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DESCONSTRUINDO A PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO1 Erica Burman Tradução: Amana Mattos Capítulo 1. Origens Muitos psicólogos experimentais continuam a considerar o campo da psicologia da criança como um campo de pesquisa próprio para mulheres e para homens cuja masculinidade experimental não está em seu máximo. Essa atitude de condescendência é baseada quase que totalmente em uma feliz ignorância sobre o que se passa no campo tremendamente viril do comportamento infantil. (Murchison 1933, p. x) Hoje, o estado da psicologia do desenvolvimento não está claro. Algumas pessoas dizem que se trata de uma perspectiva ou de uma abordagem para investigar problemas psicológicos gerais, ao invés de se tratar de um domínio particular, ou de uma subdisciplina. De acordo com essa visão, nós podemos abordar todas as grandes áreas da psicologia, tais como memória, cognição, etc., a partir dessa perspectiva. A unidade do desenvolvimento pesquisado também é variável. Nós poderíamos estar preocupados/as com o desenvolvimento de um processo, ou de um mecanismo, antes do que com o desenvolvimento de um indivíduo. Isso está em nítido contraste com as representações populares da psicologia do desenvolvimento, que a igualam aos aspectos práticos do desenvolvimento infantil ou, mais recentemente, do desenvolvimento humano (com o reconhecimento relativamente recente de que o desenvolvimento é um “processo de vida toda”, Baltes et al. 1980; Berk 2007). Essas concepções paradoxais, misturadas, de psicologia do desenvolvimento testemunham sobre os diferentes aspectos de sua história. Este capítulo vai mostrar o quão profundamente a disciplina da psicologia do desenvolvimento, e de fato, a psicologia ela mesma, tem sido estruturada por sua história. Se nós olharmos para as origens da psicologia do desenvolvimento, nós começamos a ter um quadro geral (a) dos movimentos sociais dos quais ela emergiu; (b) dos movimentos sociais dos quais ela participou; (c) como estes estabeleceram os termos da pesquisa do desenvolvimento que reverberam até hoje. Este capítulo leva a sério a convocação para produzir uma “história social crítica da psicologia do desenvolvimento” (cf. Bronfenbrenner et al. 1986), para elaborar como a moderna psicologia do desenvolvimento surge no final do século XIX a fim de responder questões particulares relacionadas à teoria da evolução, à antropologia, bem como à filosofia. Ao fazer isso, a psicologia do desenvolvimento participou de movimentos sociais explicitamente relacionados à comparação, regulação e controle de grupos e sociedades, e esteve intimamente identificada com o desenvolvimento de ferramentas psicométricas, de classificação de habilidades e com o estabelecimento de normas. Ela está associada com o surgimento do capitalismo e da ciência, aderindo a um modelo especificamente marcado pelo gênero, alienado e mercantilizado de prática científica (Parker, 2007). Todas essas características estão refletidas nos termos da 1 BURMAN, E. Deconstructing Developmental Psychology. Londres: Routledge, 2008. pesquisa do desenvolvimento, inclusive a reprodução da divisão entre racionalidade e emoção. O estudo da criança As ideias sobre a natureza das crianças e suas características logicamente precedem de longe a psicologia moderna, e estiveram consistentemente comprometidas com a melhor maneira “de assegurar que a pessoa imanente na criança vá se transformar em uma herança cultural responsável, e de realizar o destino necessário imaginado para ela pela família e pela sociedade” (Borstelmann, 1983: 35). A nova psicologia da segunda metade do século XIX se localizava entre várias disciplinas: história natural, antropologia, fisiologia e medicina. A maioria dos registros considera Charles Darwin como o autor do primeiro estudo sobre a criança, com seu Biographical Sketch of an Infant que, apesar de ter sido publicado em 1877, foi baseado em notas feitas em 1840 (Riley, 1983; Rose, 1985; Walkerdine and Lucey, 1989). Não é surpreendente que os interesses de Darwin se voltassem para a contribuição relativa do legado genético e para a experiência ambiental – identificando as características que diferenciam humanos (e crianças humanas) de animais, colocando grande peso na ingenuidade e na criatividade humanas, especialmente exibidas na linguagem. Este foi um entre os vários estudos iniciais observacionais e diários de crianças pequenas, ainda que, como aponta Bradley (1989), tenham existido muitos estudos anteriores, conduzidos especialmente por mulheres, que foram eclipsados pela história da psicologia do desenvolvimento. Retrospectivamente, tanto este estudo quanto a importância que lhe foi conferida podem ser tomados como protótipos da forma que a pesquisa em desenvolvimento assumiria. Em primeiro lugar, a criança é descrita como um organismo biológico abstraído de seu ambiente familiar e material. Em virtude de ser muito jovem, e de ter tido menos oportunidades de aprender, a criança é vista como mais próxima da natureza, livre dos arreios do treinamento adulto e da “civilização” (ocidental). Por caminhos contraditórios, os modelos romântico e científico se combinam para localizar na criança tanto mais conhecimento (“a criança é o pai do homem”) quanto (em virtude de seu entendimento menor e diferenciado) o caminho para o conhecimento. Com isso, a psicologia do desenvolvimento naturaliza a ficção romântica das crianças como portadoras inocentes da sabedoria, produzindo-as como objetos e sujeitos de estudo. A perspectiva subjacente a esse projeto partilha da teoria da “recapitulação cultural”, isto é, o indivíduo em seu tempo de vida reproduz os modelos e estágios de desenvolvimento apresentados pelo desenvolvimento das espécies – “a ontogênese recapitula a filogênese”. O estudo das crianças na metade do século XIX, assim como o dos “primitivos” e a história natural, foi motivado pela busca das origens e especificidades da mente, isto é, da mente adulta e humana. Essa iniciativa estava relacionada a empreendimentos similares na antropologia e na observação animal que eram intimamente aliados do imperialismo europeu (e, particularmente, britânico), mantendo a hierarquia da supremacia racial que justificava o domínio colonial. A criança daquele tempo era equivalente ao “selvagem” ou ao “não desenvolvido”, uma vez que ambos eram vistos como imaturos intelectualmente, “primitivos”, e as crianças eram estudadas para iluminar os estágios necessários do desenvolvimento subsequente. Como James Sully escreveu em seu artigo “Babies and Science”, de 1881: O psicólogo moderno, compartilhando o espírito da ciência positiva, sente que deve, inicialmente, estudar a mente em suas formas simples. (...) (E)le direciona seus olhos para muito longe, para o fenômeno da vida selvagem, com suas ideias simples, sentimentos brutos e hábitos ingênuos. Mais uma vez, ele dá atenção especial à vida mental de animais inferiores, buscando em seus fenômenos o prenúncio obscuro de nossas percepções, emoções, etc. Finalmente, ele volta sua atenção à vida mental da primeira infância, como que organizada para lançar mais luz sobre os desenvolvimentos tardios da mente humana. (Sully, 1881, apud Riley, 1983, p. 47) Além disso, as crenças e comportamentos aparentemente bizarros tanto dos “primitivos” quanto das crianças eram vistos como relevantes para o entendimento do comportamento neurótico e patológico. Assim como o recapitulacionismo, o lamarckismo (a crença na herdabilidade de características adquiridas) subjaz à nova psicologia do desenvolvimento. Aqui, era a experiência, antes das predisposições inatas, que estava sendo vista como reproduzida nainfância e nos sonhos. Um conjunto de equivalências foi elaborado por meio das quais a criança era relacionada ao ‘selvagem’ que, por sua vez, era visto como similar ao neurótico. A comparação entre criança, homem pré-histórico [sic] e “selvagens” pressupõe as concepções de desenvolvimento, de indivíduo e de progresso evolutivo como unilineares, como passos direcionados rumo a uma hierarquia ordenada. Isso confirmou a superioridade intelectual do homem [macho] ocidental. Nesse sentido, o projeto do desenvolvimento individual (da criança) se vincula a um modelo mais amplo de desenvolvimento social e econômico. Esse modelo, por sua vez, reinscreveu o privilégio de gênero e racializado da masculinidade cultural ocidental como o modelo normalizado do Estado Nação. ‘Progresso’ é o termo- chave que conecta os desenvolvimentos individual, social e nacional, como notaram os/as críticos/as pós- e anti-desenvolvimentistas do desenvolvimento econômico internacional (Sachs, 1992; Mehmet, 1995; Rahnema e Bawtree, 1997). Entretanto, a noção darwinista específica de seleção natural enfatiza a variabilidade em lugar da uniformidade. Enquanto a concordância de Darwin com o recapitulacionismo e o lamarckismo era equívoca e implícita (Morss, 1990, p. 14-16), essas eram as características tomadas para estruturar a psicologia do desenvolvimento emergente. Deve-se notar que essas perspectivas eram amplamente adotadas e que, entre outros, tanto Freud quanto Piaget subscreveram a elas em seus escritos. Enquanto os estudos de Darwin podem, de muitas maneiras, ser tomados como prototípicos (em vários sentidos) de muitos outros estudos conduzidos por pesquisadores como Taine, Preyer e G.S. Hall nos anos 1880 (Cairns, 1983; Riley, 1983), John Morss (1990) argumenta que o efeito da obra de Darwin na emergência da psicologia do desenvolvimento foi de, paradoxalmente, reforçar versões pré-darwinistas da biologia, focando na herança ao invés da variação. ‘Sociedades’ de estudos da criança logo começaram a florescer na Europa e nos Estados Unidos, observando crianças, pesando-as e medindo-as, documentando seus interesses, estados, atividades. Esse desenvolvimento refletia a importância crescente da ciência – e de um modelo particular de ciência – não apenas como um conjunto de procedimentos para conduzir pesquisas, mas como um conjunto de práticas associadas com o estado laico moderno. A divisão do trabalho marcada pelo gênero e o olhar científico O movimento de estudos da criança “observou” crianças. Orientações sobre como fazê- lo enfatizavam a importância de ser objetivo. Desta forma, era criada uma divisão ou oposição no processo de construção do conhecimento – uma divisão de gênero. Isso também refletia a posição inferior concedida às mulheres nos modelos de competência e maturidade – como mais próximas das crianças e dos “primitivos”. Os pais eram vistos como tendo o afastamento e racionalidade necessários para se engajar na empreitada científica, e as mães eram consideradas muito sentimentais para dela participar. Em seu artigo (que era parcialmente satírico – tanto em relação à prática do estudo de bebês quanto aos interesses correntes que o inspirava), Sully (1881) comenta, acerca do novo fenômeno do “papai psicólogo”: Homens que antes nunca pensaram em se meter nos afazeres do berçário têm sido impelidos a fazer visitas periódicas até lá na esperança de extraírem importantes fatos psicológicos. (...) (O) pequeno ocupante do berço tem tido que suportar o penetrante olhar científico. O papai psicólogo conquistou um novo direito de propriedade de sua prole: ele se apropriou dela como um espécime biológico. Esse novo zelo pelo conhecimento científico tem se apoderado de vários de meus conhecidos. (Sully, 1881, apud Riley, 1983, p. 48-49) Kessen (1979) aponta que a emergência da psicologia da criança coincidiu com a industrialização. Isso trouxe a separação entre casa e trabalho, engendrando, por sua vez, o trabalho doméstico como ‘trabalho de mulher’ no processo de também consolidar a separação dos papéis de mulheres e homens. Consequentemente, em termos do movimento inicial dos estudos da criança enquanto um empreendimento ‘científico’, as mulheres eram excluídas de sua prática, uma vez que eram declaradas constitutivamente incapazes de observarem suas crianças com a objetividade necessária. A abordagem da criança pela mãe: (...) a incapacita de entrar cordialmente no filão científico. Ela se incomoda de tomar seus seres como objetos de escrutínio frio e intelectual e de análise psicológica insensível. (...) A sugestão de uma série de experimentos sobre a sensibilidade gustativa de uma pequena criatura com idade entre 12 e 24 horas de vida é recebida como um choque, até mesmo para as mães mais fortes de espírito. (Sully, 1881, apud Riley, 1983, p. 48-49) Mesmo que ela queira participar, seus esforços devem ser tratados como suspeitos, e mais como uma deficiência do que qualquer outra coisa: Se a mãe se acha infectada com o ardor científico do pai, ela pode revelar-se pouco mais do que uma auxiliar desejável. Seus instintos maternais impelem-na a considerar a sua criança particular como fenomenal, em um sentido extra-científico. Ela (...) está predisposta a atribuir a sua criança um grau sobrenatural de inteligência. (Sully, 1881, apud Riley, 1983, p. 48-49) A citação de Murchison na epígrafe deste capítulo indica como pouca coisa mudou 50 anos depois. A equivalência entre ciência e masculinidade era tão forte, e a prática de pesquisa tão ‘viril’, como que para ser capaz de contrariar as supostas tendências feminilizantes que a proximidade com as crianças produziria. Há cinco maneiras pelas quais o movimento dos estudos da criança do final do século XIX prefigurou os termos da pesquisa do desenvolvimento. Primeira, ele se estabeleceu para estudar a mente, concebida como singular, separada [do corpo] mas universal. Segunda, a mente era vista como fundamentada nos estudos do desenvolvimento das mentes infantis. Terceira, o movimento dos estudos da criança pesquisava o conhecimento, visto como uma capacidade natural e biológica – isto é, subescrevendo a uma suposição de que há um núcleo normal do desenvolvimento que se desdobra de acordo com princípios biológicos. Quarta, ele participou das práticas de educação, bem estar e medicina. Quinta, institucionalizou a antiga divisão entre emoção e racionalidade, atuada na prática da pesquisa científica marcada pelo gênero. Enquanto os estudos iniciais da criança claramente privilegiavam questões biológicas e universais relacionadas com o desenvolvimento das espécies, da raça e da mente, ainda havia espaço para se olhar para as propensões emocionais e personalidades das crianças. Entretanto, por volta dos anos de 1930, claras linhas de demarcação foram traçadas entre a elaboração das normas de desenvolvimento para uso diagnóstico (vistas como o domínio da psicologia geral e da medicina) e a psicanálise (vista como a arena dos traços particulares de personalidade e de processos idiossincráticos). A relação contrária e complementar entre psicologia e psicanálise veio para refletir a divisão entre o sujeito racional, consciente, uniforme e individual da psicologia e os estados mentais emocionais, inconscientes, contraditórios e fragmentados associados com a psicanálise (Urwin, 1986). A ascensão da psicologia para atender às demandas das ansiedades sociais existentes O fim do século XIX foi um período de levantes e agitação social ao redor do mundo, quando fermentaram revoluções pela Europa e revoltas anti-coloniais em todo o mundo. Na Inglaterra, por exemplo, a crescente urbanização trazida pela rápida industrialização produziu as terríveis condiçõesdas favelas vitorianas, enquanto que a saúde precária dos soldados recrutados para as guerras coloniais fez do estado físico da população um tema de preocupação geral. Aqui, vemos como o imaginário colonialista que conecta crianças, mulheres e “primitivos” encontra a regulação das classes trabalhadoras em “casa”: O temor pela destreza militar do exército imperial era exacerbado pela Guerra dos Bôeres, com a descoberta dos físicos mofinos, os maus dentes e a má saúde dos recrutas oriundos da classe trabalhadora. A maternidade era racionalizada com a pesagem e mensuração dos bebês, a arregimentação dos horários domésticos e a administração burocrática da educação doméstica. Mulheres “improdutivas” (prostitutas, mães solteiras, solteironas) e homens “improdutivos” (gays, desempregados, empobrecidos) mereciam um opróbrio especial. Aos olhos dos tomadores de decisões e administradores, as fronteiras do império podiam ser asseguradas e mantidas apenas pela disciplina e decoro domésticos, com a probidade sexual e a sanidade moral. (McClintock, 1995, p. 47 [2010, p. 83]) Políticos e cientistas sociais emergentes focaram sua atenção na “qualidade” da população, em particular naqueles setores da sociedade considerados instáveis e indisciplinados. A preocupação com a qualidade do “estoque” e com os efeitos de modelagem e melhoramento das condições ambientais era refletida no par “natureza – aprendizagem” [nature – nurture] inventado por Francis Galton em 1875, e que se tornou, desde então, a formulação mais adotada para colocar questões acerca da origem do conhecimento e da aprendizagem em psicologia. Esse foco inicial na mudança é, de certo modo, irônico, quando é lembrado que “natureza – aprendizagem” se originou como uma maneira de descrever a imutabilidade do comportamento humano. Tem sido amplamente documentado (Meyer, 1983; Walkerdine, 1984; Hendrick, 1990; Rose, 1990) que o estabelecimento da escola elementar compulsória nos anos de 1880 na Inglaterra (e no mesmo período na França) refletia preocupações populares acerca do “pauperismo” (visto como um traço, ao invés de um conjunto de circunstâncias) e do crime. A educação popular era vista como meio de retificar essas tendências ao inculcar bons hábitos ou, ao menos, ao manter grupos potencialmente desordeiros ocupados e sob escrutínio. Ler a Bíblia era considerado especialmente importante, assim como aprender habilidades adequadas ao gênero e à posição social dos indivíduos (Hunt, 1985). É importante notar aqui que tais concepções não eram incontestadas, ou antes, a criminalização das práticas dos pobres fala por si só a um conjunto particular de transformações na criação de uma economia do trabalho assalariado. Em sua meticulosa análise documental dos julgamentos dos pobres de Londres, Linebaugh (2003) mostra como do século XVIII em diante a prática corriqueira de permitir que os trabalhadores levassem para casa materiais residuais (fossem as ‘aparas’ da construção de navios ou o tabaco e açúcar dos lucrativos despojos do colonialismo inicial) foram gradualmente proscritos. Dessa maneira, os trabalhadores eram forçosamente privados de consideráveis fontes de recursos extra em espécie, dos quais seu status econômico dependia. Essas questões se transformaram em mandados para enforcamentos e, mais tarde, para deportações para o ‘novo mundo’, enquanto forçavam a erosão da classe, era central para a criação de uma classe operária cujo trabalho criaria a revolução industrial. A noção de 'degenerescência', que agora está vinculada aos mais empobrecidos, elidiu as qualidades mentais e morais a ponto de o objeto das ansiedades políticas e da intervenção científica tornar-se os “idiotas” [feebleminded], que passaram a significar a desintegração física, moral, mental e politica. Em termos do aumento da circulação das ideias darwinistas (aplicando noções de “sobrevivência do mais apto” às sociedades humanas), o fato de que os setores mais pobres da população estivessem se reproduzindo em taxas mais altas do que a classe média escolarizada provocou medos de contaminação e de sublevação equivalentes àqueles dos senhores coloniais que buscavam manter seu domínio. A revisão do estado da arte feita no Handbook of Child Development (Pintner, 1933) ainda dedica um capitulo para “A criança idiota”, em que é feita uma discussão da relação entre idiotia e delinquência. O capítulo termina com a seguinte passagem: Uma vez que a idiotia não é uma doença que se possa esperar curar, quais métodos devem ser adotados para diminuir a enorme carga que a idiotia traz para a comunidade? Os únicos procedimentos parecem ser o treinamento, a segregação e a esterilização. Treinar todos os idiotas o máximo possível para reduzir sua dependência em relação à comunidade. A segregação do maior número possível deles é prudente com o objetivo de diminuir as chances de descendentes idiotas. A segregação de mulheres idiotas em idade reprodutiva é particularmente necessária. (…) Talvez sua percentagem esteja aumentando em função da notável tendência moderna entre famílias mais inteligentes de limitarem o número de descendentes, com pouca limitação correspondente nas famílias menos inteligentes. (Pintner, 1933, p. 837) Controlar e regular esses elementos sociais considerados potencialmente indisciplinados pressupunha meios de monitorá-los. Nikolas Rose (1985) discute como a “psicologia individual” emerge para cumprir esse papel de classificação e vigilância. O indivíduo psicológico era uma entidade altamente especificada e estudada, cujas qualidades mentais e desenvolvimento eram entendidos em virtude da comparação com a população em geral. Assim, os conhecimentos do indivíduo e do geral iam de mãos dada: um demandava o outro, e cada um era definido em relação ao outro. A separação entre loucos e sãos, criminosos e não criminosos, educados e não educados, deslocou-se de critérios morais e políticos para uma avaliação também de julgamento, mas baseada nos critérios científicos dos testes psicométricos. Para pegá-los jovens: os testes psicométricos e a produção da criança normal A psicologia do indivíduo, então, foi a precursora de áreas hoje conhecidas como psicologia da personalidade e do desenvolvimento, e dependia fortemente dos testes tanto para fundamentar seu conhecimento quanto para seu funcionamento – ainda que a psicologia não tenha alcançado o monopólio dos testes sem luta (Rose, 1985). A psicologia individual do final do século XIX e início do século XX, na Europa Ocidental, refletia e traduzia as preocupações sociais com a qualidade e as habilidades mentais da população em recomendações de políticas públicas, prescrições de manejo de bebês e crianças e de educação. Como observa Donna Haraway (1989, p. 236-237): “Psicólogos comparativistas têm sido extraordinariamente criativos em elaborar situações e tecnologias de testagem: a indústria da testagem é central para a produção da ordem social nas sociedades liberais, onde as prescrições da gestão científica devem ser conciliadas com ideologias democráticas.” Mas a tecnologia dos testes tanto requer quanto repousa sobre as instituições mesmas que permitem sua administração. Consequentemente, a “psicologia individual” se tornou central para a existência do hospital psiquiátrico, da prisão, da escola e da clínica de orientação infantil. A emergência tanto do indivíduo quanto da criança como objetos do olhar social e científico foi, portanto, simultânea. A psicologia do desenvolvimento se tornou possível por conta da clínica e da creche. Tais instituições tiveram um papelvital, uma vez que permitiram a observação de diversas crianças da mesma idade, e de crianças de várias idades, por psicólogos especialistas, em condições experimentais controladas, quase de laboratório. Assim, elas permitiram simultaneamente a padronização e a normatização – uma coleção de informação comparáveis de um grande número de sujeitos, e sua análise, de maneira a construir as normas. Uma norma de desenvolvimento era um padrão baseado nas habilidades ou performances médias de crianças de uma certa idade desempenhando uma tarefa particular, ou uma determinada atividade. Ela, então, não apenas apresentava um retrato do que era normal para crianças daquela idade, mas também permitia que a normalidade de qualquer criança fosse acessada, comparando-a com esta norma. (Rose, 1990, p. 142) Para produzir a unidade da pesquisa, o processo de padronização estabelece uma dependência reciproca entre o normal e o anormal: é a normalização do desenvolvimento que torna a anormalidade possível, e vice-versa – no sentido em que o sistema de educação especial estruturou profundamente, ao invés de meramente suplementado, o sistema escolar regular vigente (Ford, 1982). Então, apesar da imagem corrente de escolas 'especiais' como um serviço extra ou distante, lavrado em circunstâncias especiais, essas escolas são o que torna as escolas regulares “regulares”: isto é, essas últimas funcionam como escolas “normais” precisamente porque estão delimitadas pelas instituições para aqueles indivíduos designados como “anormais”. Em 1956 foi publicado um livro pelo outrora Presidente da British Psychological Society, C. W. Valentine, intitulado The Normal Child and Some of his Abnormalities, tendo 11 reedições ate 1974. Como colocou o professor C. A. Mace em seu prefácio, o livro apresenta resposta para uma questão de grande preocupação para pais e professores hoje: “Esta criança é normal ou devo levá-la para a clínica?”2 (Mace, apud Valentine, 1956, p. 9). Consequentemente, a “clínica” se torna o juiz do desenvolvimento “normal” através de suas posição de domínio de seu oposto, o “anormal”. Além disso, esse processo de normalização promoveu uma naturalização do desenvolvimento, sobredeterminada por dois fatores relacionados. A reivindicação da nova psicologia como sendo uma ciência do mental, buscando emular o status da medicina como ciência do corpo. Essa emulação era expressa na confusão das noções de médico com mental, através da noção híbrida de higiene mental. Isso deu uma legitimação cientifica às praticas de regulação social, divisão social e (suposta) reforma. Tiras no jardim de infância: a naturalização e a regulação do desenvolvimento O desenvolvimento foi naturalizado por duas vias principais: pela criação da noção de “vida mental”, e pela medicalização da vida mental, através da subordinação do mental ao físico. Em primeiro lugar, a noção de idade mental presente nos testes de QI, considerada como análoga à idade cronológica, assumia que a habilidade poderia ser distribuída (em intervalos quantificáveis e iguais) em uma escala quase-física. A obra do psicólogo estadunidense Arnold Gesell influenciou fortemente o estabelecimento das normas e marcos fundamentais implícitas nas checagens do desenvolvimento saudável, promovendo uma perspectiva maturacional do desenvolvimento como um processo de desdobramento natural em que o desenvolvimento equivale ao crescimento. O slogan da quarta edição (1971) do livro The First Five Years of Life (Gesell, 1950) reivindicava que a obra contribuía “mais do que qualquer outro livro para a fundação da psicologia do desenvolvimento sistemática”. Embora o autor (em contraste com pesquisadores mais orientados para o comportamentalismo) desse preferência a entrevistas “naturalistas” e clínicas em relação aos testes psicométricos, Gesell apresentava descrições (ou o que ele chamava de “caracterizações”) do desenvolvimento como absolutamente graduado em função da idade. Anos e meses ditavam as capacidades e conquistas da criança. O exemplo a seguir, ainda que se refira a alguns aspectos mais restritos, destaca temas mais gerais. A abstração do tempo do desenvolvimento é associada com aquela presente no câmbio, assim como a maturação do desenvolvimento está ligada ao retorno de um investimento financeiro. O desenvolvimento infantil é paralelo ao capitalismo: “Essa é uma idade encantadora. A primeira infância se encerra aos dois anos e dá passagem a um estado superior.” (Gesell, 1950, p. 40). Em segundo lugar, a produção do indivíduo reflete a incorporação do mental pelo médico: o natural precisa ser escrutinado de perto para prevenir que se torne patológico. As equivalências presumidas entre desenvolvimento mental e físico sistematizam o escrutínio das crianças, extrapolando a mensuração das qualidades aparentes para a das qualidades hipotéticas, e da criança para a família de maneiras que hoje são centrais para as políticas públicas de bem estar social. Observe, neste extrato do apropriadamente intitulado The Handbook of Child Surveillance, como a ênfase no cuidado está pressuposta no mental contido no físico, e reforça o papel do especialista como aquele com poderes para fazer intervenções familiares: A vigilância da saúde da criança é um programa de atenção à criança iniciado e oferecido por profissionais, com o objetivo de prevenir doenças e promover boa saúde e desenvolvimento. [...] 2 N.T.: Em português, a expressão mais comum nesse sentido seria “Esta criança é normal ou devo levá-la ao médico?” Apesar de termos descrito em detalhes alguns métodos de detecção precoce, nós também destacamos a importância da prevenção primária e do trabalho com os pais como as maneiras mais eficazes de ajudar as crianças. (Hall et al., 1990, p. x) A criança normal, o tipo ideal, decantada de pontuações [scores] comparativas de populações estratificadas por idade, é, portanto, uma ficção ou um mito. Nenhuma criança individual ou real está em sua base. Trata-se de uma abstração, uma fantasia, uma ficção, uma produção de aparatos de testagem que incorpora, que constrói a criança, através de seu olhar. Essa produção da criança surgiu, ao invés de uma descrição, das tecnologias da fotografia por meio das quais centenas de crianças puderam ser justapostas realizando as mesmas tarefas, comparadas e sintetizadas em uma escala única de medida, por meio dos espelhos unidirecionais, através dos quais as crianças podiam ser observadas, e dos testes psicométricos. A produção e regulação das crianças extrapolou ambientes de testagem para espaços de cuidados e de educação infantis. Gesell (1950) oferece projetos de creches prototípicas, tendo seu desenho complexo estruturado ao redor de uma sala oculta de observação de crianças. Todo comportamento infantil é suscetível de ser documentado, torna-se normalizado no desenvolvimento infantil, e o desenvolvimento infantil trata de informar as minúcias mundanas da creche. Entretanto, nem todas as crianças eram objeto de tal fascinação. Registros fotográficos iniciais dos viajantes coloniais feitos em África eram praticamente desprovidos de crianças (contrastando com a saturação contemporânea de imagens de crianças africanas na mídia ocidental). Beinart (1992, p. 225), inclusive, nota que “muitos europeus consideravam as crianças como os espécimes menos interessantes da fauna local […]. Fotografias de animais domésticos e de pessoas mortas ultrapassavam largamente em número aquelas de crianças”. Talvez isso fosse indicativo de uma infantilização geral dos africanos no imaginário colonial (como “menos desenvolvidos”que os ocidentais), o que também é indicado pelo uso do termo degradante “boy” [garoto, moleque] para se referir a homens africanos. O estudo de Beinart sobre as fotografias de mães e suas crianças tiradas por colonialistas europeus na África no século XIX e no início do século XX documenta regimes equivalentes para “melhorar” e regular a infância, através da educação maternal e, especialmente, da intervenção: A noção de salvamento das crianças doentes africanas através de intervenções saudáveis aparece como uma extensão de programas de transformação. A aceitação de medicamentos ocidentais para as crianças, segundo essa leitura de imagens, coloca para os parentes da criança uma obrigação em reconhecer a dominância do pensamento científico ocidental. (Beinart, 1992, p. 237) Beinart nos lembra que registros fotográficos como esses refletem os desejos colonialistas (ao invés de seus efeitos reais). Entretanto, ainda assim eles ilustram o crescente papel político conferido às crianças como “'mensageiras', cuja imagem cresceu em importância nas lentes coloniais de acordo com a crescente necessidade de estabelecer um diálogo, face ao também crescente movimento de independência das colônias” (Beinart, 1992, p. 237). Como argumentam Urwin e Sharland (1992), a partir de suas análises do movimento de orientação infantil no entre-guerras, a estruturação e o preparo do corpo eram considerados como as vias para a regulação da mente. Bordas irregulares? Conflitos e continuidades Ao extrairmos essas conexões, nenhuma determinação causal pode ser atribuída ao estudo psicológico das crianças, mas antes, esta é simultaneamente uma reflexão de preocupações mais amplas e um exemplo de estratégias desenvolvidas para promovê- las. Como Valerie Walkerdine coloca, não se pode dizer que motivações políticas causaram, em qualquer sentido simples, certos desenvolvimentos na ciência do indivíduo. Antes, devem ser tomados como implicados mutuamente, fazendo e refazendo o outro possível, entrelaçando-se para produzir um nexo discursivo e político. O racional, o selvagem, o animal, o humano, o degenerado, o normal, todos se tornaram traços da moderna normalização científica e da regulação das crianças. (Walkerdine, 1984, p. 173) Além disso, destacar as continuidades entre as formas passadas e presentes da psicologia do desenvolvimento não deveria nos levar a subestimar as mudanças e os conflitos entre elas. O movimento dos estudos da criança, baseado nas observações acumuladas de crianças individuais e inspirado por ideias evolucionistas, focou, inicialmente, questões de hereditariedade. Mas, logo depois, sua atenção voltou-se para o papel da educação em mitigar ou compensar as deficiências da hereditariedade (Riley, 1983). Cyril Burt é hoje um nome infame devido à falsificação dos resultados de seus estudos com gêmeos (Hearnshaw, 1980; Rose et al., 1984), mas foi responsável em grande parte por criar a profissão de psicólogo na Grã-Bretanha. (Posteriormente, a British Psychological Society, que condenou Burt, se viu pressionada, num contexto de ensino e testagem nas escolas britânicas, a reabilitá-lo). Ao aderir a uma noção de capacidade cognitiva fixa, quantificável e hereditária, ele também subescrevia à ideia de um ambiente seguro por meio do qual as disposições hereditárias pudessem ser atenuadas. Perspectivas filantrópicas e inatistas podem tanto coincidir com elas quanto contradizê-las. Com o impacto das ideias behavioristas de 1910 em diante, as influências ambientais – entendidas tanto como escolares quanto familiares – tornaram-se o foco principal das pesquisas em psicologia do desenvolvimento. O treinamento de crianças foi acompanhando de melhorias no saneamento básico e nas reformas sociais. A educação (da criança e dos pais) gradualmente suplantou a segregação como uma estratégia de gestão demográfica – ainda que, como os exemplos acima indiquem, ela fosse regulatória. De todo modo, uma estratégia de educação, em lugar de uma estratégia de segregação, requeria um comprometimento com maior intervenção e controle. Deve-se lembrar, entretanto, que muitos fundadores da estatística e da psicologia do indivíduo, como Galton e Pearson, estavam na linha de frente do movimento eugênico na Grã- Bretanha. Rose (1985) discute em detalhes por que e como as ideias mais “iluministas” das reformas prevaleciam sobre aquelas dos eugenistas antes mesmo de que estas ideias fossem posteriormente desacreditadas por conta de sua aplicação na Alemanha nazista, e Ulfried Grutier (1987) documenta a psicologia florescente na Alemanha nazista. O ponto é que a psicologia moderna se desenvolveu com a utilidade política da testagem mental. Como afirmou Lewis Terman em 1920, ele mesmo responsável pelo desenvolvimento e popularização de um dos principais testes normatizadores: É a metodologia dos testes que tirou a psicologia das nuvens... que a transformou, da ciência das trivialidades na ciência da engenharia humana. O psicólogo da era pré-teste era, para o homem comum, apenas um excêntrico não nocivo, mas agora que a psicologia testou e classificou quase dois milhões de soldados, mensurou as habilidades de quase dois milhões de crianças, é usada em todo lugar nas nossas instituições para os deficientes, delinquantes, os criminosos e os loucos, tornou-se a lanterna do movimento eugênico, aparece para os políticos como importante na formulação da política de imigração... nenhum psicólogo, hoje, pode queixar-se de que sua ciência não é assunto sério o suficiente. (Terman, apud Olson, 1991, p. 191) Enquanto era saudada por alguns como o fórum em que se resolveriam questões filosóficas antiquíssimas sobre quais conhecimentos são inatos e quais são adquiridos, a emergência da psicologia do desenvolvimento moderna também foi solicitada por outras preocupações mais pragmáticas de classificar, medir e regular, particularmente aquelas populações consideradas uma ameaça à ordem vigente. Consequentemente, a divisão entre teoria e suas aplicações se torna desimportante, uma vez que a demanda social por tecnologia e informações fornecidas pela psicologia do indivíduo constituiu a condição e a razão de sua existência (Ingleby, 1985). Ela continua com o percurso em direção às crescentes explicações biológicas para problemas sociais, como indicado por Shonkoff e Phillips (2000) no livro sobre o desenvolvimento da criança intitulado From Neurons to Neighbohoods. Essa infusão de pesquisa científica com uma agenda sócio-política não é, é claro, específica nem da psicologia nem dos testes de desenvolvimento. Richards (1997) conclui, em sua detalhada avaliação sobre a relação da psicologia com o racismo científico, o seguinte: A psicologia pode ser melhor vista reflexivamente como uma arena em que as preocupações “raciais” da Europa e da América do Norte foram articuladas e atuadas. Há muitas arenas arenas como esta, das ruas ao teatro, da escola aos campos de concentração. O que é diferente em relação à psicologia é que ela tem se visto, até muito recentemente, como o lugar em que temas como esse podem ser submetidos ao escrutínio e à pesquisa verdadeiramente científicos e objetivos. A articulação e a atuação out das preocupações culturais na psicologia adquiriu, então, uma característica bastante refinada, precisamente porque eram supostas como outra coisa – como ciência objetiva imparcial. Ironicamente, isso tornou a anatomia subjacente dessas questões peculiarmente visível. (Richards, 1997, p. 309) A ciência, como a ferramenta da razão e do progresso fomentada e aproveitada pelo estado moderno, pôs em prática filosofias iluministas de proteção e cuidado dos cidadãos, realização que pressupunhaum maior monitoramento e controle. Mesmo os autores dos primeiros estudos da criança foram rápidos em se mover da observação para o aconselhamento, do “fato” empírico para a aplicação social. Como apontou Kessen (1979), em seu agora clássico artigo “The American Child and Other Cultural Inventions”: Tolstoy disse que não existe literatura proletária; da mesma maneira, não há psicologia proletária da criança, e as formas éticas imperativas da psicologia da criança, nossas mensagens para a prática, variaram de fundamentos para o tratamento equitativo de todas as crianças a receitas de assimilação forçada das formas esperadas de comportamento infantil. Uma vez que uma norma descritiva tenha sido estabelecida, há um princípio cultural antigo que incita à adesão a ela. (Kessen, 1979, p. 818) O que talvez seja diferente sobre os testes padronizados é que a avaliação moral que subjaz à descrição é tornada invisível e irrefutável através da aparente imparcialidade das normas estatísticas. Seu uso, através do poder das instituições, aplica a descrição estatística como uma prescrição político-moral. Há aqui uma ambivalência central em relação ao vínculo entre o inato e o adquirido, que espelha a tensão entre objetividade científica e aplicação social, estruturando a pesquisa psicológica: parece que o curso natural do desenvolvimento tem que ser cuidadosamente monitorado, apoiado e mesmo corrigido, para que possa emergir apropriadamente. Isso que é designado como surgindo natural ou espontaneamente é, de fato, construído, ou mesmo imposto. Como Adrienne Harris (1987) sugere, o movimento em direção à racionalidade nos modelos de desenvolvimento pode ser um reflexo da racionalização do capitalismo ganhando espaço no nível do psiquismo individual, ao invés de nos processos industriais. As normas e marcos fundamentais que estruturam a psicologia do desenvolvimento apresentam um quadro de graduação ordenada e progressiva através de estágios, em direção a competências sempre maiores e à maturidade. Podemos ver aqui a modelagem de um sujeito-cidadão típico-ideal que é conhecível, conhecido, dócil e produtivo. Ademais, além de ser a estratégia econômica para a produção eficiente, a racionalização é tembém, em termos psicanalíticos, uma defesa contra a ansiedade, que é “o processo pelo qual um curso de ação é justificado ex post facto, não apenas justificando-o, mas também ocultando suas verdadeiras motivações.” (Rycroft, 1974, p. 136). Em psicanálise, podemos inferir das defesas a estrutura do que foi recalcado. O que foi intencionalmente deixado de fora, ou recalcado, da psicologia do desenvolvimento é o caos e a complexidade (incluindo o caos emocional) do processo de pesquisa e de desenvolvimento. O investimento em se retratar o desenvolvimento como progresso funciona para negar nossas histórias de custos pessoais ao “crescermos”. Mais do que isso, transformar a desordem complexa do desenvolvimento individual em passos ordenados para a maturidade reflete explicitamente interesses sociais em manter o controle social nos e entre os grupos sociais e nações. As tecnologias da descrição, comparação e medida de crianças que estão na base do conhecimento descritivo da psicologia do desenvolvimento têm suas raízes no controle demográfico, na antropologia comparativa e na observação animal que estabelecem o “homem” acima dos demais animais, os europeus acima dos não-europeus, assim como os políticos acima dos pobres. Assim, a história da psicologia do desenvolvimento oferece vislumbres de sua influência estrutural e estruturante em seu amadurecimento como a responsável por e como o juiz da infância, da família e das relações profissionais do aparato do estado capitalista, agora neoliberal. O próximo passo é olharmos mais de perto para como essas origens são sustentadas ou ultrapassadas na psicologia do desenvolvimento contemporânea.
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