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VALORES URBANOS, ÉTICA E MORAL SOCIAL – FUNDAMENTOS HUMANÍSTICOS DA CIVILIZAÇÃO OCIDENTAL SIRLENE CRISTINA ALIANE. MEMBRO DO CENTRO DE PESQUISAS ESTRATÉGICAS “PAULINO SOARES DE SOUSA”, DA UFJF. LICENCIADA EM FILOSOFIA PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO JOÃO DEL REI. MESTRE EM EDUCAÇÃO PELO CES-JF. SIRLENEALIANE@YAHOO.COM.BR A Revolução Urbana, processada na Inglaterra na segunda metade do século XIX, ensejou novos valores, ao redor dos quais passaram a se organizar as comunidades humanas, tanto na Inglaterra, quanto no resto da Europa, nos Estados Unidos e pelo mundo afora, inclusive no Brasil. Tivemos, no início do século XX, o nosso grande reformador urbano, o prefeito do Rio de Janeiro entre 1902 e 1906, Francisco Pereira Passos (1836-1913). O Urbanismo, como disciplina científica que tenta estudar e racionalizar o desenvolvimento da cidade, passou a ser cultuado pelos planejadores urbanos e administradores públicos. Mas esse processo não ocorreu no vácuo. Um novo universo de valores foi se solidificando, no terreno da cultura, e foi sendo aplicado, de maneira sistemática, pelo setor educacional, a fim de ir formando, na nova mentalidade, as jovens gerações. Sabemos dos esforços empreendidos, por exemplo, nos Estados Unidos por John Dewey (1859-1952), que terminaram inspirando, no Brasil, o trabalho de educadores como Anísio Teixeira (1900-1971) 1, já adentrado o século XX. Este breve trabalho pretende ilustrar como foram aparecendo e se sedimentando os valores urbanos, no terreno da filosofia e da história da cultura. Procurei, destarte, dar uma contribuição concreta às indagações que o Centro de Pesquisas Estratégicas da Universidade Federal de Juiz de Fora levanta, em torno a assuntos basilares para o nosso convívio coletivo, como é a questão dos valores que devem imperar no mundo urbano. Esta indagação é tanto mais importante, na medida em que assistimos, no Brasil hodierno, à agressiva aparição de escalas axiológicas sustentadas na marginalidade e no ostensivo desconhecimento dos valores que nos foram legados pela Civilização Ocidental. O domínio que o narcotráfico exerce cada vez mais sobre áreas populosas e esquecidas das nossas metrópoles está aí e não me deixa mentir. Desenvolverei dois itens: 1) Ética, moral, moral social, valores, em que adentrarei nos conceitos filosóficos correspondentes. 2) Os valores urbanos no contexto dos ideais modernos de liberdade e democracia. ÉTICA, MORAL, MORAL SOCIAL, VALORES. A noção de valores remonta à Filosofia da Antigüidade clássica, pois, desde essa época, Sócrates (470 a C – 399 a C), Platão (428 a C – 347 a C) e Aristóteles (384 a C – 324 a C) já ressaltavam a importância do ser humano apreender o que é ser virtuoso, desde a infância. Aristóteles reforça ainda mais essa idéia, com o pensamento de que cada pessoa aprende a ser boa ou má, de acordo com a educação familiar e social que recebeu, para a formação do futuro cidadão da Pólis. A respeito, Reale e Antiseri 2 afirmam: “A sabedoria consiste em dirigir bem a vida do homem, ou seja, em deliberar de modo correto acerca daquilo que é bem ou mal para o homem”, e isso explica a tendência negativa de algumas pessoas ou grupos, 1 Acerca da obra educacional de Anísio Teixeira, cf. Fátima CUNHA, Filosofia da Escola Nova – Do ato político ao ato pedagógico. (Apresentação de Antônio Paim). Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense; Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1986. 2 REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia – Antigüidade e Idade Média. São Paulo: Paulinas, 1990, p. 205. Francisco Pereira Passos (1836-1913), o grande reformador urbano brasileiro, Prefeito do Rio de Janeiro entre 1902 e 1906. que tornam o mundo cada vez mais perigoso e difícil de se viver, pois não receberam uma formação adequada na infância. Aristóteles afirma ainda que a virtude é um hábito, isto é, uma disposição tornada duradoura pela prática constante de atos virtuosos por parte dos membros da comunidade. Na Época Moderna, Thomas Hobbes (1588–1679), Baruch de Spinoza (1632–1677) e Immanuel Kant (1724–804) pretenderam chegar a uma tábua de virtudes e vícios, partindo de uma única premissa geral. Hobbes denominou as virtudes “leis da natureza”, hierarquizou-as, estabelecendo a questão dos limites e dos valores, entre os cidadãos, para a constituição de uma Nação democrática. Spinoza estudou as virtudes, na exposição de seu sistema geométrico, no livro que denominou de Ética demonstrada à maneira dos geômetras 3, onde parte das premissas gerais de seu sistema, para chegar à vida social, através da imposição dos limites. Já Kant acreditava que o cumprimento da lei moral deve ser totalmente racional, e os deveres do ser humano consistem em dois grandes pilares: em relação a si mesmo e aos outros, estabelecendo o imperativo categórico, que limita o universo do ser humano, de acordo com a boa vontade e o direito de cada um e vai até o limite do outro. A proposta ética e moral de Kant perpassa as noções de Polis e de Nação e adota uma dimensão cosmopolita, alargando-se a todo o mundo, com a finalidade de ensejar a formação de uma humanidade ética e moralmente constituída. 3 SPINOZA, Baruch de. Ética demonstrada según el orden geométrico. (Tradução espanhola de O. Cohan). 1a. Edição em espanhol. México: Fondo de Cultura Económica, 1985. O filósofo ateniense Sócrates (470-399 a. C.), formulador de original proposta para a formação moral dos cidadãos, fato que lhe custou a vida. No decorrer da história, a questão dos valores sempre foi discutida, e, hoje, acima de tudo, no mundo contemporâneo, está em destaque o valor do próprio ser humano. Jamais o ser humano sentiu-se tão aflito, tão ameaçado, tão rico de saber e de ciência e, no entanto, tão carente de segurança e tranqüilidade. Em relação ao domínio sobre a natureza, parecem aumentar cada vez mais os motivos de preocupação sobre os destinos da espécie humana e das gerações vindouras, pois, por um certo tempo da história, a humanidade não refletiu sobre as questões éticas e morais em sua convivência no planeta. Essa discussão acerca dos valores humanos é concernente à vivência humana, e mesmo pessoas que não possuem idéia teórica sobre os mesmos, praticam atos influenciados pelos seus valores apreendidos, durante sua vida, em todos os âmbitos. Desse debate, surge a Ética como reflexão da atuação moral de homens e mulheres na sociedade. A moral, que tanto se confunde com o estudo da ética, antecede a esta e torna-se uma espécie de código de leis de uma sociedade, em cada época de sua existência, e é o que constitui cada pessoa envolvida nessa teia de relações humanas sociais. A ética é, pois, um estudo sobre a moral, e, na maioria das vezes, auxilia na resolução de situações sociais. Anfiteatro da Biblioteca de Alexandria, que constituiu a grande Universidade do mundo helenístico. A Biblioteca Museu de Alexandria foi fundada no III Século a.C. e espalhou a ciência antiga até o IV século da era cristã, quando foi incendiada por fanáticos religiosos. O filósofo ateniense Platão (428-347 a. C.), discípulo de Sócrates e formulador de um modelo de educação do cidadão pelo Estado. A moral é um conjunto de normas de conduta adotado como absolutamente válido por uma comunidade humana, numa época determinada 4. Esse conjunto de normas influencia no comportamento das pessoas, que moram nessas comunidades, em sua vivência cotidiana. Existe, na moral, um núcleo imutável, referido àquelas coisas que dizem relação direta à dignidadeda pessoa humana; esse núcleo desaguou, hoje, no que denominamos de direitos humanos de primeira geração, ou seja, aqueles direitos sem cuja preservação tornar-se-ia impossível ao ser humano sobreviver com dignidade. É aquilo referido à vida e à dignidade das pessoas. Por outro lado, existe na moral ocidental uma periferia mutável, referida àqueles aspectos que podem ir se acomodando, com o correr dos tempos, sem que se fira a dignidade da pessoa, são noções de valores que mudam. Certas atitudes que, até uma determinada época, eram condenadas pela sociedade, posteriormente, já não são mais condenáveis. A virgindade é um exemplo clássico dessa situação, pois, durante muito tempo, era um tabu e, hoje, a sociedade já aceita mais facilmente a não-virgindade, dentre outras situações, como mães solteiras, os casais separados, os homossexuais. O comportamento da sociedade mudou, como mencionado no exemplo, no plano das situações aceitas, normalmente, pelos membros de uma determinada comunidade. Isso não significa que todos aderem às mudanças. Mas elas vão se sedimentando paulatinamente no seio da sociedade. A liberdade sexual, quando da sua primeira formulação, nos anos 60 do século passado, era considerada algo difícil de ser aceito, no entanto, foi se alargando o alcance da aceitabilidade desta postura, até se transformar em algo consensual no seio das sociedades ocidentais. Isso não quer dizer que todos aprovem essas mudanças, mas uma grande parte o faz. E isso se explica pelos novos costumes que a sociedade adquire, em cada época de sua história, de acordo com o contexto em que está inserida. E se os costumes mudam, 4 Cf. PAIM, Antônio. Modelos éticos. São Paulo: Ibrasa; Curitiba: Champagnat, 1992. O filósofo macedônio Aristóteles de Estagira (384-324 a. C.), preceptor de Alexandre, o Grande, e formulador de um modelo de ética social alicerçado no ideal de Justiça. concomitantemente, os valores também, pois os mesmos se sedimentam em determinados valores que constituem o seu chão cultural. A noção de limites e valores é resultante do mesmo processo de interiorização do ser humano. Centremos a atenção, por um momento, na noção de valores. Estes constituem entidades ideais, de tipo relacional, hierarquizados e polarizados, e se atualizam no seio de uma vivência emocional da pessoa, no ato de valorar 5. No seio do universo axiológico (ou valorativo), os valores fundamentais são aqueles que dizem relação à autenticidade da pessoa, ou seja, os valores morais, são os que nos permitem dizer se alguém é fiel a si mesmo, ao seu critério de comportamento. Uma pessoa é boa ou má, em relação ao fato de ela ser fiel ao seu critério de comportamento. A autenticidade é a dimensão essencial da moral, pois as pessoas em sua vivência apreendem noções, que se constituem em seus atos na convivência em sociedade. No entanto, mesmo com essa mudança de paradigma, as civilizações 6 ainda são constituídas de costumes totalmente heterogêneos. Ainda existem países onde a mulher não possui muitos direitos, no trabalho, nos estudos, na vida social, no lazer e em outras atividades, e às vezes são até tratadas com crueldade ou desprezo. Ao passo que no Brasil crimes contra mulheres são julgados e existe até a Delegacia de Proteção, nos casos específicos de crimes contra mulheres. Entretanto, o machismo ainda existe, e as mulheres encontram muita dificuldade em ter acesso a alguns cargos de comando, e a sociedade ainda a discrimina, de maneira até involuntária, pois são anos de cultura masculina e retrógrada na sociedade brasileira. Não há dúvida de que as coisas vão mudando. Existem, efetivamente, alguns lares brasileiros chefiados por mulheres, e grandes empresas de renome dirigidas por executivas. Um panorama que possui a tendência de melhorar, ao longo dos tempos, devido à mudança de paradigmas. Essa questão moral é tão ampla e tão abrangente que muda de cidade para cidade. Mesmo entre as localidades menores, há uma diferença nos costumes, nos 5 Cf. HESSEN, J. Filosofia dos valores. (Tradução e prefácio de L. Cabral de Moncada). 5a. Edição. Coimbra: Armênio amado, 1980. 6 Por civilização entendemos o conjunto de valores que formam o chão cultural sobre o qual funciona determinado conjunto de sociedades. Existe a Civilização Cristã Ocidental, emergente de duas tradições axiológicas: a judaico – cristã, e a Helenística. Da primeira, a Civilização Ocidental tomou a noção de Pessoa humana; da segunda, a noção de Logos ou de racionalidade. valores, no pensamento. E essas mudanças são decorrentes da diferença de cultura de um lugar para outro. Alguns lugares evoluem, economicamente, mas não no pensamento educacional, ambiental, isto é, em questões mais amplas. Enquanto outros lugares fazem movimento inverso, evoluem em áreas relacionadas ao pensamento educacional, cultural, e não obtêm um bom crescimento econômico. Devido à diversidade de pensamento na sociedade, a convivência torna-se muito difícil e isso implica em conflitos para o ser humano. Ora, a situação de conflito entre representações axiológicas é normal, em todas as comunidades humanas. Isso constitui a essência da dialética, tão bem estudada por filósofos como Hegel, em Introdução à História da Filosofia,7 de 1816 e Marx, em A Ideologia Alemã,8 de 1846. Mas é possível, no seio de uma comunidade humana, com interesses divergentes, se chegar à adoção, de forma consensual, de uma tabela de valores compartilhada por todos. Não se trata de uma “ética de máximos”, mas de um consenso acerca daquilo que é essencial à sobrevivência coletiva. Trata-se, como frisa Habermas 9, de uma “ética de mínimos”, que leve à adoção de um conjunto de valores compartilhados por todos, que possibilite a adoção de consensos básicos. O pressuposto para isso é um trabalho prévio de esclarecimento, acerca dos novos valores a serem adotados. Surge assim a Ética, somente em momentos de problematização social e até mesmo individual na sociedade. É uma reflexão crítica das posturas humanas, que auxilia na condução da história humana. A moral e a ética possuem um estrito e necessário relacionamento entre si. A ética é definitivamente a reflexão distinta sobre o comportamento humano e a moral seria pautada pelos valores e normas práticas que norteiam e conduzem o comportamento do ser humano na sociedade. 7 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Introdução à História da Filosofia. (Tradução: Henrique Cláudio de Lima Vaz, Orlando Vitorino e Antônio Pinto de Carvalho). 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1985 (Os Pensadores). 8 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã representada por Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão representado por seus diferentes profetas. (Tradução: J. Carlos Bruni e M. A. Nogueira). São Paulo: Hucitec, 1987. 9 Cf. HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. (Tradução de G. de Almeida). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. O filósofo inglês Thomas Hobbes (1588- 1679), autor do Leviatã (1651), o grande tratado de filosofia política que dava sustentação ao absolutismo monárquico moderno. Muitas vezes o que é moral não é considerado ético pela teoria. E o que é considerado ético, não é moralmente aceito pela comunidade. Essa é uma divergência constante no campo da moral e da ética. Os valores que constituem a civilização ocidental, em quase todos os países, são os judaico-cristãos, fecundados pela racionalidade herdada do Mundo Helenístico. Durante a era medieval, os valoresmorais pretenderam ser uma lei obrigatória para todos, sem discussão ética alguma, pois as leis religiosas eram consideradas leis civis, isto é, os âmbitos misturavam-se entre si. No entanto, com a Reforma Protestante, com Lutero (1517-1524), as igrejas de maneira geral tornam- se mais flexíveis, de acordo com o momento de mudança da história humana, surgindo novos paradigmas. A pessoa e a comunidade, do ângulo da filosofia ocidental contemporânea, são definidas como um projeto livre, construído ao redor de determinada ordem de valores. E essa idéia de pessoa humana como um projeto axiológico livre é fundamental para a constituição da idéia liberal, pois em seu início nada mais era do que a constituição de valores que determinavam a liberdade como princípio de tudo. O ser humano constituído da liberdade incondicional, com limite no outro. Com o tempo, as noções foram expandindo-se, até se tornarem um postulado de parâmetros para a convivência do homem em sociedade. Capa da primeira edição do Leviatã (1651) de Thomas Hobbes. O Soberano Absoluto, que empunha a espada e o báculo (símbolos dos dois poderes, temporal e espiritual), é formado por milhares de cabeças humanas, simbolizando o Contrato Social. O filósofo inglês John Locke (1624-1704), pai do Liberalismo político e do modelo de governo representativo. OS VALORES URBANOS NO CONTEXTO DOS IDEAIS MODERNOS DE LIBERDADE E DEMOCRACIA. O conjunto de valores urbanos formado, na Inglaterra, durante a Era Vitoriana, está embasado na teoria liberal do filosofo inglês Locke, que possui como cerne a idéia da representatividade do povo, através do governante, defendendo os seus direitos, não somente os materiais e econômicos, mas também os morais e religiosos, que se relacionam diretamente com a idéia do interesse bem compreendido de Tocqueville, que visa ao interesse coletivo do cidadão e à democracia, superando o extremado individualismo do liberalismo leseferista.10 Todavia, essas idéias liberais de cunho social, com o decorrer do tempo, foram ofuscadas pelo liberalismo econômico. Convém destacar que os valores urbanos se sedimentaram, pela primeira vez, na Inglaterra vitoriana. A sociedade vitoriana era de classe média afluente, onde o traço fundamental é a disseminação da propriedade. O capitalismo influencia a concentração de mão-de-obra e o crescimento das grandes empresas. Mas principalmente de múltiplos serviços prestados por pequenas e médias empresas. É um novo tipo de aglomeração urbana, com outras necessidades econômicas, políticas e sociais. E conseqüentemente de valores que norteiem esse novo contexto histórico. Como afirmam Paim, Prota e Vélez-Rodríguez 11 : “O capitalismo da Era Vitoriana concentrou igualmente o caminho da paulatina e subseqüente democratização do exercício do poder, configurado nas reformas eleitorais inglesas.” 10 Expressão francesa, do tempo de Luis XIV, no século XVII, quando os comerciantes criticavam ao ministro Colbert que não os deixava agir, reclamando liberdade de negócios (laissez-faire). Indica o extremado individualismo do comerciante que só enxerga o lucro, sem olhar para a comunidade. 11 PAIM, Antônio; PROTA, Leonardo; VÉLEZ-RODRÍGUEZ, Ricardo.Bases e características da cultura ocidental.Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1999, p. 147. Martinho Lutero (1483-1546), o grande reformador que deu ensejo ao Protestantismo, alicerçado na idéia do Livre Exame e na crítica ao poder temporal dos Papas. Com o advento do Renascimento e do Iluminismo, segundo Jacob Burckhardt12, a humanidade caminha para um lado contraposto às convenções vigentes na Idade Média, pois o homem toma consciência da sua racionalidade, capaz de descortinar tudo no universo, sem a ajuda de um ser superior. A idéia central dessa época era o progresso da técnica e da ciência, em detrimento de algumas questões éticas e morais. No entanto, as idéias liberais surgiram concomitantemente para afirmar que o progresso é importante, mas não destituído da liberdade, que deve ser inerente à condição humana. A idéia de liberdade vem atrelada com a idéia de pacto social e interesse bem compreendido, conforme Alexis de Tocqueville (1805–1859), que afirma, também, que o ser humano deve possuir seu interesse individual, aliado ao público, sendo a única maneira de construir uma sociedade mais organizada e direcionada para um futuro mais próspero e mais justo. Essas idéias eram perfeitas para o estado francês tornar-se uma nação forte e solidária, mas Tocqueville deveria buscar um local onde essas idéias teóricas se relacionassem com uma realidade concreta. A ética tocquevilliana é enriquecida, no momento em que ele visita os Estados Unidos da América, pois esse estudioso constata a ligação íntima entre interesse individual e o público, e o patriotismo que permanece até hoje no país, em que pese a existência de governos de tipo autoritário, como o atual, presidido por Bush (este regime é justamente contestado pela sociedade americana, em decorrência da presença, nela, de forte sentimento patriótico, que enxerga o bem comum, não apenas a conveniência econômica das grandes empresas petrolíferas e de armamento). 12 Cf. BURCKHARDT, Jacob. La civilisation en Italie au temps de la Renaissance. (Tradução francesa de M Schmitt). Paris: Plon, 1877, 2 vol. Capa do ensaio de John Locke intitulado Constituições fundamentais da Carolina, no qual o filósofo inglês indica a forma em que se poderia organizar a representação política nas Colônias americanas. Tocqueville constata também que a educação dos norte-americanos é voltada para formar cidadãos, e para reforçar as idéias de interesse social. O processo educacional nos Estados Unidos era um caminho para a democracia, a instrução de base estava ao alcance de todos, com igualdade de oportunidades e possibilidades e mesmas condições de desenvolvimento, isto é, os cidadãos devem possuir os mesmos direitos. Esse pensamento é totalmente coerente com a proposta de Tocqueville, cuja reflexão ancorava nos pressupostos da igualdade e da solidariedade, por isso o autor ficou maravilhado diante de tantas coincidências entre a realidade observada na América e o seu pensamento 13. Segundo Tocqueville, as sociedades, que pretendem ser democráticas, no curso da história, devem ter uma educação mais voltada para os interesses comunitários. A participação do homem, em assuntos comunitários, é uma conseqüência da possibilidade anteriormente apontada da emergência de consensos mínimos acerca do que é essencial à sobrevivência da comunidade. O homem possui bom uso do seu intelecto, conseqüentemente, trabalha em prol do interesse de um maior número de pessoas, desde que não tenha uma educação de cunho individualista e conservador. No entanto, essa proposta vislumbrada, no surgimento dos estados independentes dos Estados Unidos da América, não vigora até hoje, pois a sociedade americana é voltada principalmente para os interesses privados e econômicos, em detrimento dos direitos humanos e ambientais, o que a caracteriza como uma sociedade individualista, pois a religião é separada da questão política e prioriza a ética do trabalho, como bem inalienável. A partir dos estudos teóricos e vivenciais de Tocqueville, as noções de comunitário tornam-se mais fecundas e sólidas. O poder de formação associativa substituiria o individualismo, uma forma de defesa dos cidadãos, que buscam afastar-se das questões sociais, restringindo-se aos problemas familiares e 13 Cf. TOCQUEVILLE, Alexis de. ADemocracia na América. (Tradução de Neil Ribeiro da Silva). 2a. Edição. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1977. O pensador francês Alexis de Tocqueville, autor do célebre livro A Democracia na América, cujo primeiro volume foi publicado em 1835, tendo sido publicado o segundo em 1839. individuais, e que afasta das questões mais amplas e prioritárias da comunidade em que vive. As associações, nas sociedades democráticas, oferecem espaço aberto de participação a todos para o fortalecimento das noções sociais e crescimento do bem público. O objetivo do princípio do interesse bem compreendido como da democracia liberal é promover a paz pública, na ampliação dos interesses sociais, como a melhor forma de governabilidade de uma nação. E realmente o país torna-se melhor para se governar, pois o dirigente tem o apoio de uma grande parcela da população em seus empreendimentos. Ao retornar à França, Tocqueville tinha idéias concretas sobre a ética pública, aliada ao pensamento que possuía, antes de partir para a viagem, alargando assim o terreno da reflexão liberal. A idéia de liberdade dos indivíduos, como ponto de partida para o convívio social, surgiu, no século XVII, na Inglaterra, por influência de Locke. Mas essa idéia de liberdade não havia sido pensada por este filósofo como algo democrático. Tocqueville descobre que a idéia de liberdade é vivenciada na América, junto com a realidade de uma sociedade igualitária naquela época. Ampliando, destarte, os limites do pensamento liberal, alargando-os até o contexto da democracia. O seu objetivo consistia em incentivar os cidadãos do seu país natal, a França, para a defesa concreta da sua liberdade. A liberdade é fundamental para o ser humano em qualquer época ou situação. Ser livre é uma conquista que deve ser resguardada por todos, sem distinção de crença, raça ou outra questão. Ele sonhava que o seu pensamento fosse compartilhado pelos Franceses e, também, pelos cidadãos de outras Nações. E decide fecundar esse anseio dos pensadores e do povo pela igualdade, com o ideal da liberdade proveniente da América e da filosofia lockeana. Essa concepção sobre a questão da democracia na América é denominada de Primeira Democracia, que constitui a primeira parte da magna obra intitulada A Democracia na América (publicada em 1835) A Rainha Victória (falecida em 1901), em cujo longo reinado processou-se, na Inglaterra, a revolução urbana. Vilarejo de Tocqueville, na Normandia, ao noroeste da França. No Castelo vizinho, Alexis de Tocqueville redigiu a sua principal obra, A Democracia na América. No entanto, suas reflexões continuaram, em outro momento, na segunda parte da obra mencionada, publicada em 1841, onde aprofundará um grave problema observado, nos Estados Unidos, o despotismo da maioria, pois a participação maciça do povo, em muitos momentos, é perniciosa, ao se tornar uma administração excessivamente centralizada, que pode incorrer até em uma tirania da maioria. Um outro órgão de importância fundamental, nesse país, é o Judiciário, com poder junto ao povo de destituir até o próprio presidente. A partir desses princípios de pacto social, de interesse bem compreendido surgiu o pensamento aliado aos interesses do homem em sociedade. A partir do século XIX e XX, com o renascimento das aglomerações urbanas e da criação das cidades propriamente ditas, aparece a emergência dos valores urbanos, pois a vida em sociedade requer novos valores que adaptem a novas condições de vida. A partir desse novo âmbito de valoração, surgem vários melhoramentos nas cidades, como o saneamento básico, o significativo progresso da medicina e o surgimento dos esportes como prática generalizada. São os novos componentes positivos que surgem com essa nova forma de viver-se em grupos, que não eram mais como os da era medieval e muito menos da época clássica da História. No entanto não se pode negar que os valores nobres dessas épocas devem prevalecer. Com o crescimento desordenado da população, devido às necessidades das indústrias, surgem várias doenças como cólera, tifo, febre amarela. No entanto, várias personalidades mobilizaram-se e moveram-se para a criação do saneamento básico, fiscalização de condições sanitárias de habitações e construções em geral, com objetivos como: ventilação, esgotamento sanitário, qualidade no abastecimento de água, construções mais cômodas, com o intuito central de implementar a higiene e uma melhor qualidade de vida para o cidadão. Afirmam Paim, Prota e Vélez- O filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), o mais importante formulador da moral moderna, alicerçada em princípios racionais e desatrelada da religião. Rodríguez 14: “O corpo adquire um valor que se supõe haja existido em certa fase da Grécia Antiga, para em seguida desaparecer”. As cidades são reconstruídas para assegurar maior circulação de ar, e com a preocupação centrada na saúde da população os governantes financiam a abertura de parques e jardins e a disseminação da prática do esporte. A atividade esportiva, que era vista somente como um lazer das classes abastadas, passa ter um objetivo mais amplo, a saúde do ser humano em sociedade, tornando-se um hábito de todas as classes da comunidade. E essa prática influencia na recriação das Olimpíadas, em 1896, reportando-se à idéia grega de corpo como realidade complementar em face do espírito. Surgem medidas protecionistas para os trabalhadores, pois, nessa época, os trabalhadores tinham uma carga de trabalho de até doze horas, em condições precárias, crianças trabalhando indiscriminadamente, sem uma fiscalização necessária. Sem contar com a falta de amparo, no caso de uma doença do trabalhador, que geralmente acabava em situação de mendicância. Constata-se que o direito do trabalhador transcende o direito privado, tornando-se uma obrigação de órgãos públicos competentes. Nesse momento, a questão educacional muda de enfoque, tornando-se acessível às diversas camadas da sociedade. As escolas tornam-se depositárias do conhecimento de toda a nação, não mais somente dos homens abastados e poderosos e esse princípio condiciona a universalização do saber nas cidades inglesas. Esse pensamento é relacionado à idéia liberal, que prioriza a igualdade de oportunidades e proteção das minorias. A igualdade entre homens e mulheres é aprovada, pelo Parlamento britânico, em 1828, pelo menos se inicia uma tentativa de equiparar seres humanos tão parecidos e tão distintos culturalmente na história da humanidade. Mas a partir 14 PAIM, PROTA, VÉLEZ-RODRÍGUEZ, Bases e características da cultura ocidental, ob. cit., p. 151. O filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770- 1831), que pensou, de maneira sistemática, a racionalidade do Estado moderno. dessa data, as mulheres ainda terão uma longa caminhada para obterem as mínimas condições de vida e dignidade, na sociedade inglesa daquela época, tão impregnada da cultura machista e retrógrada, que se constitui como parâmetro no mundo todo. O aspecto mais importante era a responsabilidade moral. Os vitorianos agiam sempre baseados na difundida crença dos imperativos morais da responsabilidade pessoal, do dever, e de viver em função de algo mais do que a satisfação das necessidades imediatas. E esse fator condicionava-os para atitudes concernentes com as práticas que beneficiavam o bem público em sentido amplo. Deste modo, embora as cidades tenham acabado por apresentar muitos inconvenientes, constituem importante marco no processo civilizatório. Foram tais aglomerações que acabaram acarretando uma verdadeira revolução namedicina e outras áreas. A formação das cidades, juntamente com o liberalismo, cria novos parâmetros de convivência para o ser humano em seu contexto histórico e social. Enfim, mudamos de uma valoração centrada no indivíduo para uma ação comunitária. De uma moral religiosa para uma moral racional, pois os homens e mulheres amparados na racionalidade tornam-se autônomos, livres, etc. A reflexão filosófica conduz o ser humano para um caminho de parâmetros éticos e morais, estabelecidos pela moral consensual que estabelece uma ligação fecunda na sociedade, pois não existe mais a moral vertical dos poderosos, ditando as regras para os súditos. BIBLIOGRAFIA BURCKHARDT, Jacob. La civilisation en Italie au temps de la Renaissance. (Tradução francesa de M Schmitt). Paris: Plon, 1877, 2 vol. CUNHA, Fátima. Filosofia da Escola Nova – Do ato político ao ato pedagógico. (Apresentação de Antônio Paim). Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense; Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1986. HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. (Tradução de G. de Almeida). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. O pensador e reformador social alemão Karl Marx (1818- 1883), autor de O Capital, obra em que previa a crise do capitalismo e a emergência do comunismo, como fórmula salvífica para o proletariado e para o surgimento da sociedade racional. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Introdução à História da Filosofia. (Tradução: Henrique Cláudio de Lima Vaz, Orlando Vitorino e Antônio Pinto de Carvalho). 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1985 (Os Pensadores). HESSEN, Johannes. Filosofia dos valores. (Tradução e prefácio de L. Cabral de Moncada). 5a. Edição. Coimbra: Armênio amado, 1980. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã representada por Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão representado por seus diferentes profetas. (Tradução: J. Carlos Bruni e M. A. Nogueira). São Paulo: Hucitec, 1987. PAIM, Antônio. Modelos éticos. São Paulo: Ibrasa; Curitiba: Champagnat, 1992. PAIM, Antônio; PROTA, Leonardo; VÉLEZ-RODRÍGUEZ, Ricardo. Bases e características da cultura ocidental. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1999. REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia – Antigüidade e Idade Média. São Paulo: Paulinas, 1990. SPINOZA, Baruch de. Ética demonstrada según el orden geométrico. (Tradução espanhola de O. Cohan). 1a. Edição em espanhol. México: Fondo de Cultura Económica, 1985. TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América. (Tradução de Neil Ribeiro da Silva). 2a. Edição. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1977. _____________________________________________
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