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4º Encontro Nacional da Associação Brasileira de Relações Internacionais De 22 a 26 de julho de 2013. LEGITIMAÇÃO PELA SOBERANIA OU PELOS DIREITOS HUMANOS: Considerações acerca da entrada da Venezuela no Mercosul e sua denúncia à Convenção Americana de Direitos Humanos II Instituições Internacionais Trabalho Avulso | Painel Nathália Santos Veras Universidade Federal de Roraima Belo Horizonte 2013 Nathália Santos Veras LEGITIMAÇÃO PELA SOBERANIA OU PELOS DIREITOS HUMANOS: Considerações acerca da entrada da Venezuela no Mercosul e sua denúncia à Convenção Americana de Direitos Humanos Trabalho submetido e apresentado no 4º Encontro Nacional da Associação Brasileira de Relações Internacionais – ABRI. Belo Horizonte 2013 RESUMO O presente artigo pretende discutir o fator legitimador do Estado na comunidade internacional, se a soberania ou os direitos humanos, a partir dos fatos acerca da denúncia da Venezuela à Convenção Americana de Direitos Humanos e sua entrada no Mercosul, após a suspensão do Paraguai por infringir à cláusula democrática, do Protocolo de Ushuaia, sobretudo por serem os direitos humanos considerados marcos de democracia. Após a Segunda Guerra Mundial, a agenda política internacional voltou-se para a proteção dos direitos humanos e pela manutenção da paz e da segurança internacional. Nesse sentido, o conceito contemporâneo de segurança inclui a conservação de valores mínimos, o que faz os estudiosos refletirem acerca do fator legitimador dos Estados na comunidade internacional. Atualmente, os fatos em torno da Venezuela voltaram a temática para a América do Sul. A partir de pesquisa bibliográfica e analítica, verificou-se que os direitos humanos tendem a ser elevados à soberania, a fim de que esta não encubra atos internos que os violem, sendo, inclusive, necessários à efetiva integração regional, pretendida pelo Mercosul. Palavras – Chave: Venezuela; Mercosul; Convenção Americana de Direitos Humanos. 1 INTRODUÇÃO Lafer, em 1994, no Painel “Ética nas Relações Internacionais”, na XV Conferência Nacional da OAB, discutiu “os modos pelos quais a soberania subordinar- se-ia, ou não, a considerações de natureza ética” (p. 1). O tema, após mais de dez anos, ainda é atual e atraiu olhares na América do Sul, recentemente, no episódio da denúncia da Venezuela à Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH) e à sua entrada no Mercado Comum do Sul (Mercosul). Para contextualizar o tema em torno do caso ora discutido, é necessário esclarecer que a Venezuela, antes da denúncia, até 10 de setembro de 2012, teve várias condenações e seu Presidente Hugo Chávez disse, publicamente, que pretendia retirar o país do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. O estopim foi a condenação no caso Díaz Peña pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CoIDH). A CoIDH entendeu que ficou configurada violação aos direitos humanos por Raúl José Díaz Peña ter permanecido em prisão preventiva por um tempo superior ao permitido pela lei penal sob o fundamento de perigo de fuga. A Venezuela, por sua vez, alega que a CoIDH está protegendo um terrorista, acusado de participar, em 2003, de atentados contra escritórios diplomáticos da Espanha e da Colômbia (CoIDH, 2012). Como aponta Martuscelli (2012), apesar de Trinidad y Tobago terem denunciado à CADH, a Venezuela é o primeiro país com importância política e comercial a fazê-lo. Essa atitude foi criticada não apenas internacionalmente, mas também no âmbito interno, e passou a ser mais um argumento pela conjecturada característica antidemocrática do governo do Presidente Hugo Chávez. Não obstante, pouco antes, em 31 de julho de 2012, a adesão da Venezuela ao Mercosul foi oficializada de um modo, no mínimo, curioso. O Paraguai estava suspenso do bloco, em razão de ter infringido a cláusula democrática, do Protocolo de Ushuaia, por ter destituído seu presidente eleito em um processo sumário. Os Presidentes do Brasil, Uruguai e Argentina consideraram que o procedimento de impeachment do ex-presidente Fernando Lungo não garantiu a plena vigência das instituições democráticas1. Assim, foi impossível ao Paraguai vetar a entrada da Venezuela no Bloco. Chamou à atenção a declaração do Ministro das Relações Exteriores do Brasil, Antônio Patriota, de que a denúncia à CADH seria uma “decisão soberana” da Venezuela (MARTUSCELLI, 2012). A curiosa entrada deste país no Mercosul, após a suspensão do Paraguai por infringir a cláusula democrática, evidenciou ainda mais a controversa entre direitos humanos, tidos como marcos de democracia, e soberania. O fato é que, passado um ano exigido para a efetividade da denúncia, a Venezuela passará a ser o único país do Mercosul a não se submeter à CADH. Esses acontecimentos em torno da Venezuela e do Mercosul fazem retornar novamente a questão se poderiam os direitos humanos limitarem a soberania de um país? Nesse contexto, a discussão sobre a legitimidade das decisões políticas dos Estados, especialmente por refletirem internacionalmente e a teor do conceito contemporâneo de segurança ganha destaque na agenda política internacional, merecendo analises sistematizadas. Esse artigo pretende contribuir com o debate tendo como ponto de central a entrada da Venezuela no Mercosul e sua denúncia à CADH. 1 Nota do Itamaraty de 31 de julho de 2012. 2 A LEGITIMIDADE NA SOCIEDADE INTERNACIONAL O conceito de legitimidade encontra-se entre a política e o direito. Seu significado, conforme Bobbio (2009), possui dois sentidos: um genérico e um específico. No primeiro, legitimidade aproxima-se de justiça ou de racionalidade. No significado específico da política, legitimidade é um atributo do Estado que se traduz em consenso e obediência. Nas palavras de Bobbio (2009, p.675): Num primeiro enfoque aproximado, podemos definir Legitimidade como sendo um atributo do Estado, que consiste na presença, em uma parcela significativa da população, de um grau de consenso capaz de assegurar a obediência sem a necessidade de recorrer ao uso da força, a não ser em casos esporádicos. É por esta razão que todo poder busca alcançar consenso, de maneira que seja reconhecido como legítimo, transformando a obediência em adesão. O autor (2009) continua explicando que, considerando o Estado sob o ponto de vista sociológico, a legitimidade depende de vários fatores, como o grupo social, o regime, o governo e, se for o caso, ao sistema hegemônico ou imperial. Para o autor (2009), a legitimidade pressupõe democracia e consenso, que não significa o somatório de interesses dos indivíduos, mas valores. A legitimidade seria ao mesmo tempo uma situação, que seria a aceitação do Estado por parte significativa da população, e um valor, representado pelo consenso livre do povo. Enquanto Bobbio analisa a legitimidade a partir do Estado, as lições de Habermas (1997) permitem uma análise do conceito no direito internacional. Apesar de pertencerem a corretes teóricas distintas, tanto em um como no outro, aparecem a noção de legitimidade como consenso. Habermas (1997) coloca que a teoria do discurso explica a legitimidade a partir da igualdade de aplicação da lei, pela legitimação democrática do legislador e pela divisão de poderes do Estado. O autor (1997, p. 173) explica que quanto mais o direito se afasta dos forospúblicos, mais cresce a autonomia de instâncias estatais que “instrumentalizam direitos para realizar fins coletivos”. Dessa forma, o Estado acaba por olvidar de “subordinar a escolha dos fins ao projeto de realização de direitos inalienáveis”. No campo do direito internacional, isso é traduzido pela incapacidade dos Estados de representar a sociedade global. Assim, a questão da legitimidade na sociedade internacional pode ser analisada a partir de dois contrapontos: os Estados e as pessoas. A partir dos Estados, poder-se-ia concluir que a legitimidade é aferida pelo grau de consenso entre esses entes que o fazem obedecer normas internacionais. Ocorre que, tradicionalmente, os Estados só se submetem se assim o quiserem, assinando e ratificando tratados. O consenso acaba por ser distorcido para uma unanimidade com relação àquela norma específica. A partir das pessoas, a legitimidade exigiria a participação do povo nas decisões de política internacional de um ente supraestatal, o que não ocorre, ao menos não diretamente. Assim, pode-se afirmar que a legitimidade, atualmente, possui característica contratualista, pois exige assinatura, ratificação e depósito de tratados. Além de ser voluntarista, pois implica a manifestação formal em acerca das normas pelo Estado (MOREIRA, 2012). As pessoas são sujeitos de direitos na sociedade internacional, podendo exigir a observância das normas após a internalização no seu Estado, que os representa ou deveria na sociedade internacional. . 3 O PARADOXO ENTRE SOBERANIA E DIREITOS HUMANOS NO PÓS GUERRA Segundo Ferrajoli (2002), a ideia de soberania pode ser traduzida pela expressão superiorem non recognoscens, isto é, poder supremo que não reconhece nenhum outro. Trata-se de uma aporia, como bem coloca o autor (2002). Essa ideia de soberania é constituída de dois paralelos: a soberania interna e a externa. Enquanto a primeira é progressivamente limitada, a segunda é progressivamente absolutizada. De acordo com Becke (in D’INÇÃO; SILVEIRA, 1994) a soberania interna legitima o Estado, enquanto a externa diz respeito à relação entre os Estados, conferindo a eles “igualdade”. Eis outra aporia apresentada por Ferrajoli (2002): a relação entre direito e soberania. Os Estados, soberanos, impõem ordenamentos jurídicos tanto ao povo como também regulam a si mesmo por estas normas, de forma a proteger o próprio povo. Ademais, internacionalmente, os Estados se submetem aos tratados internacionais que pactuarem. Tais afirmações levam a três considerações. A primeira é que a soberania induz a uma apenas aparente igualdade entre os Estados. A segunda é que, modernamente, tem-se admitido que alguns direitos devem ser garantidos pelo Estado independentemente de subscrição à pactos internacionais, como seria o caso da Declaração Universal dos Direitos Humanos. A última consideração, observada por Alves (1994), é que a noção de soberania rege os Estados ao negociarem um acordo, no sentido de obter ganhos e vantagens; mas, não no que se refere aos tratados de Direitos Humanos, ao menos concretamente. Note-se que se a soberania é, historicamente, tida como um poder ilimitado externamente e é reconhecida internacionalmente como um direito não só do Estado, mas também da nação, não é menos verdade que os direitos humanos ganham, gradativamente, um status superior à soberania. Em especial, dois fatores permitem essa conclusão: o constitucionalismo e a Segunda Guerra Mundial. Enquanto o primeiro limitou a soberania internamente para garantir ao povo direitos fundamentais, que possuem praticamente o mesmo conteúdo dos direitos humanos, estes intensificaram-se como preocupação internacional a partir da Segunda Guerra Mundial. As pessoas passaram a ser sujeitos de direitos internacionais. Assim, a noção de segurança internacional ultrapassou o conceito tradicional, puramente militar, que atribuía ao Estado a função de defender a nação de ameaças externas, cujo conceito, também tradicional, de soberania era satisfatório. As atrocidades cometidas na Segunda Guerra Mundial incluíram na noção de segurança internacional a segurança humana. Entende-se que a segurança exige a conservação de valores mínimos, isto é, a garantia de direitos tidos como essenciais ao ser humano, incluindo a democracia. Nesse sentido, David (2001) explica que novos problemas, de toda a espécie, implicam uma cooperação entre os Estados. A noção de defesa estatal continua, mas é acrescida de instituições de segurança com obrigações multilaterais: A predominância dos Estados confronta-se com interdependências cada vez maiores e de toda a espécie. [...] o conceito de segurança puramente militar próprio da idade de oiro dos estudos estratégicos é progressivamente contestado pelos defensores do conceito de segurança humana, em virtude do qual o direito à existência e a uma certa qualidade de vida (muitas vezes ligada às dimensões não militares de segurança) é considerado fundamental e ultrapassa o direito à soberania e à integridade territorial dos Estados (o pai desta abordagem é Galtung, 1969). Pela sua transmissão e difusão de valores humanitários ou democráticos, os actores não estatais põem em causa a autoridade e a legitimidade dos Estados (DAVID, 2001, p. 21). Vê-se que, a Segunda Guerra Mundial, ao mesmo tempo em que culminou com a cooperação entre os países, notadamente em sua divisão em blocos, também resultou em colaboração para assegurar os direitos humanos. Releva notar que o rol desses direitos esbarra, atualmente, no seu reconhecimento pelos Estados, isto é, na soberania. 4 A RELATIVIZAÇÃO DA SOBERANIA PELOS DIREITOS HUMANOS Apesar do reconhecimento atribuído aos direitos humanos, que são vistos como necessários e de observância obrigatória, especialmente, em países democráticos, a ordem mundial ainda exige a sua aceitação pelos Estados. Ainda que aceitando a hipótese de ente supraestatal que não só regule, mas imponha a aplicação concreta desses direitos, a soberania continua no discurso da política internacional e na filosofia. Note-se que na Carta Nações Unidas é possível verificar a problemática da relação entre a soberania e os direitos humanos. Enquanto o documento coloca que as relações entre os Estados membros respeitará o princípio da igualdade soberana, a efetivação dos direitos humanos mostra-se como propósito. Não é demais observar que esse mesmo documento prevê o uso da força, inclusive de forma preventiva (BRASIL, 1945). Nesse sentido, discute-se se o uso da força pela Organização das Nações Unidas (ONU) pode ocorrer por razões humanitárias. Para a Comissão Internacional sobre Intervenção e Soberania Estatal (ICISS)2, em casos onde o Estado não consegue ou não quer deter violações de direitos humanos, o princípio da não intervenção é substituído pela responsabilidade internacional de proteger. Para a Comissão, a soberania implica no dever do Estado de proteger as pessoas, diante de sua ineficácia, a comunidade internacional deve intervir para assegurar os direitos humanos (ICISS, 2001). Sobre o assunto, Habermas (2001) afirma que os direitos humanos devem ser protegidos em todas as sociedades, mas percebe que isso depende de sua institucionalização dentro do próprio Estado. A efetivação de uma política global mais justa depende desse reconhecimento interno. O autor não desvaloriza, contudo, a internacionalização dos direitos humanos, antes a defende3. Entende os direitos 2 Em inglês, International Commission on Intervention and State Sovenreignty. Foi uma Comissão anunciada pela Canadá na AssembleiaGeral da ONU de setembro de 2000, a fim de tentar responder o questionamento do Secretário-geral Kofi Annan acerca de um consenso sobre a intervenção. 3 Habermans (2001) defende que é possível um princípio moral universal. humanos como fator de legitimação da política da comunidade dos povos. Considera que, na comunidade de nações, tais direitos “[...] são a única base de legitimação que é reconhecida por todos” (HABERMAS in MERLE et al, 2003). Habermas (2001; in MERLE et al, 2003) está falando de uma comunidade organizada em nível supranacional. Nessa comunidade, a noção de soberania não conseguiria explicar a submissão do Estado ao ente supraestatal. Apesar de parecer utópico, o que Habermas defende, é também apontado por outros autores. Ferrajoli (2002), por exemplo, entende que essa nova ordem será fundamentada na autonomia dos povos, e não na soberania, e tenderá a uma universalização efetiva aos direitos humanos. Há, ainda, autores que entendem que a soberania continuaria sendo o fundamento dessa nova ordem. Nesse sentido, Gilberto Amado (apud GARCIA, 2000, p. 79) coloca que os Estados abdicariam um pouco de sua soberania, como os indivíduos para organizar a sociedade humana perderam liberdade pessoal, e assim se criaria “esse superorganismo necessário à paz do mundo e à felicidade do gênero humano”. Nesse caso, o que se imagina é que haverá um organismo acima dos Estados. Tal organismo seria legitimado pelos direitos humanos, pela autonomia dos povos ou mesmo pela soberania (desprendendo-se cada Estado de parte dela). No fim, todos os argumentos de legitimidade dessa utópica ordem mundial convergem para o respeito aos direitos humanos. Atualmente, tem-se um Sistema de Estados, cuja legitimidade dos países é baseada na soberania, mas em progressiva relativização, para concretização dos direitos humanos. Cada vez, as decisões políticas submetem-se aos tratados de direitos humanos, apesar da soberania não ser ignorada. A título de exemplo, pode-se citar o fato dos Estados Unidos da América (EUA) terem sido submetidos à jurisdição consultiva da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CoIDH), na Opinião Consultiva 164, contra sua vontade e a apesar 4 Em 1997, o México consultou CoIDH acerca do direito do migrante à assistência consular no processo judicial, especialmente em condenações a pena de morte. Em síntese, o México alegou que os EUA estavam condenando mexicanos sem os informar sobre o direito de comunicar-se com as autoridades (COIDH, 1999). Considerou-se que ambos os países são membros da OAE e signatários da Convenção de Viena sobre Relações Consulares. Também destacou que os EUA, embora não tenha ratificado a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem, ratificou o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos da Organização das Nações Unidas (ONU) (COIDH, 1999). Apesar dos EUA não terem ratificado a CADH, a CoIDH julgou o caso e concluiu que a inobservância desse direito à assistência consular é de não terem ratificado a CADH. Ainda assim, foi observado que país é membro da Organização dos Estados Americanos (OAE), signatário da Convenção de Viena sobre Relações Consulares e do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos da Organização das Nações Unidas (ONU) (CoIDH, 1999). Apesar da soberania não ter sido ignorada nesse caso, mormente pela observação de que os EUA eram signatários de outros tratados que asseguravam o direito de assistência consular, é digno de nota o fato dessa submissão à CoIDH, quando a própria CADH exige a aceitação expressa dessa cláusula. Acentua-se, ainda, o fato da previsão de assistência consular ser, em princípio, um direito do Estado, mas que, na interpretação da CoIDH, assume a forma de direito humano. Este caso evidencia a tendência em relativizar a soberania, fazendo seu conceito contemporâneo adquirir outros sentidos. A soberania interna, progressivamente relativizada, por representar o dever do Estado de proteger seus nacionais, acarreta, gradualmente, a relativização da soberania externa, até então progressivamente absolutizada. O princípio da responsabilidade internacional de proteger não é menos importante que o princípio da soberania estatal. 3 O CASO DO MERCOSUL Atualmente, o que se tem é um Sistema de Estados baseado na soberania. Por esse critério de legitimidade, tradicionalmente, se considerada a noção de soberania pela expressão superiorem non recognoscens. Nessa linha de pensamento, a declaração do Ministro Antônio Patriota, de que a denúncia à CADH pela Venezuela é uma decisão soberana, está correta. Da mesma forma, a decisão de suspender o Paraguai poderia parecer adequada, vez que esse país, por sua própria soberania, escolheu submeter-se à cláusula democrática do Mercosul, se essa cláusula tivesse sido objetivada para explicitar os modos de sua inobservância. O que de qualquer modo não se explica é a entrada da Venezuela no bloco durante a suspensão do Paraguai. Por outro lado, se for adotada uma ideia de soberania de que esta é o poder de gerenciamento de assuntos internos, será necessário concluir que há assuntos que medida que viola o direito humano; no caso da pena de morte, viola o direito de não ser privado da vida arbitrariamente. ultrapassam os interesses nacionais. Nesse sentido, Bielefeldt (2000) citando Buergenthal (et al, 1985) explica que: O conflito estabelecido na Carta das Nações Unidas, ao determinar, de um lado, a “observação geral dos direitos humanos e das liberdades básicas para todos” (Art. 1, item 3 da Carta) e, por outro, de proibir a ingerência em assuntos internos dos países (Art. 2, item 7 da Carta), foi agora solucionado pela interpretação de que determinados direitos humanos básicos, cuja abrangência permanece, em verdade, bastante discutível, não podem ser considerados assunto interno exclusivo de cada nação. Esses direitos, do ponto de vista jurídico, não integram apenas a soberania de uma nação, que os reconhece ou garante por vontade soberana, mas sim, ultrapassam as fronteiras da soberania de cada Estado, como assunto da comunidade universal das nações (cf. Buergenthal entre outros 1985, p. 117). Assim, direitos humanos e democracia ultrapassariam os interesses nacionais. Tais matérias se não fossem protegidas pelo Estado em observância ao dever decorrente da soberania, acarretaria o dever de intervenção da sociedade internacional. Nesse raciocínio, ter-se-ia que a Venezuela ou qualquer país da OEA poderia, dependendo do caso, continuar se submetendo à CoIDH ainda que denunciando a CADH. Mas ainda pressupõe soberania, na medida em que pressupões sua qualidade de membro da OEA e de que tenha aderido a outros tratados de direitos humanos. O embate entre soberania e direitos humanos continua mesmo nesse último raciocínio. Mas demonstra uma tendência em se priorizar o segundo fator legitimador nas decisões internacionais ou a relativizar a soberania do ponto de vista externo. Contudo, apesar das contradições (denúncia da Venezuela à CADH e sua entrada no Mercosul), os direitos humanos tendem a ser elevados à soberania, a fim de que esta não encubra atos internos que os violem. Atualmente, a decisão da Venezuela de denunciar a CADH pode ser considerada legítima com base na soberania. Não é menos verdade que isso não a permite na atual conjuntura internacional a violar os direitos nela assegurado, podendo em casos específicos ainda ser submetida à CoIDH e a Comissão Interamericanade Direitos Humanos. O mesmo não se pode dizer de sua entrada no Mercosul após a suspensão do Paraguai. Tal atitude do bloco não é legítima, pois carece de consenso. Apesar deste, doutrinariamente, não ser traduzido pelo somatório de opiniões, no caso do Mercosul exige-se a unanimidade, isto é, todos os Estados deveriam concordar com a entrada da Venezuela. No caso, impediu-se a participação do Paraguai em importante decisão. A atitude do Mercosul está prevista no Protocolo de Ushuaia, que trata da cláusula democrática entre os países do bloco, Chile e Bolívia. Mas foi contraditória ao fazer prevalecer o legalismo do Protocolo ao seu fim (democracia). Se todos os Estados membros devem observar os princípios democráticos, é conclusão lógica que o Mercosul também se submete a eles. 4 CONCLUSÃO A legitimidade pode ser traduzida, a partir do estudo apresentado, pelo consenso nas decisões políticas que obrigam a observância de normas sem uso, ao menos em um primeiro momento, da força. Consequentemente, pressupõe-se um processo a ser observado pelo qual as decisões políticas e as normas podem ser tidas como legítimas. Tradicionalmente, na sociedade internacional, a soberania é o fator legitimador. Tida, externamente, como o poder que não se submete a nenhum outro, os Estados vinculam-se ao que livremente pactuarem. Contudo, o princípio da soberania dos Estados está, gradualmente, sendo mitigado pelos direitos humanos. Entende-se, atualmente, que a soberania implica no dever de proteger e concretizar os direitos humanos, que ultrapassam os interesses internos dos Estados. Diante da ineficácia do Estado, passa a imperar a responsabilidade internacional de proteger. O caso da Venezuela voltou os olhares da discussão para a América Latina, na medida em que sua entrada no Mercosul não observou os princípios democráticos. Ademais, passou a ser o único país do bloco a não aderir CADH, após a denúncia que será efetivada ainda este ano. A legitimidade exige a observância da soberania tanto quanto aos direitos humanos, não apenas quando se referir aos Estados e aos seus indivíduos, mas também quando se tratar das relações entre Estados. As decisões internacionais devem ser tidas como legítimas ainda quando os direitos humanos não sejam violados diretamente. Isso implica na observância dos princípios democráticos pelos Estados, inclusive enquanto sujeitos de direito internacional. REFERÊNCIAS ALVES, J. A. Lindgren. Os direitos humanos como tema global. São Paulo: Perspectiva; Brasília, DF: Fundação Alexandre de Gusmão, 1994. BRASIL. 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