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FILOSOFIA – ETIMOLOGIA A palavra "filosofia" (do grego) é uma composição de duas palavras: philos (φίλος) e sophia (σοφία). A primeira é uma derivação de philia (φιλία) que significa amizade, amor fraterno e respeito entre os iguais; a segunda significa sabedoria ou simplesmente saber. Filosofia significa, portanto, amizade pela sabedoria, amor e respeito pelo saber; e o filósofo, por sua vez, seria aquele que ama e busca a sabedoria, tem amizade pelo saber, deseja saber. FILOSOFIA – ETIMOLOGIA A tradição atribui ao filósofo Pitágoras de Samos (que viveu no século V a.C.) a criação da palavra. Conforme essa tradição, Pitágoras teria criado o termo para modestamente ressaltar que a sabedoria plena e perfeita seria atributo apenas dos deuses; os homens, no entanto, poderiam venerá-la e amá-la na qualidade de filósofos. FILOSOFIA DO DIREITO - CONCEITO A filosofia, ao mesmo tempo em que é uma sistematização do pensamento, é um enfrentamento do próprio pensamento e do mundo. Tudo isso pode se aplicar a objetos específicos da própria filosofia, como o direito. E, assim sendo, a filosofia do direito nada mais é que a filosofia geral com um tema específico de análise, o direito. FILOSOFIA DO DIREITO - CONCEITO A filosofia do direito, sendo objeto da filosofia, não é, de modo algum, um método. Assim sendo, não se pode dizer que haja a filosofia aristotélica, a maquiavélica, a hegeliana e a dos juristas. Pelo contrário, o direito, sendo um tema, equipara-se ao rol de outros temas. Pode-se dizer então da filosofia política, da filosofia da religião, da filosofia da economia, da filosofia da estética e da filosofia do direito. FILOSOFIA DO DIREITO - CONCEITO A visão filosófica marxista pode tratar tanto da política, da economia, da estética, quanto do direito. Ao se dizer então de uma filosofia do direito marxista, isso se refere a um tema específico, o direito, a partir de um dos grandes métodos filosóficos estabelecidos, o marxismo. A filosofia do direito não se opõe à filosofia agostiniana, nem a filosofia política se opõe à filosofia althusseriana. Agostinho e Althusser são autores de métodos filosóficos; a política e o direito são temas. FILOSOFIA DO DIREITO - CONCEITO Sendo a filosofia do direito a própria filosofia geral com um objeto específico, a indagação que se põe preliminarmente diz respeito à própria localização do que seja jurídico, já que é isso que dá identidade à filosofia do direito. FILOSOFIA DO DIREITO - FILOSOFIA A filosofia do direito, enquanto tema específico da filosofia geral, é-lhe indistinta quanto aos métodos e seus grandes horizontes. Um kantiano enxerga a religião, a sociedade, a política e o direito a partir de uma perspectiva geral que é o próprio kantismo. Sendo ainda filosofia, a filosofia do direito não é estranha à estrutura geral do pensamento filosófico, configurando-se apenas como o aprofundamento de uma temática específica. FILOSOFIA DO DIREITO - FILOSOFIA Por conta disso, o problema inicial da filosofia do direito está na especificidade do que se possa considerar por direito. A depender dos juristas, essa questão historicamente não se resolve de modo uníssono. Para alguns, o fenômeno jurídico se circunscreve às normas estatais. FILOSOFIA DO DIREITO - FILOSOFIA Para outros, as apreciações sobre o justo também entram na composição do direito. Da parte da vida jurídica, essa não é uma resposta pronta. Mas também a filosofia do direito não se limita à resposta do jurista sobre o próprio direito, na medida em que se estende para além da compreensão média do operador do direito sobre si próprio e sua atividade. FILOSOFIA DO DIREITO - FILOSOFIA Assim, a filosofia do direito pode desvendar conexões íntimas entre o direito e a política, o direito e a moral, o direito e o capitalismo, que escapam da visão mediana do jurista. Tais limites sobre o que é o jurídico da filosofia do direito são ainda variáveis a depender da visão filosófica que se adote para essa compreensão. Um kantiano trabalha com uma certa relação entre direito e moral, mas o foucaultiano trabalha essa relação de outro modo. FILOSOFIA DO DIREITO - FILOSOFIA Por essa razão, não se pode encerrar o jurídico da filosofia do direito em limites estreitos que não permitam dar conta da variedade de apreciação sobre tal fenômeno. Mas também não se pode perder de vista alguma referência mínima de diálogo entre as tantas apreciações sobre o que é direito, sob pena de se findar a possibilidade de uma mirada relacional e comparativa. FILOSOFIA DO DIREITO - FILOSOFIA Assim sendo, em se tratando de um objeto histórico variável socialmente e variável também a depender da visão filosófica, haverá sempre conexões entre a filosofia do direito com outros objetos específicos da própria filosofia que lhe sejam próximos e cujas fronteiras sejam porosas. A filosofia do direito dialoga diretamente com a filosofia política, na medida em que, na maior parte da história, política, direito e Estado guardaram íntima proximidade. FILOSOFIA DO DIREITO - FILOSOFIA Mas também se há de descobrir alguma ligação entre o direito e a ética, na medida da apreciação do justo enquanto virtude. Na prática, o fenômeno jurídico se espraia sobre inúmeros fenômenos, alguns mais proximamente, outros mais distantes, mas sempre com possíveis conexões. FILOSOFIA DO DIREITO - FILOSOFIA Pode-se dizer que a filosofia do direito é irmã da filosofia política, é certo, mas, embora lhe seja mais distante, quem há de dizer que seja totalmente estranha à filosofia da estética? Não há alheamento do fenômeno jurídico em relação a nenhum outro fenômeno histórico e social, e por isso também a filosofia do direito é a totalidade da filosofia, apenas contando com um eixo especificado. FILOSOFIA DO DIREITO - FILOSOFIA Por tal razão, em muitos momentos a filosofia do direito deve se socorrer de outros objetos específicos da filosofia para sua compreensão e mesmo para sua diferenciação, se for o caso. Se no passado grego clássico o direito era considerado uma manifestação política por excelência, a sua compreensão só pode ser dada em conjunto com as questões da filosofia política clássica. FILOSOFIA DO DIREITO - DIREITO De outro lado, além de ser um objeto específico da filosofia geral, lastreado em seus métodos, a filosofia do direito deve ser especificada em relação ao próprio pensamento jurídico. É certo que não se chama o arrazoado de uma petição inicial por filosofia do direito. Os argumentos de um juiz ao prolatar uma sentença em geral são técnico-normativos, não jusfilosóficos. FILOSOFIA DO DIREITO - DIREITO Mas há um campo do conhecimento técnico- jurídico que não é eminentemente casual, vinculado aos casos em disputa nos fóruns. Quando alguém transcende a análise de uma norma jurídica específica do Código de Processo Civil e se pergunta sobre o que são as normas jurídicas em geral, está dando um salto de generalização de suas reflexões. A partir de que grau esse salto consegue já se situar naquilo que se possa chamar de filosofia do direito? FILOSOFIA DO DIREITO - DIREITO Durante grande parte da história, com a indistinção do direito em relação à política, à ética, à moral e à religião, os discursos mais amplos sobre o direito, que não era ainda eminentemente técnico, eram tidos por filosofia do direito. No entanto, com o capitalismo, a contar da modernidade, o direito adquire uma especificidade técnica. FILOSOFIA DO DIREITO- DIREITO Ele passa a ser considerado a partir do conjunto das normas jurídicas estatais. A partir desse período, conseguiu-se construir uma espécie de pensamento que, não sendo estreitamente ligado a fatos ou normas ou casos isolados, mas sim tratando das normas, situações e técnicas jurídicas de modo mais geral, ainda assim está adstrito ao mundo técnico-normativo. Costuma-se chamar a essa espécie de alto pensamento jurídico por teoria geral do direito. FILOSOFIA DO DIREITO - DIREITO A teoria geral do direito, que na verdade não é teoria geral de todo o fenômeno jurídico, mas sim das técnicas jurídicas estatais consolidadas a partir da modernidade, pode de modo mais exato ser denominada por teoria geral das técnicas jurídicas, ou mesmo teoria geral da tecnologia jurídica. Esse pensamento não é casual nem eminentemente ligado a uma experiência técnica específica. Ele já consegue ser geral, na medida da generalização das técnicas jurídicas no capitalismo moderno e contemporâneo. FILOSOFIA DO DIREITO - DIREITO No entanto, ainda assim, a teoria geral do direito não salta um grau qualitativo distinto da própria lógica interna do afazer jurídico quotidiano. É verdade que a discussão sobre o conceito de ordenamento jurídico e a questão da teoria geral da relação jurídica são maiores do que a pergunta sobre o prazo para a interposição de um recurso no processo penal, mas ainda assim não logram alcançar a reflexão mais alta sobre o próprio direito em relação ao todo da história e da sociedade. FILOSOFIA DO DIREITO - DIREITO A filosofia do direito é um pensamento ainda mais alto e mais vigoroso que a teoria geral do direito. Enquanto a teoria geral do direito, a partir da multiplicidade das normas, indaga-se sobre o que é uma norma jurídica estatal, a filosofia do direito indaga a respeito da legitimidade do Estado em ditar normas. FILOSOFIA DO DIREITO - DIREITO De certo modo, a teoria geral do direito para nos limites internos da construção jurídica técnica. Mas a filosofia do direito pega o todo do direito nas mãos. Há uma fronteira muito tênue entre a teoria geral do direito e a filosofia do direito. Hans Kelsen, o mais importante teórico geral – dito cientista – do direito do século XX, é um pensador de rigorosa construção metodológica filosófica. FILOSOFIA DO DIREITO - DIREITO Suas reflexões são teoria geral do direito e filosofia do direito, portanto, de um grande jurista e de um grande filósofo ao mesmo tempo. Torna-se muito difícil distinguir os momentos em que fala o teórico geral do direito dos momentos em que fala o filósofo. FILOSOFIA DO DIREITO - DIREITO É verdade que os assuntos do direito, ao serem tratados pela teoria geral do direito, abeiram-se daquilo que possa ser a filosofia do direito. No entanto, enquanto aumento quantitativo e generalização do labor técnico e empírico do jurista, estão ainda adstritos ao campo dessa teoria geral. Enquanto salto qualitativo, na superação do encerramento técnico e na relação com o todo histórico e social, inicia-se então a filosofia do direito. FILOSOFIA DO DIREITO - DIREITO Trata-se de uma distinção bastante variável e difícil, que em geral é tomada pelo jurista como uma divisão de tarefas enciclopédica. Um assunto como o da norma jurídica é tomado, quase sempre, como assunto de teoria geral do direito – sendo ensinado, pois, na disciplina universitária da Introdução ao estudo do direito. A reflexão sobre o justo, por sua vez, se a deixa reservada à disciplina universitária chamada por Filosofia do direito. FILOSOFIA DO DIREITO - DIREITO Mas não se podem estudar as duas questões como isoladas e alheias entre si, academicamente bem instaladas em duas disciplinas específicas e insulares. Na verdade, a filosofia do direito, em retrospecto, é a própria alimentação geral da teoria geral do direito e dos ramos do direito em específico. FILOSOFIA DO DIREITO - DIREITO Da mesma maneira que é fluida a fronteira entre a filosofia do direito e os outros objetos filosóficos específicos, é fluida a fronteira entre a filosofia do direito e o pensamento geral produzido pelos juristas sobre suas próprias técnicas. Nesse entrecruzamento do pensamento jurídico e do pensamento filosófico levanta-se a filosofia do direito. HISTÓRIA ANTIGUIDADE CLÁSSICA PRÉ-SOCRÁTICOS Costuma-se dar a alcunha de pré-socráticos ao conjunto de pensadores que viveram nos séculos anteriores a Sócrates, espalhados pelo mundo grego. Trata-se de um rótulo problemático, na medida em que muitos filósofos que são classificados por pré-socráticos vivem ainda no próprio tempo de Sócrates. PRÉ-SOCRÁTICOS Além disso, denominá-los por um nome genérico esconde a especificidade de cada um dos seus pensamentos. O uso do termo pré-socrático justifica-se, pois, apenas como recurso didático. A tradição da história da filosofia reputa a Tales de Mileto a posição de primeiro filósofo dessa sequência dos pré-socráticos, no século VI a.C. PRÉ-SOCRÁTICOS PRÉ-SOCRÁTICOS Após Tales, uma ampla gama de pensadores se destaca. É costume dividi-los em escolas, quase sempre tendo por base um critério geográfico, de acordo com a região na qual viveram. Nos tempos antigos, o mundo de cultura grega se esparramava, para além do território onde hoje é a Grécia moderna, também na Ásia Menor e no sul da Itália. PRÉ-SOCRÁTICOS PRÉ-SOCRÁTICOS A divisão dos pré-socráticos em escolas é variável e sua distinção não é metodologicamente rígida. Para o campo da filosofia do direito, dentre todos os pré-socráticos, alcançam uma posição de destaque Anaximandro, por ter sido o pioneiro de um apontamento sobre o justo, e, especialmente, Heráclito e Parmênides. PRÉ-SOCRÁTICOS - ANAXIMANDRO DE MILETO Anaximandro de Mileto (610?-545? a.C.) foi discípulo de Tales, tendo-se destacado pelos seus inventos e pela sua argúcia no campo da ciência, em especial na astronomia. PRÉ-SOCRÁTICOS - ANAXIMANDRO DE MILETO PRÉ-SOCRÁTICOS - ANAXIMANDRO DE MILETO Enquanto a velha tradição da mitologia grega considerava a cosmologia como tendo por base o ar, a água, a terra ou o fogo, em Anaximandro tal compreensão alcançava um novo patamar: ➢ a physis se originava do ápeiron, algo infinito, ilimitado, que, sem forma, dá origem a todas as coisas. PRÉ-SOCRÁTICOS - ANAXIMANDRO DE MILETO Rompendo com as velhas tradições, pode-se dizer que Anaximandro dá início à própria filosofia. Do conjunto da obra de Anaximandro – dezenas de livros –, quase tudo se perdeu. O ápeiron é o princípio da origem e do perecimento das coisas, e a injustiça a medida de cada coisa. PRÉ-SOCRÁTICOS - ANAXIMANDRO DE MILETO A frase que restou, e que por muitos é considerada o primeiro fragmento filosófico da história, trata de uma consideração sobre a justiça do mundo: “De onde as coisas têm seu nascimento, para lá também devem afundar-se na perdição, segundo a necessidade; pois elas devem expiar e ser julgadas pela sua injustiça, segundo a ordem do tempo”. PRÉ-SOCRÁTICOS - ANAXIMANDRO DE MILETO A consideração sobre a justiça e a injustiça das coisas, em Anaximandro, é prejudicada pela ausência de outros textos seus que possam contextualizar suas próprias ideias. O ápeiron é considerado um princípio dos seres, ilimitado. Se o ápeiron é um princípio eterno, fora do tempo, as coisas, que têm geração e corrupção, são temporais. PRÉ-SOCRÁTICOS - ANAXIMANDRO DE MILETO Há umpagamento necessário das injustiças das coisas quando de sua corrupção. Se as coisas pagam sua injustiça só por serem coisas ou se por especificidades de sua trajetória como coisas, essa é uma reflexão prejudicada por falta de textos que a detalhem. PRÉ-SOCRÁTICOS - HERÁCLITO DE ÉFESO De Heráclito de Éfeso, de tempos mais recentes na história dos pré-socráticos (540?-480?a.C.), ao contrário de Anaximandro, grande parte de seus fragmentos chegou até os dias atuais. Muitos consideram Heráclito como o mais importante filósofo pré-socrático. Escrevendo por aforismos, em linguagem difícil, era também conhecido pela alcunha de O obscuro. PRÉ-SOCRÁTICOS - HERÁCLITO DE ÉFESO PRÉ-SOCRÁTICOS - HERÁCLITO DE ÉFESO Heráclito é um filósofo excêntrico, que desprezava as massas e suas crendices. Em sua cosmologia, fundava no fogo a base da natureza. Por tal razão, o universo tinha por padrão a mudança. O fogo procedia a uma constante transformação de todas as coisas. PRÉ-SOCRÁTICOS - HERÁCLITO DE ÉFESO O tema da mudança é o mais importante elemento trazido por Heráclito à filosofia. No seu famoso fragmento, “No mesmo rio entramos e não entramos; somos e não somos”, “não se pode entrar duas vezes no mesmo rio”, há a dimensão do devir, do fluxo infinito do mundo. PRÉ-SOCRÁTICOS - HERÁCLITO DE ÉFESO A noção de que tudo flui quer dizer que há uma constante criação e perecimento das coisas. O quente se torna frio e o frio, quente. A criança se torna velho. O dia anoitece. PRÉ-SOCRÁTICOS - HERÁCLITO DE ÉFESO A noção de devir, em Heráclito, não é a de qualquer fluxo: trata-se da luta dos contrários. Há uma constante entre os opostos. Ao contrário dos que buscariam ver, na filosofia, a compreensão das noções estáveis, eternas, Heráclito aponta para o conflituoso, antitético, mutável e tenso. PRÉ-SOCRÁTICOS - HERÁCLITO DE ÉFESO Dirá: “O contrário em tensão é convergente; da divergência dos contrários, a mais bela harmonia”, “Conjunções: completo e incompleto (convergente e divergente, concórdia e discórdia, e de todas as coisas, um e de um, todas as coisas)”. PRÉ-SOCRÁTICOS - HERÁCLITO DE ÉFESO Para Heráclito, justamente essa tensão entre os opostos, o conflito do devir das coisas, é a causa da justiça do mundo. “Não compreendem como concorda o que de si difere; harmonia de movimentos contrários, como do arco e da lira”, diz um fragmento seu. PRÉ-SOCRÁTICOS - HERÁCLITO DE ÉFESO O devir das coisas em conflito se dá por meio das “medidas”: “O sol não ultrapassará as medidas; se o fizer, as Eríneas (vingança), ajudantes de Dike (justiça), o encontrarão”. Há uma constância da transformação dos opostos. O dia vira noite; a noite vira dia. PRÉ-SOCRÁTICOS - HERÁCLITO DE ÉFESO Se uma velha tradição da filosofia busca compreender a justiça como o estável, o inabalável, eterno, Heráclito lança-se a uma nova visão: a justiça é o conflito, é a discórdia. “Se há necessidade é a guerra, que reúne, e a justiça, que desune, e tudo, que se fizer pela desunião, é também necessidade.” PRÉ-SOCRÁTICOS - HERÁCLITO DE ÉFESO Heráclito disse: “Eu me busco a mim mesmo”, “É dado a todos os homens conhecer-se a si mesmo e pensar”, numa espécie de busca antropológica que será divisa, posteriormente, de Sócrates e de outros. Para Heráclito, o conhecimento é uma procura daquilo que se esconde. “A harmonia invisível é mais forte do que a visível”, diz outro de seus fragmentos. PRÉ-SOCRÁTICOS - HERÁCLITO DE ÉFESO Justamente por isso, há um nível profundo do justo que não está nas aparências estáveis das situações do mundo: “Para o Deus, tudo é belo e bom e justo. Os homens, porém, tomam umas coisas por injustas, outras por justas”. PRÉ-SOCRÁTICOS - PARMÊNIDES DE ELEIA Ao lado de Heráclito, outro importante momento da filosofia pré-socrática se estabelece com Parmênides de Eleia (540 a.C.–?). De cronologia incerta, Platão chega mesmo a pô- lo em contato com Sócrates em um de seus diálogos. Parmênides foi legislador de seu povo, notabilizado ao seu tempo pela justiça das leis que legara. PRÉ-SOCRÁTICOS - PARMÊNIDES DE ELEIA PRÉ-SOCRÁTICOS - PARMÊNIDES DE ELEIA O texto fundamental da filosofia de Parmênides tem a forma de um poema, Da natureza. Esse poema é dividido em dois blocos, o caminho da verdade (alétheia) e o caminho da opinião (dóxa). A deusa o conduz ao caminho da verdade. A verdade aparece, para Parmênides, como a razão, como aquilo que é. PRÉ-SOCRÁTICOS - PARMÊNIDES DE ELEIA A opinião está ligada ao mundo sensorial, relacionada àquilo que se vê, e que portanto muda. Logo de início, a perspectiva de Parmênides é diferente da de Heráclito. A mudança, para este, é a constituinte de todas as coisas. Para Parmênides, no entanto, o que é único, não se muda. PRÉ-SOCRÁTICOS - PARMÊNIDES DE ELEIA Costuma-se identificar, em Parmênides, o iniciador da trajetória da lógica. Em seu poema, estão apontados o princípio da identidade – o que é, é – e o princípio da não contradição – o que é não pode não ser. Parmênides, por meio de seu poema, vai mais longe. PRÉ-SOCRÁTICOS - PARMÊNIDES DE ELEIA Somente o que é é pensável e dizível. O que não é não se pode pensar e dizer. Assim sendo, uma espécie de ontologia – uma reflexão sobre o ser – acompanha sua lógica. PRÉ-SOCRÁTICOS - PARMÊNIDES DE ELEIA O estabelecimento dos parâmetros de identificação do ser como uno, pleno, não divisível, acarreta, no pensamento de Parmênides, a noção de que a mudança, a transformação e a oposição interna na própria coisa são opiniões desprovidas de realidade e razão. Assim, Heráclito, que insistia no conflito, representa um polo oposto daquele parmenidiano. PRÉ-SOCRÁTICOS - PARMÊNIDES DE ELEIA A estabilidade do ser é sua marca característica. Poder-se-ia, no extremo – embora com as ressalvas devidas –, ver em Parmênides um pendor ao conservadorismo em sua visão de mundo, na medida em que toma o ser como estabilidade. Para Heráclito, o ser é mudança. PRÉ-SOCRÁTICOS - JUSTIÇA Os caminhos pré-socráticos apresentam questões particulares no que diz respeito a uma reflexão sobre a justiça. Para Anaximandro, há uma espécie de devir que faz com que as coisas sejam julgadas pela sua injustiça. Tal condição justa é um atributo das próprias coisas do mundo. PRÉ-SOCRÁTICOS - JUSTIÇA Para Parmênides, a justiça, muito mais do que algo nas coisas, é uma necessidade lógica, um conceito. PRÉ-SOCRÁTICOS - LOGOS Mas, enquanto o logos (o ser, o pensamento, a fala) de Parmênides é um conceito, uma visão lógica sobre as coisas. Para Heráclito o logos é, além de tudo isso, uma ação. As coisas mudam, os contrários se ligam, o conflito se põe como base de todas as coisas. PRÉ-SOCRÁTICOS - LOGOS Poder-se-ia dizer que o logos de Heráclito é menos sagrado que o de Parmênides, na medida em que está mergulhado na ação, na interação dos homens com as coisas e com o mundo. Para Parmênides, a via da verdade, que lhe foi revelada divinamente, é uma forma de ver o mundo afastada de todas as opiniões contraditórias que as pessoas tenham na sua interação quotidiana com a própria realidade. PRÉ-SOCRÁTICOS - LOGOS Já para Heráclito, o homem, fazendo parte do mundo, está atravessado pelo conflito, pela mudança, pela transformação. Por isso, Heráclito recomenda o conhecimento de si mesmo, não como forma de se afastar do mundo, mas porque o homem é parte do mundo.SÓCRATES SÓCRATES SÓCRATES Por muitos considerado a figura simbólica mais alta da filosofia – porque pelas ideias e pela verdade morreu –, Sócrates (470-399 a.C.) desenvolveu seu pensamento no tempo de apogeu da vida cultural e social dos gregos. SÓCRATES Atenas vivia, na fase em que surgiu Sócrates, a época que foi chamada de Século de Péricles. Os atenienses haviam vencido a guerra contra os persas. Seu comércio abundante, seu desenvolvido artesanato e suas artes, sua cultura, seu cosmopolitismo, e, principalmente, seu arranjo político excepcional – a democracia – possibilitaram a Atenas a dianteira do pensamento filosófico. SÓCRATES Se os filósofos pré-socráticos surgiram e produziram seu pensamento nas colônias gregas, Atenas, ao tempo de Péricles, conseguiu por fim ser a sede inquestionável da filosofia entre os gregos. O grupo de Sócrates e seus discípulos – o mais famoso deles Platão, e também seu posterior e renomado aluno Aristóteles – marcou tal tempo. SÓCRATES No entanto, o socratismo não foi uma corrente solitária da filosofia ateniense àquele tempo. Pelo contrário, se estabeleciam também, em tal período, os pensadores ditos sofistas. É justamente contra eles, seus contemporâneos, que Sócrates se levanta filosoficamente. SÓCRATES Os sofistas foram os grandes artífices da construção da prática democrática ateniense. Os cidadãos da pólis ateniense não eram em número quantitativamente elevado, já que excluídos de tal condição estavam as mulheres, as crianças, os velhos, os escravos, os estrangeiros. Por isso, aqueles proprietários e homens livres que reuniam a condição de cidadania agiam em deliberação coletiva e direta para resolver os problemas e questões pertinentes à pólis. SÓCRATES Assim sendo, ao contrário da nossa contemporânea democracia representativa, na qual os cidadãos escolhem os líderes que deliberarão em seu nome. Após isso não mais se sentem obrigados a partilhar os destinos da sociedade, em Atenas os cidadãos discutiam diretamente, em praça pública, e seu interesse somente se fazia garantido por meio de sua própria expressão verbal. SÓCRATES Nesse contexto, os sofistas exerciam um papel ímpar. Eram mestres da retórica, ensinando a boa construção dos argumentos aos cidadãos. Não tinham um apreço intrínseco a tal ou qual ideia, mas, antes, ensinavam a expor bem qualquer ideia. SÓCRATES Seus préstimos eram fundamentais ao cidadão ateniense. A boa retórica era o instrumento necessário para a melhor persuasão dos concidadãos. Ensinando a argumentar, os sofistas formavam a elite política ateniense. SÓCRATES Sócrates se recusa a considerar os sofistas filósofos, justamente pelo desamor destes aos conceitos e ideias, na medida em que possibilitavam a venda das próprias ideias. SÓCRATES Tal moralidade socrática, que considera a filosofia como o amor ao saber, e, portanto, orienta a busca filosófica em direção dos conceitos estáveis, desprovidos das ambiguidades e dos floreios das argumentações, foi sempre muito apreciada pela filosofia medieval e moderna, o que fez de Sócrates o paladino da filosofia em contraposição aos sofistas, vendilhões da verdade. SÓCRATES Ao contrário da velha tradição pré-socrática, que buscava entender a natureza das coisas, portanto sua physis, os sofistas creditavam a verdade, a moralidade, a religião, a justiça e os conceitos políticos e sociais ao consenso, a uma convenção entre os homens. Era da persuasão que se formava a verdade. SÓCRATES A verdade não estava inscrita na natureza, na medida em que até os juízos sobre a natureza são humanos. Assim sendo, os sofistas encaminharam a filosofia a uma apreciação direta das questões sociais e políticas enquanto questões humanas, culturais, construídas de modo aberto e não dogmático. SÓCRATES Os sofistas sofreram restrições dos aristocratas atenienses, na medida em que, ensinando argumentações, possibilitavam aos demais cidadãos uma participação convincente e decisiva nas deliberações. Ao mesmo tempo, foram vistos com reprovação pelos socráticos, que os recriminavam por vender argumentos. SÓCRATES Mestres da retórica e da argumentação prática, para os casos concretos, os sofistas pouco escreveram, e os seus livros se perderam. Conhece-se seu pensamento, quase sempre, por meio de seus detratores. Platão e Aristóteles afastam-se explicitamente, em suas obras, do pensamento e do raciocínio dos sofistas. SÓCRATES Um dos mais famosos sofistas, Protágoras de Abdera, segundo Platão e a tradição, teria ensinado ser o homem a medida de todas as coisas. A verdade, para Protágoras, não deveria ser uma escavação da natureza, enquanto um dado objetivo e alheio ao homem e à pólis. Pelo contrário, a verdade era uma construção humana. SÓCRATES Nesse ponto, paradoxalmente, residiu a grande humildade dos sofistas, que se julgavam falíveis em suas opiniões, e justamente por isso abertos perenemente à possibilidade do entendimento das opiniões contrárias. SÓCRATES O papel de vendilhões do saber passa a ser muito matizado quando se observa que os sofistas contribuíram para trazer as discussões sobre os destinos do homem nas mãos do próprio homem, alicerçando, com a sua retórica, as bases da democracia ateniense. A argumentação enquanto técnica ensinada ao cidadão fez consolidar a possibilidade de articulação efetiva da democracia. SÓCRATES O eixo central do argumento dos sofistas, no que diz respeito ao direito, versa sobre a dicotomia entre nomos e physis. De um lado, a norma, tida como uma construção histórica, uma convenção humana, e, de outro lado, a natureza, como âncora e medida de todas as coisas. SÓCRATES As velhas classes aristocráticas atenienses, apegadas à noção de perene pertencimento à terra, às noções de sangue, predispunham-se a um entendimento do justo como sendo physis. Por sua vez, as classes democráticas propugnavam a justiça como uma convenção, podendo, portanto, ser alterada. SÓCRATES Protágoras foi decisivo no sentido de apontar para a justiça como uma convenção. Ela não está inscrita na natureza, na medida em que são os homens que atribuem significados justos ou injustos às coisas e situações. SÓCRATES Mas Sócrates, por sua vez, opunha-se frontalmente tanto ao estilo de pensamento dos sofistas – na medida em que não vendia argumentos – quanto também ao horizonte filosófico por eles proposto. Para Sócrates, a verdade e o justo não se reduzem ao nível das convenções. Não são mera estipulação variável, de acordo com as opiniões ou com a maioria. SÓCRATES Por sua vez, também a mera apreciação do justo como uma physis calcada nas tradições, sem melhor investigação filosófica, era rejeitada por Sócrates. Para Sócrates, era preciso buscar o fundamento das ideias e dos conceitos. SÓCRATES A atividade primeira do filósofo é a indagação sobre o que é, no sentido do esclarecimento e da iluminação em direção do verdadeiro. Ao contrário do sofista, que afasta a verdade porque a considera uma convenção, e, portanto, trabalha com as verdades, Sócrates busca a verdade. SÓCRATES O que configura o pensar socrático é justamente esse processo de busca. Não é Sócrates um professor que dá respostas aos seus alunos. Antes, é um perquiridor, que se indaga, reflete, pondera, faz volteios pelos caminhos da verdade. SÓCRATES Sócrates adota como divisa fundamental de sua filosofia a célebre frase “só sei que nada sei”, o que dá demonstrações de que seu pensamento não se constrói consolidando verdades estabelecidas, mas, antes, procurando-as, numa espécie de negatividade da razão, que vem a demolir as certezas socialmente assentadas. SÓCRATES O processo de procura torna-se fundamental. Daí, para Sócrates, mais importante que a própria conclusão sobre a verdade, é o método utilizado em todo esse processo. O método socrático da indagação é justamente a busca por extrair, no seio da multidão das opiniões e concepções divergentes, a essência da ideia e da verdade. SÓCRATES As contradições das pessoas com as quais Sócrates dialoga dá mostras da importância não do floreio entre argumentos – porque a vitória de um sofista em um argumento nunca é a vitória da verdade, mas do mais forte retoricamente – e, sim, do processo de desbastar as falsas impressões para que se possa surgir, do fundo das múltiplas opiniões, o uno da ideia e da verdade. SÓCRATES No oráculo de Delfos, inscrevia-se a divisa “conhece-te a ti mesmo”. Sócrates a toma como lema. Dissipando os preconceitos, as visões deturpadas e ligeiras, o homem há de chegar à verdade. Essa espécie de iluminação da alma é a pedagogia socrática e é também o sentido de sua filosofia enquanto prática de demonstração da ignorância de cada qual e de sua necessidade de reflexão mais profunda e menos convencional. SÓCRATES É justamente no entorno da busca pela verdade, entendida por Sócrates não como convenção, mas como objeto específico e passível de ser definido dialeticamente, que se situa sua reflexão sobre o direito. Sócrates é, ao mesmo tempo, aquele que rompe com a visão mitológico-religiosa e com a visão sofista sobre o justo. SÓCRATES Na história de Atenas, o surgimento da democracia envolvia também uma reflexão filosófica e um posicionamento político específico sobre a importância da lei. SÓCRATES Mas, já no tempo de Péricles, a ideia de que a legalidade se assentava sobre as velhas bases da religião e dos mitos havia entrado em decadência. Os sofistas, contra os quais argumentava Sócrates, levantavam, contra a ideia de uma correspondência da lei com os desígnios dos deuses, a ideia de seu caráter meramente convencional, humano. SÓCRATES Tal era o dilema da questão jurídica em Sócrates: as velhas tradições, que sustentaram a cidade e que lhe deram a unidade e a coesão até o presente, eram devotadas a uma espécie de direito religioso, haurido da mitologia de Themis e Dike. SÓCRATES Já as novas perspectivas filosóficas se assentavam sobre o caráter meramente convencional das normas e, portanto, sobre a sua construção humana, ocasional. Sócrates recusa tanto uma quanto outra visão sobre o direito. Pela primeira visão, tradicional, o direito exprimia um mundo intermediado pela religião. SÓCRATES Sócrates se insurge contra tal perspectiva, na medida em que sua pergunta não se orienta sobre o revelado, mas sobre o conhecido. Sua inquirição é racional. O justo e o jurídico não são objeto das velhas tradições. SÓCRATES Inclusive, ao quebrar em seus adversários de diálogo suas antigas convicções, nada mais faz Sócrates do que abalar os velhos entendimentos sobre o direito. Mas, de outro lado, Sócrates também não resvala pelo caráter meramente convencional da lei e da justiça. Nos diálogos de Platão, Sócrates persiste em considerar que o justo não é uma imposição de alguns contra outros, nem da maioria, nem do mais forte. SÓCRATES Portanto, a democracia, só pelo simples ato de vontade da maioria, não faz a boa lei nem faz o justo. A busca de Sócrates é a de extrair o conceito do justo por meio da razão. De dois modos se pode alcançar o pensamento jurídico de Sócrates. SÓCRATES Pelas suas ideias, em alguns dos diálogos propostos especialmente por Platão, e pela sua própria história pessoal de vida, na medida em que foi condenado pelos atenienses, defendeu- se por conta própria e, condenado, não fugiu nem comutou sua pena com multas. SÓCRATES Em alguns de seus diálogos, Platão se dedica especialmente a narrar os momentos da condenação e da execução de Sócrates. Comovido pela trajetória final de seu mestre, ao qual grande injustiça acomete, o discípulo transcreve e desenvolve uma série de diálogos em torno da reflexão sobre o direito e o justo. SÓCRATES Por isso, sua execução também lança reflexões sobre sua própria perspectiva de filosofia do direito. No que diz respeito à vida de Sócrates, há muitos relatos tratando de eventuais assuntos jurídicos e de falas sobre o justo. A mais importante fonte a respeito do pensamento de Sócrates sobre o direito e o justo está em Platão. SÓCRATES São quatro os mais importantes textos platônicos ligados a esse assunto: Eutífron, a Apologia de Sócrates, Críton e Fédon. Esses quatro diálogos escritos por Platão compõem a narrativa de uma sequência de fatos. SÓCRATES No Eutífron, Sócrates caminha em direção ao tribunal, na ocasião de seu julgamento, e encontra Eutífron, que por sua vez também estava envolvido em uma questão judicial. Por meio do diálogo com Eutífron, Sócrates reflete a respeito da ligação do justo com a moral e a religião. SÓCRATES Sócrates – Era uma coisa semelhante a esta que eu queria dizer-te há um momento, foi por isto que perguntei se onde está a justiça, também está a piedade, ou o que dá na mesma, se tudo que é piedoso é justo, pode haver algo que sendo justo, não seja totalmente piedoso. Consideraríamos então a piedade como uma parte da justiça. Estamos de acordo quanto a isto ou desejarias manifestar-te de outra forma? Eutífron – Não, uma vez que me parece estares dizendo coisas corretas. SÓCRATES Eutífron – Creio, entretanto, Sócrates, que acerca disto não exista nenhum desacordo entre os deuses que chegue ao ponto de afastar o fato de que deva ser castigado aquele que matou alguém injustamente. Sócrates – Como? E quanto aos homens, Eutífron, não ouviste, por acaso, como se discute que aquele que matou injustamente ou cometeu uma ação injusta deva ser castigado? SÓCRATES Eutífron – Claro, e é o que não deixam de discutir em todos os lugares e diante dos tribunais. Mostram-se, destarte, incrivelmente injustos, mas fazem e dizem, finalmente, todo o necessário para escapar ao castigo. Sócrates – [Eles] Convêm então, Eutífron, nas injustiças, mas, contudo, pretendem que não sejam castigados? SÓCRATES Eutífron – Pelo menos não atuam doutra forma. Sócrates – Não cumprem, portanto, neste caso, tudo o que fazem e dizem. Porque, segundo creio, não se atrevem a manter, nem o discutem, que devam escapar ao perigo se cometem alguma ação injusta. Não é assim? SÓCRATES Eutífron – Dizes a verdade. Sócrates – Não discutem, de modo algum, que o culpado deva ser castigado, mas que, se produz uma discussão, centram-na na questão de quem é o culpado, o que fez e quando. SÓCRATES Eutífron – É assim. Sócrates – A mesma coisa acontece com os deuses, se é que eles, segundo afirmas, também estão em desacordo acerca do justo e do injusto, e alguns pretendem que os outros cometam injustiças e estes, que não. Com o que comprovas, admirável amigo, que nenhum dos deuses e dos homens se atreve a sustentar que não se deva castigar a injustiça. SÓCRATES Eutífron – Sim, é verdade o que dizes, Sócrates, pelo menos no fundamental. Sócrates – Os que discutem, sejam homens ou deuses, supondo-se que discutam, apenas dissentem, Eutífron, acerca de cada caso em particular. Sua opinião difere relativamente a um determinado ato, pois alguns afirmam que esse ato é justo e outros que é injusto. Não é? SÓCRATES A Apologia de Sócrates é um dos momentos mais importantes de sua reflexão jurídica. Levado ao tribunal, antes do julgamento, Sócrates se defende e inclusive dialoga diretamente com seu acusador, Meleto. Sócrates não busca se valer de subterfúgios para escapar à condenação. SÓCRATES Mas excetuando, ó cidadãos, o bom nome da cidade, não me parece justo influir sobre os juízes e com súplicas escapar da condenação, mas sim instruí-los e persuadi- los. Uma vez que o juiz não está neste lugar para fazer graça ao justo, mas para julgar o justo, nem jurou que concederá graça a quem lhe paga, mas que fará justiça segundo as leis. SÓCRATES E então não é preciso que vos habituemos a violar o juramento, nem que vos habitueis a isso, não faremos coisas boas e pias, nem vós, nem nós. Não desejais então, ó cidadãos de Atenas, que eu cometa diante de vós atos que julgo desonestos, injustos e ímpios e muito menos eu, eu que sou acusado por Meleto, aqui presente, de impiedade SÓCRATES Antes, busca esclarecer, por meio do diálogo, as acusações que lhe são imputadas, de corromper os jovens com novas ideias e de trazer novos deuses ao culto dos atenienses. Sua argumentação vai ao fundamento do que se acusa e sobre sua relação com os juízes e as leis de Atenas. SÓCRATES Após o veredicto de sua condenação à morte, o texto da Apologia escrito por Platão ainda narra o comentário de Sócrates, feito ainda no próprio tribunal, sobre a pena que lhe foi imputada e sobre os juízes que lhe foram a favor e contra. SÓCRATES O Críton (ou Critão) é o diálogo mais importante de Sócrates a respeito do justo. Após ser condenado, Sócrates é então levado à prisão, onde esperará sua execução. No entanto, somente seria morto quando retornasse um navio dos atenienses que levara oferendas a um oráculo. SÓCRATES Nesse intervalo, vários discípulos acorreram, na tentativa de salvar Sócrates da morte. Críton, um discípulo de Sócrates rico e bem relacionado, estabelece diálogo com o mestre buscando convencê-lo a fugir, ou a exilar-se, ou a subornar os juízes e os soldados. Sócrates rejeita todos os favorecimentos. SÓCRATES Sócrates – Continua, pois, atento: se ao seguir a opinião dos ignorantes destruíssemos aquilo que apenas por um regime saudável se conserva e que pelo mau regime se destrói, poderemos viver depois da destruição do primeiro? E, diga-me, não é este nosso corpo? Críton – Sem dúvida, nosso corpo. Sócrates – E podemos viver com um corpo corrompido ou destruído? Críton – Seguramente não. SÓCRATES Sócrates – E poderemos viver depois da corrupção daquilo que apenas pela justiça vive em nós e do que a injustiça destrói? Ou julgamos menos nobre que o corpo, essa parte de nós mesmos, qualquer que seja, a que se refira à justiça e à injustiça? Críton – De modo algum. Sócrates – E, não é a mais preciosa? Críton – Muito mais. SÓCRATES Sócrates – Portanto, querido Críton, não devemos nos preocupar com aquilo que o povo venha a dizer, mas sim pelo que venha a dizer o único que conhece o justo e o injusto e este único juiz é a verdade. Donde poderás concluir que estabeleceste princípios falsos quando disseste inicialmente que deveríamos fazer caso da opinião do povo acerca do justo, o bom, o digno e seus opostos. SÓCRATES Para Críton, seria vergonhoso que, em podendo salvá-lo, seus amigos nada fizessem em seu favor. Por essa razão, pedia que Sócrates fugisse, tendo em vista a opinião das pessoas. O ponto nevrálgico da questão jurídica, no Críton, está no respeito às leis da cidade, na medida de uma honra necessária do cidadão à pólis. SÓCRATES Sócrates – Vejamos se assim o entendes melhor. Se chegado o momento de nossa fuga, ou como o queres chamar, nossa saída, as leis da pólis, apresentando-se a nós, nos dissessem: “– Sócrates, o que vais fazer? Levar teu projeto a cabo não implica em destruir-nos completamente, uma vez que de ti dependem, para nós, as leis da pólis e a todo o Estado? Acreditas que um Estado pode subsistir quando as sentenças legais nele não têm força e, o que é mais grave, quando os indivíduos as desprezam e destroem? SÓCRATES Em todo o Críton, concluindo a sequência dos diálogos que envolviam a condenação de Sócrates, Platão narra a determinação socrática em fazer do cumprimento de sua sentença um dever moral, na medida do respeito à pólis. Por fim, após o Críton, o diálogo Fédon trata dos momentos finais de Sócrates e de sua execução, tomando veneno. Neste último diálogo, Sócrates reflete sobre a morte e a alma. SÓCRATES Perpassa por toda a discussão socrática no Eutífron, na Apologia e no Críton, um respeito às instituições jurídicas e à pólis, como testemunho de um vínculo necessário a ligar o destino jurídico individual e a organização política do todo. Ocorre que o vínculo entre indivíduo e pólis, para Sócrates e Platão, é haurido de fontes muito distintas daquelas tradicionalmente pensadas pelos filósofos e juristas modernos. SÓCRATES Para os juristas da modernidade, o indivíduo se liga à pólis porque contratou viver em sociedade – trata-se da teoria moderna do contrato social. Para Sócrates e Platão, no entanto, por mais diversas sejam as generalidades de suas explicações da ligação do homem à sociedade, o caráter político da natureza humana é seu ponto comum de interpretação. SÓCRATES Por não ter fugido à condenação, uma leitura superficial dos textos referentes ao direito em Sócrates poderia até mesmo levar à acusação de um certo pioneirismo juspositivista. No entanto, o pensamento socrático não é, de modo algum, precursor do juspositivismo. Sócrates não se submete às leis por reconhecer seu acerto. Tampouco considera a sua sentença justa. SÓCRATES Sua proposta, ao não fugir da execução, não se encaminha pela justeza do direito positivo. Sua visão é muito mais moral e filosófica: acima do direito positivo há um justo, que pode ser compreendido pela razão, e aceitar o justo é um dever. SÓCRATES A condenação de Sócrates, sendo injusta, revelaria aos atenienses com clareza o justo, por contraste. Da injustiça do seu caso concreto não decorreria, como os sofistas poderiam imaginar, a inexistência de marcos racionais do justo. Para Sócrates, eles existem, e seu exemplo serviria para demonstrar a injustiça. SÓCRATES O fato de Sócrates não ter fugido não quer representar uma admiração aos mecanismos de aplicação imediata das normas jurídicas. Pelo contrário, Sócrates declara a injustiça da pena que contra ele se impõe. Contra a ausência de rigidez moral e de alcance da verdade dos cidadãos atenienses é que ele se opõe, e sua submissão à sentença é, na verdade, uma ação política de abalo e incômodo. SÓCRATES Sócrates: mas a vós que me condenastes quero fazer uma predição, e dizer aquilo que acontecerá depois. Estou agora naquele limite em que os homens fazem mais facilmente predições, quando estão para morrer. Eu digo, ó cidadãos, que me haveis matado, que uma vingança recairá sobre vós, logo depois de minha morte, muito mais grave do que a que realizaste matando-me. Fizestes isso, hoje, na esperança de liberação, só prestar contas de vossas vidas e em lugardisso, obtereis precisamente o contrário, eu vo-lo predigo. Não apenas eu, mas muito vos pedirão contas todos aqueles que se relacionaram comigo e não percebestes. SÓCRATES Sócrates: e serão tanto mais obstinados quanto mais jovens são, e tanto mais quanto mais os desdenhardes. Pois se pensais, matando homens, impedir a alguém que vos cause vergonha pelo vosso viver não reto, pensais mal. Não, este não é o modo de se libertar daqueles, e de fato não é possível, nem belo, mas há um outro modo, facílimo e belíssimo, não tirar a palavra de ninguém, mas simplesmente cuidar de ser sempre mais virtuoso e melhor. Este é meu vaticínio, a vós que me haveis condenado; e convosco terminei. SÓCRATES Distanciando-se dos sofistas, para quem a verdade era um produto volátil, humano, meramente convencionado como tal, e afastando- se também dos que imaginavam o justo uma repetição da tradição revelada pelos deuses, Sócrates situa a virtude, a razão e a verdade como sendo critérios do justo. SÓCRATES Uma leitura conservadora, juspositivista, diria que Sócrates não fugiu da condenação por devoção à ordem jurídica estabelecida. Uma leitura mais crítica, no entanto, diz que Sócrates separa a apreciação moral do justo da sua mera afirmação jurídica. SÓCRATES Apoiado na razão, Sócrates empreendeu bem mais do que um pretenso elogio ao direito de Atenas, do qual na verdade foi voraz crítico: fez uma filosofia do direito. PLATÃO PLATÃO PLATÃO Platão (428-347 a.C.) é a primeira grande expressão genial da história da filosofia. Seu legado escrito, constituído em geral sob a forma dos chamados Diálogos, preservou-se em sua maioria até os dias atuais. Preocupado com as questões últimas e mais profundas da filosofia, Platão é responsável por um grande sistema de pensamento que deixou indeléveis marcas na visão de mundo ocidental, desde seu tempo até hoje. PLATÃO Pode-se dizer mesmo que uma espécie de metafísica das ideias como sendo o senso comum médio da filosofia principiou com Platão. O mais importante aluno de Sócrates, Platão descendia de família nobre e aristocrática de Atenas. PLATÃO Seus parentes inclusive foram responsáveis pelo governo ateniense em tempos que lhe foram imediatamente anteriores. Desde jovem Platão acompanhou os passos do ensino de Sócrates, tendo vivenciado proximamente seu julgamento e execução, guardando desse fato profundas implicações para seu posterior pensamento filosófico, político e jurídico. PLATÃO Talhado desde o berço familiar para a política, Platão renunciou, a princípio, à atuação na liderança política, situação reforçada pela perseguição ateniense a Sócrates e seus discípulos, o que lhe fez ter como ocupação inicial, mais do que agir, compreender os fundamentos da política e da justiça. PLATÃO Somente em etapa posterior, já com seu sistema filosófico fundado, Platão dedicou-se à prática política, sugerindo leis para Atenas e Siracusa, por exemplo. Em muitas dessas ocasiões, logrou grande insucesso pessoal, sofrendo inclusive prisões. PLATÃO Em Atenas, após as perseguições e o exílio devidos à condenação de Sócrates e a sorte que recaiu sobre seus discípulos, Platão leciona naquela que fundou e que seria a primeira grande escola de filosofia do passado, a Academia. Dentre os melhores jovens filósofos que formou, esteve Aristóteles, seu mais brilhante discípulo. PLATÃO O pensamento de Platão é vasto, utilizando-se dos diálogos como meio de exposição de seu pensamento. No geral, os diálogos relatam conversas que têm por principal interlocutor Sócrates, travando palestras com inúmeros personagens. PLATÃO A história da filosofia dedicou-se, sempre com muita controvérsia, a saber da veracidade de tais diálogos. É possível que, em vários casos, tenha mesmo Sócrates desenvolvido tais ideias. PLATÃO Mas, também, é certo que, principalmente nos diálogos escritos em sua maturidade, Platão utiliza Sócrates muito mais como mote para o desenvolvimento de suas próprias ideias do que propriamente como personagem de quem se relate fielmente seus fatos havidos. PLATÃO A importância dos diálogos de Platão é muito grande na filosofia. Além disso, têm uma estrutura muito específica. Os diálogos platônicos não são tratados de filosofia do modo como se conhece na sua forma moderna, de ensaio ou monografia. PLATÃO A estrutura dos diálogos é espiralada e não linear, com reviravoltas, mudanças de cadência e abertura de ideias que revelam uma construção filosófica em ato. O desenrolar dos diálogos se presta a constituir, no leitor e naquele que o acompanha, uma espécie de formação moral e intelectual da verdade e das ideias. PLATÃO Fundamental na leitura dos diálogos é, justamente, o entendimento de seu método, de sua estrutura. Platão apresenta uma lógica de ideias que deve ser captada nas entranhas dos muitos desenvolvimentos dos diálogos. Logo de início, ressalta-se a dialética como meio de apreensão da verdade. É a partir da dialética que o método platônico se constrói. PLATÃO Em textos como A República, a obra maior do sistema platônico, e na sua famosa Carta VII, explicita-se a construção do método dialético em Platão. Para ele, é impossível fixar a razão nos limites da apreensão sensível das coisas. A realidade é contingente, falha, limitada. PLATÃO É preciso, pois, fazer um movimento de busca de uma realidade suprassensível, que alcance o nível das Ideias (eîdos). Platão, portanto, distingue o mundo das realidades sensíveis daquele nos quais as Ideias se assentam. PLATÃO A dialética é o método que permite sair do mundo sensível e alcançar as ideias. Enquanto atrito de percepções, fatos, opiniões e diálogos, a dialética supera o nível das imagens e das definições dos dados sensíveis. PLATÃO Ao contrário dos sofistas, que dialogavam para que no limite as partes chegassem a um acordo, a uma concessão, a um meio-termo entre duas opiniões. Na dialética platônica trata-se do atrito de entendimentos para que, ao final, numa espécie de salto, chegue-se à verdade. PLATÃO O contraste com os sofistas – que dialogavam para facilitar as convenções, o mero consenso – serve para explicitar que a busca platônica é pela essência, por aquilo que paire soberano por sobre as falsas opiniões, o Bem. A essência não está contingente aos fatos, a cada fenômeno que se vê, mas, sim, impõe-se como Forma, no geral. PLATÃO Não é a compreensão de cada objeto da realidade que exprime sua verdade. É a compreensão da essência, da Ideia suprema, que levará ao verdadeiro. A posterior aplicação da Ideia na realidade constitui-se na ciência, uma ciência perfeita, porque de conclusões extraídas a partir do princípio essencial. PLATÃO Há um símbolo marcante para tratar das Ideias em Platão. É o conhecido Mito da caverna, exposto no Livro VII da República. PLATÃO Na narrativa dada a Platão a tal mito, havia presos agrilhoados que, de dentro de uma caverna e de costas à luminosidade do exterior, observavam a movimentação da realidade externa e, a partir das sombras dos objetos e seres que estavam no exterior da caverna, faziam juízo a seu respeito, sobre sua forma, sua aparência, seu tamanho. PLATÃO Na verdade, no entanto, viam apenas as sombras desses seres projetadas no interior da caverna. Em uma certa ocasião, libertando-se dos grilhões que os prendiam,um daqueles que se situavam na caverna sobe ao alto, e tal subida é difícil, já que o corpo até então agrilhoado não está acostumado ao movimento. PLATÃO Ao chegar ao exterior, cega-se, num primeiro momento, com a luz solar que brilhava. Mas, após se acostumar a enxergar sob a claridade da luz, passa a compreender que as sombras que via projetadas na caverna, na verdade, eram imagens distorcidas. A verdade não estava naquilo que suas percepções corrompidas viam a partir das sombras. A luminosidade do ser só brilhou quando da libertação das imagens e dos conceitos imperfeitos. PLATÃO No mito proposto pela boca de Sócrates na República, há ainda a incompreensão daqueles que, de dentro da caverna, ouvem daquele que subiu, em sua volta, o relato da verdade do mundo exterior. Suas imagens distorcidas que sempre viram não correspondem ao relato tido por fantasioso e absurdo do homem que se libertou. PLATÃO A luz que brilhou e possibilitou que o liberto da caverna visse a plena verdade não é bem aceita pelos seus, que passam a persegui-lo e o matam, numa simbologia muito forte, a respeito do próprio destino que os atenienses deram a Sócrates. PLATÃO Sócrates – Agora, meu caro Glauco, é preciso aplicar, ponto por ponto, esta imagem ao que dissemos atrás e comparar o mundo que nos cerca com a vida da prisão na caverna, e a luz do fogo que a ilumina com a força do Sol. Quanto à subida à região superior e à contemplação dos seus objetos, se a considerares como a ascensão da alma para a mansão inteligível, não te enganarás quanto à minha ideia, visto que também tu desejas conhecê-la. PLATÃO Só Deus sabe se ela é verdadeira. Quanto a mim, a minha opinião é esta: no mundo inteligível, a ideia do bem é a última a ser apreendida, e com dificuldade, mas não se pode apreendê-la sem concluir que ela é a causa de tudo o que de reto e belo existe em todas as coisas; no mundo visível, ela engendrou a luz e o soberano da luz; no mundo inteligível, é ela que é soberana e dispensa a verdade e a inteligência; e é preciso vê-la para se comportar com sabedoria na vida particular e na vida pública. PLATÃO Tal é o idealismo platônico, que separa a realidade sensível da plenitude das essências, estas como conceitos plenos. A realidade sensível é uma corrupção das plenas Ideias. Nos diálogos, o método dialético alcança a plenitude da essência, por meio de uma condução firme e segura dos mestres, como é o caso de Sócrates, que demonstra o limite das opiniões comuns e leva a outro patamar de entendimento filosófico. PLATÃO Sócrates – Portanto, o método dialético é o único que se eleva, destruindo as hipóteses, até o próprio princípio para estabelecer com solidez as suas conclusões, e que realmente afasta, pouco a pouco, o olhar da alma da lama grosseira em que está mergulhado e o eleva para a região superior, usando como auxiliares para esta conversão as artes que enumeramos. PLATÃO Seja por meio da reminiscência, seja por meio do diálogo, valendo-se do método dialético de superar a aparência para buscar a essência, aquele que alcança a plena ideia é o sábio, o filósofo. Se ele alcança o Bem supremo, é ele quem deverá dar luzes, leis e governo aos demais. Começa, a partir daí, a filosofia política e jurídica de Platão. PLATÃO Na sua obra máxima, A República, Platão expõe o primeiro importante sistema de reflexão sobre o direito e o justo da história da filosofia. Sobre o próprio direito, ainda, há um outro grande tratado platônico, As leis, que foi o último escrito de sua vida, e também a sua obra mais extensa. Além disso, questões jurídicas e sobre o justo encontram-se presentes em muitos outros diálogos, como, por exemplo, em O político. PLATÃO A concepção platônica sobre o justo é muito peculiar e especial. Difere totalmente da visão que o jurista moderno tenha sobre o direito. Para o pensamento de Platão, torna-se muito difícil dissociar direito de justiça, o que é reforçado pelo fato de que a mesma palavra, díkaion, é utilizada de maneira intercambiável no texto platônico para essas duas ideias. PLATÃO Para Platão, de um modo surpreendente ao olhar moderno é possível até mesmo considerar que uma lei injusta não seja direito, conforme assevera em As leis. O direito injusto não é direito. PLATÃO Por isso, há um desenvolvimento de uma teoria jurídica platônica que busca compreender o direito a partir de quadrantes maiores, lastreado na política e na virtude. O próprio processo dialético de descoberta do direito é amplo e pleno, não se limitando simplesmente ao dado normativo. PLATÃO No pensamento filosófico de Platão, não se pode considerar que o conhecimento do direito seja, simplesmente, uma apreensão empírica dos fatos jurídicos ou das normas jurídicas. Platão não é um juspositivista. Pelo contrário, o juspositivismo, que descuida de outras questões que não a mera lei, matou Sócrates. Assim sendo, não é do afazer quotidiano dos que se ocupam da lei que se pode extrair o justo e o direito. PLATÃO Levantando-se contra a democracia de Atenas, sua própria pólis – que se ocupava dos trâmites das normas mas não de sua essência nem de sua justeza –, Platão considera que a assembleia democrática, ao fazer as leis, o faz tal qual uma mesma assembleia de cidadãos buscando, por maioria de votos, fazer prescrições médicas a um doente. PLATÃO O sofista, que argumentava para conseguir a aprovação de uma lei do interesse daquele que lhe pagava, ou mesmo que atuava numa função próxima à do moderno advogado, sofre uma censura fundamental por parte de Platão, pelo seu debate que não se fixa em torno do justo, mas apenas nos quadrantes do convencimento da maioria. PLATÃO Por isso, se se quiser pensar no direito e no alcance do justo, devido à inabilidade e à falta de conhecimento filosófico e dialético do povo, dever- se-á afastar a busca do justo do debate sofista e descompromissado, levando-a, necessariamente, ao caminho de seu encontro na ideia, sendo que o filósofo, o sábio ao qual a ideia se revela na alma, é aquele que pode alcançar o justo. PLATÃO No sentido vulgar e comum, o direito se esparrama pelos fatos e pelas opiniões das pessoas na sociedade. Em A República, logo em sua entrada, no livro I, Platão expõe, pela boca de Sócrates, as mais variadas opiniões comuns a respeito da justiça, como a de Polemarco e a de Trasímaco, o sofista, que imagina que a justiça é o proveito que se dá ao mais forte. Platão faz Sócrates rejeitar todas essas opiniões. PLATÃO A primeira das refutações de Sócrates se dá quanto às ideias de Céfalo, pai de Polemarco. Homem rico e bom, de responsabilidade e sabedoria apreciadas por muitos – reconhecidas inclusive pelo próprio Sócrates –, Céfalo expõe uma noção de justiça como cumprimento dos deveres em face dos outros e das coisas. PLATÃO Aquele que cumpre com suas obrigações seria justo. Sócrates, no entanto, mesmo reconhecendo em tal visão uma ponderação valiosa, refuta-a, rejeitando, então, um caráter do justo como mero cumprimento obrigacional, num sentido de pagamento comercial ou de uma desincumbência retilínea da verdade. PLATÃO Céfalo, fabricante de armas, não poderia ser considerado justo apenas por entregar a alguém o que fosse seu. Restituir uma arma a quem não tivesse condições mentais para portá-la seria uma injustiça contra a própria sociedade. PLATÃO Sócrates – As tuas são palavrasmaravilhosas, ó Céfalo. Mas essa virtude de justiça resume-se em proferir a verdade e em restituir o que se tomou de alguém, ou podemos dizer que às vezes é correto e outras vezes incorreto fazer tais coisas? Vê este exemplo: se alguém, em perfeito juízo, entregasse armas a um amigo, e depois, havendo se tornado insano, as exigisse de volta, todos julgariam que o amigo não lhe as deveria restituir, nem mesmo concordariam em dizer toda a verdade a um homem enlouquecido. Céfalo – Estou de acordo. Sócrates – Como vês, justiça não significa ser sincero e devolver o que se tomou PLATÃO Trata-se, da parte de Sócrates, de um rompimento bastante precoce em face de uma visão do justo adstrita às partes ou às coisas, ou mesmo mercantil, para postular uma análise das implicações sociais – e, portanto, totais – dos atos e de suas distribuições justas. De algum modo, dentre outros, Aristóteles também retomará tal visão posteriormente. PLATÃO Buscando superar suas definições vulgares e, posteriormente, intentando alcançar sua essência, o direito deve ser buscado pelo sábio, pelo filósofo, que, se o alcança ao nível das ideias, deverá então legislar. PLATÃO A questão do justo, assim sendo, desloca-se, em Platão, do plano do indivíduo para o plano da pólis. Será a pólis justa a medida dos homens justos, e não o contrário. Isso quer dizer, havendo distorções graves na sociedade, não se há de dizer que os afazeres jurídicos individuais possam lhes ser considerados alheios. PLATÃO Para a modernidade, todos os homens se avaliam individualmente por justos e a sociedade é injusta. Platão, desde o início, supera tal dilema: não há homem justo numa sociedade injusta, porque a medida da justiça é social. PLATÃO Para tal justiça social, uma série de realizações há de se constituir. A busca das aptidões mais apropriadas a cada qual dentro da sociedade remete a filosofia de Platão à preocupação com a educação. PLATÃO É por meio da paideia, da educação, que se há de descobrir as variadas classes sociais, dos artesãos, dos guerreiros e mesmo dos filósofos, às quais correspondem as virtudes da moderação, da coragem e da sabedoria. A possibilidade de uma igual educação a princípio a todos é que demonstrará as melhores aptidões de alguns em relação aos demais. PLATÃO As variadas experiências de Platão na pólis de Siracusa, quando convidado para lá legislar, dão dimensão dessa tentativa de transformar as bases dos arranjos sociais. Assim sendo, o justo, para Platão, não se reduz à lei justa, mas sim se verifica na sociedade justa, não na forma, mas sim no conteúdo, no substancial. PLATÃO Isso quer dizer que o homem justo não é simplesmente um técnico das normas, mas um economista, um político, um homem de ação social. O jurista só o será se for um homem plenamente político, ou então os seus afazeres jurídicos não serão direito nem ele será verdadeiramente jurista. PLATÃO A democracia não é o modelo perfeito para a apreensão do justo. Pela educação é que há de se revelar o sábio, o filósofo. Esse é o homem justo, e, portanto, é ele que deverá se tornar legislador. PLATÃO Que o filósofo seja rei, que o rei seja filósofo, nisso reside uma fórmula surpreendente para um filho de Atenas que viveu o milagre da experiência democrática. Mas tal ideia se revela, no sistema platônico, uma decorrência necessária de suas amarras gerais. A leitura que os tempos históricos fizeram de Platão reconheceu nele um totalitário, cuja proposta de um governo do melhor é, na verdade, um modelo acabado de ditadura. PLATÃO De fato, a leitura de Platão presta-se a tal assunção do sábio sobre os demais. Mas, mitigando a leitura totalitária, é também fundamental lembrar que, para Platão, a medida do justo está na pólis. Assim sendo, não é o soberano legislador o momento mais institucionalizante da filosofia platônica. PLATÃO É a sua sabedoria – ou seja, a sua justiça concretizada na justa pólis, que lhe é espelho – a âncora do poder. O governante não sábio, que torna uma sociedade injusta ou a conserva como tal, não deve permanecer no poder. ARISTÓTELES ARISTÓTELES Aristóteles representa o apogeu do pensamento filosófico grego, e o mesmo se pode dizer para a filosofia do direito. Após sua morte, durante toda a Antiguidade e a Idade Média, suas reflexões jusfilosóficas foram tidas como o mais alto patamar de ideias sobre o direito e o justo já construídas. ARISTÓTELES Discípulo de Platão, Aristóteles (384-322 a.C.) estava também envolvido no ambiente filosófico que ensejou o socratismo e o platonismo, ainda que a seu modo. A acentuada tendência platônica a uma construção filosófica ideal passa a ser amenizada no pensamento de Aristóteles, na medida em que a experiência é elemento fundamental de sua reflexão. Filho de médico, desde a infância em contato com a empiria dos casos clínicos, Aristóteles construiu sua filosofia tendo por base as realidades que se apresentavam ao seu estudo. ARISTÓTELES Naquilo que tange à construção direta de uma filosofia política e do direito revolucionária, que viesse a transformar a realidade, Aristóteles é mais prudente que seu mestre Platão. Este era filho de Atenas, de velhas tradições políticas familiares. Aristóteles era estrangeiro em Atenas, portanto com participação muito limitada na vida política. ARISTÓTELES De fato, ao contrário de Platão, que analisava a situação social do seu tempo e estabelecia planos de transformação da realidade, Aristóteles consolida as opiniões, as possibilidades, os fatos e as situações da realidade, mas sem tomar partido maior dos caminhos de mudança ou de alteração do já dado. Aristóteles, mais ponderado e de maior contato com a realidade do que Platão, é menos visionário que seu mestre. ARISTÓTELES No Liceu, sua própria escola filosófica, Aristóteles desenvolveu sua pesquisa por várias áreas do conhecimento. Após o período discente na Academia de Platão e após a experiência de ter sido o professor de Alexandre, o Grande, na Macedônia, sua terra natal, Aristóteles, na sua volta a Atenas, organizou, no Liceu, uma série de reflexões em vários campos do saber. Tal conhecimento, que alcançou várias áreas, consolidou-se de modo bastante sistemático. ARISTÓTELES Aristóteles é mesmo considerado o maior sistematizador de toda a filosofia em sua história, pelo caráter estruturado e lógico de seu pensamento. Não só na filosofia geral Aristóteles brilhou. Na lógica, naquilo que hoje denominamos por ciências, como a própria biologia, botânica, zoologia, nas questões relacionadas a todos os campos das ciências humanas, política, sociologia, ética, Aristóteles representou o que houve de melhor no pensamento clássico. ARISTÓTELES O mesmo grande impacto se deu com a reflexão jurídica. Aristóteles é o maior pensador das questões do direito e da justiça já havido até seu tempo, e durante muitos tempos posteriores assim foi considerado. Participou também – ainda que de modo mais discreto que Platão – da política e da confecção de muitas legislações em muitas pólis. ARISTÓTELES Aristóteles, após o estudo sistemático de mais de uma centena de constituições conhecidas ao seu tempo, escreveu um projeto de constituição para Atenas. Sua grande reflexão sobre o direito está contida na obra Ética a Nicômaco (que leva o nome de seu filho, a quem dedica a obra). Nesse texto, que é talvez a maior expressão do pensamento jurídicoem todo o passado, as questões sobre o direito e o justo estão concentradas no seu Livro V. ARISTÓTELES Além da Ética a Nicômaco, Aristóteles trata das questões jurídicas em outra obra de grande relevância, A política. Em outra obra, a Retórica, sua preocupação alcança também o direito, na medida em que se refere à argumentação jurídica. Mas em várias outras obras, desde a sua juventude até sua maturidade, Aristóteles também trata incidentalmente do direito. ARISTÓTELES A grande excepcionalidade da filosofia do direito de Aristóteles se revela pela sua sistematização filosófica da justiça. As partes iniciais do Livro V da Ética a Nicômaco estão voltadas a essa questão. Logo de início, Aristóteles separa dois grandes campos de compreensão sobre a justiça. Ela pode ser tomada no sentido universal e no sentido particular. ARISTÓTELES - JUSTIÇA UNIVERSAL E PARTICULAR Na sua perspectiva universal, a justiça é tomada num sentido lato. Ela tanto é uma manifestação geral da virtude quanto uma apropriação do justo à lei que, no geral, é tida por justa. O respeito à lei é a característica desse justo que é tomado no sentido lato. ARISTÓTELES - JUSTIÇA UNIVERSAL E PARTICULAR Para Aristóteles, diferentemente dos modernos, a lei, produzida na pólis a partir de um princípio ético, é diretamente relacionada ao justo, mas não por conta de sua forma (ou seja, não é justa somente porque é formalmente válida), e sim em razão de seu conteúdo. ARISTÓTELES - JUSTIÇA UNIVERSAL E PARTICULAR Para Aristóteles, uma má lei não é lei. Sendo a lei somente a lei justa, a justiça tomada no seu sentido universal não deixa de ser, também, o cumprimento da lei. Ainda enquanto justiça universal, a justiça é a virtude que está em todas as demais virtudes. A caridade ou a paciência, por exemplo, e todas as virtudes demandam um conteúdo específico que as tipifica. ARISTÓTELES - JUSTIÇA UNIVERSAL E PARTICULAR Diz-se que a caridade se tipifica num ato de dar. Mas aquele que dá ao poderoso, por medo de ser violentado, e não dá ao necessitado, por lhe ser superior em poder, não é caridoso, porque ao mero ato de dar deve se acrescer a justiça do ato. ARISTÓTELES - JUSTIÇA UNIVERSAL E PARTICULAR O paciente com o chefe e impaciente com o subordinado também não tem essa virtude da paciência, na medida em que esta presume o seu agir com justiça. A caridade não é uma virtude em si própria sem que se lhe acresça a virtude da justiça. O mesmo com a paciência. ARISTÓTELES - JUSTIÇA UNIVERSAL E PARTICULAR Alguém pode ser justamente caridoso e impaciente. A caridade presume justiça, a paciência presume justiça, mas a caridade não presume paciência. A justiça está em todas as demais virtudes, e por isso é a única virtude universal. ARISTÓTELES - JUSTIÇA UNIVERSAL E PARTICULAR Mas, ao mesmo tempo em que justiça é uma virtude universal, configurando todas as demais, a justiça é também uma virtude em si mesma. Somente ela tem um conteúdo específico que não demanda em acréscimo outra virtude. ARISTÓTELES - JUSTIÇA UNIVERSAL E PARTICULAR Estudar o que vem a ser a justiça em si é tomá- la então no seu sentido particular. Aristóteles dirá que, tradicionalmente, por justiça, em sua apreensão específica e estrita, considera-se a ação de dar a cada um o que é seu, sendo essa a regra de ouro sobre o justo. A justiça, assim, compreende uma ação de distribuição, que demanda uma qualidade de estabelecer o que é de cada qual. ARISTÓTELES - JUSTIÇA UNIVERSAL E PARTICULAR Tal ideia de justiça particular será um dos momentos culminantes da reflexão aristotélica sobre o justo. Aristóteles chama a atenção para duas grandes manifestações da justiça tomada no seu sentido estrito: justiça distributiva e justiça corretiva, que se subdivide em voluntária e involuntária. ARISTÓTELES - JUSTIÇA UNIVERSAL E PARTICULAR Além da justiça distributiva e da justiça corretiva, há um caso especial na justiça particular: a reciprocidade. Embora não diretamente elencada ao lado das duas subespécies anteriores, ela não se confunde com nenhuma das duas, constituindo, pois, uma previsão especial, à parte. ARISTÓTELES - JUSTIÇA UNIVERSAL E PARTICULAR Pode-se, então, entender graficamente o quadro da justiça em Aristóteles da seguinte forma: ARISTÓTELES - JUSTIÇA DISTRIBUTIVA Para Aristóteles, a justiça distributiva trata da distribuição de riquezas, benefícios e honrarias. Apresenta-se como a mais alta ocupação da justiça, e também a mais sensível. A distribuição compreende sempre dois sujeitos em relação aos quais se avalia a justa distribuição dos bens, e dois bens, que serão divididos entre tais pessoas. ARISTÓTELES - JUSTIÇA DISTRIBUTIVA Assim sendo, a distribuição compreende uma espécie de função matemática tal qual uma regra de três, uma proporção geométrica. A justa distribuição, para Aristóteles, é um justo meio-termo entre duas pessoas e duas coisas. O critério fundamental para tal distribuição justa é o mérito. ARISTÓTELES - JUSTIÇA DISTRIBUTIVA A justiça distributiva utiliza como parâmetro o dar a cada um de acordo com seu mérito, ainda que Aristóteles reconheça que o critério do mérito possa ser variável. Para o democrata, dirá, o mérito presume a condição livre; para o oligarca, o critério do mérito é a nobreza de nascimento. A justiça da distribuição dos bens e honras, de acordo com o mérito, é uma proporção. A proporcionalidade caracteriza o justo, e a sua falta é o injusto. ARISTÓTELES - JUSTIÇA DISTRIBUTIVA Exemplo: Um professor, quando aplica uma prova a uma turma de alunos, será considerado justo em sua correção quando distribuir notas de acordo com uma proporção, tendo por vista o mérito. De uma prova com cinco questões valendo cada qual dois pontos, o aluno que acerta quatro questões merece a nota oito. ARISTÓTELES - JUSTIÇA DISTRIBUTIVA O aluno que acerta duas questões merece a nota quatro. Qualquer outra nota diferente dessa para cada um desses alunos rompe com a proporção entre seus méritos e suas notas, e, portanto, a distribuição meritória de notas demonstra a justiça do professor. ARISTÓTELES - JUSTIÇA DISTRIBUTIVA Poder-se-ia demonstrar tal justiça distributiva, graficamente, do seguinte modo: cinco questões corretas = Nota 10 três questões corretas = Nota 6 ARISTÓTELES - JUSTIÇA DISTRIBUTIVA Em comparação à justiça corretiva, a justiça distributiva é mais complexa, porque envolve o arranjo dos bens e dos poderes na pólis. A proporção que busca construir envolve dar, aumentar, diminuir, portanto, uma ação distributiva que invade a esfera de alguns para manter o mérito e a proporção na relação com os demais. ARISTÓTELES - JUSTIÇA CORRETIVA A justiça corretiva – também chamada de diortótica –, por sua vez, é bem menos complexa que a distributiva. Trata-se de uma proporção aritmética, no dizer de Aristóteles. Ao contrário da distribuição das honrarias, bens e cargos de acordo com o mérito, nessa vertente a justiça é tratada como uma reparação do quinhão que foi, voluntária ou involuntariamente, subtraído de alguém por outrem. ARISTÓTELES - JUSTIÇA CORRETIVA Por isso as questões de ordem penal são tratadas como justiça corretiva, na medida daquilo que representou a perda e o ganho. No caso penal, mais do que a pena, a justiça corretiva trata da reparação civil dos danos causados pelo crime. ARISTÓTELES - JUSTIÇA CORRETIVA Também
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