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são indispensáveis para a ciência, então devemos nos comprometer com a existência real de objetos matemáticos, da mesma maneira que nos comprometemos com a existência de entidades físicas teóricas como quarks e partículas virtuais. Opondo-se a este argumento, o filósofo nominalista Hartry Field vem trabalhando num projeto para mostrar como é possível construir teorias científicas sem números e outros objetos matemáticos, numa certa linguagem relacional. Conseguiu aplicar seu método para a teoria da gravitação newtoniana, mas não para outras teorias mais contemporâneas. A matemática seria útil para a ciência pelo fato de ela simplificar muito os cálculos e a expressão de enunciados das ciências exatas, mas ela não seria indispensável.6 5. Questão Metodológica: Números Imaginários se aplicam à Realidade Física? Na seção anterior, vimos que a questão sobre a existência do número natural 27 pode receber diferentes respostas. Mas a prática do físico não é afetada por esta questão filosófica: qualquer que seja a resposta a essa questão “ontológica” (ou seja, questão sobre o que é real), é seguro supor que o número inteiro 27 “se aplica” corretamente à descrição da realidade nessa sala de aula. Podemos investigar esta questão “metodológica” em relação a números não positivos, como os inteiros negativos. Talvez não possamos dizer que há –5 maçãs na cesta, mas podemos dizer que a temperatura é –5˚C. Ou seja, pode-se dizer que os inteiros negativos se aplicam a certos domínios da realidade. E quanto aos números que representam uma reta contínua? A estrutura do espaço físico é a estrutura dos números racionais ou dos números reais? Na seção seguinte deixaremos clara a distinção entre os dois, com base na distinção entre conjuntos ordenados densos e completos. A questão levantada é também uma questão ontológica, mas não em relação à natureza dos objetos matemáticos, e sim em relação a uma entidade física, o espaço. Sendo assim, para examinar esta questão devemos levar em conta também as evidências experimentais. Deixaremos o estudo desta questão para o Cap. II. Associada a esta questão há também uma constatação metodológica: é usual representar o espaço físico como um espaço matemático tridimensional contínuo, envolvendo números reais, e não apenas números racionais. E os números imaginários? Tais números, múltiplos de i, ou 1− , surgiram com o matemático italiano Gerolamo Cardano, em 1545, como soluções de equações cúbicas. Em 1637, René Descartes os chamou de “imaginários”, indicando que não os levava à sério. No entanto, Abraham de Moivre (1730) e Leonhard Euler (1748) os estudaram, chegando à notável equação que tanto fascinou o jovem Richard Feynman: 1−=πie . Isso levaria à noção 6 Uma resumo sucinto da filosofia da matemática é: POSY, C.J. (1995), “Philosophy of Mathematics”, in AUDI, R. (org.), The Cambridge Dictionary of Philosophy, Cambridge U. Press, pp. 594-7. Sobre o argumento da indispensabilidade, ver: COLYVAN, M. (2004), “Indispensability Arguments in the Philosophy of Mathematics”, Stanford Encyclopedia of Philosophy, na internet. O filósofo brasileiro Otávio Bueno (U. Miami) tem trabalhado nesta e noutras questões da filosofia da ciência e da matemática; por exemplo: BUENO, O. (2005), “Dirac and the Dispensability of Mathematics”, Studies in History and Philosophy of Modern Physics 36, 465-90. FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2008) Cap. I: Filosofia da Matemática 5 de plano complexo, formulado por Caspar Wessel (1797), Carl Gauss (1799) e Jean Argand (1806), que representa os números complexos a + bi em um plano. A questão ontológica, da realidade dos números imaginários, não parece ser diferente da questão ontológica de outros objetos matemáticos. A diferença está na questão metodológica, pois é costume afirmar-se que “nenhuma grandeza física observável é representada por um número imaginário”. Números imaginários aparecem na representação de movimentos oscilantes ou ondulatórios, mas na hora de exprimir valores de correntes (na engenharia elétrica) ou de probabilidades (na mecânica quântica), o resultado é sempre expresso por meio de números reais. Assim, num certo sentido, números imaginários não se aplicam à realidade observável. Mas e a realidade não-observável? Aqui recaímos na discussão sobre o estatuto da realidade não-observável (realismo x instrumentalismo), que veremos no cap. IV. Alguns autores argumentam que os números imaginários não podem ser eliminados da mecânica quântica e das modernos teorias de campo, a não ser por procedimentos artificiais, e portanto eles têm aplicação essencial na física7. Por outro lado, a discussão não é que os números imaginários não podem ser aplicados à realidade observada, pois por convenção poderíamos multiplicar todos os números que representam grandezas observáveis por i, de tal maneira que seriam os reais não-imaginários que não teriam aplicação direta. O ponto da discussão é que os números reais seriam suficientes para descrever a realidade observável, sem necessidade de ampliar, com os números imaginários, o sistema numérico utilizado. 6. Noções de Continuidade Consideremos o intervalo entre os números 0 e 1, e imaginemos o conjunto ordenado de todos os números racionais (frações) deste intervalo. Este conjunto é denso, pois entre quaisquer dois números racionais existe pelo menos um número racional. É fácil intuir que há um número infinito de racionais neste intervalo. No entanto, sabemos que números como 2 2 e 8π não são racionais, mas fazem parte do conjunto dos reais. Está claro que este conjunto é denso, mas ele também tem a propriedade de ser completo. Considere a seguinte seqüência crescente infinita de números racionais,{ }...,,,, 4504516988346512891053831 , onde cada termo n=1,2,... é expresso por [ ]∑ = −−− n m mm 1 1)14)(34( . Tal seqüência tem limites superiores racionais, como 52 , ou seja, há números racionais maiores do que todos os termos da seqüência. O problema, porém, é que não há um racional que seja o menor limite superior, ou supremo. Se considerarmos agora esta seqüência como um subconjunto dos reais, mostra-se (a partir de fórmula derivada por Gregory e Leibniz no séc. XVII) que tal seqüência converge para 8π , que é o supremo da seqüência. Assim, os reais são completos, no sentido que todas as seqüências com limite superior têm um supremo. Na matemática, a noção de continuidade aplica-se a funções, como y = f(x) . Intuitivamente, diz-se que uma função é contínua se uma pequena variação no argumento x levar a uma pequena variação em y. Na disciplina de Cálculo I, aprendemos a definição rigorosa de continuidade de Cauchy para os reais, em termos de “εpsilons e δeltas”. Se uma função for definida para números racionais, parece ser possível aplicar essa noção de 7 WIGNER (1960), op. cit. (nota 1), pp. 225, 229. YANG, C.N. (1987), “Square Root of Minus One, Complex Phases and Erwin Schrödinger”, in Kilmister, C.W. (org.), Schrödinger: Centenary Celebration of a Polymath, Cambridge: Cambridge University Press, pp. 53-64. FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2008) Cap. I: Filosofia da Matemática 6 continuidade também para os racionais. Por outro lado, o conjunto dos números reais é às vezes chamado de “o contínuo”. 7. Existe o Infinito? Há uma longa história da noção de infinito na matemática, na ciência e na filosofia. Hoje em dia aceita-se que o Universo tenha uma extensão espacial finita, mas a questão do infinitamente pequeno ainda