos a atividade humana com a atividade animal. Os animais não deterioram seu habitat, ou seja, vivem em harmonia com ele. Por sua vez, o homem, na medida em que gera trabalho (base do materialismo de Marx), transforma o meio ambiente e as próprias pessoas, modificando os sistemas sociais, naturais e individuais. Na relação entre as transformações geradas pelo trabalho e pela ação intencional do homem sobre a natureza, a criação da linguagem humana deve ser tomada com destaque. Em virtude de sua intensa atividade com a natureza e com seus semelhantes, o homem necessita manter relações de troca de bens entre estes. Associada ao processo de liberação da mão e da face (PINO, 2000), essa necessidade proporcionou, pelo gesto e pela voz, a criação de um complexo sistema de representações desenvolvido a partir dos gestos e dos sons. Esse instrumento complexo, a linguagem, possibilita a troca de informações, experiências e atividades sem a presença dos objetos e das pessoas de quem se fala. Essa função, caracterizada por Vygotsky como a principal atividade humana, distanciou-nos das formas de atividade animal, permitindo-nos a representação das ações. E a possibilidade de interagir com a mediação do signo modificou por completo a atividade humana, criando funções cognitivas de ordem superior. Para Vygotsky, a utilização da linguagem pela criança constitui um dos meios mais expressivos para a formação da consciência. As experiências históricas dos homens se encontram tanto nas produções materiais como nas formas verbais de comunicação. E é principalmente pelo uso da linguagem e dos signos que a criança interioriza o universo que está ao seu redor. Ao estudar o comportamento de crianças pequenas na fase pré-verbal, comparando-o ao comportamento dos macacos antropóides, Vygotsky constatou que, quando as crianças incorporam a fala e os signos nas suas ações, seu comportamentosupera a inteligência prática dos macacos. Por meio dos processos de interiorização dos aspectos culturais, as crianças começam a controlar o ambiente e o próprio comportamento. Esses aspectos produzem novas relações sociais que constituem a base para a formação do intelecto. Embora estabeleçam comunicações entre si, os animais não conseguem elaborar signos. De acordo com Oliveira (1997), os signos são produções construídas pelos homens para a solução de seus problemas, tais como lembrar, comparar coisas, relatar, escolher e descrever ações. Da mesma forma que os instrumentos Psicologia do Desenvolvimento 28 auxiliam o homem no trabalho, os signos são instrumentos psicológicos utilizados pelos homens para auxiliar no pensamento e no desempenho de atividades. Existe uma infinidade de situações do uso dos signos para auxiliar a memória. A utilização de agendas, lista de compras, bilhetes anotados e espalhados pela casa e anotações em sala de aula são recursos que constituem a atividade prática mental de povos das sociedades letradas. Essas estratégias auxiliares da memória são aprendidas coletivamente. Porém, cada pessoa, com o passar do tempo, vai elaborando recursos internos próprios para auxiliar na sua memória e na construção do pensamento. Uma anotação de sala de aula no caderno, por exemplo, pode ser um excelente recurso para auxiliar a memorização dos conteúdos de uma disciplina, para quem escreveu o texto. Todavia, pode não ser tão funcional para um outro leitor, que não compreende os signos, representações e rascunhos do escritor. Portanto, essas estratégias externas de anotação vão sendo transformadas de acordo com as características individuais dos sujeitos em processos conhecidos como internalização. Vygotsky (1988, p. 63) caracteriza o processo de internalização como uma “reconstrução interna de uma operação externa”. Ou seja: a humanidade está sempre em constante movimento de recriação e de reinterpretação de conceitos e significados. Oliveira (1997) considera que a cultura é um “palco de negociações” em que os sujeitos compartilham idéias e conhecimentos e reelaboram significados. Portanto, quando os indivíduos se apropriam da cultura de seu povo, não o fazem de forma passiva e estática. As atividades externas vão sendo absorvidas internamente, ao que Vygotsky denomina processos interpsicológicos, e também vão sendo reapresentadas em processos intrapsicológicos. Dessa maneira, Vygotsky considera que o desenvolvimento ocorre do social para o individual. Nesse processo, a linguagem exerce um papel expressivo na constituição das pessoas. 1. Existem diferenças entre o estado de consciência e a consciência humana. Quais são e que fatores as determinam? Bases epistemológicas: o processo de humanização 29 2. Explique o que Vygotsky quer dizer com “formas típicas do comportamento humano”. 3. Qual afirmativa corresponde ao sistema cartesiano? a) Os fenômenos devem ser estudados em processo de transformação. b) O corpo e o pensamento devem ser estudados como elementos distintos. c) O corpo e o pensamento devem ser estudados como elementos que se integram. d) O conhecimento é construído a partir dos fenômenos sociais. 4. Quais são as funções psicológicas superiores descritas por Vygotsky? a) Capacidade de solucionar problemas, memória e linguagem. b) Instrumentos e símbolos. c) Signos e percepções. d) Representações e símbolos. MORTIMER, Eduardo Fleury; SMOLKA, Ana Luísa B. (Orgs.). Linguagem, Cultura e Cognição: reflexões para o ensino e a sala de aula. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. Indicação de filme: Nell (EUA, 1994), com direção de Michael Apted. Nell, a personagem principal, é interpretada por Jodie Foster. O filme retrata a vida de uma jovem de aproximadamente 30 anos de idade que foi encontrada em uma casa abandonada após a morte de sua mãe, que era uma eremita. Nell vivia isolada do mundo moderno e reproduzia sons incompreensíveis. Havia recebido poucos estímulos para falar e também era afásica, isto é, apresentava uma patologia que afetava sua linguagem e sua comunicação. Foi encontrada por um médico que buscou integrá-la à sociedade. É interessante conferir como foi o processo de “humanização” de Nell. Psicologia do Desenvolvimento 30 Processo de humanização: comportamento animal versus comportamento humano P ara discutir as características tipicamente humanas, Vygotsky analisa o comportamento animal. A comparação entre o comportamento humano e o comportamento animal é encontrada em diferentes momentos de sua obra. Em A Formação Social da Mente, ele analisa as mais diferentes correntes psicológicas da época e critica o uso de comportamentos animais para explicar os comportamentos humanos. E, por outro lado, analisa que os fatores considerados inerentes à natureza humana também não são determinados apenas pelas características biológicas. Segundo Vygotsky, existem alguns traços característicos do comportamento humano: qualquer comportamento de um animal conserva uma ligação direta com os motivos biológicos; o comportamento humano não é determinado por estímulos imediatos; existem diferenças nas fontes do comportamento do homem e do animal. O primeiro aspecto fica claro quando percebemos que a atividade animal está relacionada a comportamentos de espécie, ou seja, comportamentos ligados ao instinto animal. Lorenz (apud PINO, 2000) fala da existência de “mecanismos inatos deslanchadores da ação” que permitem que os animais reajam de forma “sensata” aos sinais emitidos por outros animais. Esses sinais seriam ativados em situações de ameaça, fome ou perigo para a sobrevivência de si ou do grupo. Esse viés instintivo se tornou muito marcante na Psicologia, com o comportamento humano sendo atribuído a porções instintivas do cérebro humano, o que se correlaciona a condutas predeterminadas. Durante muitos anos, a psicologia acreditou que algumas reações humanas aos reflexos eram instintivas, parecidas com as dos animais. A Psicologia histórico-cultural de Vygotsky trouxe novos elementos e interpretações para esses processos. Segundo Vygotsky (1988), algumas reações humanas são instintivas, mas também podem ser culturalmente elaboradas. Alguns acontecimentos de uma vida em grupo, por exemplo, podem provocar reações emocionais diferenciadas, que variam de cultura para cultura. Assim sendo, o segundo aspecto se torna claro à medida que percebemos que as características do comportamento humano são maiores que a mera sensorialização dos estímulos ambientais: existe no comportamento humano uma elaborada forma de análise e representação dos elementos indicativos do ambiente, o que implica uma interpretação desses elementos. As relações como “cheiro de fumaça > fogo”, características do comportamento de fuga dos animais, são diferentes no comportamento humano. Existe uma reflexão contextual em que a análise de bens, valores e condição de enfrentamento está posta como prioritária na resposta do humano ao específico sinal do ambiente. Psicologia do Desenvolvimento 32 O terceiro aspecto posto na diferenciação entre o comportamento humano e o comportamento animal está relacionado às fontes do comportamento. A vida em grupo trouxe desafios de sobrevivência além do caráter natural: a busca de comida e o ritual de caça trouxeram novas formas para o comportamento humano. A necessidade de interpretar os sinais da caça e a elaboração de modos de captura e apreensão modificaram o comportamento inteligente, fazendo com que o homem criasse instrumentos que lhe permitiram modificar profundamente sua relação com o ambiente natural. Nos seus estudos sobre a evolução da atividade humana, subsidiados pela perspectiva sócio-histórica de Vygotsky e pelos fundamentos da História, da Filosofia e da Antropologia, Palangana (2000) demonstrou que a linhagemhumana sofreu uma transformação significativa quando os nossos ancestrais passaram da condição de arborícolas para a de terrícolas. A alimentação semicarnívora modificou características físicas e psíquicas dos homens, bem como possibilitou a invenção da agricultura e estratégias específicas para o cultivo da terra. De acordo com a autora, A vida na terra liberou as mãos da constante tarefa de preensão e, ao mesmo tempo, obrigou os hominidas a lidar com os perigos imanentes à diferente realidade em que se encontravam. Esses fatos se completam: as mãos estão disponíveis a uma necessidade emergente, qual seja, usar instrumentos para se defender e, igualmente, para garantir o sustento. Tais condições de subsistência modificam a forma das mãos e mais, imprimem- lhes habilidades e destrezas antes inexistentes. A mão humana é um órgão de trabalho e, concomitantemente, produto dele. Mas, ela não é parte independente do resto do corpo. É, isto sim, membro de um organismo integrado e extremamente complexo. Os benefícios processados pelas mãos repercutem no corpo do qual é parte. Assim, as novas habilidades e destrezas estão nas mãos, no pensamento e no mundo. (PALANGANA, 2000, p. 21-22) A partir dessa citação, é possível verificar como o uso das mãos foi sendo aprimorado ao longo da evolução da espécie humana. A convivência coletiva entre os povos primitivos também trouxe a divisão de tarefas, a necessidade de comunicação e o aparecimento da consciência humana relacionada ao trabalho. O surgimento de uma nova forma de pensar o mundo natural, chamada por Vygotsky de inteligência prática, faz com que o ser humano desenvolva habilidades diferenciadas em relação a muitos animais, mas ao mesmo tempo essas habilidades ainda são compartilhadas por animais de comportamento mais evoluído. Nos seus estudos sobre o comportamento animal, ele relata que existe a função instrumental em animais superiores como o macaco, e cita os estudos de Kohler (1925). Esses estudos de Wolfgang Kohler foram realizados com macacos antropóides, durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). De acordo com Vygotsky (1988), esses experimentos procuravam comparar os comportamentos das crianças pequenas com os dos macacos. Kohler estudou as estratégias das crianças pequenas para a apreensão dos objetos, o modo como buscavam resolver seus problemas e como faziam uso de instrumentos primitivos. Processo de humanização: comportamento animal versus comportamento humano 33 A experiência clássica realizada por Kohler era a de solicitar às crianças pequenas, de até dois anos de idade, que tirassem um anel de um bastão. Ele observou que as crianças dessa faixa etária possuíam estratégias de resolução de problemas muito próximas às dos chimpanzés: elas não eram capazes de tirar o anel do bastão deslizando-o verticalmente, mas puxavam lateralmente o bastão para arrancar o anel. Kohler considerava que as crianças pequenas apresentavam a inteligência prática. No entanto, a perspectiva das crianças era diferente da dos chimpanzés, pois as crianças desenvolviam os movimentos sistemáticos, tinham uma percepção mais aguçada, usavam as mãos de diferentes maneiras e, algumas, utilizavam a linguagem. Para Vygotsky, “o sistema de atividade da criança é determinado em cada estágio específico, tanto pelo seu grau de desenvolvimento orgânico quanto pelo grau e domínio no uso de instrumentos” (1988, p. 23). Dessa maneira, o desenvolvimento da criança depende tanto da sua maturação biológica como da sua maturação intelectual. A interação dos adultos com as crianças faz com que formas mais elaboradas de manipular os objetos, perceber as situações, memorizar eventos e buscar variadas tentativas de solucionar os problemas sejam transmitidas e compartilhadas de geração para geração. Porém, Vygotsky relata que a diferença não está apenas no desenvolvimento da inteligência prática, mas também no desenvolvimento da fala. Ele nos esclarece que, à medida que se desenvolvem na criança, essas duas funções psicológicas vão proporcionando uma forma diferente de comportamento que em nenhuma espécie animal é encontrada, ou seja, surge o que Vygotsky chama de funções psicológicas superiores, ou seja, as formas típicas de comportamento humano. Vygotsky (1988) considera que as funções psicológicas superiores envolvem o desenvolvimento humano, a capacidade do uso dos signos e o aprimoramento da memória. A transformação desses processos é resultado de uma longa sucessão de interações e eventos na história de uma pessoa. A cultura A cultura pode ser definida como o produto da ação intencional do homem, isto é, o resultado da construção que se vale da criação de instrumentos e o ato de deixar marcas e representações sobre o mundo natural. Ao conceber o homem como um ser eminentemente social, Vygotsky (1987) propõe que a formação e o desenvolvimento do psiquismo humano se dão com base em uma crescente apropriação dos modos de agir, pensar e sentir culturalmente elaborados. Para ele, o desenvolvimento caminha do social para o individual, visto que, quando nasce, a criança já está imersa em um mundo de cultura historicamente produzido, existindo, por parte do ser humano, uma paulatina apropriação do mundo que o cerca. Psicologia do Desenvolvimento 34 FERRAMENTA A função de mediação em Vygotsky SIGNO MEdiAdor E r Esquema da mediação entre um estímulo ambiental (E) e o receptor individual (R), em um processo interativo ou dialético em que operam dois instrumentos mediadores: as ferramentas psicológicas e os signos (esquema tomado de Guillermo R. Becco). Isso implica que a apropriação da cultura só é possível a partir do contato social. Assim, a criança vai tornando seu aquilo que foi construído por seu grupo cultural, atribuindo-lhe sentido a partir do que já está construído em sua história de interação. Segundo Davis (1994), a interação social só pode ser compreendida no campo das relações que se estabelecem entre os indivíduos reais e concretos em um determinado tempo histórico. A teoria histórico-cultural de Vygotsky propõe que o desenvolvimento das crianças, sua construção como sujeitos, ocorre em determinados ambientes físico-sociais historicamente elaborados. Oliveira e Paula (1995) afirmam que, nesses ambientes, os membros adultos de uma cultura (pais, avós, educadores, irmãos e amigos) se preocupam em fazer a criança participar de diferentes situações, promovendo atividades variadas, de acordo com as suas concepções de desenvolvimento infantil. O processo de apropriação desses conhecimentos pela criança não responde somente às necessidades de um organismo biológico mas também às necessidades psicossociais, que são históricas. Em Pensamento e Linguagem (1987), Vygotsky estabelece que o desenvol- vimento do psiquismo humano se dá com base em uma crescente apropriação dos modos de ação culturalmente elaborados. A significação Uma vez imersa no ambiente social e cultural, a criança busca, valendo-se de seu agir (que é a corporeidade), (PINO, 1993), expressar suas necessidades. Ao ser praticada essa atividade, o outro que está próximo à criança interpreta Processo de humanização: comportamento animal versus comportamento humano 35 a atividade como indício da demanda da criança e busca dar resposta a essa demanda. Pela interpretação da vontade da criança, o outro atribui significação a essa ação e, posteriormente, a criança construirá para si uma representação da interpretação dada pelo outro. Um dos exemplos clássicos de Vygotsky (1988) para demonstrar como as crianças começam a perceber o universo dos adultos e lhes atribuir significados é a interiorização do gesto de apontar. Ele descreve que, inicialmente, a criança utiliza o gesto como meio para conseguir algum objeto, mas o concebe apenas como um movimento. Quando
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