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Gabriella Gomes Rendeiro (170103838) Fundamentos da Linguagem Visual (professora Luciana Paiva) Addict, Roger Ballen (2014) Em sua fotografia 'Addict', Roger Ballen posiciona uma mulher mascarada em posição horizontal no que parece ser uma cama. Ela veste um roupão de manga comprida preenchido por desenhos que, somado à máscara, só deixa mãos e punhos à mostra. O rosto mascarado possui uma boca semiaberta com uma fileira de dentes à mostra (alguns manchados), mas não há traço de expressão. Os olhos encaram o vazio ou um ponto invisível para o espectador. Seus cabelos são compridos e com franja e sua cabeça repousa em um travesseiro. Há um copo próximo à boca que encontra apoio na sua mão esquerda (com um rato que sai do copo em direção à mão), e sua mão direita porta um cigarro. Há desenhos esquemáticos ao longo da parede atrás da figura e várias linhas verticais disformes entre si. Quase ao centro (pendendo mais para a direita), encontra-se o desenho realista de uma menina – cujos cabelos e olhos se assemelham ao da figura deitada – que encara o observador. O que chama atenção nesse trabalho é a aparente falta de vitalidade. É quase como se a mulher estivesse há meses nessa posição, sem interagir com o espectador ou quaisquer objetos presentes na cena. É possível entender dela uma personificação da apatia, o que poderia explicar o uso da máscara: ela estaria, nesse caso, presente para metaforizar a suscetibilidade humana a essa condição (ou seja, poderia ser qualquer um na cena). Na obra Os Fuzilamentos de Três de Maio na Montanha do Príncipe Pio, de Goya, há uma interpretação para a escolha da representação dos soldados bem parecida: eles teriam sido pintados de costas para dizer (também em forma de metáfora) que a violência não tem rosto. Os Fuzilamentos de Três de Maio na Montanha do Príncipe Pio, Goya Agora, pensando na estética de 'Addict' de Ballen, é possível relacioná-lo a um trabalho da fotógrafa Berenice Abbott - Jean Cocteau In Bed With Mask (1927) - devido à expressividade das linhas em ambas as imagens. A linha horizontal (dada pelo posicionamento dos corpos) transmite a sensação de repouso, enquanto a vertical transmite energia e atividade. Jean Cocteau In Bed With Mask, Berenice Abbott (1927) Seria coerente pensar nessa relação das linhas como uma tentativa de equilíbrio visual. No entanto – ao menos no caso de Ballen -, é mais provável que exista para gerar sentido de oposição. Em suas palavras: "Minhas imagens são dominadas por significados contraditórios que criam uma estética visual difícil de definir com palavras. Na vida humana confrontamos, regularmente, opostos. Está claro para mim que nenhuma relação pode existir sem uma relação oposta que lhe corresponda". Algo notável na distribuição visual de ambas as fotografias é o ângulo da imagem: as figuras humanas são captadas de frente, de tal forma que ocupam quase tanto espaço quanto a parede ao fundo. Sabendo que a posição da pessoa deitada corresponde a uma linha horizontal e a parede ao fundo, um padrão vertical, e – ainda – que elas provavelmente carregam sentido de oposição, é possível que formem, juntas, um terceiro significado? Se sim, qual seria? Para responder a essas perguntas, é preciso ter em mente a relação do trabalho de Ballen com o existencialismo e seu objetivo (captar a condição humana). Semelhante propósito teve Álvaro de Campos no poema Tabacaria. No texto, ele chama atenção para temáticas como a dualidade entre o mundo exterior e a sensação de que tudo é ilusório ("Estou hoje dividido entre a lealdade que devo / À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora, / E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro"). Nessa perspectiva, as linhas verticais poderiam representar a materialidade do mundo, que exigem – energicamente – a participação dos seres (por estes também serem, essencialmente, materiais). Tanto é que correspondem a uma parte da fotografia em segundo plano (neste caso, a parede), ao passo que condição material também pode ser vista como um pano de fundo para a existência. "Meu corpo não tem as mesmas ideias que eu", como já declarou Barthes. O corpo é submetido às necessidades fisiológicas, mas estas não representam o eu interior. Onde estaria o eu interior em 'Addict'? Talvez na figura da mulher. Além da posição horizontal (dissonante com o fundo), existe a linguagem corporal que indica indiferença. Mesmo o copo de bebida e o cigarro parecem ter sido esquecidos. Ela se encontra em situação de passividade absoluta. "Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente / O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo, / E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha", como escreve Álvaro em seu poema, trecho que corresponderia à falta de vitalidade presente na figura. Quanto à indiferença às fontes de prazer (representadas pelo cigarro e a bebida) há um trecho ainda mais específico: "(Come chocolates, pequena; / Come chocolates! (...) / Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes! /Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho, / Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)". Outro trabalho do Ballen que pode sugerir oposição é 'Girl In White Dress', de 2002. Aqui, isso se dá pelo aparente estranhamento da menina com o meio, fazendo deles elementos inconciliáveis. Será que essa fotografia da série Boarding House é sobre a dualidade entre corpo e alma (sendo o espaço o componente 'corpo' e a criança, presa em seu interior, a 'alma' pouco confortável)? E quanto ao cenário - pode ele ser uma alegoria para um interior oculto e irreconhecível, mas presente, como a própria inconsciência humana? Ballen prefere deixar em aberto. "O enigma é um aspecto fundamental da condição humana e seu significado deve ser incorporado em obras de arte", como afirma em entrevista. Girl In White Dress, Roger Ballen (2002) Dito isso, e ao relacionar "Addict" com trabalhos da exposição Transfigurações, é possível ver que o propósito de Ballen inclui forçar o espectador a trazer algo de si mesmo para tecer uma análise. Este texto tencionou o respeito a essas expectativas, tendo como ferramentas algumas referências pessoais, que foram elas: o poema Tabacaria, de Álvaro de Campos (heteronômico de Fernando Pessoa), a fotografia Jean Cocteau In Bed With Mask, de Berenice Abbott, um quadro de Goya chamado Os Fuzilamentos de Três de Maio na Montanha do Príncipe Pio (tendo sido a interpretação comentada um apontamento do professor Rodrigo Souza). Bibliografia https://br.pinterest.com/pin/525162006522056566/ https://www.lensculture.com/projects/256-boarding-house https://www.instagram.com/p/Ba4LPSFgEa3/?taken-by=rogerballen http://artesteves.blogspot.com.br/2011/11/francisco-de-goya-os-fuzilamentos-de-3.html https://www.insite.com.br/art/pessoa/ficcoes/acampos/456.php
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