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Onde Machado e Eça se encontram Aline Alves de Carvalho (UFRJ) Resumo Machado de Assis escreveu, em 1878, uma resenha crítica sobre O primo Basílio, de Eça de Queirós que até hoje intriga os leitores de ambos autores, em que Machado vê a protagonista Luísa como sem qualquer relevo psicológico e considera o romance de Eça como uma cópia de outros europeus. Porém, anos mais tarde, em sua segunda fase, constrói Capitu, de Dom Casmurro, que apresenta algumas marcantes identificações com Luísa, comprovando que entende então a problemática que envolvia o universo feminino daquela época. Palavras-chave Crítica social; apropriações ideológicas; narrativa. Arnold Hauser (2003), em História Social da Literatura e da Arte, vê os escritores de até o século XVIII como meros porta-vozes de seus leitores, enquanto que, a partir do século XIX, os escritores passam a assumir uma posição moralizadora e fundadora de ideologias, posicionando-se como “advogados e professores” de seus leitores. Sendo assim, a partir do século XIX a subjetividade começa a conquistar espaço efetivo na arte, o que propicia o reconhecimento de múltiplas perspectivas. Sendo assim, levando ainda em consideração a análise de Hauser, o escritor passa a ter a possibilidade de se posicionar em favor da idéia com a qual mais encontre empatia, ou até mesmo contribuir com a formação de uma. Pode ser partidário da aristocracia conservadora ou da burguesia progressista, ou até mesmo ser solidário a causas politicamente menos favorecidas como a luta do proletariado ou a condição de grupos marginalizados. Como se sabe, a Revolução Francesa e a ascensão da burguesia são elementos de formação do Ocidente moderno. Porém, uma parcela da sociedade se mostra, naquele período, descontente com os novos moldes sociais e políticos. Esse descontentamento se reflete nas artes, e pode-se dizer que é um dos aspectos fundadores da escola literária denominada Realismo, cujos escritores se empenham em tentar desvendar o que de fato conduz ou desencadeia as ações humanas, buscando, portanto, realizar um exame de si mesmos. Por terem como base o descontentamento com o regime vigente, está claro que essa análise passa de uma mera observação do real, tendo ao fim descrito as crises e vícios do homem e do mundo que este criou. Levando em conta os acontecimentos históricos desencadeados no século XIX não só no Brasil, mas em todo o Ocidente, ao mesmo tempo considerando as particularidades de cada país, tentaremos através deste estudo aproximar os escritores Machado de Assis e Eça de Queirós observando que ambos incluem em suas narrativas, cada um a sua maneira, um aspecto muito marcante: a experiência da mulher na sociedade patriarcal. Como ponto de partida, relembramos um artigo já muito comentado e retomado, mas inegavelmente intrigante: a crítica que Machado faz a Eça em ocasião da publicação do romance O primo Basílio. Comentaremos apenas as considerações que Machado faz sobre a personagem Luísa, protagonista do romance citado. Diz ele: A Luísa é um caráter negativo, e no meio da ação ideada pelo autor, é antes um títere do que uma pessoa moral. Repito, é um títere; não quero dizer que não tenha nervos e músculos; não tem mesmo outra coisa; não lhe peçam paixões nem remorsos; menos ainda consciência. E falando sobre o envolvimento de Luísa e Basílio, e o conseqüente adultério: Tal é o intróito, de uma queda, que nenhuma razão moral explica, nenhuma paixão, sublime ou subalterna, nenhum amor, nenhum despeito, nenhuma perversão sequer. Luísa resvala no lodo, sem vontade, sem repulsa, sem consciência; Basílio não faz mais do que empuxá-la, como matéria inerte, que é. Uma vez rolada ao erro, como nenhuma flama espiritual a alenta, não achava ali a saciedade das grandes paixões criminosas: rebolca-se simplesmente. Assim, essa ligação de algumas semanas, que é o fato inicial e essencial da ação, não passa de um incidente erótico, sem relevo, repugnante, vulgar.1 Machado vê, portanto, em Luísa, uma mulher que apenas vive aquilo a que a levam as circunstâncias, como um fantoche nas mãos dos acontecimentos. De fato, é isso o que se quer fazer com qualquer mulher daquela sociedade. Respeitando a ordem, o regime e a família, não cabe à mulher outra coisa senão cumprir com os desígnios de mãe e esposa, e acompanhar os costumes e cada passo articulado à sua volta. Há apenas duas alternativas: ou se enquadrava nos moldes estabelecidos estando sempre à mercê do que lhe era exigido, ou adotava comportamentos não aceitos, localizando-se à margem de seu grupo e tendo que se conformar com a exclusão como o preço a ser pago por não se adequar. Em seu estudo sobre as personagens femininas de Eça de Queirós, Mônica Figueiredo (2006) disserta sobre a condição feminina nas obras do autor, caracterizando-a como um sujeitar-se à hipocrisia como tentativa de “exercício velado do inconformismo”. As mulheres têm que delinear suas convicções morais conforme os ditames do patriarcado, e qualquer tipo de prática sexual deveria ser feita por debaixo dos panos, ainda assim tendo em mente que se tratava de um ato vil ou criminoso. Portanto, é apenas sob o manto da hipocrisia que a mulher tem a possibilidade de satisfazer seus impulsos eróticos, e é esse conflito entre natureza e moral que Eça aborda em seus escritos. Desse modo, Mônica Figueiredo reconhece as personagens femininas queirosianas como “acuadas por estruturas familiares repressivas, ou sofrendo por não pertencerem a lugar nenhum, o emparedamento de que sofrem as personagens de Eça é afinal o retrato cruel da condição feminina” (Figueiredo, 2006, p 285). Luíza é identificada por Machado de Assis como “títere”. Na verdade, ela age como uma mulher que não se vê somente como membro de um casamento arranjado, que foi tudo o que seu tempo pôde lhe oferecer, mas uma mulher que também quer atender aos apelos de seu corpo. Não é o reencontro com o primo o que a movimenta, nem tampouco ela é simplesmente levada pelas circunstâncias, mas é a própria vontade de descobrir e vivenciar sua sexualidade o que a comove. Sendo assim, já que não pode optar pelo sexo livre, que a excluiria definitivamente de seu meio, o adultério é o que 1 Trecho retirado da resenha crítica de Machado de Assis a’O primo Basílio, de Ela de Queirós, disponível em p://fredb.sites.uol.com.br/primo.html. lhe resta para saciar sua curiosidade. Luíza não é uma revolucionária, como bem observa Mônica Figueiredo, visto que ela se vê numa sociedade que não lhe permitia ir além de seus contornos, então ela não pode realizar ações que modificassem o mundo em que vivia. Além disso, o que o autor se dedica a analisar são exatamente as falhas da alta sociedade lisboeta do seu tempo, e não histórias de personagens que rompiam barreiras e transformavam o meio em que viviam. Porém, Luíza não é exatamente um “títere”: pode-se dizer que ela era uma rebelde, por, ainda que em segredo, ter se permitido ser dona de seu próprio desejo. O que Machado de Assis chama de “incidente erótico, sem relevo, repugnante e vulgar” é, na verdade, o resultado da insatisfação de uma mulher cerceada por uma estrutura social que não precisa das experiências sexuais que excedem a instituição familiar. Como se sabe, o casamento daquela época raramente passa de um acordo feito entre famílias que se queriam convenientemente ligadas. Desse modo, era também a única forma de uma mulher se restabelecer e firmar comoindivíduo legítimo. Portanto, o único meio para sobreviver numa sociedade patriarcal era o casamento e a maternidade. E essa perspectiva é o ponto de intercessão que este estudo pretende encontrar nas obras de Machado de Assis e Eça de Queirós. Uma personagem também construída em meio a todas as exigências da ordem burguesa foi Capitu, do romance Dom Casmurro. Ela vinha de uma família menos favorecida que se mantinha agregada à família de Bento Santiago, com quem teve um namoro de infância e posteriormente se casou. O universo em que Capitu estava inserida era o mesmo de Luísa: um mundo definido conforme a ordem burguesa, delineada pelas mudanças acarretadas pela Revolução Francesa, a Revolução Industrial e o progresso. Capitu segue o protocolo ao se casar com Bentinho, salvando-se da exclusão social. Não se pode determinar, de fato, as reais intenções de Capitu, se ela se casou por amor ou por interesse, visto que tudo o que se tem sobre a história do romance é o que nos apresenta o narrador, Bentinho. Talvez não possamos nem mesmo avaliar os sentimentos de Bentinho, a não ser o ciúme, que é o único afeto evidentemente devotado à sua esposa até o final de sua vida. Aliás, o ciúme e a casmurrice, origem de seu apelido. Entretanto, mesmo que não se tenha certeza sobre os reais propósitos de Capitu, é inegável a conveniência do casamento para ela. Assim como Capitu, o próprio Machado de Assis é proveniente de origens mais humildes, o que o leva a se submeter ao favor concedido por homens pertencentes a posições sociais mais elevadas que a dele. Tanto o universo do senhor quanto o do agregado podem ser percebidos na vida de Machado, e inevitavelmente exerceram influência em sua obra. Em Dom Casmurro, notam-se valores estéticos orquestrados de acordo com a necessidade de se analisar o real apontando-se as falhas percebidas no conjunto social. Essas falhas se revelam tanto na figura do patriarca autoritário, quanto na experiência da esposa que, apesar de mostrar idéias mais independentes no início do romance, acaba sendo presa às estreitas normas do lar. Levando em consideração a leitura de Roberto Schwarz, que tem em Bentinho os olhos do patriarcado, podemos dizer que a reprovação feita a Capitu vinha quando algum ato seu sugeria que ela se desviava daquilo que se esperava de uma mulher, mesmo que o suposto ato não fosse confirmado. A desconfiança que Capitu provoca em seu marido corresponde ao cuidado que se tem para manter um grupo sob o domínio da ordem. A opressão é um recurso usado para que esse grupo não se desvie. Assim, Bento não é intransigente por sentir-se traído pela mulher que ama, mas por interpretar as atitudes excedentes de Capitu como um desvio, ou parte de sua infidelidade, portanto, como desonrosas, porque teme que escapem ao seu controle. Sendo ou não adúltera, como Bento acusa, o fator que mais a aproxima de Luíza é o universo de anulações governado por homens de que elas fazem parte, e que se fazia lembrado todo o tempo, tanto em O primo Basílio quanto em Dom Casmurro. Para Luíza, há Juliana lembrando-lhe de seus crimes, usando-os para chantageá-la. Para Capitu, há o próprio marido e narrador, que reproduzindo a voz da ordem, acusa-a de infiel, e guarda dela apenas seus traços de mulher manipuladora. Da mulher que estava obrigada a seus deveres, porém mais autônoma em seus pensamentos que a maioria, tudo o que Bento Santiago lembra em sua descrição da própria esposa são os “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”. O adjetivo “oblíqua” é sintomático: da índole de Capitu, o que Bento guardou foi sua obliqüidade, quando ela, como mulher, deveria ter sido sempre reta. Assim fala Roberto Schwarz sobre o narrador Casmurro e a idéia que faz de Capitu: A crer no próprio narrador, a virada em seu caráter data da sua decepção, da revelação de que Ezequiel é filho de Escobar. À luz dessa certeza – que o romance desautoriza – a independência moral e intelectual de Capitu, sem a qual Bentinho não teria escapado à batina, troca de feição e confirma as insinuações do começo. A mulher com idéias próprias tinha que dar em adultério e no filho do outro. O Casmurro agora se identifica ao conservadorismo a que mal ou bem se havia oposto no período anterior. (Schwarz, 2006, p.33) John Gladson (2008) observa que o narrador de Dom Casmurro nos mostra “um mundo muito conservador e atrasado”, como de fato era a sociedade da época. E é o mesmo mundo que Eça de Queiroz denuncia em O primo Basílio através das limitações e conflitos vividos por Luísa, e que condena a mulher a não poder fazer escolhas e não ter o direito de explorar sua própria sexualidade como bem deseja sem ser reprovada. Voltando à crítica de Machado. Seguindo as observações levantadas, podemos responder à pergunta que o autor fizera em seu artigo: “Como é que um espírito tão esclarecido, como o do autor [Eça], não viu que semelhante concepção era a coisa menos congruente e interessante do mundo?” Realmente, interessante é a última coisa que se pode dizer de um adultério, visto que essa prática vai totalmente de encontro à ordem estabelecida, altera toda a dinâmica daquele contexto. Por isso, Luísa não pode ser considerada um mero títere das circunstâncias, pois, tão oblíqua quanto Capitu é para Bentinho, desvia-se para um lado que jamais lhe foi permitido. Desse modo, podem-se unir Capitu e Luísa pelas limitações que as cercam e pela maneira como têm de se sujeitar ao casamento como único exercício legítimo de sua sexualidade e como único meio de serem incluídas. Apesar de reduzir Luísa a uma personagem sem complexidade suficiente para ser uma “pessoa moral”, Machado reconheceu seus conflitos ao situar Capitu no mesmo mundo patriarcal, delineando a personificação desse mundo na figura amargurada de Bento Santiago. E podemos dizer que ele entendeu a dura condição feminina ao construir o inquisidor de uma mulher. Ele nada volta a dizer sobre Luísa. Porém, chama de casmurrice toda a censura feita à esposa supostamente adúltera; talvez tenha acabado por enxergar, de fato, uma pessoa moral e cheia de densidade em Luísa, ao escrever a oblíqua e condenada personagem de Dom Casmurro. A diferença entre Machado e Eça está no narrador. Mas ambos têm um mesmo foco que dá a matéria-prima de suas enunciações: a crítica à classe dominante. Eça vai direto ao ponto, através de uma narrativa construída em terceira pessoa, aponta precisamente para a instituição falhada. Ao passo que Machado trabalha o mesmo foco por trás de sutilezas exploradas pela narrativa construída em primeira pessoa. Ou seja, sua crítica social é tênue e está trabalhada com base na personificação de seu próprio alvo, Bentinho; a ferida é detectada no Eu, não no Tu. Como representante do atraso, Bento é confrontado com Capitu, que apresenta um espírito mais arejado e moderno. Nesse sentido, a trajetória do casal imposta por Bento traduz aquela sociedade delineada pelos padrões do progresso, e que está sempre dando passos para trás. O discurso da classe dominante é usado contra si, para ser questionado e desconstruído. Assim, Bentinho, que simboliza a reprodução do poder, é usado para enfraquecer seu próprio discurso, não para reafirmá-lo. A narrativa de Machado pode ser identificada com o que Roland Barthes (2004) analisa em Aula: ele detecta o poder como entranhado em todo discurso, mesmo quando o discurso está fora do poder. A linguagem é o objeto em que o poder se inscreve. E a língua é a expressão desse poder. Então deve-se trapacear a língua para sabotá-la, escapando-se a ela. O talento de Eça nunca deixou deser reconhecido por Machado, nem mesmo em 1878, na crítica a O primo Basílio. Sendo que, em ocasião da morte de Eça, Machado voltou a chamá-lo de grande escritor. Complementando-o, podemos dizer que tanto Eça quanto Machado são grandes escritores por terem conseguido enxergar os defeitos da sociedade em que viveram e, sobretudo, por terem transformado suas observações em excelente literatura, cada um a sua maneira. Referências bibliográficas ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Prefácio de Jonh Gledson. São Paulo: Editora Globo, 2008. _________________. “O Primo Basílio de Eça de Queirós. Disponível em http://fredb.sites.uol.com.br/primo.html. Acesso em 27 abr. 2008. BARTHES, Roland. Aula. 12ª ed. Trad e posfácio Leila Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 2004. FIGUEIREDO, Mônica. “E[ç]as mulheres: um estudo da presença feminina na narrativa de Eça de Queirós.” In: Metamorfoses N. 7. Rio de Janeiro: Editorial Caminho & Cátedra Jorge de Sena, 2006. HAUSER, Arnold. História Social da Literatura e da Arte. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 2003. SCHWARZ, Roberto. Duas Meninas. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
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