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A casa de Bernarda Alba 38 A CASA DE BERNARDA ALBA. De: Federico García Lorca. Adaptação: Rafael Mallagutti. Personagens: Bernarda Alba; Pôncia; Angústias; Madalena; Amélia; Martírio; Adela; A criada; Josefa, a avó/ A mendiga/ A vizinha. (Interior da casa de Bernarda... Decoração austera. É uma casa rica decorada com móveis escuros... Um grande silêncio sombrio se estende por toda a cena deserta...Ouve-se o dobrar dos sinos. Aparece a criada, que estava ajoelhada de costas, limpando os móveis.) Criada Já tenho esses malditos sinos metidos na cabeça! Poncia (entra comendo pão com chouriço) Há mais de duas horas que não param com aquela cantilena! Vieram padres de toda a parte! A igreja estava linda... E logo no início da cerimônia a Madalena desmaiou... Criada Pobrezinha... É a que fica mais só. Poncia É a única que gostava do pai. Ah! Graças a Deus temos um pouquinho de sossego... Vim comer qualquer coisa antes que elas voltem. Criada Se a patroa te visse!... Poncia Por vontade dela, agora que não quer comer, morríamos todas de fome! Tirana! No fundo, é uma desgraçada! Veja (ela mostra o pedaço de chouriço) Pois roubei esse de sua arca de chouriços!!! Criada Pôncia... Porque não me dá um pra eu levar pra minha filha? Poncia Mas claro! E leva também uma mão-cheia de grãos... Ela hoje não dará falta de nada! Voz (Maria Josefa) – Bernarda! Poncia Lá está a velha! Você a trancou? Criada Dei duas voltas na chave! Poncia Então põe também a tranca! Os dedos dela parecem cinco garras. Voz Bernarda! Poncia Já vai! (Para a criada) Limpa bem a casa! Olha que se a Bernarda não encontra tudo como um espelho, me arranca os poucos cabelos que ainda me restam... Criada Que mulher! Poncia Tirana de todos os que vivem ao redor dela! Seria capaz de sentar-se em cima do teu coração e ficar um ano te vendo morrer sem deixar o sorriso frio que traz naquela maldita cara... Limpa, limpa esses vidros! Criada Já estou com as mãos sangrando, de tanto esfregar. Poncia Ninguém mais asseada do que ela! Ninguém mais honrada! Nenhuma mais senhora do que ela! Ganhou bem o descanso, o pobre marido! Criada Vieram todos os parentes ao enterro? Poncia Só os dela. A família do marido a odeia... Vieram ver se estava morto, fizeram o sinal da cruz e só. Criada As cadeiras lá fora são suficientes? Poncia Até sobram... Quem se importa? Que se sentem no chão! Desde que lhe morreu o pai nunca mais ninguém entrou debaixo destas telhas... Não quer que a vejam nos seus domínios. Maldita seja! Trinta anos eu lavando seus lençóis; trinta anos comendo suas sobras; noites perdidas quando ela tosse; dias inteiros a espreitar pelas frestas das janelas, a espiar a vida dos vizinhos, para depois lhe contar tudo o que se passa. Não temos segredos uma para a outra, mas mesmo assim, maldita seja! Ainda espero vê-la chorar lágrimas de sangue! Criada Credo, mulher! Duvido que fale por querer... Poncia É, você tem razão... No fim não passo de uma boa cadela; ladro quando me manda e mordo as canelas dos que lhe pedem esmolas... Mas um dia acabo por me fartar! Criada E nesse dia? Poncia Nesse dia me fecho com ela num quarto e fico lhe cuspindo um ano inteiro. “Bernarda: toma por isto!”, toma por aquilo!, toma por mais isto!” até deixá-la no chão como um lagarto pisado pelos garotos, que é o que ela é... Ela e toda a família. Sabes bem que não a invejo. Que tem ela? Cinco filhas feias. Tirando a Angústias, a mais velha, que é filha do primeiro marido e tem dinheiro, as outras, muitos paninhos bordados, muitas camisolas finas, mas quanto à herança: pão e laranjas. Criada Quem me dera ter o que elas tem! Poncia Nós temos braços pra trabalhar e uma cova lá na terra de verdade. Criada Que é a única terra que dão a quem nada tem! Poncia Limpa bem esse chão. Criada Chão esfregado com azeite, armários, floreiras, camas de ferro, para que bebam fel os que vivem em choupanas, com uma tigela e uma colher de pau. Queira Deus que nem um só fique para semente. (Os sinos voltam a tocar.) Bradem, bradem aos céus! Venha o caixão com fios de ouro e o pano negro para o levar! Como vais agora, também um dia irei eu. Apodrece, Antonio Maria Benavides, esticado no teu terno novo, com as tuas botas de montar. Apodrece! Nunca mais me levantarás as saias, atrás da porta do curral. (Rompe aos gritos.) Nunca mais verás estas paredes, nem tornarás a comer o pão desta casa! Fui a que mais te quis de todas as que te serviram. (Desesperando-se) E hei de continuar a viver depois de teres partido? Hei de continuar a viver?!? (Aparece Bernarda com as cinco filhas.) Bernarda (à criada) – Silêncio! Criada (chorando) – Senhora! Bernarda Menos gritos e mais obras. Devias ter a casa mais limpa para receber as visitas. Vai-te embora! O teu lugar não é aqui. (A criada sai chorando.) Os pobres são como os animais. Parecem feitos de outra carne. Adela Os pobres também sofrem. Bernarda Mas esquecem depressa as dores diante de um prato de feijão. Adela Não se pode viver sem comer... Bernarda Cala-te, menina! Na tua idade não se fala na presença das pessoas de respeito. Nunca permiti que me dessem lições. Sentem-se. ( Sentam-se.Pausa. Com voz forte) Não chores, Madalena! Se queres chorar, vai para o teu quarto, ouviste? (Pausa. Abanam-se todas.) Fizeram a limonada? Poncia Já estou trazendo... (entrando com uma bandeja cheia de copos brancos, que distribui)... Bernarda Serve os homens. Poncia Já estão bebendo lá no pátio. Bernarda Pois que saiam por onde entraram. Não quero que passem por aqui. Amélia (à Angústias)– O Pepe Romano ia no acompanhamento do funeral? Angústias Ia sim.... Martirio Não a dê atenção! Quem ia era a mãe... Ela só viu a mãe dele. Ninguém viu o Pepe Romano. Amélia (entrando) – Pareceu-me de longe que era mesmo... Martirio Não sei porque tomas tempo olhando o Pepe, Amélia... Adela Não entendo o que queres dizer... Bernarda Caladas, todas! As mulheres na igreja não devem olhar senão para um homem, o padre... E esse, porque tem saias. Virar a cabeça é buscar o calor do inferno! Entenderam? ...Louvado seja Deus! Todas (persignando-se) – Para sempre seja bendito e louvado! Bernarda Descansa em paz com a santa que tinhas á cabeceira! Todas Descansa em paz! Bernarda Com o Arcanjo Miguel e sua espada justiceira! Todas Descansa em paz! Bernarda Com a chave que tudo abre e a mão que tudo cerra. Todas Descansa em paz! Bernarda Com a nossa santa caridade e as almas da terra e do mar. Todas Descansa em paz! Bernarda Concede repouso ao teu servo Antonio Maria Benavides e dá-lhe a coroa da tua santa glória! Todas Amém. (Angustias aproveita para sair para o pátio. Poncia e a criada conversam ao lado, sem que ninguém as ouça) Criada Que Deus vos conserve, Bernarda, para rogardes pela alma de vosso marido (sai). Poncia E nunca te falte o pão quente, nem telhas que cubram as tuas filhas. (Aproximando-se de Bernarda.) Os homens mandam este dinheiro para os rituais. Bernarda Agradece-lhes e dá-lhes um copo de aguardente...(à Madalena que começa a chorar.) Chiu, Madalena! Silêncio já disse! Poncia (espiando na janela) – Já se vão... Bernarda Melhor assim... Ide, ide criticar tudo o que viram. Oxalá não torneis a passar tão cedo os umbrais desta porta! Poncia Não tens do que te queixar... Veio a aldeia em peso. Bernarda Sim, para me empestearem a casa de suor e peçonha! Adela Mãe, nem todos são assim! Amélia Não digas isso! Bernarda Pois assim o digo! É assim que se tem de falar neste maldito povo sem rio, onde se bebe sempre a água de um poço com medo que esteja envenenada. Martírio (desaprovando) - Olha como ficou a soleira da porta! Bernarda Pior do que se tivesse passado um rebanho de cabras. Poncia, limpe-o! Adela. dá-me um leque. Adela Tome, mãe. (dá-lhe um leque redondo com flores vermelhas e verdes.) Bernarda (atirando o leque no chão) – E isto é leque que se dê a uma viúva, Adela?! Vá me buscar umleque negro e aprende a respeitar o luto do teu pai. Martírio Tome o meu. Bernarda E tu? Martírio Senhora? Bernarda Tú? Martírio O que tem eu? Bernarda (ameaça um tapa na cara) Não me aborreças, Martírio. E teu leque? Martírio Não tenho calor... Bernarda Pois arranja outro, que bem hás de precisar. Porque nos oito anos que vai durar o luto não entrará nesta casa o vento da rua. Viveremos emparedadas, como se tivéssemos entaipado as portas e as janelas com tijolo. Assim aconteceu na casa do meu pai e na casa do meu avô. Durante esse tempo podereis bordar o enxoval. Tenho na arca vinte peças de linho para fazer os lençóis e as fronhas. Madalena pode bordá-los. Amélia Por que Madalena? Bernarda Não discuta! Madalena (chorosa) Tanto faz pra mim... Adela (azeda) Não borde os seus então, Madalena. Para os teus brilharem mais. Madalena Nem os meus nem os vossos. Tenho a certeza de que não me caso... Prefiro carregar sacos para o moinho... Tudo menos ficar sentada dias e dias nesta casa escura. Bernarda Quem mandou nascer mulher! Madalena Malditas sejam as mulheres! Bernarda Aqui só se faz o que eu mando. Acabaram-se as queixas ao teu pai! Para as mulheres, linha e agulha. Chicote e mula para os homens. Assim vive a gente de posses. (Adela sai) Voz Bernarda! Deixa-me sair daqui! Bernarda Soltem-na Criada (entrando) – Custei muito a prendê-la. Apesar dos oitenta anos, sua mãe é forte como um castanheiro. Bernarda Tem a quem sair. Meu avô também era assim. Criada Durante o enterro tive que lhe tapar a boca várias vezes com um saco, porque não parava de gritar, pedir que lhe desse ao menos água da esfrega para beber e carne de cão, que é o que ela diz que a senhora lhe dá... Martírio Minha avó tem maus instintos, está senil... Todas sabemos disso, não precisamos do seu discurso. Criada Tirou do cofre os anéis e os brincos de ametista, colocou-os e me disse que queria se casar. Bernarda Deixa-a desabafar lá no pátio. (Amélia e Madalena filhas riem.) Bernarda Vai com ela, mas tem cuidado, não a deixes chegar perto do poço. Amélia Não tenha medo, mãe... Ela não se atira... Bernarda Não é por isso...é que de lá as vizinhas podem vê-la da janela. (A criada sai. Adela entra) Martirio com intenção - Mãe, onde está a Angústias? Bernarda Adela, onde está tua irmã? Adela - com intenção - Eu a vi espreitando pela grade do portão. Os homens tinham acabado de sair... Martírio Se sabe isso é porque também estava no portão, Adela. Adela Fui ver se as galinhas tinham posto. Bernarda Mas os homens já tinham saído!? Adela Ainda estava um grupo parado lá fora. Bernarda (furiosa) – Angústias! Angústias! Angústias (entrando) – Que foi? Bernarda O que foste fazer? Quem estavas procurando? Angústias Eu... Bernarda Tu! Angústias Ninguém! Martírio Isso é mentira! Bernarda (avança e a esbofeteia) – Hipócrita! Dissimulada! Poncia (correndo) – Acalma-te, Bernarda! (Domina-a. Angústias chora.) Bernarda Todas daqui pra fora! (Saem.) Poncia Ela procedeu mal, mas não sabia o que estava fazendo. Confesso que também não gostei de vê-la ir para o pátio... Por isso pus-me atrás da janela para ouvir a conversa dos homens, que, como de costume, não se pode ouvir. Bernarda É pra isso que vem aos enterros. E de que falavam? Poncia Falavam da Paca Roseta. Ontem à noite amarraram o marido numa manjedoura e a levaram na garupa de um cavalo para o alto do olival. Bernarda E ela? Poncia Conformou-se. Dizem que seus seios estavam à mostra e que o Maximiliano a levava abraçada como se tocasse uma viola. Um horror! Bernarda E o que aconteceu? Poncia O que tinha de acontecer. Voltaram quase de dia. Paca Roseta trazia o cabelo solto e uma coroa de flores na cabeça. Bernarda É a única mulher vagabunda que temos na aldeia... Poncia Porque não é daqui. Veio de muito longe. E os que a levaram também não são filhos da terra. Os homens daqui não seriam capazes de fazer isso... Bernarda Não, mas gostam de ver e criticar... E lambem os beiços quando acontecem dessas coisas. Poncia Contaram muito mais coisas. Bernarda (olhando para um lado e para outro, com certo temor) – O quê? Poncia Tenho vergonha de dizer. Bernarda E Angústias ouviu? Poncia Sim... Bernarda Saiu às tias, umas dissimuladas pálidas que faziam olhos de carneiro mal morto às gracinhas de qualquer barbeiro. Ah, o que é preciso sofrer e lutar para que as pessoas sejam sérias e não caiam na boca do povo! Poncia As tuas filhas estão em idade de se casar e pouco trabalho te dão... A Angústias já deve ter passado dos trinta. Bernarda Trinta e nove feitos. Poncia Imagina! E nunca teve noivo. Bernarda (furiosa) – Nenhuma delas teve noivo, nem lhes faz falta! Podem muito bem passar sem noivo. Poncia Não quis ofender-te. Bernarda Não há em cem léguas ao redor quem se possa comparar com elas. Os homens daqui não são da estirpe delas. Querias que as desse a um qualquer? Poncia Devias ter ido com elas para outra terra. Bernarda Isso. Para vendê-las! Poncia Não, Bernarda, para mudar... É sabido que em outras terras seriam elas as pobres. Bernarda Cala essa língua de víbora! Poncia Contigo não se pode falar. Temos ou não temos confiança uma na outra? Bernarda Não temos! Tu me serves e eu te pago. Nada mais! Criada (entrando) – Está lá fora D. Arturo, que vem tratar das partilhas. Bernarda (à criada) – Vai limpar o pátio. (À Poncia) E tu, guarda a roupa do morto na arca grande. Poncia Podíamos dar algumas coisas... Bernarda Nada, nem um botão! Nem o lenço com que lhe tapamos a cara. (Sai lentamente e ao sair volta a cabeça e olha para as criadas, as quais saem depois. Entram Amélia e Martírio.) Amélia Tomaste o remédio? Martírio Para o que me há de servir remédio!... Amélia Mas tomaste? Martírio Estou fazendo as coisas sem fé... Como um relógio. Amélia Desde que veio o médico novo, andas mais animada... Martírio Impressão tua... Me sinto na mesma... Amélia Tu não choraste uma lágrima pelo pai... Martírio Amélia, cuides da tua vida... Amélia Não falei por mal... (silêncio de alguns segundos) A Adelaide não foi à igreja, reparaste? Martírio Já sabia que não iria... O noivo não a deixa sair, nem chegar sequer à soleira da porta. Antes a Adelaide era alegre; agora, nem pó de arroz põe na cara. Amélia Já não se sabe mais o que é melhor, ter noivo ou não. Martírio Tanto faz. Amélia A culpa de tudo isso são as más línguas, que não nos deixam viver sossegadas... A Adelaide deve ter passado maus bocados... Martírio Tu sabes a história de Adelaide, Amélia? O pai dela matou o marido da primeira mulher para poder se casar com ela. Mas logo a abandonou para fugir com outra, que tinha uma filha... E não tardou a seduzir essa filha... A mãe de Adelaide. Amélia E esse infame porque não está na cadeia? Martírio Porque os homens são homens! Encobrem-se uns aos outros e nunca denunciam essa pouca-vergonha. Amélia Mas a Adelaide não tem culpa do que se passou. Martírio Não... Mas as coisas se repetem. A vida não é mais do que uma repetição terrível. A Adelaide nasceu com a mesma sina da mãe e da avó, ambas mulheres do homem que lhe deu a vida. Amélia Há coisas espantosas! Martírio É preferível não ver nunca um homem... Desde pequena que tenho medo deles. Eu os via no curral tratando os bois, carregando nos ombros os sacos de trigo, sempre gritando... Graças a Deus sou fraca e feia e afasto os homens de mim... Amélia Não digas isso! O Henrique Humanas andou atrás de ti e isso bem que te agradava. Martírio Cale-se! Invenções! Uma vez esperei-o só de camisola, atrás da janela, até que o dia nasceu... O cretino me mandou dizer que vinha... Que vinha e não veio! Tudo intrigas! Não tardou a se casar com outra mais rica do que eu... Amélia E feia como um demônio! Martírio Que lhes importa a feiúra!? Aos homens o que lhes interessa é a terra, os bois e uma cadela submissa que lhes dê de comer. Amélia Ai, ai... (Entra Madalena.) Madalena Estão conversando? Martírio O que parece que estamosfazendo? Amélia Finalmente paraste de chorar. Madalena - para Martírio Pelo menos tenho lágrimas no corpo. Estou correndo pela casa para desentorpecer as pernas. Olhando os quadros da nossa avó, bordados em talagarça: o cãozinho de lã e o negro lutando com o leão, que tanto gostávamos quando pequenas... Naquele tempo a vida era mais alegre. Um casamento durava dez dias e não havia tanta maledicência. Hoje há mais luxo, as noivas põem véus brancos, como nos casamentos da cidade, e bebe-se vinho engarrafado... Mas, que adianta? Estamos aqui, apodrecendo... Com medo do que os outros dizem. Martírio Será que se vivêssemos em outros tempos estaríamos casadas? Amélia (para Madalena) – Os cordões do teu sapato estão soltos... Madalena Não me importa. Amélia Pode pisá-los e cair. Martírio Era uma a menos nesse convento... Amélia Martírio! Martírio Onde está a Adela? Madalena Ah! Pôs o vestido verde que lhe fizemos para usar em seu aniversário, entrou no galinheiro e começou aos gritos: “Senhoras galinhas, olhem para mim, olhem para mim!” Me deu uma vontade de rir! Martirio No dia do enterro do pai... Amélia Se a mãe a tivesse visto! Madalena Coitadinha! É a mais nova de todas nós e ainda não perdeu as ilusões. Daria tudo para vê-la feliz. (Pausa. Angústias atravessa a cena com umas toalhas nas mãos.) Angústias Que horas são? Já deve ser meio-dia. Angústias Tão tarde? Amélia Em ponto. (Angústias sai.) Madalena (com intenção) – Já sabem a novidade? (Aponta p/ Angústias saindo.) Amélia Não. Madalena Ora', ora! Martírio Não sei sobre o que estás falando... Madalena Vocês, as duas sabem melhor do que eu... É a história do Pepe Romano! Martírio Ah! E que sei eu de Pepe Romano... Madalena (arremedando-a) – Ah! Sabe sim! Na aldeia não se fala noutra coisa.O Pepe Romano vai se casar com a Angústias. Esta noite andou rondando a casa e creio que não tardará em pedir-lhe em casamento. Martírio (contrariada) Fico bem contente. É bom rapaz. Amélia (contrariada)Também eu. E a Angústias tem muitas qualidades. Madalena Parem de hipocrisia! Nenhuma de vocês ficou contente. É visível... Martírio já não sorri muito, agora tu, Amélia... Martírio Madalena! Por que não nos dá a dádiva do seu silêncio? Madalena Acalmem-se... Eu as entendo... Se a Angústias interessasse ao Pepe como mulher, talvez eu também sentisse alegria. Mas ele vem pelo dinheiro! Apesar de ser nossa irmã, temos de confessar, aqui em família, que está velha, doente, e sempre foi de nós todas a que teve menos encantos. Já aos vinte anos parecia um cabo de vassoura vestido. O que não será agora com quarenta! Amélia Bem... A sorte vem quando menos se espera. Martírio O que Madalena disse é a pura verdade! A Angústias herdou muito dinheiro do pai... É a única rica da casa. Martírio Agora que nosso pai morreu, não nos resta mais nada... Madalena O Pepe Romano tem vinte e cinco anos e é o homem mais bonito do lugar. O que seria natural é que pretendesse a ti, Amélia, ou à nossa Adela, que tem vinte anos, em vez de vir buscar o que há de mais triste nesta casa! Ah... Claro... Martirio... Martírio Pode ser que ele goste dela! Madalena Nunca pude com a tua hipocrisia! Martírio Nem eu com a tua. (Entra Adela com o vestido verde) Madalena Já te mostraste às galinhas? Adela Que querias tu que eu fizesse? Martírio Se a mãe te visse, arrastava-te pelos cabelos pra dentro! Adela Estava tão contente com o vestido! Pensava estreá-lo no dia em que fôssemos comer melancia à beira do rio. Não haveria com certeza outro igual. Amélia É um lindo vestido! Adela E fica-me tão bem! É o mais bonito que Madalena fez até hoje! Madalena E as galinhas, que te disseram? Adela Encheram-me de pulgas, que me picaram as pernas! ( Todas riem menos Martírio) Martírio Podes tingi-lo de preto, o que acha ? Ou melhor... Oferece o vestido à Angústias, para o dia das bodas com Pepe Romano. Adela (com emoção contida) – Mas o Pepe Romano...?! Madalena Não sabias? Adela Não. Madalena Pois ficas sabendo. Adela Mas isso não pode ser! Martírio O dinheiro pode tudo! Adela Por isso ela fugiu e foi espreitar pelo portão! (Pausa.) E esse homem é capaz de... Martirio É homem... É capaz de tudo! (Pausa.)Em que estás pensando, Adela? Adela Estou pensando que este luto me pegou no pior momento de minha vida. Não sei como hei de suportá-lo. Amélia Acabas por te acostumar. Adela (começando a chorar com raiva) – Não me acostumo. Não posso viver encurralada. Não quero ficar com as carnes mirradas como as vossas... Não quero perder a alvura da pele nesta prisão. Amanhã vou pôr o vestido verde e passear na rua. Quero sair daqui! Martírio Cala-te! O que é para uma, será para todas! (Adela acalma-se. Madalena olha para fora da cena) Madalena Por pouco a criada não te ouve. (Aparece a criada.) Criada O Pepe Romano vem pela rua... (Amélia e Madalena correm uma para a outra agitadas.) Madalena Vamos vê-lo! (Saem apressadamente.) Martírio (para Adela) – Ué? Não vai? Adela Quero lá saber!? Criada Quando ele der volta à esquina, da janela do seu quarto vê-se com certeza melhor. (A criada sai. Adela fica em cena, hesitante, mas logo depois corre para o quarto. Entram Bernarda e Poncia.) Bernarda Malditas partilhas! Poncia Com que dinheirão ficou a Angústias! Bernarda Sim. Poncia As irmãs... Ficaram com menos? Bernarda Já é a terceira vez que me dizes isso e eu não tenho querido responder. Bastante menos, muito menos. Não quero ouvir falar mais nisso. (Entra Angústias com a cara e cabelos arrumados.) Bernarda Angústias! Angústias Mãe. Bernarda Pois tiveste a coragem de pôr pó-de-arroz na cara? Tiveste a coragem de empoar a cara no dia da morte de teu pai?! (tapa) Angústias Não era meu pai. O meu morreu há muito tempo. Já não se lembra dele? Bernarda Deves mais a este homem, pai das tuas irmãs, do que ao teu. Graças a este homem a tua fortuna aumentou. Angústias Isso ainda é o que eu quero ver. Bernarda (avançando-lhe) – Mesmo que não fosse senão por decência, por respeito! Angústias Largue-me, mãe! Bernarda Largar-te? Só depois de tirar esse pó da tua cara! Dissimulada! És bem como as tuas tias! (tira-lhe, violentamente, o pó da cara.) Agora podes ir-te embora! Poncia Bernarda, não sejas tão impulsiva! Bernarda Apesar de minha mãe ser louca, eu estou no meu perfeito juízo e sei muito bem o que faço! (Entram todas.) Madalena Que foi que aconteceu? Bernarda Não aconteceu nada! Madalena (para Angústias) – Se estão discutindo sobre a partilha, tu, que és a mais rica, podes ficar com tudo... Angústias Devias cortar essa língua! Bernarda Não tenham ilusões! Não pensem que podem comigo! Até o dia em que saia morta desta casa, hei de mandar no que é meu e no que é vosso! (Ouvem-se gritos e entra em cena Maria Josefa, mãe de Bernarda. A criada em atrás, tentando detê-la.) Ma Josefa Bernarda, onde está a minha mantilha? Nada do que é meu quero que vá para as vossas mãos...Nem os anéis, nem os vestidos... Porque nenhuma de vocês há de se casar! Nenhuma! Bernarda, dá-me minha gargantilha de pérolas! Bernarda Para a criada, furiosa – Como a deixaste vir para cá? Criada (tremendo) – Fugiu-me! Ma Josefa Fugi porque quero me casar. Quero me casar com um jovem formoso, lá para as bandas do mar, já que os homens daqui fogem das mulheres! Bernarda Cala-te, mãe! Ma Josefa Não, não me calo! Não quero ver mais estas mulheres solteiras, suspirando pelo casamento, com o coração desfeito em pó. Quero ir viver na minha aldeia, Bernarda! Quero um homem para me casar e para me dar alegria! Bernarda Tranquem-na à chave! Ma Josefa Deixa-me ir, Bernarda! (A criada agarra Maria Josefa.) Ma Josefa Quero ir-me embora daqui, Bernarda! Quero casar-me lá para as bandas do mar, lá para as bandas do mar! (Todas saem para ajudar a levar a avó. Bernarda fica só. Vai até a porta por onde levaram a mãe... Volta e senta-se, abatida. A luz desce em resistência. Black-out. As filhas de Bernarda, menos Adela, voltampara a sala com os lençóis do enxoval. Sentam-se e costuram. Madalena borda. Poncia está com elas.) Angústias Já é o terceiro lençol que corto. Martírio É para a Amélia. Madalena Angústias, marco também as iniciais do Pepe? Angústias (seca) – Não. Madalena (gritando) – Adela, não vens? Amélia Se for ver, foi se deitar. Poncia Adela não anda boa... Tem qualquer coisa. Acho-a desassossegada, trêmula, assustada... Como se lhe tivesse entrado uma lagartixa no peito. Martírio Não anda nem melhor nem pior do que todas nós. Madalena Todas menos a Angústias. Angústias Eu, por mim, estou bem. E quem me invejar que se arrebente! Madalena (com ironia) – Não há dúvida de que foste sempre muito elegante e muito delicada. Angústias Graças a Deus,vou deixar este inferno... Madalena Sabe-se lá! Martírio Calem a boca as duas! O inferno só é maior porque vocês duas estão cá dentro (silêncio) Vamos mudar de conversa. Angústias E, além disso, mais vale ouro na arca do que beleza na cara. Madalena O que tu dizes, entra por um ouvido e sai pelo outro. Martírio Chega! Amélia (para Poncia) – Vai abrir a porta do pátio para ver se entra um pouco de ar fresco. (Poncia obedece.) Martírio Está muito quente... A noite passsada não consegui dormir, com o calor... Amélia Nem eu. Madalena Eu me levantei para tomar ar fresco...estava um céu de trovoada e até chuviscou. Poncia À uma da madrugada parecia que a terra pegava fogo. Também me pus de pé... A Angústias ainda estava na janela com o Pepe... Madalena (com ironia) – Tão tarde? A que horas ele se foi? Angústias Porque perguntas isso, se o viste? Amélia Foi aí por volta de uma e meia. Angústias Sim? Como sabes? Amélia Senti-o tossir e ouvi o cavalo. Poncia Pois eu ouvi-o sair, mas foi aí por volta das quatro da manhã. Angústias Não devia ser ele. Poncia Tenho a certeza. Amélia A mim também me pareceu. Madalena Que coisa tão esquisita! Poncia Diga lá, Angústias: que te disse ele na primeira vez que te falou à janela? Angústias Nada. Que me havia de dizer! A conversa de costume... Martírio Acho verdadeiramente estranho que duas pessoas que não se conhecem se vejam, e, de repente, já são noivos. Angústias Pois estamos muito bem com a situação. Amélia Como será que ele sabia que tu dirias sim, Angústias? Angústias Quando um homem vem falar com uma mulher à janela, já sabe de antemão, pelos que levam e trazem, que ela lhe dirá sim. Amélia Bem, mas teve de se declarar... Angústias Pois claro! Amélia (curiosa) – E como foi que te disse? Angústias Ora, como havia de ser: “Bem sabes que ando atrás de ti há muito tempo, que preciso de uma mulher bondosa, recatada, e não vejo outra senão tu... Se aceitares”. Amélia Essas coisas a mim me dão vergonha! Angústias A mim também, mas não se podem evitar... Poncia E não disse mais nada? Angústias Só ele que falou. Martírio E tu? Angústias Eu não podia, mesmo que quisesse. O coração saltava-me pela boca. Era a primeira vez que me encontrava sozinha, de noite, com um homem. Madalena E um homem tão simpático! Martírio É... Não é feio. Poncia Essas coisas assim só acontecem entre pessoas já com uma certa educação, que falam e conversam discretamente. A primeira vez que meu marido, Evaristo Collin, me veio à janela... Ah,ah,ah! Amélia Que aconteceu? Poncia A noite estava muito escura. Aproximou-se e, ao chegar ao pé de mim, deu-me as boas-noites. “Boas noites!”, lhe respondi eu, e ficamos calados mais de meia hora. O suor corria-me pelo corpo todo. Então o Evaristo foi-se chegando, foi-se chegando, que até parecia que queria meter-se pelas grades adentro, e disse-me baixinho: “Chega-te mais!” (Riem-se todas. Amélia levanta-se, corre e espreita pela porta.) Amélia Ai, pareceu-me mesmo que vinha aí a mãe! Madalena Estávamos bem arranjadas! (Continuam a rir.) Martírio Cuidado, que ela pode ouvir... Amélia Continue, Poncia... Poncia Depois, portou-se bem. Em vez de dar para outra coisa, deu para criar pintassilgos até a hora da morte. Vocês, que são solteiras, precisam saber que os homens, quinze dias depois de casados, trocam a cama pela mesa, e depois a mesa pela taberna... E as mulheres que não se conformam, que apodreçam a chorar pelos cantos! Amélia E tu te resignaste? Poncia Bem... Que mais podia eu fazer? Martírio É verdade que batias nele? Poncia Sim, pouco me faltou para o deixar aleijado. Madalena As mulheres deviam ser todas assim! Poncia Tenho a escola da tua mãe! Um dia ele me disse não sei o quê e não tive dúvidas: matei todos os pintassilgos de uma só vez! (Riem) Madalena Adela, vem cá, não percas isto! Amélia Adela! (Pausa.) Madalena Vou ver onde ela está. (Sai.) Poncia Aquela pequena não anda boa. Martírio Passa as noites sem dormir... Poncia Fazendo o quê? Martírio Sei lá o que faz! Poncia Deves saber melhor do que eu, pois dormes ao pé dela. Angústias Anda roída de inveja. Amélia Exageras... Angústias Lê-se nos seus olhos. Tem as vezes o olhar de louca! Martírio Não falemos de loucos nesta casa... É o único lugar em que não se deve pronunciar essa palavra. (Entram Madalena e Adela.) Madalena Não estavas dormindo? Adela Me dói o corpo todo. Martírio (intencionalmente) – Não dormiste bem esta noite? Adela Dormi. Martírio Então? Adela (violenta) – Deixa-me! Durma ou não durma não tens nada que te meter na minha vida! Quem manda no meu corpo sou eu! Martírio Já não pode uma pessoa interessar-se por ti? Adela Interesse ou curiosidade? Não estavam cosendo? Pois continuem. Quem me dera ser invisível para andar por essa casa sem que ninguém me visse e ninguém me perguntasse para onde ia!... Criada (entrando) – A senhora mandou chamá-las. Está lá fora o homem das rendas. (Saem. Ao sair Martírio olha fixamente para Adela.) Adela Não olhes para mim com essa cara atormentada! Se quiseres, dou-te os meus olhos que são bonitos, e os meus ombros para arrumares essa corcunda, mas, pelo amor de Deus, vira a cabeça quando eu passar. (Martírio sai.) Poncia Lembra-te de que é tua irmã e a que mais gosta de ti.. Adela Nunca me larga, é ressentida com tudo! Muitas vezes vai de noite espreitar-me no quarto, para ver se estou dormindo. Nem me deixa respirar. E sempre: “Que pena dessa cara!, que pena desse corpo que não vai ser de ninguém!” Isso não! O meu corpo há de ser de quem eu quiser. Poncia (com intenção e voz baixa) – Do Pepe Romano, hem?! Adela (sobressaltada) – Que dizes? Poncia Nem mais nem menos do que disse, Adela. Adela Cala-te! Poncia (em voz alta) – Então julgavas que eu não sabia? Adela Fala mais baixo! Poncia Deixa esses pensamentos! Adela Mas que sabes tu de mim? Poncia Nós, as velhas, vemos através das paredes. Onde vais de noite, quando te levantas? Adela Por que tu não és cega? Poncia Quando se trata do que se trata, até me crescem olhos na cabeça e nas mãos. Por mais que puxe pelo miolo, não sei aonde queres chegar. Porque te puseste quase nua, com a luz acesa e a janela aberta, quando o Pepe passou no segundo dia que veio falar com tua irmã? Adela Isso não é verdade! Poncia Não sejas tão criança! Deixa em paz a tua irmã, e, se o Pepe Romano te agrada, cala-te e sofre com resignação. (Adela chora.) Depois, quem te disse que ainda não podes vir a se casar com ele? A tua irmã é doente, não resiste ao primeiro parto. É estreita de cintura, velha... Sou eu que te digo com a minha experiência: morrerá. Então o Pepe fará o que fazem todos os viúvos desta terra: casará com a mais nova, a mais formosa, que és tu. Alimenta essa esperança, esquece-o, faz o que quiseres, mas não vás contra a lei de Deus... Adela Cala-te! Poncia Não me calo! Adela Mete-te com a tua vida, bisbilhoteira! Poncia Hei de ser a tua sombra! Adela Em vez de fazeres as tuas obrigações, de limpares a casa, de rezares de noite aos teus mortos, andas, como uma velha bruxa, a cheirar na vida dos homens e das mulheres, para os encheres de baba. Poncia Vigio, para que as pessoas não cuspam de nojo ao passar por esta porta. Adela Que amoré esse que te deu de repente pela minha irmã?! Poncia Para mim são todas iguais, mas quero viver numa casa séria. Não quero sujar a minha velhice! Adela São inúteis os teus conselhos... Já é tarde. Para apagar esse fogo que arde aqui dentro seria capaz de saltar por cima da minha mãe, quanto mais de ti, que és uma criada! Que podes ir dizer de mim? Que me fecho por dentro do quarto e não abro a porta? Que não durmo? Sou mais esperta do que tu! Poncia Não me desafies, Adela, não me desafies! Olha que eu posso gritar, acender as luzes, pôr os sinos a tocar a rebate. Adela Faze o que quiseres: podes cercar o curral, encher o chão de facas... Ninguém é capaz de evitar que aconteça o que tem de acontecer! Poncia Gostas assim tanto desse homem? Adela Quando o olho nos olhos parece que lhe bebo o sangue devagarinho. Poncia Não te quero ouvir mais! Adela Pois tens de me ouvir! Tinha medo de ti, mas agora sou mais forte do que tu! (Entra Angústias.) Angústias Estão sempre a discutir! Poncia - disfarçando. Sua irmã, quer por força que vá buscar-lhe não sei o quê à venda, com esse calor que faz... Veja só... Angústias Compraste-me o perfume? Poncia Do mais caro que há. E pó de arroz também. Pus tudo em cima da cômoda do teu quarto. (Angústias sai.) Adela E boca calada! Poncia Vamos ver! (Entram Martírio, Amélia e Madalena.) Madalena (à Adela) – Viste as rendas? Amélia As que Angústias comprou para os lençóis do casamento são muito bonitas. Adela (para Martírio, que traz umas rendas) – E essas? Martírio São para mim. Para uma camisola. Adela (com sarcasmo) – Dá vontade de rir! Martírio (intencionalmente) – São só para eu ver. Não preciso me fazer bonita para ninguém... Poncia Ninguém vê a gente de camisola. Martírio (com intenção, olhando p/ Adela) – Sabe-se lá! Por mim, gosto muito de roupa branca... E só a posso usar a noite, visto que de dia tenho que me colocar no vestido de luto. Vestir-me de branco à noite é um dos poucos prazeres que me restam na vida. Poncia Estas rendas são bonitas para toucas de crianças e vestidos de batizados. Infelizmente nunca tive dinheiro para comprá-las para as minhas. Vamos ver o que faz a Angústias, se as compra para as crianças dela. Madalena Pois ela que as vai costurar. Eu não vou dar um ponto... Amélia E eu muito menos criar os filhos das outras... Olha para as vizinhas do beco, sacrificadas por aqueles quatro moleques. Poncia São mais felizes do que vocês. Ao menos naquela casa ouve-se rir e chorar! Martírio Por que não vai trabalhar na casa delas, então? Poncia Prefiro ficar rindo aqui nesse convento! Martírio Parabéns, muito espirituosa! (Ouvem-se ao longe umas campainhas, muito distantes, como filtradas através de várias paredes.) Madalena São os homens que voltam do trabalho. Martírio Com este sol! Adela (sentando-se) – Ai, quem me dera pudesse passear por esses campos afora! Martírio (sentando-se) – Cada classe tem de fazer o que lhe compete. Madalena (sentando-se) – É assim mesmo! Amélia (sentando-se) – Ai! Queria ter nascido homem... Poncia Não há nada mais alegre do que o campo neste tempo. Ontem de manhã chegaram os ceifeiros. Quarenta ou cinqüenta rapagões. Madalena De onde vieram este ano? Poncia De muito longe. Vieram dos montes. E que alegres! Secos como árvores! Aos gritos e a atirar pedras! Já de noite chegou ao povoado uma mulher com um vestido de lantejoulas, dessas que bailam ao som de uma sanfona..e quinze dos rapazes levaram-na para o olival. Estive a vê-los de longe. O primeiro que falou com ela era um rapaz de olhos verdes, esbelto como um molho de trigo. Amélia Mas isso é verdade? Martírio É possível?! Poncia Há anos esteve por aqui outra da mesma laia, e fui eu mesma que dei dinheiro ao meu filho mais velho para que fosse com ela. Os homens precisam destas coisas... Adela Aos homens perdoa-se tudo... Amélia Nascer mulher é o pior castigo. Madalena Nem sequer os nossos olhos nos pertencem. (Ouve-se um canto longínquo que se vai aproximando.) Poncia São eles. Cantam canções tão lindas! Amélia Vão para a ceifa. Martírio E nem dão pelo calor! Ceifam no meio de labaredas. Adela Gostaria de ser ceifeira só para poder andar de um lado para o outro. Talvez assim esquecesse o que me dói... Martírio Que tens tu que esquecer? Adela Cada uma sabe da sua vida. Martírio (profunda) – Da sua vida!... Adela Vamos vê-los da janela do meu quarto. Poncia Tomem cuidado, não abram muito a janela, que eles podem dar um empurrão para ver quem está espreitando. (Saem Poncia, Adela e Madalena. Martírio parece mal) Amélia (aproximando-se dela) – Que tens? Martírio Sinto-me mal com o calor. Amélia É só isso? Martírio Estou desejosa de que chegue novembro, os dias de chuva, a geada, tudo o que não seja este verão interminável... Amélia Há de passar e voltar outra vez. Martírio Isso é óbvio... Me fale uma coisa... A que horas adormeceste ontem à noite? Amélia Não sei. Durmo como uma pedra. Porquê? Martírio Por nada. Ouvi pessoas no curral. Amélia A noite? Martírio Alta noite. Amélia E não tiveste medo? Martírio Não. Ouço quase todas as noites. Amélia Devíamos ter mais cuidado. Não são os peões? Martírio Os peões chegam às seis. Amélia Talvez seja a mulinha brava. Martírio (entre dentes e cheia de intenções) – Sim, sim, uma mulinha brava. Amélia Temos de avisar a mãe! Martírio Não, não. Não digas nada. Pode ser uma suspeita minha, sem razão. Amélia Talvez. (Pausa. Amélia vai para sair.) Martírio Amélia. Amélia (à porta) – Que é? Martírio Nada. (Pausa.) Amélia Porque me chamaste? ( Pausa.) Martírio Foi sem querer. Saiu-me da boca. Vai fazer o que tens de fazer! (Pausa.) Amélia Deita-te um bocadinho. Posso me deitar junto a tí... (Com intenção) Angústias (entrando em cena furiosa, de modo que faça um grande contraste com os silêncios anteriores) – Onde está o retrato do Pepe que tinha debaixo do meu travesseiro? Qual de vocês o pegou? Martírio E eu que sei?! Amélia Nem que o Pepe fosse um Santo Bartolomeu de prata! Angústias Onde está o retrato? (Entram Poncia, Madalena e Adela.) Adela Que retrato? Angústias Foi uma de vocês que escondeu! Madalena Tens a pouca-vergonha de dizer isso? Angústias Estava no meu quarto e não está mais! Martírio E não terá fugido à meia-noite para o curral? O Pepe gosta de andar ao luar... Angústias Deixa de brincadeiras! Quando ele vier, hei de contar-lhe tudo. Poncia Não, não é preciso. (Olhando para Adela.) O retrato há de aparecer! Angústias Ordeno saber qual de vocês o tem! Adela (olhando para Poncia) – Todas menos eu! Martírio (com intenção) – Por que está se sentindo acusada, irmã? Bernarda (entrando) – Que escândalo é este na minha casa, no momento mais sossegado do dia? A esta hora já os vizinhos estão de ouvido à escuta. Angústias Roubaram-me o retrato do meu noivo. Bernarda (furiosa) – Quem? Quem? Angústias Uma delas! Bernarda Quem foi? (Silêncio.) Respondam! (Silêncio. Para Poncia) Revista os quartos e revolve as camas. A culpa é minha, porque as devia manter em rédeas mais curtas. Isto é uma vida de pesadelo! (À Angustias) Tens certeza?!? Angústias Certeza absoluta! Bernarda Procuraste-o bem? Angústias Sim, mãe. (Todas estão de pé, em meio a um silêncio embaraçoso.) Berbarda Vou ter o fim de vida mais amargo e envenenado que uma mãe pode ter. (A Poncia) Não o encontraste? Poncia (entrando) – Está aqui. Bernarda Onde o encontraste? Poncia Estava... Bernarda Não tenhas medo de dizer. Poncia (com espanto) – Entre os lençóis da cama de Martírio. Bernarda (à Martírio) – É verdade? Martírio -(calma, enfrentando) É verdade! Sim, é verdade! Bernarda (avançando para ela e batendo-lhe) – Merecias tanta bofetada nessa cara, mosca morta! És a minha vergonha! Martírio (feroz) – Não me bata, mãe! Bernarda Bato e torno a bater! Martírio (Amélia a segura) Se eu deixar, ouviu?! Largue-me! Bernarda Não faltes ao respeito à tua mãe! Angústias (segurando Bernarda) – Deixe-a, porfavor! Bernarda Nem sequer tens lágrimas nesses olhos! Martírio Não vou chorar só para lhe dar prazer. Bernarda Porque lhe tiraste o retrato? Martírio (cínica) Já não posso fazer uma brincadeira com minha irmã? Para quê eu o iria querer? Adela Não foi brincadeira, porque tu nunca gostaste de brincar. Foi outra coisa, que trazias há muito tempo no coração e acabou por sair pra fora... Porque não dizes francamente o que é?! Martírio Cala-te e não me faças falar, que se abro a boca até as paredes caem de vergonha! Adela A língua má tudo é capaz de inventar! Bernarda Adela! Madalena Estão doidas! Amélia E insultam-nos com maus pensamentos. Martírio Outras fazem coisas piores... Podem ter certeza! Angústias Não tenho culpa nenhuma de que o Pepe goste de mim... Adela Pelo teu dinheiro! Angústias Mãe! (No chão) Bernarda Calem-se! Martírio Pelas tuas terras e pelos teus bois. Madalena Só por isso! Bernarda Já disse que se calem! Eu bem via crescer a tormenta, mas não acreditava que estourasse tão cedo. Ai, que ódio vocês lançam sobre o meu coração! Mas ainda não estou tão velha e tenho forças para manter a ordem nesta casa construída por meu pai para que nem as ervas saibam da minha desgraça! Fora daqui! (Saem. Bernarda senta-se, desolada. Poncia está de pé,encostada à parede.) Bernarda (reage, bate com o pé no chão) – Tenho de segurá-las bem! Bernarda, acorda, que é essa a tua obrigação! Poncia Posso falar? Bernarda Fala. Lamento que tenhas ouvido o que ouviste. Uma estranha não deve assistir a estas questões de família. Poncia Agora, paciência... Bernarda Angústias tem de se casar sem perda de tempo. Poncia Sim.Tem de sair desta casa. Bernarda Ela não. Ele! Poncia Tens razão. Ele é que precisa ser afastado daqui. Pensas bem. Bernarda Não penso. Há coisas que não se podem nem se devem pensar. Ordeno! Poncia E acreditas que ele se vá embora? Bernarda (levantando-se) – Que está essa tua cabeça a imaginar? Poncia É claro que acabará por se casar com a Angústias... Bernarda Fala, já te conheço bem para saber que estás de navalha aberta. Poncia Nunca pensei que chamasses crime a uma prevenção amiga. Bernarda Queres dizer-me alguma coisa? Poncia Não gosto de acusar ninguém, Bernarda. Só te digo: abre os olhos e vê. Bernarda Mas ver o quê? Poncia Foste sempre muito esperta. Vias o mal à cem léguas de distância; às vezes até parecia que adivinhavas os pensamentos. Mas os filhos são os filhos. Agora estás cega. Bernarda Queres referir-te à Martírio? Poncia Sim, à Martírio...(com curiosidade) Porque terá escondido o retrato? Bernarda (querendo defender a filha) – Disse que foi por uma brincadeira. Que outra coisa poderia ser? Poncia (com manha) – Acreditas nisso? Bernarda (enérgica) – Não acredito! Foi assim! Poncia Pronto, não se fala mais. Trata-se de ti. Mas se fosse com o vizinho da frente, que seria? Bernarda Lá estás tu a espetar a navalha! Poncia (sempre com crueldade) – Bernarda: aqui está acontecendo alguma coisa de extraordinário. Não te quero lançar a culpa, mas tu não deste liberdade às tuas filhas. Martírio é namoradeira, digas lá o que disseres. Porque não a deixaste se casar com o Henrique Humanas? Porque é que no mesmo dia em que estava combinado dele vir falar-lhe à janela lhe mandaste recado para que não viesse? Bernarda Tornava a fazê-lo mil vezes. O meu sangue não se junta ao dos Humanas enquanto eu for viva. O pai era um qualquer! Poncia Não perdes a pose. Bernarda Tenho-a porque a posso ter. E tu não a tens porque sabes muito bem qual é a tua origem. Poncia (com ódio) – Não mo recordes. Já sou uma velha. Sempre fui grata à tua proteção. Bernarda (altiva) – Não parece! Poncia (com ódio disfarçado em suavidade) – Martírio há de esquecer isto. Bernarda Se não esquecer, pior para ela. Não acredito nessa tal “coisa extrordinária” que acontece nesta casa. Aqui não está acontecendo nada. Isso querias tu! E se um dia alguma coisa acontecer, fica certa de que não atravessará estas paredes! Poncia Lá isso eu não sei. Na aldeia há mais quem saiba ler no pensamento dos outros. Bernarda Ah, como gozarias se nos visses, a mim e às minhas filhas, no meio das mulheres perdidas! Poncia Ninguém sabe o seu destino! Bernarda Pois eu sim, eu sei o meu! E o das minhas filhas! Poncia Talvez seja melhor eu não me meter em nada. Bernarda É isso o que deves fazer. Trabalhar e boca calada. É essa a obrigação dos que trabalham para os outros. Poncia Mas não pode ser. Não achas que o Pepe estaria melhor casado com a Martírio ou...sim, com a Adela? Bernarda Não me parece! Poncia Adela. Essa, sim, é que é a verdadeira noiva do Pepe! Bernarda As coisas nunca correm ao nosso gosto. Poncia Mas custa muito uma pessoa não seguir a sua verdadeira inclinação. A mim parece-me mal ver o Pepe com a Angústias! E a toda a gente! Até ao ar! Quem sabe o que virá a acontecer... Bernarda Lá estás tu outra vez!... Sempre com insinuações para me envenenares o sono. Não quero entender-te, porque, se chegasse a alcançar tudo o que me dizes, teria de te arranhar! Poncia O sangue não havia de chegar ao rio! Bernarda Felizmente as minhas filhas respeitam-me e nunca desobedecerão à minha vontade. Poncia Hás de ser sempre a mais valente. Bernarda Medo nunca tive! Poncia O que são as coisas! Naquela idade!...O entusiasmo de Angústias pelo noivo, só visto! E ele também parece muito apaixonado. Ontem, contou-me o meu filho mais velho que às quatro e meia da madrugada, quando vinha com os bois, ainda estavam conversando. Bernarda Às quatro e meia?! Angústias (entrando) – É mentira! Poncia Foi o que me disseram. Bernarda (à Angústias) – Explica-te! Angústias O Pepe há mais de uma semana que se vai embora à uma. Que Deus me mate se minto! Martírio (entrando) – Eu também o ouvi partir às quatro e meia. Bernarda Mas viste-o com os teus olhos? Martírio Não sou de espreitar... Vocês não falam agora à janela do beco? Angústias Falamos à janela do meu quarto. ( Adela aparece à porta.) Martírio Então... Bernarda O que está acontecendo nesta casa? Poncia Vê se descobres! A verdade é que às quatro da madrugada o Pepe estava numa das grades da tua casa. Bernarda Tens a certeza do que afirmas? Poncia De nada se tem a certeza na vida! Adela Mãe, não dê ouvidos a quem nos quer perder a todas! Bernarda Hei de saber tudo! E se alguém na aldeia me quiser levantar falsos testemunhos, terá de se haver comigo! Não se fala mais neste assunto. As vezes parece vir uma onda de lama para nos perder! Martírio Não sei mentir. Poncia Não há fumaça sem fogo. Alguma coisa acontece. Bernarda Não há de ser nada! Nasci para ter os olhos abertos. E de hoje em diante não tornarei a fechá-los até a hora da minha morte!!! Angústias Tenho o direito de saber. Bernarda Não tens outro direito senão o de obedecer. Não dou ouvidos à intrigas. (À Poncia) E tu, mete-te na tua vida! Nesta casa não se dará mais um passo sem que eu saiba! Criada (entrando) – Ao cimo da rua há um grande ajuntamento e todo o povo está às portas. Bernarda (à Poncia) – Vai ver o que é! (As filhas precipitam-se para sair) Aonde vão?Já sabia que eram janeleiras, mas lembrem-se que estamos de luto! Para o pátio! (Saem todas e Bernarda. Ouve-se um rumor longínquo. Entram Martírio e Adela, que ficam à escuta, sem se atreverem a dar um passo além da porta da saída.) Martírio Estás em minhas mãos! Agradece a Deus que eu não tenha dado com a língua nos dentes. Adela Também eu teria falado. Martírio Para dizer o quê? Que eu quis algo? Querer não é fazer! Adela Só faz quem pode e quem ousa. Tu querias, mas não pudeste. Martírio Isso não vai durar muito tempo, ouviste? Adela Há de ser só meu! Martírio Hei de arrancar-te dos braços desse homem! Nem que seja a última coisa que eu faça! Adela (suplicante) – Por favor, Martírio! Martírio Ele não será de nenhuma de nós! Adela Ele quer me levar para a casa dele! Martírio Vi que ele te beijou! Adela (suplicante) - Eu não queria... Foi como se me arrastassempor uma corda. Martírio Poderia mesmo, ter te arrastado! Antes tivesse morrido! (Madalena e Angústias espreitam. Sente-se crescer o tumulto.) Poncia (entrando com Bernarda) – Bernarda! Bernarda O que aconteceu? Poncia A filha solteira da Librada teve um filho não se sabe de quem. Adela Um filho? Poncia E para ocultar a vergonha matou-o e escondeu-o debaixo de umas pedras; mas os cães, com mais coração do que muitas pessoas, deram com ele e, como se levados pela mão de Deus, foram colocá-lo na soleira da porta. Agora querem matá-la! Trazem-na de arrasto pela rua abaixo, e os homens vem correndo pelos atalhos do olival, dando gritos que fazem estremecer os campos! Bernarda Sim, venham todos com varas das oliveiras e os cabos das enxadas! Venham todos matá-la! Adela Não, não. Matá-la, não! Martírio Sim! E vamos todas ver! Bernarda Que morra a que espezinhou a honra! (Fora ouve-se um grito de mulher e um grande rumor.) Adela Deixem-na fugir. Não saiam daqui! Martírio (olhando para Adela) – Tem de pagar pelo que fez! Bernarda Acabem com ela antes que cheguem os guardas! Ponham-lhe carvões a arder no lugar do seu pecado! Adela (deitando as mãos ao ventre) – Não! Não! Bernarda Matem-na! Matem-na! (Black-out.) (No centro da cena, uma mesa com um candeeiro de petróleo, onde estão comendo Bernarda e as filhas. Poncia serve-as. Prudência está sentada numa cadeira afastada da mesa. Ouve-se só o ruído dos talheres nos pratos.) Prudência Vou-me embora. Já vos fiz uma grande visita. (Levanta-se.) Bernarda Fica mais um bocado, mulher. A gente se vê tão pouco! Prudência Já ouviram o último toque para o rosário? Poncia Ainda não. ( Prudência senta-se.) Bernarda E o teu marido como vai? Prudência Na mesma. Bernarda Também nunca se vê. Prudência Bem sabes como ele é. Desde que se zangou com os irmãos, por causa das partilhas, nunca mais saiu de casa pela porta da rua. Põe uma escada e salta o muro do curral. Bernarda É um homem às direitas!...E como vai isso com a tua filha? Prudência Não há maneira de lhe perdoar. Bernarda Faz muito bem! Prudência Mas me mortifica não perdoar minha própria filha... Bernarda Uma filha que desobedece deixa de ser filha para se tornar numa inimiga. Prudência A única consolação que tenho é ir à igreja. O pior é que a vista cada vez me falta mais, e logo nem isso poderei fazer. (ouve-se uma pancada estrondosa nas paredes.) Que foi isto? Bernarda É o cavalo garanhão aos coices na parede. (Gritando) Soltem-no no curral. (Em voz baixa.) Deve estar ardendo de calor. Prudência Vais-lhe dar as potras novas? Bernarda Logo de manhã. Bernarda Queres um bocado de queijo e mel? Prudência Ando com fastio. ( Ouve-se outra pancada na parede.) Poncia Santo Deus! Prudência Até me tremeu o coração! Bernarda (levantando-se, furiosa) – Preciso dizer as coisas duas vezes?! Soltem-no e deixem-no espojar-se na palha! (Pausa. Como se falasse aos peões.) Fechem as portas da cavalariça e larguem-no, se não deita as paredes abaixo! (Dirige-se à mesa e senta-se outra vez.) Que vida a minha! Prudência Trabalhas como um homem! Bernarda De manhã até a noite! (Adela levanta-se da mesa.) Aonde vais? Adela Beber água. Bernarda (em voz alta) – Tragam água fresca! (À Adela) Podes sentar-te. (Adela senta-se.) Prudência E a Angústias, quando casa? Bernarda O pedido deve ser feito dentro de três dias. Prudência Estás contente? Angústias Porque não havia de estar?! Amélia (à Madalena) – Entornaste o sal. Madalena Pior sorte do que a tua não pode haver. Amélia Dá azar! Bernarda Então, meninas! Prudência (à Angústias) – Já te deu o anel? Angústias Quer ver? (Estendendo-lhe a mão.) Prudência É uma beleza. Três pérolas. No meu tempo as pérolas queriam dizer lágrimas. Angústias Mas as coisas mudaram muito. Adela Isso sim! Significam o que sempre significaram... Os anéis das noivas devem ser de diamantes. Prudência É mais próprio. Bernarda Com pérolas ou sem pérolas, as coisas são sempre o que uma pessoa quer que sejam. Martírio Ou como Deus as dispõe. Prudência Disseram-me que os móveis são um encanto. Bernarda Me custaram um bom dinheiro. Poncia Para mim o mais bonito é o armário de espelho. Prudência Nunca vi um móvel desses. Bernarda Nós ainda somos do tempo das arcas. Prudência O principal é que sejam felizes. Adela Nunca se sabe. Bernarda Não vejo motivo nenhum para que não o sejam! (Ouvem-se sinos ao longe.) Prudência O último toque. (Para Angústias) Qualquer dia passo aqui para me mostrares o enxoval. Angústias Quando quiser. Prudência Boas noites nos dê Deus. Bernarda Adeus, Prudência. As filhas Vá vossemecê com Deus. (Pausa. Prudência sai.) Bernarda Podem se levantar. ( Levantam-se.) Adela Vou até o portão desentorpecer as pernas e tomar um pouco de ar. (Madalena senta-se e recosta-se próximo à parede.) Martírio Vou contigo. Adela (com ódio contido) – Descanse que não me perco. (Saem. Amélia também sai. Bernarda senta-se e Angústias arruma a mesa.) Bernarda Já te disse que quero que fales com a tua irmã Martírio. A história do retrato não passou de uma brincadeira que deves esquecer. Angústias A mãe bem sabe que ela não gosta de mim. Bernarda Cada um sabe o que lhe vai no coração. Não me meto nas almas dos outros. Mas exijo boa cara e harmonia na família. Entendeste? Angústias Sim, mãe. Bernarda Melhor assim. Madalena (quase dormindo) – De mais a mais, não tardas a sair desta casa. (Adormece.) Angústias Parece que nunca mais chega esse dia! Bernarda Até que horas estiveste a falar com o Pepe ontem à noite? Angústias Até a meia-noite e meia. Bernarda Que te conta ele? Angústias Acho-o distraído. Fala-me sempre como se estivesse pensando em outra coisa. E quando lhe pergunto o que tem, só me responde: “ A vida dos homens é cheia de preocupações.” Bernarda Não lhe deves fazer perguntas. E depois de casar muito menos. Responde quando ele te falar e olha-o quando ele te olhar. Assim evitarás muito desgosto. Angústias Mãe, tenho a impressão de que ele me esconde alguma coisa. Bernarda Não tentes saber o que é, nem lhe perguntes. E principalmente, que nunca te veja chorar. Angústias Devia sentir-me feliz e não me sinto. Bernarda Isso é o de menos. Angústias As vezes olho para o Pepe e parece que o vejo sumir por entre as grades da janela, como se de repente o escondesse uma nuvem de pó, como as que levantam os rebanhos a passar. Bernarda Isso é fraqueza. Angústias Oxalá assim seja! Bernarda Ele vem cá esta noite? Angústias Não. Foi à cidade com a mãe. Bernarda Ainda bem, para nos deitarmos mais cedo. Madalena! Angústias Adormeceu. (Entram Adela e Martírio) Amélia Que noite tão escura! Adela Não se vê a dois passos de distância. Martírio Grande noite para os ladrões... E para quem precisa esconder-se... Adela Que impressão me fez o cavalo! Todo branco! Parecia ter o dobro do tamanho e iluminava a escuridão. Amélia É verdade. Metia medo, como uma aparição. Adela As estrelas do céu são grandes como punhos! Martírio A Adela pôs-se a olhá-las de tal maneira que por pouco não torcia o pescoço. Adela Não gostas das estrelas? Martírio A mim as coisas que acontecem acima das telhas são indiferentes. Bem me basta o que acontece dentro das casas. Adela Tu lá sabes?! Bernarda Cada um tem o seu feitio. Ela pensa de uma maneira e tu pensas de outra. Angústias Boas noites. Adela Já te vais deitar? Angústias Vou. O Pepe não vem hoje.(Sai.) Amélia Eu prefiro fechar os olhos para não ver as estrelas. Adela Eu não. Gosto de ver palpitar cheio de lume o que está quieto e quieto, anos e anos! Martírio Essas coisas nada tem a ver com a nossa vida. Bernarda O melhor é não pensar nelas. Adela Que noite tão bonita! Quem me dera poder ficar até tarde e gozar o ar fresco do campo! Bernarda Mas temos que nos deitar... Madalena! Amélia Está no segundo sono. Martírio Madalena! Madalena (sonada e rabugenta) – Deixem-me em paz! Bernarda Para a cama! Madalena (levantando-se mal humorada) – Não deixam uma pessoasossegada! (Sai resmungando.) Amélia Boas noites.(Sai.) Bernarda Despachem-se vocês também. Martírio Porque é que o noivo da Angústias não vem cá esta noite? Bernarda Foi à cidade. Martírio (olhando para Adela) – Ah! Adela Até amanhã. (Sai. Martírio bebe água e sai lentamente, olhando para os lados do curral.) Poncia (entrando) – Ainda estás aqui? Bernarda A gozar este silêncio, e sem conseguir ver a tal “coisa extraordinária” que acontece nesta casa. Poncia Bernarda, deixemos essa conversa. Bernarda Nesta casa o que se passa é claro como a água, graças à minha vigilância! Poncia Por fora parece que não acontece nada, lá isso é verdade. As tuas filhas vivem como se estivessem féchadas em armários. Mas nem tu nem ninguém pode saber o que se passa nos corações delas. Bernarda As minhas filhas tem a consciência limpa! Poncia Isso é contigo, que és mãe delas. A mim basta-me o trabalho da casa. Bernarda Nos últimos tempos tens andado muito calada. Poncia Ponho-me no meu lugar, e assim vivo em paz. Bernarda O teu filho ainda continua a ver o Pepe às quatro da manhã?Ainda rosnam do que se passa nesta casa? Poncia Não tenho ouvido dizer nada. Bernarda Porque não podem. Porque não encontram onde morder. Graças aos meus olhos, que tudo vêem! Poncia Bernarda,eu não quero falar porque tenho medo do teu gênio. Mas no teu lugar não estaria tão sossegada.. Bernarda Aqui não está acontecendo nada. Estou sempre de olhos abertos. Nada me escapa. Poncia Nesse caso, melhor para ti. Bernarda Não faltava mais nada! Criada (entrando) – Já acabei de limpar os pratos. Manda mais alguma coisa? Bernarda (levantando-se) – Não. Vou descansar. Poncia A que horas queres que te chame? Bernarda Não é preciso. Esta noite vou dormir de um sono só.(Sai.) Poncia Quando uma pessoa não tem coragem para encarar o perigo, o mais fácil é voltar-lhe as costas. Criada Não há pior cegueira do que a daqueles que não querem ver. É tão orgulhosa! Poncia Não posso fazer mais do que fiz. Pensei que cortava o mal pela raiz, mas acabei por lhe ganhar medo. Repara neste silêncio. Pois em cada quarto está escondida uma tormenta. No dia em que todas estourarem, será o fim do mundo. Por mim já disse o que tinha a dizer... Criada A Bernarda julga tê-las sob seu domínio; mas nem imagina o poder de um homem entre mulheres que vivem sós. Poncia A culpa não é só do Pepe Romano. Verdade que no ano passado andou atrás da Adela, que parecia louca por ele. Mas a pequena devia pôr-se no seu lugar e não o provocar. Um homem sempre é um homem! Criada Há quem diga que conversaram muitas vezes. Poncia É verdade. (Em voz baixa) E ainda outras coisas, que não digo. Criada Nem quero pensar no que pode acontecer. Poncia Por minha vontade fugia e deixava esta maldita casa! Criada A Bernarda anda apressando o casamento, e é possível que não aconteça nada. Poncia As coisas já chegaram a tal estado! A Adela está resolvida a tudo e as irmãs não lhe tiram os olhos de cima. Criada Martírio... Poncia É a pior de todas. Um poço de veneno! Acha que se não pode ser feliz, ninguém mais pode. Criada São todas muito cruéis! Poncia São mulheres sem homem, e basta! Nestas ocasiões até o sangue se esquece. Chiuuuu.(Põe-se a escutar.) Criada Que é? Poncia (levantando-se) – Não ouves os cães a ladrar?! Criada Deve ser alguém que entrou pelo portão. (Entra Adela em saias brancas e corpete.) Poncia Julgava que já estivesses na cama. Adela Venho beber água. (Bebe de um copo que está na mesa.) Poncia Pensei que estivesses dormindo. Adela Acordei cheia de sede. Vocês não se vão deitar? Criada Íamos agora mesmo. (Adela sai.) Poncia Vamos. Criada Ganhamos bem o sono. A Bernarda não me deixa parar durante o dia inteiro. Poncia Leva a luz. Criada Os cães parecem doidos. Poncia Esta noite não nos vão deixar dormir. (Saem. A cena fica quase às escuras. Maria Josefa entra devaneando) Ma Josefa Bernarda, cara de leoparda. Madalena, cara de hiena. Ovelhinha! Mééé, méééé. Vou lavar as tuas fraldas à fontinha de Belém. (Sai cantando. Entra Adela. Olha para um lado e para o outro sem fazer ruído e desaparece pela porta do curral. Entra Martírio por outra porta e fica a espreitar com Angústias, no meio da cena. Também vem de saia branca. Cobre-a um pequeno xale negro. Maria Josefa entra e passa diante dela.) Martírio Aonde vai, mulher? Ma Josefa Vais-me abrir a porta? Quem és tu? Martírio Como veio parar aqui? Ma Josefa Fugi. Quem és tu? Martírio Vá-se deitar! Ma Josefa És a Martírio, bem vejo. Martírio, cara de Martírio, vida de martírio. Quando é que tens um filho? A mim nasceu-me este. Martírio Onde foi buscar essa ovelha? Ma Josefa Bem sei que é uma ovelha. Mas porque é que uma ovelha não há de ser um menino?Antes ter uma ovelha do que não ter nada. Bernarda, cara de leoparda. Madalena, cara de hiena. Martírio Não grite tanto! Ma Josefa Tens razão. Está tudo tão escuro! Como tenho o cabelo todo branco, pensas que não posso ter filhos... Sim, filhos, filhos e mais filhos. Este há de ficar com o cabelo branco e ter um menino, que por sua vez terá outro, e todos com o cabelo de neve, e seremos tal qual as ondas do mar, umas atrás das outras, umas atrás das outras. Depois, todos sentadinhos, com o cabelo muito branco, ficaremos como a espuma. Porque não há aqui espumas! Aqui só há vestidos de luto! Martírio Cale-se, cale-se! Ma Josefa O Pepe Romano é um gigante !Vocês todas o querem. Mas ele acaba por devorá-las, porque vocês não passam de grãos de trigo. Grãos de trigo não, não. Sapos sem língua! Martírio Então, vá para a cama. (Empurra-a.) Ma Josefa Mas depois tu me abres a porta, sim? Martírio Abro, abro. Ma Josefa (chorando) – Ovelhinha, filha minha, vamos para as bandas do mar... (Martírio fecha a porta por onde saiu Maria Josefa e dirige-se para a porta do curral. Ali vacila, mas avança mais dois passos.) Martírio (em voz baixa) – Adela! (Pausa. Avança até a porta. Em voz alta.) Adela! (Entra Adela. Vem um pouco despenteada.) Adela Que é que me queres? Martírio (agressiva, segurando a irmã) É meu último aviso.Deixa esse homem! Adela Que autoridade tens tu para me falares assim? Martírio Tu não és honrada! Adela E o que te dói é que tu querias ser como eu! Martírio (em voz alta) –Isto não vai ficar assim! Adela E ainda estamos no começo. Eu cheguei primeiro, sua invejosa. Tive a coragem que te falta... Fugi da morte que paira nesta casa e fui procurar o que era meu, a vida que me pertencia! Martírio Esse homem sem alma veio por causa de outra, e tu atravessaste no caminho, cobra! Adela Veio pelo dinheiro, mas nunca tirou os olhos de mim. Martírio Ele não vai casar com você! Não vou deixar! Há de casar com Angústias! Adela Sabes tão bem como eu que ele não a quer. Martírio Sei e não me importo! Adela (aproximando-se) – Ele me deseja! Só me quer a mim! Só me quer a mim! Martírio Se te dá prazer, acaba comigo, mas não me digas essas coisas! Adela Por isso é que não queres que eu vá ter com ele. Que te importa que ele beije uma mulher de quem não gosta?! A mim, também, que me importa!? Pode viver à vontade cem anos com a Angústias. Mas que me beije a mim isso faz-te um ciúme terrível, porque também gostas dele, também o queres! Martírio (dramática, explosiva) – Sim! Sim! Posso rebentar de amargura, mas é verdade: o amo. (Cai ao chão) Adela (num arranque de ternura, abraçando-a) – Martírio, Martírio, perdoa-me. Eu não tenho culpa! Martírio Não me abraces! (Empurra) Não tenho mais teu sangue correndo nas veias! Tu não es mais minha irmã! ( Afasta-a.) Adela Isto já não tem remédio! Morra quem tiver de morrer! O Pepe romano é meu! É esse o meu destino! Martírio Não vou deixar! Adela Não agüento mais o horror desta casa, depois que provei o sabor dos beijos dele. Serei tudo o que ele quiser, mesmo que venha o povo inteiro contra mim, queimar-me! Nada me importa! Serei eu mesma a enterrar na cabeça a coroa de espinhos das amantes doshomens casados. Martírio Cala-te! Adela Pois sim! (Em voz baixa.) Vamos dormir. Deixa-o casar com a Angústias. Nada me importa, pois irei viver numa casinha só para mim, onde ele possa ir quando quiser, quando lhe apetecer. Martírio Não vou deixar isso acontecer, enquanto me correr uma gota de sangue nas veias! Sinto no coração um ódio que me sufoca. Adela E ensinam-nos a gostar das irmãs! Porque é que Deus me deixou sozinha no meio desta escuridão?! Estou olhando para ti como se nunca tivesse te visto! Ele é meu! (Martírio dá um tapa na cara da irmã, Adela vai para trás) (Ouve-se um assobio e Adela corre para a porta, mas Martírio interpõe-se.) Martírio Aonde pensa que vai? Adela Saia já dessa porta!? Martírio Tente me tirar daqui! Adela Sai daí! (Lutam.) Martírio (Joga a irmã ao longe e grita) – Mãe! Mãe! (Aparece Bernarda. Entra em saias brancas com um xale negro.) Bernarda Acabem com isso! Que miséria a minha, não poder ter um raio para as fulminar! Martírio (apontando Adela) – Foi ela, mãe! Esteve com ele! Com Pepe Romano! Com o noivo de Angustias! No curral! Olhe como ainda tem as saias cheias de palhas! Bernarda A palha é a cama das desgraçadas! (Dirige-se furiosa para Adela.) Adela (fazendo frente à mãe) – Acabou-se a prisão! (Adela tira a bengala das mãos da mãe e parte-a em duas.) Veja o que eu faço à sua tirania. Não dê mais um passo. Em mim só manda o Pepe! Madalena (entrando) – Adela! (Poncia e Angústias entram.) Adela Sou mulher dele. (À Angústias) Vai ver ao curral, se não acreditas... Está lá o Pepe. Há-de ser o senhor desta casa! Angústias Meu Deus! (Cai de joelhos, chorando) Bernarda A espingarda! Onde está a espingarda?! (Sai correndo. Martírio sai atrás dela. Entra Amélia pelo fundo e olha apavorada, com a cabeça encostada de encontro à parede.) Adela Ninguém poderá vencer-me! (Vai para sair.) Angústias (dominando-a) – Não sais daqui com esse ar de triunfo! Ladra! Tu não és minha irmã! Desonra da nossa casa! (Ouve-se um tiro.) Bernarda (entrando) – Anda, vai agora procurá-lo! Martírio (entrando) – Morto, Adela! Acabou-se o Pepe Romano! Não será mais de ninguém! Adela Pepe! Meu Deus! Pepe! (Sai correndo.) Poncia Mataste-o? Martírio Não. Fugiu a cavalo. Bernarda A culpa não foi minha. As mulheres não sabem apontar. Madalena Porque disseste então que o mataste? Martírio Para me vingar dela! Era capaz de fazer correr rios de sangue! Poncia Maldita! Madalena Excomungada! Bernarda Foi melhor assim. ( Ouve-se um ruído.) Adela! Adela! Poncia (à porta) – Abre! Bernarda Abre! Não penses que estas paredes podem esconder a tua vergonha! Criada (entrando) – Os vizinhos já acordaram! Bernarda (em voz baixa como um rugido) – Abre, senão arrombo a porta! (Pausa. Tudo continua em silêncio.) Adela! (afasta-se da porta.) Tragam um martelo! (Poncia dá um empurrão na porta e entra. Ao entrar dá um grito e sai.) Bernarda Que é? Poncia (levando as mãos ao pescoço) – Adela! Matou-se... (as irmãs recuam. A criada benze-se. Bernarda dá um grito e avança.) Poncia Não entres! Bernarda Não! Eu não entro! Tu, Pepe, continua a correr, vivo, pela escuridão dos caminhos...Mas um dia cairás! Tirem-na da corda! A minha filha morreu virgem! Levem-na para o quarto e vistam-na como uma donzela. Nem uma palavra do que se passou! Morreu virgem! Ouviram?! Mandem aviso, para que ao amanhecer toquem os sinos. Martírio Foi a única feliz de todas nós... Bernarda Calada Martírio, nenhuma palavra. (Para Madalena) Guarda as lágrimas para quando estiveres sozinha, Madalena! Havemos de nos afogar todas num mar de luto. Adela, a filha mais nova de Bernarda Alba, morreu virgem. Ouviram-me? Virgem! Silêncio, já disse! Silêncio! (Cai o pano.)
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