Buscar

EXERCÍCIO CRIMINOLOGIA

Prévia do material em texto

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO - UNIRIO
CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E POLÍTICAS
ESCOLA DE CIÊNCIAS JURÍDICAS
Professora Elizabeth Süssekind
Exercício 3 Seminário de Criminologia
Leia e comente o texto a seguir, conectando-o a assuntos e contextos já estudados. O exercício é individual e será realizado durante a aula de hoje, 27/05/2015.
IMPENSÁVEL E IMPREVISÍVEL?
 				 Elizabeth Süssekind
 
O tráfico de pessoas está sendo discutido neste momento em razão de sua exposição em rede mundial, dadas as condições em que milhares de migrantes buscam trabalho e abrigo em países europeus. Causa surpresa e indignação àqueles que desconheciam a atividade criminosa dos mercadores de pessoas para diversas atividades e destinos que não podem dominar. 
No entanto, o problema já foi reconhecido pelo Brasil desde o que a ONU espalhou sua própria preocupação entre os países. A partir de 1999 o Brasil fez parte da intensa negociação da Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional, que foi assinada na Itália, em dezembro de 2002. A situação do tráfico de pessoas foi considerada tão ameaçadora que mereceu tratamento em um Protocolo exclusivo desta Convenção, conhecido como o Protocolo de Palermo. Portanto, o tráfico de pessoas é parte integrante do principal documento internacional que procura prevenir e reprimir o crime organizado transnacional em qualquer parte do mundo. 
Com ou sem concordância própria, pessoas são comercializadas e deslocadas para diversas partes do planeta – ou dentro do país - para serem submetidas a uma série de formas de escravidão conhecidas como tráfico humano: abuso sexual, prostituição, mendicância, pornografia; atuação em trabalhos com condições inaceitáveis – sem normas de horário, pagamento, segurança; participação forçada em guerras e conflitos, modalidade de tráfico que busca, especialmente, jovens e crianças, os chamados “meninos de guerra” ou “meninos guerreiros”. 
E uma das modalidades de tráfico de pessoas menos conhecidas – ou muito menos divulgada- é a do comércio de órgãos, um dos problemas mais sérios da atualidade, e que está presente em grande parte dos países. É sobre essa modalidade de tráfico de gente que gostaria de refletir aqui, embora muito brevemente.
 Falo do crescente comércio de órgãos humanos de doadores vivos que domina a cena científica, familiar, policial: quando pessoas pobres são convencidas de que têm órgãos sobrando no corpo, duplicados, que podem ser extirpados e converter-se em pequenas fortunas. Carências e demandas vitais que se encontram no mercado. E que descortinam qualidade do mundo de que todos somos parte. 
De um lado do balcão estão milhares de compradores desesperados por sobreviver a doenças ou à velhice. De outro lado há milhões de potenciais vendedores, desesperados por sobreviver à miséria por mais um tempo. E uma organização ilícita no meio deles, altamente lucrativa, propondo milagres, arregimentando fragilidades, negociando a mercadoria, promovendo as viagens, viabilizando cirurgias, corrompendo consciências, leis e agências de controle, alimentando redes poderosas com o auxílio da Internet, e desaparecendo com a maior parte do pagamento prometido ao doador. De longe, observando ou preferindo não observar, estão governos de muitos países que minimizam ou negam que a barbaridade floresça em suas respectivas ilhas de tranquilidade e excepcionalidade.
A Organização Mundial de Saúde denuncia o comércio e o tráfico que envolvem milhares de pessoas convencidas a vender rins ou córneas, dentre outros órgãos, ou mesmo parte de alguns deles, como o fígado e o pulmão
Apesar dde contar com recente legislação que procura dificultar o comércio de órgãos, a Índia é o país de onde mais saem partes humanas para o exterior, em sua maioria já devidamente instaladas no corpo de estrangeiros que podem pagar por eles. 
Estudo recente (Goyal) mostrou a deterioração da saúde de 86% dos indianos que haviam vendido órgão para transplante nos cinco anos anteriores, já que não tiveram como cuidar da saúde, arcar com o custo de menos trabalho e de medicamentos pós-transplante. Como parte integrante do quadro da Índia sabe-se que valores culturais e a dominação masculina levam a que mais de 70% dos doadores sejam mulheres. Através das redes de tráfico muitas indianas se submetem a encenar casamentos falsos com doentes estrangeiros, que as remuneram após conseguir algum de seus órgãos e realizar a operação. Logo em seguida deixam o país. Essas mulheres vendem seus órgãos por razões consideradas relevantes culturalmente, como pagar dívidas da família, obter recursos para os estudos de um filho, para o dote da filha.
Em 2004 a Organização Mundial de Saúde alertava para o agravamento da tragédia e alertava para suas consequências, recomendando aos Estados membro que promovessem medidas urgentes para proteger seus cidadãos pobres e vulneráveis ao 'turismo para transplante', dando a atenção devida ao tráfico internacional de órgãos. Em 2008 também o Papa exigiu ética em doações e transplantes, e providências contra o que chamou de "abominável" tráfico humano.
De extrema complexidade e abrangência, o crime traz preocupações morais, econômicas, políticas, legais, religiosas, três das quais menciono para nossa reflexão: 
1- O valor da vida – afinal há mesmo vidas que valem mais, e que podem ser prolongadas com a compra de órgãos que estão 'sobrando' em corpos desvalorizados? 
2- O Estado deve interferir na livre determinação da pessoa em dispor integralmente do corpo para obter recursos e aliviar a miséria, proibindo ou regulamentando doação, venda, cirurgias e outros procedimentos envolvidos? 
3 – Tornam-se reduzidas as possibilidades do nacional de um país condescendente com o comércio de órgãos ser contemplado com um deles, legalmente, através da fila obrigatória. Como receber um órgão legalmente, por doação de um familiar direto ou por espera na lista oficial de transplantes do país, que é suprida por doações financeiramente desinteressadas de pessoas falecidas, atitude ética, valiosa e humanitária? A venda se torna a forma interessante?
É preciso não esquecer que o comércio ilegal transfere para outro país os custos econômicos referentes à doença que os compradores pretendem curar comprando aquele órgão; as consequências de problemas de saúde dos "doadores" oneram suas condições de vida e fazem que recorram aos serviços públicos de saúde e de previdência social de seus países pobres. Com milhares de doentes recorrendo a curas no exterior, os países desenvolvidos economizam gastos que deveriam realizar com os seus doentes, desafogam pressões sociais e políticas por atendimento e eficiência, e favorecem suas seguradoras de saúde.
Essas transações aliviam a busca por órgãos de doadores já mortos em infindáveis listas de transplantes de países desenvolvidos; e a maior parte dos países não desenvolvidos continua sem investir suficientemente em prevenção de doenças que vão sobrecarregar e degenerar os órgãos que serão comercializados. Também não aperfeiçoam seus mecanismos de coleta e distribuição de órgãos de mortos, provocando imperdoável desperdício e levando a que grande parte da carência se torne negócio privado. E não falam sobre isso, esse é um tabu da política de medicina social.
Sugerindo medidas que seriam alternativas ao tráfico humano, muitos especialistas, corporações de médicos e de hospitais advogam que a doação de órgãos de mortos deve se tornar obrigatória, ou sujeita a presunção de consentimento, ou seja, se a pessoa não tiver formalmente se negado a doar, entende-se que o Estado pode dispor de seus órgãos. Muitos outros alegam que o tráfico de órgãos poderia acabar se a venda de órgãos for legalizada. Assim, os ricos prolongariam suas vidas à custa da miséria de outros.
E círculos científicos e políticos discutem atalhos, como a ampliação do atual conceito de morte, atingindo a determinação da irreversibilidade do estado do paciente-potencial-doador, necessária à doaçãopor mortos. Flexibilizando critérios médicos de decisão, inclusive o de morte cerebral (de todo o cérebro, de parte dele, de qual parte?), mais pessoas seriam declaradas irreversivelmente mortas, e mais órgãos poderiam ser doados, e com mais agilidade.
O Brasil terá que tomar decisões sobre o comércio de órgão de brasileiros e sobre as demais formas de tráficos de pessoas. Espero que o assunto se mantenha na pauta das nossas preocupações mesmo depois que a tragédia dos fugitivos da miséria e de perseguições que buscam chegar a Europa saiam da divulgação da mídia.
                       
 
 
 * No Brasil, um caso de venda de rins de cerca de trinta adultos jovens em 2005 está relatado por Julio Ludemir em Rim por Rim, Record, 2009.
--

Outros materiais