Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 Nascimento em quatro culturas -Brigitte Jordan- Traduzido por: Jéssica Gallante Reis Revisado por: Prof. Dr. Edemilson Antunes de Campos (Tradução realizada para fins didáticos dos tópicos das páginas 48 a 54 do capítulo 3) Capítulo 3: A comparação transcultural dos sistemas de parto através de uma análise biossocial Aspectos biossociais do parto Com esse esboço como pano de fundo, eu quero examinar agora uma quantidade determinada de aspectos biossociais do evento do nascimento – especificamente, a concepção local da gravidez e do nascimento, a preparação para o parto, os atendentes e sistemas de suporte, o território do parto, o uso de medicação e a hierarquia do poder de decisão. Do qual a comparação transcultural das visões e práticas de sistemas específicos, as pesquisas para uma melhor compreensão da produção cultural dos aspectos do nascimento deve emergir. A definição cultural do nascimento O conceito de nascimento em uma sociedade é o indicador mais poderoso da forma geral do seu sistema de parto. Todos os aspectos do evento têm uma importância fundamental na qual os participantes informais formulam suas próprias definições de quem, onde e como se nasce. Eu comentei antes sobre o fato de cada sociedade produzir uma configuração sistemática das práticas de parto que são mutuamente dependentes e internamente consistentes. O que os faz dependentes e consistentes, e também moralmente corretos, é o local, a definição cultural específica do evento como, por exemplo, um procedimento médico (nos Estados Unidos), como uma estressante, mas normal, parte da vida familiar (como em Yucatan), como um processo natural (como na Holanda), ou como um acontecimento intensamente pessoal e satisfatório (como no caso da Suécia). A visão local compartilhada sobre o nascimento garante que, na maioria dos casos, os participantes têm idéias similares envolvendo o curso e gerenciamento do parto. Essa visão tem um status ideológico, o qual eu digo que serve como um guia para conduzir a rotina do processo. Ao mesmo tempo, isso dá base para lidar com “problemas”, providenciando fundamentos que justificam um procedimento obstétrico se e quando os aspectos se tornarem problemáticos. 2 O próximo ponto é importante. A definição de um grupo sobre o evento torna visível a noção de seus membros, o que faz parte da justificação adequada para as práticas nas quais o grupo se envolve. Como, por exemplo, a questão sobre a possibilidade de o outro filho de uma mulher visitar sua mãe e seu novo irmão após o parto, que é respondida negativamente no contexto médico nos Estados Unidos1, positivamente com um “é claro” e “é importante para a interação familiar” na Europa, enquanto em Yucatan essa questão seria sem sentido já que a mulher nunca deixa seu ambiente diário, no qual outros filhos simplesmente aparecem após o parto. No geral, percebemos que qualquer que seja o conceito local do nascimento, que este conceito direciona poderosamente as formas nas quais a fisiologia é interpretada na forma consensual e colaborativa de fazer o parto. Ao mesmo tempo, a concepção local determina, serve como justificativa, e complementarmente, se manifesta na invariabilidade local dos procedimentos do parto, assim como no território do parto, nos profissionais apropriados, na organização do poder de decisão e assim por diante. Portanto, o que é necessariamente natural, e consensualmente apropriado em um sistema pode ser completamente impróprio e injustificável em outro. Descobrimos, por exemplo, que a noção holandesa de nascimento como um evento natural proíbe o uso de drogas para uma mulher para a qual, sob condições similares, seria dada medicação nos Estados Unidos. Isso destaca as diferenças que a comparação das características biossociais do processo de parto pretende ressaltar. Já que o jeito americano emergiu como um padrão sedutor para as aspirações de nações em desenvolvimento, quero discutir alguns detalhes da definição americana do evento do nascimento e algumas de suas implicações. Percebemos, antes de tudo, que nos Estados Unidos o parto é, em proporção esmagadora, um evento médico. Esse conceito corrobora com o fato de que, na sociedade americana contemporânea o processo fisiológico em geral é culturalmente definido como pertencente ao domínio médico. Portanto, nutrição, mudança de sexo, padrões de sono, mudança de humor, obesidade, dificuldade de aprendizado, alcoolismo, uso de drogas, violência, morte, e toda a sorte de “anormalidade” são considerados assuntos próprios da medicina. A inclusão da gravidez e do nascimento no modelo médico carrega uma série de conseqüências, as quais todas colaboram para que a gestante se torne uma “paciente”. Como Parsons (1951) postulou há muito tempo atrás, na sociedade americana existe um contexto de expectativas institucionalizadas relativas ao papel dos doentes, que são seguramente compartilhadas por todos os participantes. Como paciente, a parturiente é, a partir de uma consideração geral, livre de suas responsabilidades normais relacionada aos outros e com ela mesma; ela é definida como incapaz de lidar com os problemas (médicos) dessa fase; e ela é obrigada a procurar ajuda técnica competente para sua condição. A competência técnica, nesse contexto, é definida como um profissional médico especializado – as recomendações e práticas nas quais a paciente é especialmente definida como incapaz de julgar. 1 Atualização. No EUA essa questão tem sido respondida mais positivamente desde as décadas de 80 e 90, conforme o conceito de “contato familiar” foi ganhando espaço. 3 O papel do médico, articulado com o papel do paciente, requer que o médico exponha seu conhecimento técnico (sobre o gerenciamento de doença e dor) e trabalhe no problema do paciente, enquanto que o paciente, de maneira recíproca, precisa confidenciar e confiar no médico. Dor e gerenciamento da dor. Dado que o alívio da dor é responsabilidade e privilégio do profissional médico, a questão da dor no parto está alocada além dos interesses subjetivos e experimentais. De fato, isso tem emergido como um fenômeno que possui um relacionamento com o sistema de conceitos sobre o nascimento que precisa ser investigado. Isto parece mostrar que há mulheres em muitas sociedades que dão à luz sem experimentar a dor. Deixa também uma idéia mais clara que a dor é esperada e reconhecida como parte do processo de parto em quase todas as sociedades. É particularmente claro que a noção de que o parto “primitivo” é mais fácil que o parto “civilizado” é falsa (FREEDMAN e FERGUSON, 1950). O que é interessante aqui, no entanto, não é se a mulher experimenta ou não a dor, mas que tipo de “objeto” é a dor, em diferentes culturas: ela é destacada ou desconsiderada? Que tipo de situações a ocorrência de dor nos traz para poder nos mostrar a natureza do sistema? Em resumo, o que faz a dor ser vista, no processo de parto, como evento médico, natural, etc.? Nesse contexto, vale a pena notar que as mulheres americanas, que são atendidas por especialistas com uma tecnologia elaborada para aliviar a dor, sofrem, contudo, por ter muita dor. Quase trinta anos atrás, Hardy e Javert (1949) tentaram medir a intensidade da dor durante o parto entre mulheres americanas. Seu método consistia em perguntar as mulheres em trabalho de parto para julgarem a dor das contrações uterinas comparando com a dor induzida simultaneamente no dorso de suas mãos por um sistema de radiação termal (calor). Quase todas as mulheres que ainda estavam aptas para colaborar, no momento do parto experimentaram a máxima intensidade de dor que pôde ser experimentada 2. Medição arquivada, a experiência da doré observacionalmente mais visível nas alas obstétricas dos Estados Unidos que na Holanda, Suécia, ou Yucatan. Uma enfermeira obstétrica inglesa trabalhando na Holanda, que tem experiência com os sistemas de medicalização (britânico) e o de não medicalização (holandês), contou-me que as expectativas relacionadas à concepção local de parto influenciam o nível do julgamento e experimentação da dor. No sistema médico, onde o alívio da dor está disponível, mas a decisão de administrá-lo é feita pelo atendente médico, a terrível tarefa eventual da mulher é convencer o atendente da sua necessidade de alívio. Já que nenhum julgamento objetivo sobre a dor é possível, somente a mulher que pode produzir um julgamento apropriado sobre a experiência de dor; além disso, uma vez que os atendentes são constrangidos (pela preocupação sobre o efeito do medicamento no decorrer do trabalho de parto) a segurar a medicação tanto quanto possível, o sistema construído é injusto com as orientações da mulher e seus 2 A unidade de medida para esse experimento foi o dol [unidade de medida de dor, derivada da palavra latina dolor – nota da tradutora]. 3-5 dols identificam uma dor moderada; 5-7 dols uma dor severa; e 10,5 dols é a dor mais intensa que pode ser sentida. Aumentando a radiação térmica além daquele ponto não aumenta a percepção de dor. Acima de 8 dols indica dano nos tecidos; 10,5 dols, comuns logo após o nascimento, causa uma queimadura de segundo grau. 4 atendentes a respeito da dor. Freqüentemente, a mulher está ansiosa e preocupada com a possibilidade de dor, orientando a si mesma sobre seu desconforto inicial e então monitora a sua intensidade. A interação com a equipe é dominada por negociações sobre a dor. A tarefa da mulher é antecipar, de acordo com o progresso, o ponto em que a dor se torna intolerável, naquele momento é que ela deve convencer o médico da sua necessidade de medicação. Este procedimento não só adiciona um alto nível de ruído e histeria na ala obstétrica americana, como também proporciona uma poderosa evidência que aumenta a subjetividade da experiência da dor. Na Suécia, onde analgésicos e anestésicos também são administrados para o alívio da dor, a necessidade de convencer o profissional médico da necessidade de medicalização não está presente. As suecas são informadas sobre que tipos de medicamentos estão disponíveis, as condições nas quais cada um deles não fica disponível, e conhecimento dos possíveis efeitos colaterais para o bebê. A decisão de qual tomar, se tomar, e quando, é delas. Conseqüentemente, elas focam sua atenção no trabalho de parto, e como a medicalização é utilizada muito rotineiramente, a atmosfera é silenciosa, intensa concentração diferente do pânico vocal e desespero. A concepção local do evento do nascimento como um evento da mulher claramente encontra espaço no gerenciamento do problema da dor inserido do sistema sueco. Similarmente, ver o parto como um processo natural, direciona o sistema holandês contra qualquer sorte de interferência. Os participantes do parto holandês guardam uma profunda convicção de que o corpo da mulher sabe mais e que, dando tempo suficiente, a natureza seguirá seu curso. Essa orientação é próxima da orientação às mulheres maias, que também têm uma postura de “esperar e ver”. Em contraste com a atmosfera crítica do parto medicalizado nos Estados Unidos, que é profissionalmente treinado para patologias críticas e para o alto drama da cirurgia, encontramos o parto de Yucatan que acontece em um pequeno quarto, minimamente separado da vida familiar, e largamente gerenciado por práticas diárias. Para as mulheres maias, a dor é uma parte já esperada do parto, assim como ela é – muito mais que nas sociedades medicalizadas – uma parte aceitável do processo da vida em geral. Em Yucatan, nenhuma medida é tomada para “assustar” a mulher durante o parto para mostrar as alternativas disponíveis para ela. A dor aparece nas histórias das mulheres que contam a respeito de suas próprias experiências, mas tudo o que dizem deixa claro que o desgaste da mulher no parto é normal e que tudo que ela sofre passa, assim como passou para outras mulheres. Além disso, a experiência conjunta do parto, especificamente o fato de o marido testemunhar a dor da esposa, se torna uma poderosa força interacional que impulsiona a vontade do homem para cuidar de sua esposa após o parto. (Cuidar aqui é um eufemismo local para o espaço de abstinência ou coitus interruptus). Para os maya, então, a dor do parto e co-experiência social da dor serve para fazer do parto uma ocasião significativa no ciclo normal dos eventos da vida. No gerenciamento da dor, assim como no de outros aspectos do nascimento, vemos que a conduta do parto mostra e reforça muitos valores sociais3. Características e comportamentos 3 Atualização. Em sua comparação sobre a percepção da dor entre quatro grupos étnicos diferentes nos Estados Unidos, Janice Morse e Caroline Park (1988), mostraram que dois grupos cujos membros que não consideravam o parto como um evento natural – anglo-canadenses e leste-indianos- indica-se que parto é muito doloroso. Mulheres desses grupos também mostram essa percepção durante o processo 5 estabelecidos como normais nas sociedades em geral, assim como o trabalho pesado, paciência, expressão de sentimento de infelicidade e emoções, são considerados igualmente como parte do parto; assim como a importância do acontecimento, mais precisamente eventos muito estressantes e potencialmente perigosos como o nascimento proporcionam uma oportunidade para os indivíduos mostrarem suas características em uma relativa reunião pública. de parto, enquanto os dois outros grupos que vêem o parto como uma parte normal da vida cotidiana - agricultores Hutterites (comunidade de anabatistas - nota da tradutora) e ucranianos- indica-se e experimenta-se o parto como muito menos doloroso.
Compartilhar