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Nina raça e criminalidade

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ISSN 1808-4281 
Estudos e Pesquisas em Psicologia Rio de Janeiro v. 15 n. 3 p. 1118-1135 2015 
 
CLIO-PSYCHÉ 
 
Raça e criminalidade na obra de Nina Rodrigues: Uma 
história psicossocial dos estudos raciais no Brasil do 
final do século XIX 
 
 
Race and crime on Nina Rodrigues work: A psychosocial 
history of racial studies in Brazil from the late nineteenth 
century 
 
La raza y la delincuencia en la obra de Nina Rodrigues: Una 
historia psicosocial de los estudios raciales en Brasil a finales 
del siglo XIX 
 
 
Marcela Franzen Rodrigues* 
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 
Brasil 
 
 
RESUMO 
Este artigo tem por intuito rever e analisar algumas obras de Nina Rodrigues 
(1862-1906) que tratam, sobretudo, de seus trabalhos acerca da 
inferioridade física e mental dos negros e mestiços no Brasil, baseando-se 
mormente no saber produzido por criminalistas italianos como Lombroso, 
Garófalo e Ferri. Raimundo Nina Rodrigues foi um médico maranhense, 
radicado na Bahia, que no final do século XIX interessou-se pelos estudos 
raciais a partir da Medicina Legal. Produziu diversas obras nas quais busca 
explicar e analisar o que ele considerava provas irrefutáveis da inferioridade 
da raça negra. Assim, Nina Rodrigues se debruçava sobre casos de crimes, 
de loucura, de crenças religiosas, sempre na busca de pistas que pudessem 
comprovar suas teorias sobre a inferioridade racial. Neste trabalho procura-
se analisar tais obras, a fim de apreender as motivações do autor assim 
como compreender o contexto científico da época, buscando-se, assim, 
alguma contribuição para a história da psicologia no Brasil. 
Palavras-Chave: Nina Rodrigues, raça, crime, medicina legal, história da 
psicologia. 
 
ABSTRACT 
This article intends to review and analyze some works of Nina Rodrigues 
(1862-1906) what talk about physical and mental inferiority of black and 
mixed race people in Brazil, based mainly on the knowledge produced by 
Italian criminologists such as Lombroso, Garofalo and Ferri. Raimundo Nina 
Rodrigues was a medical from Maranhão, based in Bahia, which in the late 
nineteenth century was interested in the racial studies from the Forensic 
Medicine. He wrote several works in which he explains and analyzes what 
was considered irrefutable proof of the inferiority of the black race. So, Nina 
Rodrigues analyzed incidents of crime, madness, religious beliefs, always in 
search of clues that might prove his theories about racial inferiority. This 
Marcela Franzen Rodrigues 
Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 15, n. 3, p. 1118-1135, 2015. 1119 
paper analyzes these works a view to apprehend the motivations of the 
author as well as understand the scientific context of the time, trying to give 
some contribution to the field of history of psychology in Brazil. 
Keywords: Nina Rodrigues, race, crime, forensic medicine, history of 
psychology. 
 
RESUMEN 
Este artículo tiene como objetivo revisar y analizar algunas obras de Nina 
Rodrigues (1862-1906) que hablan de su trabajo con los estudios de 
inferioridad física y mental entre los negros y mestizos en Brasil, basada 
principalmente en el conocimiento producido por los criminólogos italianos 
como Lombroso, Garofalo y Ferri. Raimundo Nina Rodrigues fue un médico 
nacido en Maranhão, pero arraigado en Bahía, que a finales del siglo XIX se 
interesó por los estudios raciales de la Medicina Forense. Él produjo varias 
obras en que trata de explicar y analizar lo que él consideraba una prueba 
irrefutable de la inferioridad de la raza negra. Así, Nina Rodrigues se apoyó 
en algunos casos de la delincuencia, de la locura, de las creencias religiosas, 
siempre en busca de indicios que afirmasen sus teorías de la inferioridad 
racial. Este artículo tiene por objeto examinar estas obras con el fin de 
entender las motivaciones del autor, así como entender el contexto científico 
de la época, tratando así de dar alguna contribución a la historia de la 
psicología en Brasil. 
Palabras clave: Nina Rodrigues, raza, delito, medicina legal, historia de la 
psicología. 
 
 
1 Introdução 
 
Raimundo Nina Rodrigues foi um médico brasileiro que no final do 
século XIX buscou, entre outras coisas, desvendar os mistérios da 
mente e do espírito dos negros brasileiros. Racista, eugenista, 
conservador, foi um intelectual rejeitado a partir da segunda metade 
do século XX por conta destas características que, se não eram, à 
época, exclusivas dele, tornaram-se malditas: hoje em dia seu nome 
quase não é citado, a não ser em revisões críticas da história dos 
estudos raciais. Sua produção não foi muito extensa temporalmente – 
cerca de vinte anos – mas foi intensa, no sentido de que escreveu 
muito sobre temas diversos, apesar de ter se mantido fiel aos 
chamados estudos do negro. 
Nina Rodrigues nasceu em Vargem Grande, município do Maranhão, 
em 1862. Aos 20 anos de idade mudou-se para a Bahia, a fim de 
cursar a Faculdade de Medicina. Já com o título de doutor 1, Nina 
Rodrigues, em 1888, foi para a cidade de São Luís do Maranhão, 
onde clinicou durante algum tempo, tendo, neste período escrito 
artigos sobre higiene pública e também um trabalho sobre a lepra, no 
qual se encontra a sua primeira tentativa de um quadro classificatório 
das raças no Maranhão. Em 1889 voltou para a Salvador a fim de 
assumir a Cadeira de Clínica Médica na Faculdade de Medicina da 
Bahia e no mesmo ano passou a fazer parte da redação da Gazeta 
Médica da Bahia, uma das mais importantes publicações médicas do 
Marcela Franzen Rodrigues 
Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 15, n. 3, p. 1118-1135, 2015. 1120 
País (Oda, 2003; Schwarcz, 1993). Em 1891, foi transferido para a 
disciplina de Medicina Legal, primeiramente como substituto, sendo 
oficializado no cargo quatro anos depois. Até sua morte, em 1906, 
Nina Rodrigues permaneceu neste cargo, desempenhando importante 
papel na institucionalização da Medicina Legal no país. 
A produção de Nina Rodrigues foi ampla, abarcando diversas áreas da 
medicina – sendo mais efetiva na medicina legal, mas não restrita a 
ela. Entre os anos de 1890 e 1892, escreveu sobre as epidemias de 
abasia astasia ocorridas no Maranhão e na Bahia, além de textos 
voltados à discussão da mestiçagem, como “Mestiçagem, 
Degenerescência e Crime”. 
Publicou o seu primeiro livro - “As raças humanas e a 
responsabilidade penal no Brasil” – em 1894, hoje considerada uma 
de suas mais importantes obras. Este livro era, segundo o autor, um 
“estudo das modificações que as condições de raça imprimem à 
responsabilidade penal” (Rodrigues, 1957, p.27), com o objetivo de 
sistematizar as suas lições na disciplina de Medicina Legal (Oda, 
2003). 
Em 1895, já como titular na cátedra de Medicina Legal, ajudou a 
fundar, juntamente com Juliano Moreira e Alfredo Britto, a Sociedade 
de Medicina Legal da Bahia, sendo eleito presidente. Ainda neste ano 
foi aceito como membro da Médico-Legal Society de Nova Iorque 
(Corrêa, 2001; Oda, 2003). 
Nos primeiros anos da década de 1900, Nina Rodrigues se dedicou a 
uma série de escritos sobre Medicina Legal voltados à perícia médica, 
e outros de especial interesse para a psicologia, tais como “Atavisme 
psychique et paranóia”, publicado nos Archives de Anthropologie 
Criminel de Lion em 1902 e “La paranóia chez les nègres”, do ano 
seguinte, publicado na mesma revista. Raimundo Nina Rodrigues 
faleceu precocemente em julho de 1906, deixando uma obra de 
importância ímpar para os estudos sobre raça no Brasil. 
De acordo com Ana Maria Oda (2003), pode-se classificar a produção 
de Nina Rodrigues em quatro pontos, são eles: os estudos de 
organização sanitária pública; medicina legal, psiquiatria forense e 
antropologia física; os estudos de psicopatologia comparada e, 
finalmente, a etnografia dos povos africanos da Bahia.Exceto o 
primeiro item, que apresenta um limite temporal específico – o início 
da carreira de Nina Rodrigues –, todos os outros temas estão 
presentes ao longo dos seus vinte anos de produção, sendo que o 
tema da criminalidade entre negros e mestiços perpassa boa parte de 
sua obra. 
A atuação de Nina Rodrigues dentro da Medicina Legal foi muito 
ampla, podendo ser localizada em diversos âmbitos que vão desde a 
organização sanitária até a psiquiatria forense. Aqui interessam, 
principalmente, seus trabalhos sobre antropologia física e criminal e 
psiquiatria forense, dentro dos quais o estudo do corpo e da mente 
Marcela Franzen Rodrigues 
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do negro se sobrepõe. Voltado principalmente ao tema da 
criminalidade racial, Nina Rodrigues analisou diversos casos de delitos 
envolvendo negros e mestiços, nos quais os corpos, cabeças, mentes 
e história de vida dos sujeitos eram avaliados no intuito de desvendar 
as motivações de seus crimes. 
 
 
2 Raça, crime e punição 
 
A conversão absoluta de Nina Rodrigues ao campo da Medicina Legal 
pode ser datada na publicação de “As Raças Humanas e a 
Responsabilidade Penal no Brasil”, de 1894. O livro é dedicado aos 
consagrados médicos e juristas da área, como Lombroso, Ferri, 
Garófalo e Lacassagne 2, “em homenagem aos relevantes serviços 
que os seus trabalhos estão destinados a prestar a medicina legal 
brasileira, atualmente simples aspiração ainda” (Rodrigues, 1957, 
p.21). De acordo com Maio (1995), além disso, percebe-se também 
uma identificação do autor com as teorias eugênicas de Galton e com 
o darwinismo social de Spencer. 
Mas, foi principalmente baseado nas teorias lombrosianas que Nina 
Rodrigues desenvolveu as ideias apresentadas em “As Raças 
Humanas”, no qual o autor considerava um “simples ensaio de 
psicologia criminal brasileira” (Rodrigues, 1957, p.24). 
Fundamentado, sobretudo, nas aulas que vinha ministrando na 
disciplina de Medicina Legal da Faculdade de Medicina da Bahia, o 
livro tinha como propósito apresentar as modificações que as 
condições de raça imprimiriam à responsabilidade penal, assim como 
criticar o Código Penal Brasileiro de 1890. 
Neste livro, considerado por Leite (1992) a exposição explícita de 
preconceito contra índios e negros, Nina Rodrigues defendeu um 
tratamento diferenciado para negros, índios e mestiços – produtos 
das chamadas raças inferiores – no Código Penal Brasileiro. Seu 
argumento partia do pressuposto de que haveria uma diferença 
fundamental entre as raças no que se referia à sua constituição 
mental: 
 
A concepção espiritualista de uma alma da mesma natureza em 
todos os povos, tendo como conseqüência uma inteligência da 
mesma capacidade em todas as raças, apenas variável no grau 
de cultura e passível, portanto, de atingir mesmo num 
representante das raças inferiores, o elevado grau a que 
chegaram as raças superiores, é uma concepção 
irremessivelmente condenada em face dos conhecimentos 
científicos modernos (Rodrigues, 1957, p.28). 
 
Marcela Franzen Rodrigues 
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Para embasar sua proposta de um código diferenciado, Nina 
Rodrigues utilizou longas citações de autores como Tarde 3 e Garófalo 
para sustentar que a própria noção de crime se altera conforme o 
tempo e a sociedade. Assim, lembra que o grande crime na Grécia 
Antiga era deixar os pais sem sepultura, na Idade Média era o 
sacrilégio, tendo o homicídio pena muito mais leve. Se a ideia de 
crime se alterou ao longo do tempo, nada mais natural que a ideia de 
justiça se modificasse também. Para que todos tivessem a mesma 
noção de justiça e responsabilidade, era necessário, segundo o autor, 
que houvesse uma homogeneidade populacional, o que era 
impensável, uma vez que as populações se encontravam em níveis 
distintos de evolução mental. Assim, Nina Rodrigues concordou com 
Tarde quando este afirmou que para se chegar a homogeneidade 
populacional era preciso que: 
 
As inclinações naturais, quaisquer que sejam, tenham recebido, 
em larga escala, do exemplo ambiente, da educação comum, 
do costume reinante, uma direção particular que as tenha 
especificado [...]. Quando a sociedade tem fundido assim à sua 
imagem todas as funções e todas as tendências orgânicas do 
indivíduo, o indivíduo não faz um movimento, um gesto, que 
não seja orientado para um fim designado pela sociedade. Além 
disso, é preciso que, em larga escala também, as sensações 
brutas fornecidas pelo corpo e a natureza exterior em face um 
do outro, tenham sido profundamente elaboradas pelas 
convenções, pela instrução, pela tradição, e convertidas deste 
modo em um conjunto de ideias precisas, de juízos e de 
prejuízos, conformes em maioria às crenças dos outros, ao 
gênio da língua, ao espírito da religião ou da filosofia 
dominante, à autoridade dos avós ou dos grandes 
contemporâneos. Depois disso, pense o que pensar o indivíduo, 
ele há de pensar com o cérebro social” (Tarde apud Rodrigues, 
1957, p.45). 
 
Uma vez que a cada fase da evolução social de um povo 
corresponderia um tipo específico de criminalidade (de acordo com o 
desenvolvimento intelectual e moral) e que a análise científica 
mostrava a impossibilidade de uma homogeneidade populacional, o 
pressuposto da vontade livre, ou livre arbítrio – doutrina que estaria, 
segundo Oda (2003), de acordo com a Escola Clássica de Direito, na 
qual se baseava o sistema penal brasileiro à época –, não ofereceria a 
mínima consistência porque não escaparia, segundo Nina Rodrigues, 
às contingências do desenvolvimento evolutivo. Seguindo a teoria 
spenceriana 4, o autor acreditava que toda e qualquer ação seria 
determinada pelas conexões psíquicas geradas pela experiência – que 
poderiam ser mesmo anterior à existência do indivíduo – e que 
Marcela Franzen Rodrigues 
Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 15, n. 3, p. 1118-1135, 2015. 1123 
estavam acumuladas na sua constituição. Assim, o autor concluiu 
que, a cada fase da evolução da humanidade, se se comparassem 
raças distintas, corresponderia uma criminalidade própria em 
harmonia e em acordo com o grau do desenvolvimento. De forma 
que a noção de vontade só poderia ser aplicada a um grupo social 
homogêneo, o que não era, nem de longe, o caso da sociedade 
brasileira. 
Aplicando tais conceitos à realidade do Brasil, Nina Rodrigues 
sustentou que os crimes cometidos por indígenas, negros ou mestiços 
só poderiam ser analisados a partir de um ponto de vista racial que 
levasse em conta os valores morais e as noções de justiça vigentes 
nos seus respectivos grupos, ao que Oda dá o nome de “ética étnica” 
(2003, p.215). Afirma Nina Rodrigues: 
 
Ora, desde que a consciência do direito e do dever, correlativos 
de cada civilização, não é o fruto do esforço individual e 
independente de cada representante seu; desde que eles 
[índios, negros e mestiços] não são livres de tê-la ou não tê-la 
assim, pois que essa consciência é, de fato, o produto de uma 
organização psíquica que se formou lentamente sob a influência 
dos esforços acumulados e da cultura de muitas gerações; tão 
absurdo e iníquo, do ponto de vista da vontade livre, é tornar 
os bárbaros e selvagens responsáveis por não possuir ainda 
essa consciência, como seria iníquo e pueril punir os menores 
antes da maturidade mental por já não serem adultos, ou os 
loucos por não serem sãos de espírito (Rodrigues, 1957, p.79). 
 
Os selvagens – negros e índios – teriam, de acordo com Nina 
Rodrigues, um código de conduta próprio, estabelecido nos seus 
locais de origem e que difeririam muito dos códigos de conduta dos 
povos ditos civilizados. 
 
Os negros africanos são o que são: nem melhores nem piores 
que os brancos: simplesmente eles pertencem a uma outra 
fasedo desenvolvimento intelectual e moral. Essas populações 
infantis não puderam chegar a uma mentalidade muito 
adiantada e para esta lentidão de evolução tem havido causas 
complexas. Entre essas causas, umas podem ser procuradas na 
organização mesma das raças negríticas, as outras podem sê-lo 
na natureza do habitat onde essas raças estão confinadas. 
Entretanto, o que se pode garantir com experiência adquirida, é 
que pretender impor a um povo negro a civilização européia é 
uma pura aberração (Rodrigues, 1957, p.114). 
 
Como exigir, questiona o autor, que todas as diferentes raças 
encontradas no Brasil respondam por seus atos perante a lei com 
Marcela Franzen Rodrigues 
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igual plenitude de responsabilidade penal? É possível admitir que os 
índios e negros, bem como seus mestiços, tenham discernimento 
para decidir entre cometer ou não um crime? Seria correto, pergunta 
ainda Nina, conceber que a consciência do dever e do direito destas 
raças seja a mesma da dos brancos? Nina Rodrigues não pôde 
responder a estas questões. 
Assim, para o autor, um negro que cometesse um crime de honra, 
por exemplo, não poderia ser julgado da mesma maneira que um 
branco que tivesse cometido o mesmo crime. Suas aptidões mentais, 
suas formas de ver o crime e seus códigos de conduta eram outros. O 
branco deveria ser punido mais severamente que o negro, pois ele 
teria domínio sobre o código da civilização. Sua superioridade mental 
o obrigaria a ter consciência e pensar racionalmente sobre o crime 
que porventura viesse a cometer, diferentemente do negro, que seria 
acometido por suas emoções, que dominariam sua consciência, 
incapacitando-o para a racionalidade. O caso do indígena (puro) era o 
mesmo que o do negro. 
 
Basta refletir um instante em que só os africanos e os índios 
conservam, mais ou menos alterados, do novo meio social, os 
seus usos e costumes, como ainda em que fazem deles com os 
novos um amalgama indissolúvel, para se prever que nas suas 
ações hão de influir poderosamente as reminiscências, 
conscientes ou inconscientes da vida selvagem de ontem, muito 
mal contrabalançadas ainda pelas novas aquisições emocionais 
da civilização que lhes foi imposta (Rodrigues, 1957, p.79). 
 
Desta forma, não havia duvidas de que negros e índios necessitavam 
de um código que previsse sua incapacidade e atenuasse sua 
responsabilidade. No caso dos mestiços, a situação se complicaria 
mais. 
Para Nina Rodrigues, a escala da mestiçagem poderia ir desde o 
“produto inteiramente inaproveitável e degenerado ao produto válido 
e capaz de superior manifestação da atividade mental” (Rodrigues, 
1957, p.134). A mesma escala deveria percorrer a responsabilidade 
moral e penal, uma vez que o autor não considerava que todos 
fossem irresponsáveis. Nina Rodrigues acreditava que os mestiços 
poderiam ser distribuídos em três grupos distintos: o primeiro 
corresponderia aos mestiços superiores que, ou pela predominância 
da raça civilizada em sua constituição, ou por uma feliz combinação 
mental, poderiam ser considerados perfeitamente equilibrados e 
plenamente responsáveis; ao segundo grupo pertenciam os mestiços 
evidentemente degenerados, os quais devem ser considerados parcial 
ou totalmente irresponsáveis; por fim, no último grupo estariam os 
mestiços comuns, que mesmo superiores às raças selvagens das 
quais descendiam, traziam o desequilíbrio causado pelo cruzamento, 
Marcela Franzen Rodrigues 
Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 15, n. 3, p. 1118-1135, 2015. 1125 
não podendo ser equiparados àquelas raças, de forma que se 
encontravam em constante iminência de cometer ações anti-sociais e 
não deveriam, por isso, ser plenamente responsáveis. 
A sugestão proposta por Nina Rodrigues foi de que cada região do 
país possuísse seu próprio código, adaptado às condições raciais e 
climáticas de cada uma delas, abandonando a unidade legal que era 
defendida pelo direito clássico. Mas, como bem lembra Oda, é claro 
que a distinção no código proposta pelo autor implicaria não apenas 
na imputabilidade penal, mas, também, na “relativização da 
capacidade civil, isto é, da cidadania no sentido amplo” (2003, 
p.217). 
Após “As Raças Humanas”, Nina Rodrigues passou a escrever 
frequentemente sobre a relação entre raça e crime. Nesses textos, 
sempre defendeu a responsabilidade diferenciada como a melhor 
forma de tratar os casos criminais, para comprovar suas teorias, 
utilizava-se, sobretudo, de observações empíricas. Encontram-se 
exemplos desse método em textos como “Depeçage Criminel”, “Lucas 
da Feira”, aqueles sobre o conflito de Canudos, como “Antônio 
Conselheiro e os Jagunços”, entre outros. 
 
 
3 O caso de Lucas da feira 
 
Seguindo o método de Nina, vamos aqui nos detalhar na 
apresentação de seu ensaio sobre Lucas da Feira, publicado em 1985. 
É comum que, à primeira leitura deste texto, não lhe seja dada muita 
relevância: parece ser apenas mais um dos textos racistas de Nina 
Rodrigues, no qual o corpo do negro fora medido, analisado e 
profanado. Uma segunda leitura, mais aprofundada, nos mostra que 
o texto ultrapassa esta primeira visão e pode ser localizado entre as 
obras chave do que, penso, ser a transição de um Nina Rodrigues 
simplesmente cientificista e médico para um Nina Rodrigues afetado 
pela importância dos indicadores sociais. 
Adepto da teoria lombrosiana do criminoso nato, logo no início o 
autor afirma crer que “poucas populações estarão, como a do Brasil, 
em condições de oferecer à escola criminalística italiana uma 
confirmação mais brilhante às doutrinas que ela defende” (Rodrigues, 
2006, p.104). Ironicamente, ao longo do texto percebe-se que ele 
mais se afastou do que aproximou das doutrinas que tanto elogiava. 
Vejamos o caso de Lucas. 
Lucas da Feira foi um negro escravo fugido que, em 1828, juntou um 
bando de negros – escravos como ele – cometendo diversos crimes 
ao longo de vinte anos. Em 1848, Lucas foi preso, negando seus 
crimes de início, mas, após intenso interrogatório, acabou por admitir 
ter matado mais de vinte pessoas, roubado e raptado, além de ter 
violado seis moças (Rodrigues, 2006). Ainda assim, e mesmo 
Marcela Franzen Rodrigues 
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sabendo que seus dias estavam contados, afirmou que não entregaria 
nenhum de seus comparsas por ser este um ato de traição para com 
aqueles que tanto o ajudaram. Não era este o comportamento 
previsto por Lombroso para os criminosos: estes sempre buscariam 
atenuar seus atos acusando outros e reclamando terem cometido 
seus crimes sob influência e domínio dos cúmplices. Contudo, não foi 
somente o comportamento de Lucas depois de preso que não estava 
de acordo com a teoria italiana; seu comportamento durante a vida e 
seu corpo após a morte não se pareciam em quase nada com a 
descrição do criminoso nato. 
Durante a vida de crimes, Lucas evitou, sempre que pôde, assaltar e 
assassinar pessoas da vila, porque os conhecia: “Assim, pois, como 
verdadeiro selvagem, a vila e seus habitantes representavam para 
ele sua pátria, sua tribo, seu clã: os outros não eram mais do que 
estrangeiros em face dos quais ele não se julgava obrigado a ter 
considerações” (Rodrigues, 2006, p.108). 
Este comportamento de Lucas – que, mesmo fugindo, também 
respeitou seus senhores e nunca os machucou, além de só ter 
matado quem ele entendia tê-lo traído de alguma forma, certo que 
com requintes de grande crueldade – demonstrava para Nina 
Rodrigues que Lucas era sim um verdadeiro criminoso, porque tinha 
instintos sanguinários, mas não era um criminoso nato. 
Por fim, o estudo de seu crânio demonstrou que, ao contrário do que 
o médico esperava, Lucas da Feira não possuía nenhum traço étnico 
marcante; à primeira vistaparecia um crânio perfeitamente normal, 
com caracteres próprios aos crânios dos negros, mas também 
àqueles “pertencentes aos crânios superiores, medidas excelentes, 
iguais às da raça branca” (Rodrigues, 2006, p.106). Lucas era filho de 
negros africanos e sua negritude era comprovada por todos os que o 
conheceram, de forma que a ideia de que ele tivesse um mínimo de 
sangue branco era muito pouco provável. As medidas do crânio de 
Lucas, somadas ao seu comportamento em vida, mostravam a Nina 
Rodrigues que ele era um criminoso para os brasileiros, que viviam 
sob civilização europeia, porque provavelmente na África ele teria 
sido um rei, um guerreiro, um herói. 
E assim, Nina Rodrigues chegou à conclusão que o verdadeiro estudo 
da criminalidade não poderia se firmar somente na craniometria: 
 
Compreende-se assim o valor que se deve dar à ausência de 
caracteres criminais no crânio de Lucas e vê-se como não 
podemos criticar os dados da antropologia criminal, prendendo-
nos preconcebidamente aos caracteres físicos com a exclusão 
de uma sábia análise psicológica. É preciso, antes de tudo, 
fazer dos criminosos um estudo completo (Rodrigues, 2006, 
p.164). 
 
Marcela Franzen Rodrigues 
Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 15, n. 3, p. 1118-1135, 2015. 1127 
Essa análise completa compreendia, além dos exames osseométricos, 
um estudo detalhado da vida psicológica da pessoa e o conhecimento 
do meio social e climático no qual a pessoa vivia, tal como feito pelo 
autor no ensaio sobre Antônio Conselheiro. 
Pode-se analisar o caso de Lucas da Feira por diferentes prismas. 
Entretanto, para este trabalho, sua relevância encontra-se, 
sobretudo, no fato de Nina Rodrigues não haver encontrado no corpo 
de Lucas importantes marcas, traços e características físicas, 
materiais, de sua degenerescência ou de seu atavismo psíquico. Sim, 
sabia-se que o ex-escravo era um criminoso, assim como constatava-
se que era negro. Sabia-se também que era canhoto – marca 
indiscutível de degenerescência –, que tinha um “olhar peculiar” 
(Rodrigues, 2006, p.105) e que possuía uma leve anormalidade no 
formato do crânio. Anomalias estas, aliás, que poderiam também ser 
encontradas em um indivíduo branco. Ou melhor, que poderiam ser 
encontradas em qualquer pessoa. Mas Lucas não era qualquer 
pessoa. Lucas tinha atacado e saqueado diversos vilarejos durante 
vinte anos. Tinha violado e assassinado, muitas vezes com requintes 
de crueldades, podendo seus atos serem comparados aos dos 
assassinos mais bárbaros. Mas, diferentemente dos casos analisados 
pelo autor em “As Raças Humanas”, Lucas possuía um rígido código 
de conduta: ele só matava quando, em sua avaliação, isto era 
necessário; não matava conhecidos – mas matava conhecidos 
traidores, caso em que usava da Lei de Talião além de outros 
castigos. 
Assim, Nina Rodrigues perguntou-se como poderia um negro 
supostamente degenerado em função de sua raça, cuja mentalidade 
inferior se comprovaria por seus crimes, possuir um código de 
conduta tão elaborado? Lucas era, antes de mais nada, um produto 
de seu meio. Hoje poder-se-ia dizer, inclusive, que Lucas era o que a 
sociedade e a cultura fizeram dele. Resposta não muito distante da 
dada pelo médico maranhense em finais do século XIX. 
 
 
4 Mestiços e crimes 
 
Em 1899, Nina Rodrigues escreveu um artigo intitulado “Mestiçagem, 
Degenerescência e Crime”, no qual dava exemplos de crimes 
cometidos por mestiços. Em sua análise, buscava distinguir a 
influência da degeneração nos criminosos. Para tanto, contemplou o 
estudo craniométrico e fisiognômico do criminoso, de acordo com os 
parâmetros da criminologia. Assim, conduziu a análise dos casos de 
forma a confirmar sua tese de que os crimes são mais fruto da 
degenerescência recorrente pelo cruzamento de raças distintas, do 
que de responsabilidade individual, e por isso deveriam ser 
atenuados. 
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No início deste artigo, Nina Rodrigues discorreu sobre os discursos 
científicos que, no final do século XIX, debatiam a questão da 
mestiçagem. Os primeiros referiam-se à discussão entre poligenistas 
e monogenistas. A visão monogenista congregou a maior parte dos 
intelectuais que, de acordo com a Bíblia, acreditavam que a 
humanidade vinha de uma fonte comum, sendo as diferenças entre 
os homens vistas como um gradiente, que iria do mais ao menos 
perfeito (mas sem supor uma noção de evolução). Já a visão 
poligenista provinha de uma interpretação biologicista, baseada na 
análise dos comportamentos humanos, que passaram a ser 
crescentemente vistos como resultados imediatos das leis biológicas e 
naturais e implicando, portanto, diferentes origens humanas 
(Schwarcz, 1993). Assim, enquanto os primeiros buscavam mostrar o 
hibridismo dos cruzamentos humanos, os segundos buscavam 
comprovar a viabilidade de tais cruzamentos. “Assim, o critério de 
viabilidade e de capacidade dos mestiços foi posto no terreno das 
ciências naturais. Tanto como para os animais, esse critério deveria 
ser a perfeita eugenesia dos mestiços humanos, que uns apoiavam e 
outros negavam” (Rodrigues, 2008, p.1151). No entanto, o debate 
entre os poligenistas e os monogenistas acabou atenuado com a 
publicação e divulgação da teoria evolucionista de Darwin, que 
passou a constituir, segundo Schwarcz (1993), uma espécie de 
paradigma da época, amenizando antigas disputas. 
Deste modo, segundo Nina Rodrigues, a psicologia mórbida entrou 
em ação e colocou de lado a questão de saber se o mestiço era ou 
não eugenésico – ou seja, capazes de melhorar a sua descendência –
, para debater se os mestiços eram um produto normal, socialmente 
viável ou se, ao contrário, constituiriam “raças abastardas inferiores, 
uma descendência incapaz e degenerada” (Rodrigues, 2008, p.1152). 
Neste sentido, a psicologia coletiva – a partir de nomes como 
Gobineau 5, Spencer, Keane e Le Bon – ocupou-se da questão. Já o 
estudo médico da influência degenerativa da mestiçagem era mais 
recente. Nina Rodrigues lembra que o próprio Morel, “criador da 
noção clínica de degenerescência” (Rodrigues, 2008, p. 1152) a 
desconhecia. Foi, portanto, a psicologia criminal que acabou por 
acentuar, ou afirmar, a possibilidade desta consequência do 
cruzamento. Mas, ainda assim, poucas ou nulas eram as 
documentações que apoiassem esta teoria: 
 
A razão principal para essa ausência de documentação é a 
dificuldade de separar de maneira segura a influência do 
cruzamento da de muitas outras causas, de ordem biológica e 
social que pode ter simultaneamente exercido influência na 
degenerescência ou na decadência precoce desses povos 
mestiços e que são dadas ou invocadas como provas da ação 
degenerativa da mestiçagem (Rodrigues, 2008, p. 1152). 
Marcela Franzen Rodrigues 
Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 15, n. 3, p. 1118-1135, 2015. 1129 
 
Foi justamente por conta desta ausência de documentação que o 
autor se propôs a resolver o problema através da observação direta e 
imediata: 
 
A observação, tal como feita até hoje, voltando-se para todo 
um povo ou para casos muito limitados e muito específicos, não 
pode trazer senão provas muito discutíveis e não pode iluminar 
a questão com as luzes soberanas da verdade. Num país inteiro 
e sem o recurso a estatísticas no caso dos povos que se 
prestam a essa discussão, é quase impossível distinguir a 
influência da mestiçagem entre as mil outras causas 
complexas, suscetíveis de produzir sua decadência. Em alguns 
casos muito especiais é sempre justo suspeitar de uma exceção 
ou de uma influência degenerativa local, responsável pela ação 
imputável ao cruzamento (Rodrigues, 2008, p.1153). 
 
Assim, Nina Rodrigues afirma que tais análises seriam melhor 
realizadas em cidades pequenas, “nas quaisé mais fácil distinguir as 
diferentes causas degenerativas, dado que a população local não se 
distingue em nada do tipo médio geral da província ou estado” 
(Rodrigues, 2008, p.1153) buscando, também, o histórico médico 
destas populações. A localidade escolhida, Serrinha – no interior do 
estado da Bahia –, era composta por mestiços, principalmente 
pardos, além de possuir uma quantidade significativa de negros. 
Serrinha também gozava da reputação de abrigar uma população 
séria e trabalhadora. No entanto, Nina Rodrigues fez questão de 
mostrar que, apesar da fama, a população local estava longe de ser 
um exemplo, já que se utilizava de métodos atrasados de produção 
agrícola, além de não possuir espírito empreendedor, dificultando o 
progresso da região. 
Ao longo do texto, o autor apresentou diversos casos de 
degenerescência entre a população de Serrinha no intuito de 
comprovar a sua frequência entre os mestiços, assim como justificar 
sua tese sobre o fundo degenerativo dos criminosos mestiços: 
 
A degenerescência dos mestiços devia ter uma influência 
decisiva e predominante sobre sua criminalidade, o que era de 
prever, mas não seria justo inferir daí que essa criminalidade 
deva ser forçosamente muito elevada, pois compreendemos 
perfeitamente que a degenerescência, sob a influência de 
causas múltiplas e difíceis de precisar, difíceis mesmo de 
conhecer, pode tomar formas variadas: mais criminosas aqui, 
mais vesânicas lá, e assim por diante (Rodrigues, 2008, 
p.1166). 
 
Marcela Franzen Rodrigues 
Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 15, n. 3, p. 1118-1135, 2015. 1130 
Vê-se, pois, que Nina Rodrigues acreditava que se a violência e a 
impulsividade das raças inferiores afetavam a qualidade dos crimes, 
não necessariamente influenciava na quantidade. O caso de Serrinha 
era um exemplo de localidade com baixa criminalidade, mas na falta 
de estatísticas confiáveis, era impossível realizar um estudo 
comparativo com outras localidades do estado e outras regiões do 
país, mas, com base em estudos realizados em outros países, o autor 
acreditava ser possível afirmar que o tipo violento predominava na 
criminalidade da população de cor. Assim, no intuito de comprovar 
que a criminalidade é fruto da degenerescência causada pela 
mestiçagem, o autor acreditou ser suficiente a análise da história de 
duas famílias, cujos casos de criminalidade associavam-se 
intimamente com as manifestações da degenerescência, de forma a 
demonstrar que a tendência ao crime era hereditária. 
 
 
5 Desmembramento criminal 
 
Em 1898, no artigo “Des Conditions Psychologiques du Depeçage 
Criminel”, Nina Rodrigues tratou dos casos de mutilação criminosa. 
Iniciou o texto citando Lacassagne, que diz que o desmembramento 
seria um fenômeno presente desde sempre nas culturas primitivas, 
merecendo, portanto, um estudo mais detalhado, pois seria uma das 
características mais marcantes do instinto destruidor. Em seus dias, 
ainda segundo Lacassagne, não havia mais tantos casos como 
antigamente, não porque os primitivos tivessem aceitado as leis e os 
costumes da civilização – como pensariam os antropólogos – mas por 
serem ainda caracterizados por seus instintos atávicos. Assim, para 
Lacassagne, os primitivos do final do século XIX ainda eram 
condenados à imitação, tal como seus antecedentes. 
Uma vez que o Brasil era, segundo Nina Rodrigues, um país com 
grande número de pessoas de raças inferiores e, pior, com grande 
número de produtos do cruzamento entre raças, tinha uma boa parte 
da população com instintos atávicos e logo o estudo do 
desmembramento poderia ser muito bem aplicado em nossa terra. 
Assim, Nina Rodrigues resolveu debruçar-se sob o assunto e estudar 
o fenômeno do desmembramento no Brasil a partir dos três tipos 
propostos por Lacassagne – a saber, o desmembramento “religioso” 
ou “sacrificial”; o “judicial” e o “criminoso”, além de um último tipo 
proposto pelo próprio Nina Rodrigues, o desmembramento 
“guerreiro” ou “ornamental”. 
O desmembramento guerreiro – ou de guerra – era comum entre as 
tribos indígenas que aqui estavam antes da chegada de Portugal. 
Segundo o autor, era comum que os índios usassem como troféus 
crânios e membros de seus inimigos, cujos ossos serviam, 
igualmente, como decoração de corpos e casas. 
Marcela Franzen Rodrigues 
Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 15, n. 3, p. 1118-1135, 2015. 1131 
 
Esta prática existe ainda hoje e com a mesma finalidade entre 
as tribos selvagens que ocupam as extensas zonas desertas do 
país. Ela existe igualmente entre os descendentes semi-
civilizados, puros ou mestiços, do índio e do negro, ainda que 
atenuada, porque transformada em crime, mas o caráter e os 
instintos guerreiros ainda são facilmente percebidos nestes 
povos. Nos pontos distantes do litoral, onde pouco se sente a 
influência da civilização, estes povos nômades vivem em 
incursões, exatamente como viviam seus antepassados 
selvagens aqui, na América, ou na África. Estas pessoas estão 
constantemente envolvidas com assaltos à mão armada onde 
se revela todos os sentimentos e instintos bárbaros ainda mal 
contidos de seus ancestrais (Rodrigues, 1898, p.7 [tradução 
livre]). 
 
A título de exemplo, o autor descreve – com riqueza de detalhes – 
um caso onde um fazendeiro foi morto a tiros por um bando de 
capangas enquanto dormia, produto de uma vingança dos filhos de 
um fazendeiro vizinho. Não satisfeitos com o assassinato, o grupo de 
homens – mestiços – arrastou o corpo até a frente da casa, onde o 
espancaram e esquartejaram, largando-o no meio do pasto dos 
animais, ato após o qual atearam fogo nas cabanas dos trabalhadores 
da fazenda. 
A mutilação e a antropofagia religiosa – segundo tipo – também eram 
comuns entre os índios e entre os negros, tendo sido encontrado não 
somente na América Central, mas também no Brasil: 
 
Nas minhas pesquisas para um trabalho no qual me ocupo 
atualmente, sobre a criminalidade entre os negros brasileiros, 
cheguei a descobrir traços desta abominável prática no Brasil. 
Pude constatar em uma antiga província do atual Estado do 
Maranhão, a existência de casos de exumação clandestina de 
cadáveres de recém-nascidos para a confecção de feitiços 
(fetiches) ou sortilégios de negras feiticeiras. É quase certo que 
esta prática tem sido amplamente empregada nos cultos de 
feitiçaria africana que ainda desfrutam de grande prestígio hoje 
em dia no Brasil (Rodrigues, 1898, p.7; [tradução livre]). 
 
O terceiro tipo analisado pelo autor é o desmembramento judiciário, 
feito em nome da lei. O exemplo utilizado pelo autor – o 
esquartejamento de Tiradentes em 1796 – demonstra bem a 
importância do ato como, além de punição, exemplo para aqueles 
que poderiam pensar em se rebelar. 
O quarto – e último – tipo analisado foi o criminal, no qual se 
encontrava o maior interesse do autor. E, uma vez que não era fácil 
Marcela Franzen Rodrigues 
Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 15, n. 3, p. 1118-1135, 2015. 1132 
fazer, através das antigas observações, uma análise sobre o estado 
mental dos esquartejadores, “porque, (...) mesmo tendo observações 
deveras interessantes, as doutrinas oficiais – dedicadas ao exame 
meticuloso dos crimes – mostravam desprezo pelo estudo do 
criminoso” (Rodrigues, 1898, p.10 [tradução livre]), era importante, 
portanto, realizar um novo estudo. 
O autor descreveu alguns casos de mutilações e passou à análise dos 
criminosos. No entanto, antes de passar à sua análise é importante 
abrir um parêntesis: no primeiro caso, um juiz havia esquartejado a 
amante, ambos brancos. Este, apesar de ser um caso de mutilação, 
não representava um bom exemplo para o autor, uma vez que o juiz 
“só” havia esquartejado a amante para que o corpo coubesse na 
caixa em que seria enterrado, de forma que não houve a intenção do 
desmembramento.Por coincidência, os casos considerados pelo autor 
como típicos de desmembramento criminal, foram cometidos por 
negros/mestiços. E também, por coincidência, são os rostos dos 
criminosos negros e mestiços que ilustram o artigo. 
A seu ver era lamentável que os criminosos não tivessem sido 
submetidos a exames cuidadosos, porque poderiam seus casos 
ajudar a melhor compreender o desmembramento criminal. No 
entanto, o autor pôde perceber que os motivos psicológicos que 
levariam ao desmembramento de cadáveres seriam múltiplos e 
variados. A prática obedeceria aos sentimentos mais diversos e 
conflitantes, não sendo um simples ato, uma vez que seria capaz de 
influenciar direta e imediatamente a transmissão hereditária ou 
atávica aos descendentes dos mutiladores. 
Nina Rodrigues, assim, considerou que as formas religiosas, 
guerreiras e judiciárias do desmembramento possuíam uma função 
social que as explicariam por si mesmas. Era uma prática condenável, 
sem dúvida, praticada principalmente por povos primitivos, mas que 
continha na sua função social (e cultural) um atenuante. No entanto, 
o desmembramento criminal, por sua vez, provinha de um ato 
criminoso, individual, causado por um retorno atávico. E assim sendo, 
a degenerescência explicaria – e justificaria – a frequência de 
criminosos negros e mestiços entre os mutiladores. E o que a 
degenerescência explicava, a justiça deveria atenuar. 
Mas, para Nina Rodrigues, não era somente nos crimes que se 
percebia o quanto os negros eram degenerados. A degenerescência 
explicava a alienação entre os negros e mestiços, e que muitas vezes, 
o crime e a alienação andavam de mãos dadas. De modo que seria 
difícil dizer, a partir dos casos analisados pelo autor, o que vinha 
antes: o louco ou o criminoso. A única certeza do autor era a de que 
os negros e mestiços estavam, por suas condições raciais, mais 
propensos a uma vida criminosa do que os brancos. 
 
 
Marcela Franzen Rodrigues 
Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 15, n. 3, p. 1118-1135, 2015. 1133 
6 Considerações finais 
 
Nos anos que trabalhou no Laboratório de Medicina Legal da 
Faculdade de Medicina da Bahia, Nina Rodrigues deve ter visto muitos 
casos de crimes cometidos por negros e mestiços, mais do que por 
brancos, com certeza. Neste artigo, teve-se por intuito mostrar as 
formas pelas quais o médico procurou explicar tais índices de 
criminalidade de acordo com as teorias que estavam em voga na 
época. Raimundo Nina Rodrigues foi, neste sentido, um intelectual 
que dialogou com diversos saberes, principalmente europeus, e 
buscou adaptá-los à realidade brasileira. Pode-se perceber através 
das suas obras que há um leve progresso, na falta de palavra melhor, 
que vai de uma dureza teórica baseada na antropologia criminal até 
um início de uma percepção do relativismo cultural. No entanto, com 
a precocidade da morte de Nina Rodrigues jamais saberemos que 
rumo seus estudos teriam tomado no século XX. Hoje, após anos de 
luta da população negra contra o preconceito racial (luta esta que 
ainda perdura dia após dia), sabemos que as teorias que Nina 
Rodrigues tanto acreditava, já não são mais passíveis de serem 
levadas a sério. No entanto, rever sua obra nos mostra um pouco do 
quanto os negros foram tratados como objetos pela ciência no Brasil 
também, e pode deixar a dúvida do quanto tais estudos contribuíram 
e contribuem para a compreensão da visão que se tem desta parte da 
população hoje em dia, não só no senso comum, mas pela própria 
ciência. 
 
 
Referências 
 
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Universidade São Francisco. 
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Legal nas teses da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 
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Schwarcz, L. M. (1993). O Espetáculo das Raças. Cientistas, 
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Schwarcz, L. M. (1996). As teorias raciais, uma construção histórica 
de finais do século XIX: o contexto brasileiro. In: R. Queiroz, & 
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Edusp. 
Ventura, R. (1991). Estilo Tropical: história cultural e polêmicas 
literárias no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras. 
 
Endereço para correspondência 
Marcela Franzen Rodrigues 
Universidade do Estado do Rio de Janeiro 
Programa de Pós Graduação em Psicologia Social 
Rua São Francisco Xavier, 524/10º andar, sala 10.009, bloco F, Maracanã, CEP 
20550-013, Rio de Janeiro – RJ, Brasil 
Endereço eletrônico: celafranzen@yahoo.com.br e cela.franzen@gmail.com 
 
Recebido em: 30/10/2014 
Reformulado em: 14/08/2015 
Aceito para publicação em: 19/08/2015 
 
Notas 
* Licenciatura em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul 
– 2002-2007. Mestre em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de 
Janeiro – 2010-2011.Doutoranda em Psicologia Social pela Universidade do Estado 
do Rio de Janeiro – 2012-corrente. 
1 A obtenção do título de doutor era dada ao aluno que, depois de cursada a 
faculdade de medicina, sustentava em público uma “tese, escrita no idioma 
nacional ou em latim, e impressa à própria custa. A tese compreendia uma 
“dissertação” e a enumeração de “proposições” que se traduziam, muitas vezes, na 
transcrição ipsis verbis de aforismos de Hipócrates” (Jacó-Vilela, Espírito Santo, & 
Pereira, 2005, s/p). 
2 Cesare Lombroso (1835-1909), Enrico Ferri (1856-1929) e Rafaelle Garófalo 
(1851-1934) são considerados os fundadores da Escola Italiana de Criminologia, 
que tinha por objetivo estudar os aspectos físicos, sociais e psíquicos dos 
criminosos. Alexandre Lacassagne (1843-1924) foi um criminalista francês, ligado à 
escola lombrosiana. 
Marcela Franzen Rodrigues 
Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 15, n. 3, p. 1118-1135, 2015. 1135 
3 Jean-Gabriel de Tarde (1843-1904) foi um sociólogo, psicólogo e criminalista 
francês, famoso pelas suas obras criminais e sobre psicologia das massas. 
4 Herbert Spencer (1820-1903) é considerado o criador do darwinismo social. 
Segundo Ventura, “Spencer defendia a unidade original da espécie humana, e 
rejeitava a hipótese poligenista sobre a diversidade das raças primitivas. Para ele, 
as raças se encontravam em estágios evolutivos distintos, sendo as diferenças 
entre os povos o resultado do progresso de alguns grupos e do atraso de outros. 
Pela ‘lei da repetição abreviada da história’, todos os povos passariam pelos 
mesmos estádios evolutivos” (Ventura, 1991,p. 51[grifos e aspas no original]). 
5 As teorias racistas de Arthur de Gobineau foram muito difundidas no Brasil, 
principalmente por sua relação próxima com Dom Pedro II, fortificada após o ano 
de 1869, quando o então Conde de Gobineau foi Ministro da França no Brasil 
(Readers, 1938). O francês havia escrito, em 1854, o livro Essai sur l’inegalité dês 
races humaines, no qual profetizava a decadência da civilização como resultado da 
mistura de sangues Acreditava que “a miscigenação estaria colocando em risco as 
nacionalidades pela introdução de elementos ‘heterogêneos’, capazes de destruir a 
sua identidade” (Ventura, 1991). Sobre Gobineau, ainda vale a pena citar a 
descrição de Schwarcz (1996): “Gobineau esteve no Brasil como enviado francês, 
odiou tudo o que viu e disse que todos os brasileiros se pareciam com macacos, 
menos D. Pedro II, que por sua vez tinha muitas espinhas” (p.171). Nina Rodrigues 
fazia frequentes referências ao trabalho de Gobineau ao longo de seus textos.

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