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Há muito tempo ouve-se falar de guerra sem fim para designar os constantes, mas intermitentes, tiroteios entre traficantes. Entre estes e policiais, os tiroteios variam em intensidade conforme a política de segurança dos governos, mas permanecem como etos institucional. Muitos jovens, predominantemente de pele mais escura, morrem nessa guerra, seguidos por moradores que nada têm a ver com os conflitos. A continuidade dessa guerra se dá pela necessidade de defender o negócio ilegal, fonte constante de lucros altos para os que o controlam; pela inabalável entrada de armas leves e altamente letais; pela persistente impunidade registrada nos crimes contra a vida, sobretudo homicídios, cometidos por pessoas comuns ou policiais. Variam de 7% a 4% os percentuais de assassinatos que se transformam em processos judiciais e terminam na condenação dos culpados. Atrelados, tais circuitos, que subjetivamente misturam vingança e lealdade ao grupo, criam a ilimitada disposição para pegar em armas e matar. Mas não se trata de guerra convencional entre exércitos nacionais, controlada pelas regras das convenções internacionais. Fazer guerra tem decorrências: destruir o inimigo, reconquistar o território e fazer acordo de paz. Só há possibilidade de celebrar a paz quando ao inimigo é atribuída capacidade de negociação. A guerra convencional pressupõe algum equilíbrio entre adversários e simetria capaz de possibilitar a limitação recíproca na intensidade da violência física entre combatentes. O aumento dos confrontos armados no Rio, percebido pelo número exacerbado de mortos, mesmo que policiais, não justifica uma ação de guerra. Enquanto a organização criminosa age com propósito de cometer crimes para obtenção direta ou indireta de fins econômicos, a guerra, independentemente de ser interestatal, civil, regular ou não, tem objetivo político. A intenção da organização é negar a ordem legal para aumentar seus lucros; os inimigos dela são mutáveis e circunstanciais. As redes capilares e resilientes do crime organizado são variáveis. Em São Paulo, há um grupo central estruturado a partir das prisões, cercado por uma rede maior de indivíduos, envolvidos em delitos. Não chega a ser um grupo hierárquico como a Cosa Nostra, pois admite horizontalidade: todos os membros compartilham o poder, têm atividades legais ou ilegais para aumentar lucros, mas o grupo central toma as decisões finais. A motivação para entrar e correr riscos é o ganho monetário, mais do que a lealdade social ou étnica ao grupo, embora haja um código que pune os transgressores. Este comando tem mais controle interno sobre seus membros por meio da administração rigorosa dos conflitos internos. Espalhou seu poder através das prisões federais e hoje enfrenta seu maior competidor, o comando que começou no Rio de Janeiro, mas também se alastrou. Sua organização interna é de redes fluidas, relativamente soltas e variáveis, o que lhes dá mais capacidade de adaptação às circunstâncias. A lealdade interna do grupo, apesar de fundado com código estrito, é bem menor, o que aumenta muito a possibilidade de ocorrerem homicídios entre seus membros e defecções para os outros dois comandos. O controle dos três comandos sobre os membros é menor, mas a adaptabilidade às circunstâncias é maior: modos de esconder as armas em diferentes pontos, de trocar fornecedores, aliados e parceiros comerciais. Como não têm núcleo central, é bem mais difícil desmontá-los, pois estão mais aptos a substituir rapidamente os que morrem ou são presos. O primeiro passo para enfrentá-los seria explicar que guerra é essa, de modo a criar política de segurança com ações e meios definidos, com adversário a ser neutralizado. Se o governo fala em guerra sem defini-la, pressupõe a mobilização de recursos militares para eliminar o inimigo, ou seja, a guerra convencional. O uso corriqueiro do termo cria a confusão entre crime e guerra! Isto leva à distorção do papel constitucional das Forças Armadas que, ao contrário das polícias, não são agentes de segurança e tampouco têm o preparo necessário para neutralizar criminosos no espaço urbano densamente povoado e com construções labirínticas. É necessário apostar na investigação inteligente para aprimorar a atual política de segurança que vem pondo em risco a vida de todos. Alba Zaluar e Pedro V. B. Castelo Branco são professores do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj
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