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Nildo Avelino. “Foucault e o anarquismo: relações possíveis”, palestra no CE/UFPE, 26 set. 2016. p. 1 Foucault e o anarquismo: relações possíveis Em primeiro lugar quero agradecer ao pessoal do GEPF/UFPE, especialmente a Professora Karina Valença, pelo convite; é uma grande satisfação estar aqui para discutir acerca dos estudos foucaultianos. Agradeço também a todos vocês pela presença. Então, para entrar no tema da nossa discussão sobre “Foucault e o anarquismo”, eu diria o seguinte: como vocês sabem, desde as chamadas revoltas de junho e a eclosão dos black blocs no Brasil o anarquismo tem ganhado cada vez mais visibilidade. É provável que a última vez que o anarquismo ocupou os editoriais dos grandes jornais e a reflexão da intelectualidade brasileira foi há quase cem anos durante as agitações anarquistas da greve geral de 1917. Assim, é um fato surpreendente que, com a distância de um século da greve geral de 1917, o anarquismo figure uma vez mais como problema no cenário político, que tenha sido novamente problematizado. E trata-se de uma problematização não apenas política, mas também teórica. Por que além dessa ressurgência, digamos, ruidosa do anarquismo no cenário político brasileiro, existe também outro fato inusitado e que é a presença de um número cada vez maior de anarquistas na universidade – e eu me incluo entre eles – que tem se utilizado do pensamento de Foucault (seus conceitos, suas análises do poder, sua interpretação da política etc.) para refletir sobre o anarquismo. E esse fato se verifica não apenas no Brasil, mas também nos USA e na Europa, a partir dos chamados Estudos Anarquistas, especialmente no Pós-Anarquismo, do qual falarei um pouco mais. Assim, pode-se dizer que aquilo que estamos assistindo nos últimos anos em relação ao anarquismo é um fenômeno de dupla face: ao lado e simultaneamente ao ressurgimento político do anarquismo, há também um ressurgimento teórico do anarquismo. Obviamente são dois aspectos inseparáveis e que se implicam e se reforçam mutuamente: a ressurgência do anarquismo nas ruas está intimamente ligada à ressurgência do pensamento e da reflexão anarquista, sobretudo na universidade. Essa dupla ressurgência do anarquismo tem atraído a atenção de muitos estudiosos. A esse propósito, eu gostaria apenas de mencionar a conferência/livro intitulada The Anarchist Turn (A virada anarquista ou A guinada anarquista). Foi uma conferência realizada em 2011 na New School, Nova Iorque, e o livro que leva o mesmo título da conferência foi publicado em 2013. 1 Um dos organizadores da conferência/livro, Simon Critchley, professor de filosofia Versão preliminar de trabalho a ser publicado em: Salvo Vaccaro, Nildo Avelino. O pensamento político de Michel Foucault. São Paulo: Intermeios, no prelo. 1 Jacob Blumenfeld, Chiara Bottici, Simon Critchley. The Anarchist Turn. Londres: Pluto Press, 2013. Nildo Avelino. “Foucault e o anarquismo: relações possíveis”, palestra no CE/UFPE, 26 set. 2016. p. 2 na New School e ele mesmo um importante pesquisador dos estudos pós-estruturalistas, especialmente de Jacques Derrida; Simon Critchley, afirmou que o objetivo da conferência/livro foi o de argumentar sobre a existência de um anarchist turn, de uma virada anarquista, de uma guinada anarquista, não apenas política, isto é, não apenas nos modos como nós fazemos, praticamos a política; mas também na maneira como nós pensamos a política. Ou seja, o argumento é que nos últimos anos nós temos experimentado um anarchist turn, uma virada anarquista na política e também em nosso pensamento sobre a política. Pois bem, é nesse contexto de anachist turn, de virada anarquista que eu gostaria de discutir como e por que o pensamento de Michel Foucault tem sido mobilizado e utilizado na política e nas formas de se pensar a política? De que maneira a reflexão foucaultiana tem contribuído para compreender os motivos e apreender a importância da ressurgência das práticas anarquistas dentro e fora da universidade? Enfim, será em torno dessas questões que eu gostaria de falar. Como vocês sabem, Foucault foi responsável por introduzir na universidade novos conceitos, novos problemas, novas categorias analíticas que romperam com muitos limites disciplinares. E ao fazer isso, Foucault provocou a irrupção no próprio interior da universidade de saberes sujeitados, de saberes destituídos do estatuto universitário, saberes não-científicos e frequentemente relacionadas a movimentos de resistência. Nós poderíamos citar, por exemplo, Franco Basaglia, percursor das lutas antimanicomiais na Itália. Poderíamos citar também o holandês Louk Hulsman percursor do abolicionismo penal. Tanto Basaglia quanto Hulsman foram profundamente influenciados pelos trabalhos de Foucault sobre a loucura e sobre a prisão, e a partir deles os saberes da militância antiprisional ou antimanicomial irrompem no interior da universidade. E o mesmo pode ser dito do anarquismo. Foi a reflexão de Foucault sobre o poder que permitiu, pela primeira vez na história, que alguns conteúdos dos saberes do anarquismo ganhassem o estatuto de conhecimento e de saber admitido pelo cânone universitário. Com isso, o anarquismo passa a figurar não mais, ou não somente, como objeto de estudo. Hoje é possível afirmar que o anarquismo figura como um instrumento analítico e uma ferramenta crítica para análise da realidade. Veja-se, por exemplo, os trabalhos produzidos no âmbito da Anarchist Studies Network e da North American Anarchist Studies Network, duas redes envolvendo pesquisadores universitários britânicos e americanos nos estudos anarquistas. Seria preciso dizer que o anarquismo jamais desempenhou esse papel analítico na universidade. Daí me parece a importância desse acontecimento. Nildo Avelino. “Foucault e o anarquismo: relações possíveis”, palestra no CE/UFPE, 26 set. 2016. p. 3 Em todo caso, caberia perguntar o seguinte: o que fez Foucault para produzir esse acontecimento que tem transformado radicalmente a relação entre anarquismo e universidade? Foucault reelaborou e introduziu na universidade um estilo de pensamento que havia sido banido durante muito tempo pela então predominante tradição filosófica do hegelianismo. O estilo de pensamento que Foucault retomou contra o hegelianismo foi o pensamento de Nietzsche. Como vocês sabem, na obra de Foucault a grande referência de todas as suas investigações é, sobretudo, Nietzsche. Agora, o que pouco se sabe ou o que é amplamente desconhecido é que Nietzsche, ele próprio, retomou para seu pensamento muitos aspectos da reflexão anarquista. Um exemplo disso é a crítica de Nietzsche ao humanismo. No que consiste essa crítica? Consiste em dizer que aquilo que os filósofos chamam de Homem, isto é seja, essa figura que se tornou na modernidade o novo ser supremo, a nova autoridade que serve para justificar todas as ações, todos os crimes; enfim, essa figura, o Homem, “é algo que deve ser superado”. E assim como Deus, seu antecessor, foi morto pelo processo de racionalização da modernidade; é preciso igualmente que o Homem pereça para que a liberdade propalada pelos Iluministas deixe de ser uma mentira. A modernidade apenas substituiu uma opressão por outra: substituiu Deus pelo Homem. Por isso Nietzsche dirá: nós, modernos, sofremos de Homem. 2 Mas o que é a morte do Homem? É a morte da ideia de essência, de natureza, de interioridade; aquilo que hoje nós chamaríamos identidade e que é responsável por fixar no indivíduo um comportamento, que comanda sua conduta: por exemplo, a identidade masculina é o que obriga o indivíduo a ser homem mesmo contra suasinclinações; a identidade feminina obriga a ser mulher etc. Neste sentido, a morte do homem ou a crítica do Humanismo possui consequências éticas extremamente importantes. Matar o Homem que existe em nós, que habita nossa interioridade, que nos comanda a partir do nosso interior, chame-se esse interior essência, consciência, alma, ego. Enfim, matar o Homem em si mesmo é dar para si mesmo outras possibilidades de experiência no campo da política, da sexualidade, das relações com os outros de modo geral. Então vejam, isso que em nossos dias possui uma enorme importância ética, ou seja, a luta contra as tiranias identitárias, já estava dado em Nietzsche na sua crítica do humanismo. Agora, essa crítica, ainda que Nietzsche a tenha desenvolvido, não foi ele quem a inventou: ela já estava dada em Max Stiner, um anarquista alemão que escreveu, 50 anos antes de 2 Cf. Friedrich Nietzsche. Assim falou Zaratusta. Um livro para todos e para ninguém. 3ª ed., trad. Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983. Nildo Avelino. “Foucault e o anarquismo: relações possíveis”, palestra no CE/UFPE, 26 set. 2016. p. 4 Nietzsche, um livro intitulado O único e sua propriedade. E nesse livro, Stirner já tinha afirmado que a revolta humanista contra Deus não passa de uma insurreição teológica e que a pretensa liberdade que Feuerbach, um dos grandes teóricos do Humanismo Moderno, deu ao Homem acreditando ter livrado a Humanidade de deus, essa liberdade Humanista, diz Stirner, ainda é teológica. No fundo, o que os humanistas fizeram foi apenas trocar de nome: o que na Idade Média chamava-se Deus, os Modernos chamam de Essência ou Natureza Humana. Dirá Stirner: “a essência é o ser supremo do homem” e se antes “esse ser supremo [a essência do Homem], foi chamado pela religião de Deus”, hoje, o ser supremo do homem, sua essência, chama-se Homem. Com isso, “Deus deixa de aparecer ao homem como Deus, para lhe aparecer como Homem”.3 Em outras palavras, com o humanismo, o Homem torna-se a nova autoridade sobre a Terra, autoridade que antes era exclusiva de Deus. Assim, após o humanismo, tudo que é relacionado ao Homem torna-se sagrado: os direitos humanos são sagrados e todos os meios são válidos para salvaguardar os direitos do Homem: a prisão, a tortura, o assassinato, as guerras humanitárias. Até mesmo o nazismo pretendeu justificar suas ações pela noção de natureza humana. Enfim, foi contra essa nova divindade chamada Homem que exige o sacrífico dos indivíduos que Stirner declarou: “Eu não sou nem Deus, nem o homem, nem o ser supremo, nem a minha essência”. A crítica de Stirner é demolidora. Ele percebe imediatamente a estratégia de deificação do Homem contida no projeto Humanista. Mas Stirner não está sozinho. Um ano após o livro de Stirner, em 1846, é publicado o livro do anarquista francês Proudhon Filosofia da Miséria, que contém uma crítica igualmente radical do Humanismo. Proudhon afirma no seu livro que o Humanismo apenas tornou a hipótese de Deus mais racional. Segundo Proudhon, se antes acreditava-se em Deus por meio da materialidade de monumentos, de símbolos, de imagens etc.; a partir do Humanismo a materialidade da fé é substituída pela imaterialidade da ideia de essência: os modernos não creem mais em Deus, creem na essência do Homem, e com isso o objeto da crença é racionalizado. Por isso, diz Produdhon, a negação Humanista de Deus é no fundo seu aperfeiçoamento e “o movimento ateísta [moderno] não passa do segundo ato do drama teológico”.4 Foi essa crítica ousada e radical de Stirner e Proudhon contra o Humanismo que Nietzsche retomou e desenvolveu por sua conta. Mas é também um aspecto que Foucault irá 3 Max Stirner. O único e a sua propriedade. Trad. João Barrento. Lisboa: Antígona, 2004, p. 39. 4 Pierre-Joseph Proudhon. Sistema das contradições econômicas ou filosofia da miséria, tomo I. Trad. José C. Morel. São Paulo: Ícone, 2003, p. 43. Nildo Avelino. “Foucault e o anarquismo: relações possíveis”, palestra no CE/UFPE, 26 set. 2016. p. 5 finalmente retomar na sua crítica contra as ciências humanas no seu conhecido livro As palavras e as coisas. Um livro cujo final possui um estranho sabor anarquista quando Foucault diz que “o homem é uma invenção cuja recente data a arqueologia de nosso pensamento mostra facilmente. E talvez o fim próximo. [...] e pode-se apostar que [um dia] o homem se [desvaneça], como, na orla do mar, um rosto de areia.”5 Nessa frase encontra-se a famosa imagem foucaultiana da morte do Homem por meio da qual Foucault descreveu a arqueologia das nossas Ciências Humanas. Assim, em Foucault aquela forma-Homem que havia sido criticada por Stirner, Proudhon e Nietzsche, vai assumir os contornos do Sujeito contemporâneo. Então, em Foucault a morte do Homem se transformará na morte do Sujeito. Enquanto Stirner, Proudhon e Nietzsche multiplicaram a morte de Deus no Homem; Foucault multiplicou a morte do Homem no Sujeito, em todas as formas de Sujeito. Se para Proudhon o Humanismo moderno era a representação do segundo ato no drama teológico, para Foucault o terceiro ato será representado pelas diversas filosofias do Sujeito. Outro ponto de similaridade ou proximidade entre Foucault e o anarquismo. Como se sabe, um aspecto importante e fundamental no pensamento foucaultiano é a micropolítica. O que é a micropolítica? A micropolítica, de alguma maneira, complementa e desenvolve a crítica ao Humanismo. Por que, assim como o Humanismo está preocupado em determinar um ser para os indivíduos, uma essência, uma natureza, uma identidade que deverá comandar no indivíduo seu comportamento, e que seria o Homem (com H maiúsculo). Do mesmo modo como o Humanismo Moderno faz isso, a Política Moderna (Política com “P” maiúsculo, a grande política), também está preocupada em determinar um ser para o político, isto é, determinar no campo político uma essência ou aquilo que deve ser o centro em torno do qual deve girar a política e comandar todas as relações políticas: esse ser, essa essência é o Estado. O Estado é para a grande política aquilo que Deus é para a religião, e aquilo que o Homem é para o humanismo: é o grande objeto de desejo do qual é preciso se apoderar. Esquerda e direita, radicais e conservadores, revolucionários e reacionários, na nossa história política todos sempre foram fascinados pelo Estado: o Estado é essa espécie de grandeza da qual é preciso conquistar a todo custo. Quanto aos anarquistas, eles jamais manifestaram esse tipo de fascinação pelo Estado, e isso por que o problema dos anarquistas jamais foi o Estado, mas o governo. 5 Michel Foucault. As palavras e as coisas. Trad. Salma T. Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 536. Nildo Avelino. “Foucault e o anarquismo: relações possíveis”, palestra no CE/UFPE, 26 set. 2016. p. 6 Que o problema dos anarquistas seja o governo e não o Estado, é possível perceber isso em dois exemplos. O primeiro exemplo data de 1851, é a famosa descrição exaustiva que Proudhon forneceu sobre o que é ser governado. Afinal, o que é ser governado segundo Proudhon? Ser governado é ser averiguado, inspecionado, espionado, dirigido, legiferado, regulamentado, confinado, catequizado, exortado, controlado, estimado, apreciado, censurado... Ser governado é ser, a cada operação, a cada transação, a cada movimento, anotado, registrado, recenseado, tarifado, timbrado, medido, cotado, cotizado, patenteado, licenciado, autorizado, apostilado, admoestado, impedido, reformado, endireitado,corrigido. É ser, sob pretexto de utilidade pública e em nome do interesse geral, taxado, exercido, racionado, explorado, monopolizado, chantageado, pressionado, mistificado, roubado; em seguida, à menor resistência, à primeira palavra de queixa, reprimido, multado, vilipendiado, vexado, caçado, brutalizado, abatido, desarmado, garroteado, aprisionado, fuzilado, metralhado, julgado, condenado, deportado, sacrificado, vendido, traído e, como se não bastasse, satirizado, ridicularizado, ultrajado, desonrado. Eis o governo, eis sua justiça, eis sua moral! 6 Como se vê, nessa descrição de Proudhon o que está em questão não é o poder do Estado, mas o poder do governo. E é significativo que Proudhon elabore uma definição incrivelmente polissêmica do poder governamental: é um poder que averigua, que controla, que exorta, que mede e corrige; é um poder que taxa, explora e rouba; e é um poder que reprime, aprisiona e fuzila. Ou seja, o poder governamental pode ser uma prática ao mesmo tempo positiva e negativa, produtiva e destrutiva, estratégica e violenta. Enfim, é esse poder governamental que Proudhon declarou ser inimigo, dizendo: “Aquele que colocar as mãos sobre mim para me governar, é um usurpador, um tirano. Eu o declaro meu inimigo.” O segundo exemplo que mostra como o problema dos anarquistas é o governo e não o Estado pode ser encontrado na definição que o anarquista italiano Errico Malatesta elaborou em um panfleto escrito inicialmente em 1884, nas páginas de La Questione Sociale, jornal dirigido por Malatesta primeiramente em Florença e depois em Buenos Aires. Foi um panfleto de propaganda que se tornou muitíssimo famoso e difundido, intitulado A anarquia. Nesse panfleto, a lucidez de Malatesta é surpreendente. Ele diz que pelo fato do Estado ser compreendido como poder central se é levado a acreditar “que os anarquistas querem uma simples descentralização, deixando intacto o principio governamental”. Supor isso seria equivocado por que, ao contrário dos liberais, os anarquistas não buscam descentralizar o Estado, mas colocar em questão o princípio governamental. Para os anarquistas, segundo 6 Pierre-Joseph Proudhon. Idée générale de la révolution au XIX ème siècle. Antony: Fédération Anarchiste, 1979, p. 248. Nildo Avelino. “Foucault e o anarquismo: relações possíveis”, palestra no CE/UFPE, 26 set. 2016. p. 7 Malatesta, o Estado não é uma instituição que centraliza o poder, que monopoliza o poder. O Estado é, dirá Malatesta em uma definição que é surpreendente, uma “condição, um modo de ser, um regime social etc. É assim que dizemos, por exemplo, que é preciso mudar o estado econômico da classe operária ou que o estado anárquico é o único estado social fundado sobre o princípio de solidariedade”. Em outras palavras, Estado não é uma instituição, é uma condição: é a condição de ser governado. Então, diz Malatesta, em vez de empregar a palavra Estado que é sujeita à confusão, os anarquistas preferem “substituir a expressão abolição do Estado por outra mais clara e mais concreta: abolição do governo”.7 Percebam, portanto, que na história política do Ocidente aqueles que foram fascinados pelo Estado não foram os anarquistas, foram os liberais e os marxistas: os liberais com seu projeto de redução do Estado, os marxistas com seu projeto de tomada do Estado. Ao contrário, o problema dos anarquistas é o governo. E governo entendido não como um grande Poder, como o Poder do Estado; tampouco governo entendido como exercício da dominação do Estado. O governo ao qual Proudhon e Malatesta se referem é o governo como micropoderes, são as inúmeras práticas governamentais exercidas não pelo Estado, mas, nas palavras de Malatesta, por um “conjunto de instituições políticas, legislativas, judiciárias, militares, financeiras etc., pelas quais o povo é subtraído da gestão de seus próprios negócios e da direção de sua própria conduta”. Está nas próprias palavras de Malatesta a definição de governo como condução de condutas. Na compreensão dos anarquistas é inútil abolir o Estado conservando o princípio governamental, isto é, conservado todos os micropoderes governamentais, como pretendem os liberais, por exemplo. Mas também para os anarquistas é mais do que inútil, é ainda pior, é mais danoso pretender se apoderar do Estado para transformá-lo, como pretendem os marxistas. O que deve ser efetivamente questionado e transformado não é o Estado, mas são todos esses micropoderes governamentais, são as práticas de governo. Portanto, aquilo que os anarquistas estão propondo, há quase duzentos anos, não é uma grande política na qual o Estado ocuparia o centro. Daí os anarquistas jamais terem pretendido organizar o Partido Revolucionário. Para fazer o que? Para se apoderar do Estado? Nada mais inútil! Como se apoderar de algo que não possui existência concreta? Repetindo o que disse Malatesta: o Estado não é uma coisa, um objeto, é uma condição? Qual condição? A condição de governados. 7 Errico Malatesta. A anarquia e outros escritos. Trad. Plínio A. Coelho. Brasília/São Paulo: Novos Tempos/Centro de Cultura Social, 1987, p. 13. Nildo Avelino. “Foucault e o anarquismo: relações possíveis”, palestra no CE/UFPE, 26 set. 2016. p. 8 De modo que para acabar com essa condição de governado seria inútil tanto se apoderar do Estado quanto descentralizar o Estado, tendo em vista que, assim como o Deus na religião e o Homem no humanismo, também o Estado só possui uma existência subjetiva, ele existe dentro de nós, na nossa consciência, na nossa subjetividade. Malatesta dizia que mais importante “que matar a pessoa do rei [mais importante que o regicídio], era matar o rei no coração e na mente das pessoas”. Então, para os anarquistas o que é preciso questionar é a condição que nos faz governáveis; é essa condição que deve ser transformada. E não é verdade que essa condição de governado é produzida pelo Estado. Somos nós mesmos que produzimos nossa própria condição de sujeitos governáveis quando aceitamos e reproduzimos todas as pequenas autoridades cotidianas, todos esses micropoderes de pai, de marido, de professor, de homem, de mulher. Quando aceitamos e reproduzimos todas essas microautoridades, nós reforçamos involuntariamente nossa condição de governados. Uma das consequências dessa percepção do Estado como uma condição de governo – hoje nós diríamos como uma governamentalidade ou Estado governamentalizado! – e como uma condição que não é produzida pelo Estado, mas da qual é ele mesmo um produto (ele apenas realiza sua manutenção). Em suma, uma consequência dessa percepção foi que os anarquistas, em vez de proporem uma Grande Revolta, uma Grande Política, propuseram microrevoltas e micropolíticas. Os anarquistas propuseram não a grande política do Partido, a grande política do Sindicato; mas as pequenas insurreições do filho contra o poder dos pais, da mulher contra o poder do homem, do homossexual contra o poder do heterossexual etc. Eu diria que são essas micropolíticas o que existe de mais genuinamente anarquista; são a marca histórica do anarquismo. E vejam que foi precisamente isso que Foucault utilizou para refletir sobre as relações de poder, procurando subtrair da análise política toda centralidade que o ocupa o Estado. Foucault sustentou exatamente essa ideia originalmente anarquista segundo a qual o Poder (como grande poder, com “P” maiúsculo) não existe; o que existem são micropoderes. Em outras palavras, no fundo, aquilo que oprime não é exatamente o Poder do Estado ou o Poder do Capital. O que efetivamente oprime osindivíduos é toda uma malha de relações de poder que são dispersas, múltiplas, diferenciadas, minúsculas e que partem de toda a parte e de todos os lados; não partem apenas do Estado ou da Fábrica capitalista. Ora, se não é simplesmente a autoridade do Estado que oprime, mas é a autoridade do marido, do heterossexual, do branco, do psiquiatra, do médico, do professor etc., então, é preciso estender a crítica – antes direcionada quase que exclusivamente contra o Estado – a todas essas práticas de poder. Assim, com sua análise em termos de micropoderes, Foucault Nildo Avelino. “Foucault e o anarquismo: relações possíveis”, palestra no CE/UFPE, 26 set. 2016. p. 9 provocou uma verdadeira explosão da crítica contra a autoridade que passa a ser vista não mais como monopólio do Estado ou do Capital, mas que é percebida atuando no quotidiano dos indivíduos e sobre a parte mais íntima da vida individual. Com Foucault, o poder político perde seu centro, perde sua essência e sua origem no Estado. Consequentemente, se não é mais o Poder do Estado que está em questão e que deve ser o alvo da revolta, então o modelo teórico tanto do marxismo quanto do liberalismo perde seu sentido. Diante dessa malha de poderes se exercendo sobre os indivíduos, a grande estratégia marxista da tomada do Estado não parece mais pertinente; tampouco é pertinente o projeto liberal do Estado mínimo. Quando marxistas e liberais miram o Estado eles erram de alvo, pois o alvo, diz Foucault, são todos esses micropoderes contra os quais é preciso opor micropolíticas de resistências. Muito bem. Essa grande e importante transformação nos modos como se faz e se pensa a política teve início nos movimentos de maio de 1968. Foucault e outros autores foram apenas seus interpretes. E talvez aqui pudéssemos inserir as origens daquele anarchist turn mencionado por Simon Critchley. Em todo caso, trata-se de uma transformação que retirou o “P” maiúsculo da Política e colocou a necessidade de micropolíticas. Deixou de fazer sentido a grande luta contra o Estado e o Capital; e os novos movimentos sociais começaram a sustentar microlutas e microrevoltas cotidianas. Consequentemente, em vez do modelo do Partido ou do Sindicato que tinham por função canalizar e direcionar a luta, desde os anos 1970 se tem colocado em prática uma grande diversidade de micropolíticas, quer dizer, de lutas menores, lutas minoritárias, de lutas anárquicas. As micropolíticas não são lutas de Partido, de Sindicato, da Sociedade; são lutas menores tais como o feminismo, a contestação homossexual, a resistência negra, a luta antiprisional. Então, talvez pudéssemos pensar que quando Maio de 1968 implodiu o modelo do Partido e do Sindicato, foi reaberto o caminho para a retomada da tradição crítica anarquista de negação da autoridade; e o anarquismo foi colocado novamente em pauta. E significativamente, é nesse mesmo contexto que surge a reflexão política de Foucault e do chamado pós-estruturalismo francês; uma reflexão que está intimamente em sintonia com a crítica anarquista. * * * Em todo caso, o que tentei mostrar é que existem muitas similaridades entre Foucault e o anarquismo; eu apontei apenas algumas. São estilos de pensamento que se atraem e que se reforçam. Deveríamos, então, considerar Foucault um anarquista? Fazer isso não teria muito sentido. Os pensamentos jamais se equivalem, e isso mesmo entre os anarquistas. Assim, me Nildo Avelino. “Foucault e o anarquismo: relações possíveis”, palestra no CE/UFPE, 26 set. 2016. p. 10 parece um erro querer encontrar entre Foucault e o anarquismo filiações indenitárias, equivalências, descendências. Não há entre Foucault e o anarquismo nenhuma linhagem ou vínculo partidário. O que existe são alianças, o que é muito diferente de relações filiativas: as alianças estabelecem comunicações transversais entre pensamentos heterogêneos e diferenciados; jamais linhagens ideológicas. Um exemplo do que estou chamando de aliança pode ser visto na célebre passagem no curso Do governo dos vivos na qual Foucault afirma que sua análise não exclui a anarquia, mas que, contudo, não a supõe e tampouco se identifica com ela; sendo mais apropriado chamar sua “atitude teórico-prática” de uma an- anarqueologia: uma “atitude teórico-prática sobre a não-necessidade do poder como princípio de inteligibilidade do saber”.8 Assim, em vez de perguntar se Foucault era anarquista, seria mais produtivo procurar realizar uma leitura anárquica de Foucault e uma leitura foucaultiana do anarquismo. É o que tenta fazer, por exemplo, o chamado Pós-Anarquismo. A expressão é empregada pela primeira vez por Hakim Bey, em 1987, no artigo “Anarquia pós-anarquismo” no qual ele aborda uma imaginária Associação para Anarquia Ontológica. 9 Mas foi com o professor americano Todd May que o termo se consolidou em 1994, quando ele publica A filosofia política do anarquismo pós-estruturalista. 10 Desde então trabalhos sobre as relações entre anarquismo e pós-estruturalismo não cessaram de surgir: Salvo Vaccaro, Daniel Colson, Lewis Call e Saul Newman estão entre os pesquisadores mais conhecidos. 11 Há apenas alguns dias atrás tivemos a oportunidade de receber na UFPB o Prof. Saul Newman para falar sobre esse e outros temas. Então, o que eu tento fazer é isso: uma espécie de dupla leitura, uma leitura circular, uma leitura concêntrica de Foucault e o anarquismo. Em todo caso, essa dupla leitura proposta pelo pós-anarquismo (uma leitura anárquica de Foucault e uma leitura foucaultiana do anarquismo), possui duas consequências importantes, e com isso eu encerro. Primeira consequência: uma leitura anárquica de Foucault permitiria evitar o equívoco de supor um Foucault liberal ou neoliberal. Essa parece ser a última onda intelectual na França: professores 8 Michel Foucault. Du gouvernement des vivants. Cours au Collège de France, 1979-1980. Paris: Gallimard/Seuil, 2012. 9 Hakim Bey. Post-Anarchism Anarchy. Disponível em: <https://theanarchistlibrary.org/library/hakim-bey-post- anarchism-anarchy>. Consultado em set. 2016. 10 Todd May. The Political Philosophy of Poststructuralist Anarchism. Pennsylvania: The Pennsylvania State University Press, 1994. 11 Salvo Vaccaro. Anarchist Studies. Milão: Elèuthera, 2016; Daniel Colson. Petit lexique philosophique de l'anarchisme de Proudhon à Deleuze. Paris: Le Livre de poche, 2001; Lewis Call. Postmodern Anarchism. Lexington: Lexington Books, 2002; Saul Newman. Post Anarchism. Cambridge: Polity: 2016. Nildo Avelino. “Foucault e o anarquismo: relações possíveis”, palestra no CE/UFPE, 26 set. 2016. p. 11 como Geoffroy de Lagasnerie, Daniel Zamora e Serge Audier 12 têm sustentado que Foucault foi um entusiasta da crítica neoliberal ao Estado, especialmente do neoliberalismo americano; e que ele teria encontrado no neoliberalismo munição para seu antiestatismo. Contra esse tipo de confusão uma leitura anárquica de Foucault poderia ser útil. A segunda consequência importante é que, de outro lado, uma leitura foucaultiana do anarquismo permitiria apreender, em toda sua amplitude, a atualidade dos conceitos, dos métodos e das lutas anarquistas. Permitira perceber, por exemplo, como o anarquismo do século 21 que não está mais concernido com as lutas operárias do século 20, mas, que como ele, cria para si estilos de vida e modos de comportamento anárquicos que podem ser facilmente encontrados em muitos dos recentes protestos no Brasil e no mundo, desde os protestos de junho às ocupações das escolas, até os diversos movimentos Occupy. Enfim, hoje Foucault nos ajuda a perceber que a anarquianão é uma identidade, mas um tipo de ação e de comportamento, um éthos; que o anarquista é simplesmente aquele que age e se comporta anarquicamente. E que, nesse sentido, o que mais vale para o anarquista é, sobretudo, o desejo e a vontade de não ser governado ou, como diria Foucault, a arte da inservidão voluntária. 13 Parece que, ao menos nesse ponto, Foucault seria anarquista!? Melhor deixar a questão em aberto... Agradeço a paciência de vocês. Nildo Avelino Recife, 26 de setembro de 2016. 12 Geoffroy de Lagasnerie. La dernière leçon de Michel Foucault. Sur le néoliberalisme, la théorie et la politique. Paris: Fayard, 2012; Daniel Zamora (org.). Critiquer Foucault. Les années 1980 et la tentation néolibérale. Bruxelas: Les Éditions Aden, 2014; Serge Audier. Penser le ‘néoliberalisme’. Le moment néolibéral, Foucault et la crise du socialisme. Lormont: Le bord de l’eau, 2015. 13 Michel Foucault. “Qu’est-ce que la critique? Critique et Aufklärung”. Bulletin de la Société Française de Philosophie, 27 maio 1978, p. 39.
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