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Penas perdidas Zaffarone

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329
Revista de Direito
do Cesusc.
No2. Jan/Jun 2007.
Resenha Prando.
O ato de abordar uma obra, ainda da década de 1980, reali-
zada por um autor de intensa produtividade acadêmica, pode ge-
rar algum estranhamento, ou mesmo uma interrogação sobre a
atualidade do texto. Para compreender a escolha, é importante
voltar-se ao trajeto do autor no contexto de produção da Crimi-
nologia. Tendo participado do Instituto Interamericano de Direi-
tos Humanos, fundado no início da década de 1980, Zaffaroni,
em conjunto com outros autores latino-americanos, iniciou uma
caminhada para a compreensão do funcionamento do sistema penal,
a partir da estrutura material de poder dos países latino-america-
nos, compreendidos como países periféricos. O momento de es-
tudos foi propício para produção de algumas obras, tais como,
Sistemas Penales y Derechos Humanos em América Latina e Criminologia.
Aproximación desde una margen1. Nelas, o autor desenvolve, a partir
de dados empíricos apreendidos pelas pesquisas do Instituto, uma
compreensão teórica da Criminologia, a partir da América Latina.
Tal desenvolvimento culmina com maturidade na obra em ques-
tão: Em busca das penas perdidas.
A partir dessa obra, o autor inicia seu projeto de construção
de um discurso jurídico-penal desde um realismo marginal. Durante
a década de 1990, até a atualidade, Zaffaroni vem dedicando grande
parte dos seus estudos a uma teoria dogmático-penal que só pode
ser entendida se atrelada à sua concepção de sistema penal e de
sociedade. Para tanto, só será possível extrair todas as possibilida-
des das categorias dogmáticas atuais desenvolvidas pelo autor2, se
sua base teórica traçada no texto for considerada em toda a sua
radicalidade.
Na obra, o autor lança as bases para um discurso dogmáti-
co-penal, que tem como fio condutor os Direitos Humanos. Afi-
na-se, a esse modo, com a produção no campo do saber Crimi-
nológico Crítico, que propugna também por uma Criminologia
dos Direitos Humanos, assim explicitado nas palavras de Lola
Anyiar de Castro: Desejamos que seja uma Criminologia dos Di-
reitos Humanos, entendidos em uma dimensão mais eficaz e ge-
neralizável do que estão sendo interpretados nas atuais democraci-
as capitalistas3.
O texto é dividido em três partes. Na primeira, apresentam-
se a deslegitimação do sistema penal e a crise do discurso jurídico-
punitivo. Tais processos são abordados, a partir de dados empíri-
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas
perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal.
Trad. Vânia Romano Pedrosa. Rio de Janeiro: Revan, 1991.
Camila Cardoso de Mello Prando
1 Cf. (Zaffaroni, 1984) e (Za-
ffaroni, 1988).
2 Ver a categoria da culpabili-
dade pela vulnerabilidade desen-
volvida por Zaffaroni. (Zaffaro-
ni, 2004, p.31-48).
3 (Castro, 1982, p. 71-91).
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do Cesusc.
No2. Jan/Jun 2007.
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cos e de marcos teóricos deslegitimadores, tais como: o marxis-
mo criminológico, desenvolvido à época por Alessandro Baratta e
Massimo Pavarini; a análise desconstrutivista foucaultiana; e a in-
fluência, na criminologia, do interacionismo simbólico e da feno-
menologia. E acrescenta a estes, a teoria de dependência e de sub-
desenvolvimento latino-americano4, entendendo que ela [...] é o
marco que nos permite melhor aproximação para a compreensão
do controle social punitivo em nossa região marginal5.
Para esta abordagem, parte-se de uma conceituação abran-
gente do sistema penal, de modo a incluir, além do sistema penal
formal, todas as formas de exercício de poder punitivo que cum-
prem a função de controle social, ainda que o discurso justificador
seja terapêutico, educativo ou administrativo. Assim, em seu con-
ceito, o autor ultrapassa os limites de um discurso jurídico-penal
fundamentador de uma legalidade penal ou processual estrita e
desvela a amplitude do exercício de poder punitivo, primeiro pas-
so para se entender seu real funcionamento e compreender sua
função na sociedade.
Esse sistema formal e informal realiza uma função negativa,
por meio da repressão, e também positiva, por meio da configu-
ração de poder disciplinadora e verticalizadora, que atende às de-
mandas de manutenção da ordem sócio-econômica. Aqui, Zaffa-
roni se apropria do entendimento das funções positivas do poder
penal, inicialmente desenvolvidas pelos frankfurtianos Rushe e Kir-
shheimer, e, em seguida, desenvolvido pela tese foucauldiana6.
Tais funções contêm um elevado nível de ilegitimidade. Para
que sejam realizadas, o processo criminalizador, levado a cabo
pelo sistema punitivo formal, embora submetido às limitações ju-
rídico-penais, não as obedece. Além disso, um sistema informal
subterrâneo operacionaliza-se, absolutamente às margens da lega-
lidade, especialmente nas estruturas de poder da América Latina.
Veja-se, por exemplo, a formação de grupos de extermínio que
realizam funções punitivas sem qualquer submissão a um controle
jurídico-formal.
O controle jurídico-penal que, por sua vez, declaradamente
tem como função limitar o exercício de poder punitivo, traz tam-
bém consigo sua cota de ilegitimadade, produzida através de um
discurso formal desconectado das relações de poder. Isto se dá
através da conjugação de uma Criminologia etiológica e de um
direito penal de influências neokantianas. Se esse saber criminoló-
gico ocupa-se em identificar as ações das pessoas criminalizadas
pelo sistema penal, tomando essa seleção desigual como dado in-
questionável, o Direito Penal ocupa-se em construir um discurso
do dever-ser apartado de qualquer referência ontológica, impossi-
bilitado, pois, de qualquer interferência no processo real de crimi-
nalização7.
4 Esta teoria tem como uma das
suas referências, Raul Prebish
que em sua tese sustenta que há
[...] uma debilidade congênita
dos países periféricos para reter
todo o fruto do seu progresso téc-
nico. (Prebish, 1968, p. 17). O
que justifica a desigualdade e
subdesenvolvimento enquanto ca-
racterísticas estruturais desses
países. Embora esta teoria pos-
sa ser considerada, em parte,
superada por algumas limitações
teóricas na idéia de dependência
latino-americana, Zaffaroni se
apropria da noção de condição
periférica de poder da América
Latina.
5 (Zaffaroni, 1991, p. 65-66).
6 Cf. (Kirshheimer & Rusche,
1999); (Foucault, 2000).
7 Para a relação funcional entre
a Criminologia etiológica e o dis-
curso jurídico-penal, conferir
(Andrade, 1997).
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A partir desse quadro de ilegitimidade do sistema punitivo,
na Segunda Parte da obra, analisam-se as respostas centrais e mar-
ginais a essa deslegitimação. Do ponto de vista das respostas ela-
boradas na América Latina, o autor compreende que não se tra-
tam de respostas teóricas, na medida em que não estão atreladas a
uma perspectiva própria da realidade marginal latino-americana
(de funcionamento punitivo mais seletivo e violento). E, portanto,
limitam-se a uma dependência acadêmica dos países centrais, cujas
formulações são transnacionalizadas de modo irrefletido e assiste-
mático.
Dentre as formulações teóricas dos países centrais estão aque-
las que negam a deslegitimação. Por exemplo, podem-se apontar
as teorias funcionalistas do delito, que hoje tomam cada vez mais
lugar no espaço dos discursos jurídicos. E, de outro lado, têm-se as
formulações que enfrentam a deslegitimação, sob a perspectiva
político-criminal abolicionista e minimalista.
Neste ponto é que o autor apresenta sua crítica. Embora se
alinhe à perspectiva deslegitimadora, e entenda que ela deva ser
apreendida pelas produções teóricas, Zaffaroni, compreende que
as políticas-criminais, realizadas até o momento, eram insuficientes,
na medida em que praticamente não se preocupavam com o dis-
curso dogmático-penal. Tal despreocupação com a dogmática é
apontada comouma imobilização inaceitável, frente aos níveis exa-
cerbados de violência no processo criminalizador da América La-
tina em geral.
Entendendo que a realidade do poder punitivo exige uma
resposta imediata de contenção de violência, Zaffaroni atribui à
dogmática penal um papel importante. Ele propõe, pois, um dis-
curso marginal da teoria dogmática, desenvolvida na Terceira Par-
te da obra. Para sustentar que sua posição teórica não se confunde
com uma relegitimação discursiva do sistema punitivo, o autor ale-
ga que [...] esta é a verdadeira pauta indicadora do mínimo efetivamente
possível em cada circunstância, um mínimo imposto por um poder, por um fato
de poder que, de maneira alguma, estará legitimado, mas simplesmente presente,
não tendo a deslegitimação discursiva nenhum efeito mágico para suprimir este
poder de fato8.
Essa seria uma posição de estrategista. A partir de um impe-
rativo ético de ação frente à violência do controle social, buscar-se-
ia, ao menos, a sua contenção. Tais proposições, realizadas em fins
da década de 1980, tinham como objetivo, produzir motivação
teórica para que o exercício criminológico se voltasse com toda
sua radicalidade à construção de uma dogmática penal, a fim de
que se apropriasse dos dados empíricos de funcionamento do sis-
tema e que possibilitasse a minimização dos processos de violência
levados estruturalmente a cabo pelo sistema punitivo.
Tal motivação, presente nos trabalhos subseqüentes de Za-
8 (Zaffaroni, Op. Cit. p. 107).
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ffaroni, parece ter ecoado em algum sentido, de modo que, mes-
mo na produção acadêmica brasileira, alguns teóricos da Crimino-
logia, passaram a se aproximar da dogmática penal, a fim de pro-
duzir uma leitura não relegitimante, mas de contenção da violên-
cia9.
Atualmente, presenciam-se gerações de pesquisadores que
tomam contato diretamente com a produção da dogmática penal
crítica e propositiva de contenção da violência do poder punitivo.
No entanto, corre-se o risco de que essas leituras, apartadas do
fundamento criminológico crítico, recaiam lentamente em novas
relegitimações do sistema penal.
O que não mais é dito, nas produções contemporâneas, é
que, paradoxalmente, a dogmática, entendida como instrumento
de contenção de violência, é também atravessada por ela, na medi-
da em que a oculta em seu discurso delimitador. Essa ambigüida-
de, constitutiva, aliás, do direito moderno10, não impede o desen-
volvimento de uma teoria jurídica que vise à minimização da vio-
lência do sistema penal, mas impede, sim, uma euforia desmedida
em relação aos progressos humanizadores de uma pretensa dogmá-
tica crítica.
A fim que os recentes textos de Zaffaroni e da Dogmática
Jurídico-Penal Crítica sejam compreendidos na sua dimensão e na
sua perspectiva deslegitimadora, é mister que os leitores atentos
refaçam a trajetória da crítica criminológica, entendendo-a como
um suporte presente e fundamental na reformulação das dogmá-
ticas. Sem isso, mais modismos críticos se fazem.
Para a radicalidade possível da teoria jurídico-penal, vale lem-
brar a fórmula de Alessandro Baratta: não se trata de propor a
compreensão do conflito, a partir dos artifícios jurídicos da dog-
mática, mas, antes, de compreender tais artifícios dogmáticos atra-
vés dos conflitos e das realidades de poder11, perspectiva essa pos-
sibilitada pela leitura criminológico-crítica.
Bibliografia
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Ilusão de Segurança Jurídica. Do
controle da violência à violência do controle. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 1997.
BARATTA, Alessandro. Proceso penal y realidad en la imputación de la
responsabilidad penal. La vida y el laboratorio del derecho. Revista General
de Derecho. n.531. Valencia, dez. 1988. p. 6655-6673.
CASTRO, Lola Anyiar de. A evolução da teoria criminológica e a avaliação de
seu estado atual. Trad. Eliane Junqueira. Revista de Direito Penal e
Criminologia. n34. Rio de Janeiro, jul.dez.1982. p.71-91.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. História da Violência nas Prisões. 23 ed.
Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2000.
9 A produção teórica do autor
Juarez Cirino dos Santos é exem-
plo desta trajetória.
10 E são extensos os recortes
metodológicos que visam compre-
ender ou sustentar esta ambiva-
lência entre direito moderno e
violência, veja-se, por exemplo,
leituras metodologicamente dife-
renciadas de Walter Benjamin,
Renée Girard, Derrida, e, na
Criminologia, de Alessandro
Baratta.
11 (Baratta, 1988. p. 6655-
6673).
333
Revista de Direito
do Cesusc.
No2. Jan/Jun 2007.
Resenha Prando.
PREBISH, Raul. Dinâmica do Desenvolvimento Latino-Americano. 2ºed.
Trad. Vera Neves Pedroso. Brasil Fundo de Cultura, 1968.
KIRSHHEIMER, Otto e RUSCHE, George. Punição e Estrutura social.
Trad. Gizlene Neder. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Sistemas Penales y Derechos Humanos en
América Latina. Buenos Aires: Depalma, 1984.
_______. Criminología. Aproximación desde una margen. Vol. 01. Bogotá:
Themis, 1988.
_______ . Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema
penal. Trad. Vânia Romano Pedrosa. Rio de Janeiro: Revan, 1991.
_______. Culpabilidade por vulnerabilidade. Discursos Sediciosos. Ano 9. n.
14. Rio de Janeiro: Revan, jan/dez, 2

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