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Resumo completo de Vigiar e Punir

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Resumo completo de Vigiar e Punir (parte I e II): suplício e punição
Este texto pretende servir como guia para quem ainda não leu ou procura orientação a respeito do que tratam cada item e capítulo da obra Vigiar e Punir, escrita por Michel Foucault e publicada, em 1975, com o título original (em francês) de Surveiller et Punir: Naissance de la prison. Eis que na página 23 podemos ler o propósito da obra segundo seu autor: “Objetivo deste livro: uma história correlativa da alma moderna e de um novo poder de julgar; uma genealogia do atual complexo científico-judiciário onde o poder de punir se apóia, recebe suas justificações e suas regras, estende seus efeitos e mascara sua exorbitante singularidade” (1999, p. 23). Deve-se compreender que, pelo termo “alma”, o filósofo não se refere ao objeto metafísico corrente no senso comum, porém o que poderíamos designar igualmente por “psique”, “subjetividade”, “personalidade”, “consciência”.  
Primeira parte: o suplício
I. O corpo dos condenados. O autor inicia este capítulo expondo dois documentos que explicitam dois estilos penais diferentes. O primeiro documento é a descrição de um suplício, um espetáculo público bastante violento [“Finalmente foi esquartejado. Essa última operação foi muito longa, porque os cavalos utilizados não estavam afeitos à tração; de modo que, em vez de quatro, foi preciso colocar seis; e como isso não bastasse, foi necessário, para desmembrar as coxas do infeliz, cortar-lhe os nervos e retalhar-lhe as juntas” (p. 09)]; já o segundo documento descreve alguns artigos do código de execução penal, com toda a sua utilização fragmentária do tempo e sua sutileza punitiva [“Art. 17. – O dia dos detentos começará às seis horas da manhã no inverno, às cinco horas no verão. O trabalho há de durar nove horas por dia em qualquer estação. Duas horas por dia serão consagradas ao ensino. O trabalho e o dia terminarão às nove horas no inverno, às oito horas no verão” (p. 10)]. Entre eles há um hiato surpreendente de apenas três décadas (do final do século 18 e início do século 19). Para alguns relatos da época (e também atuais), o desaparecimento do suplício tem a ver com a “tomada de consciência” dos contemporâneos em prol de uma “humanização” das penas. Mas a mudança talvez se deva mais ao fato de que o assassino e o juiz trocavam de papeis no momento do suplício, o que gerava revolta e fomentava a violência social. Era como se a execução pública fosse “uma fornalha em que se acende a violência” (p. 13). Sendo assim, necessário seria criar dispositivos de punição através dos quais o corpo do supliciado pudesse ser escondido, escamoteado; excluindo-se do castigo a encenação da dor. A guilhotina já representa um avanço neste sentido, pois faz com que aquele que pune não encoste no corpo do que é punido. A partir da segunda metade do séc. 19, na mudança do suplício para a prisão, embora o corpo ainda estivesse presente nesta última (por ex: redução alimentar, privação sexual, expiação física, masmorra), é a um outro objeto principal que a punição se dirige, não mais ao corpo, e sim à alma. “A expiação que tripudia sobre o corpo deve suceder um castigo que atue, profundamente, sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições” (p. 18). Mesmo que não haja grande variação acerca do que proibido e permitido nesse período, o objeto do crime modificou-se sensivelmente. Não só o ato é julgado, mas todo um histórico do criminoso, “quais são as relações entre ele, seu passado e seu crime, e o que esperar dele no futuro” (p. 19). Assim, saberes médicos se acumulam aos jurídicos para justificar os mecanismos de poder não sobre o ato em si, mas sobre o indivíduo, sobre o que ele é. A justiça criminal se ampara em saberes que não são exatamente os seus e cria uma rede microfísica para se legitimar.
II. A ostentação dos suplícios. O capítulo se inicia com a exposição de discursos oficiais que regiam as práticas penais de 1670 até a Revolução (Francesa, em 1789). Execuções eram raras, só em 10% dos casos. Mas a maioria das penas vinha acompanhada do suplício (pena corporal, dolorosa, mais ou menos atroz). O suplício deve marcar o condenado e por isso tem níveis e hierarquias. A morte (execução), por exemplo, é um suplício em que se atinge o grau máximo de sofrimento (por esta razão chamada de “mil mortes”). É um ritual, uma arte de fazer sofrer. E deve ser assistida por todos, constatada como triunfo da justiça. A determinação do grau de punição variava não somente conforme o crime praticado, mas também de acordo com a natureza das provas. Por mais grave que um crime fosse, senão houvesse provas contundentes, o suplício era mais brando do que aquele em que o crime era menos grave, mas que, por outro lado, dispunha de provas integrais sobre o delito. Semelhante a literatura de Kafka, o processo era feito sem o processado saber. Tal sigilo garantia sobretudo que a multidão não tumultuasse ou aclamasse a execução. Desta forma o rei mostrava que “força soberana” não pertencia à multidão, tendo em vista que o crime ataca, além da vítima, também o soberano. Quanto à participação do povo nessas cerimônias, ela era ambígua. Muitas vezes era preciso proteger o criminoso da ira do povo. O rei permitia um instante de violência, mas sem excessos, principalmente para não dar a ideia de privilégio a massa. Por outro lado, em algumas ocasiões o povo conseguiu até mudar a situação do suplício e suspender o poder soberano; em casos semelhantes, havia revolta contra sentenças de crimes menos graves; ou comparecia simplesmente para ouvir aquele que não tinha nada a perder maldizer os juízes, as leis, o poder e a religião (uma espécie de carnaval de papeis invertidos, em que os poderes eram ridicularizados e criminosos viravam heróis).
Segunda parte: a punição
I. A punição generalizada. Neste item, Foucault aborda a mudança da punição. Na segunda metade do séc. 18, o suplício passa a ser visto pelos reformadores com um perigo ao poder soberano, porque a tirania leva à revolta. Entende-se a necessidade de se respeitar no assassino, o mínimo, sua “humanidade”. Antes de tal mudança de concepção, ocorre uma transformação na qualidade dos crimes, que passam do sangue (agressões e homicídios) à fraude e contra a propriedade (roubos, invasões, etc.). Isto tem a ver, obviamente, com o processo social (econômico) que corre paralelo desde o século 17 (desenvolvimento da produção, aumento de riquezas, valorização moral e legal das propriedades privadas, novos métodos de vigilância, policiamento mais estreito). Então não é meramente uma questão de respeito à “humanidade” que fez mudar os dispositivos de punição, mas de adequação de penas aos delitos. Por exemplo, a justiça fica mais rigorosa em alguns casos, antecipando os crimes. O objetivo da reforma não é fundar um novo direito de punir mais equitativo, porém estabelecer uma nova distribuição para que este não fosse descontínuo ou excessivo e flexível em alguns pontos. A reforma não vem somente de fora, parte também de dentro do sistema judiciário, é certo que ela vem de filósofos, mas também de magistrados. Na história da França, a reforma se consolidou após a Revolução porque insidia diretamente sobre os pobres. Inauguram-se aí duas objetivações, do criminoso e do crime: o criminoso como homem da natureza que precisa de cultura, o “anormal”, o louco, o doente, o monstro; e a organização de campo de prevenção, constituição de certeza e verdade, codificação, definição dos papeis, regras de procedimento.
II. A mitigação das penas. A reforma do sistema punitivo caminha em direção à noção de que a punição deve participar de uma mecânica perfeita em que a vantagem do crime se anule na desvantagem da pena; desestimulando, assim, futuros contraventores e, principalmente, eliminando a reincidência. Neste sentido, a punição não deve aparecer mais como efeito da arbitrariedade de um poder humano, mas tão somente consequência natural da prática criminosa. Nesse novo mecanismo, o poder que pune se esconde; funcionacomo uma tentativa de diminuir o desejo que torna o crime algo atraente. Por isso as penas não podem durar para sempre, elas precisam terminar, mostrar sua eficácia, tornando o criminoso virtuoso. É verdade que existem os incorrigíveis e estes devem ser eliminados, mas, para os demais, as penas só funcionam caso terminem. Além disso, a pena serve não apenas para o criminoso, porém para todos os outros; é importante que seu discurso (de eficácia) possa circular socialmente, se legitimando. E para que o criminoso não vire um herói como outrora, “só se propagarão os sinais-obstáculos que impedem o desejo do crime pelo receio calculado do castigo” (p. 93), não mais a glória ou esperteza do contraventor. Trata-se de dispositivos voltados para o futuro. De agora em diante, se pune para transformar um culpado, não para apagar o crime.  
Terceira parte: a disciplina
I. Os corpos dóceis. Neste capítulo, talvez um dos mais conhecidos da obra, Foucault descreve toda a maquinaria (ou microfísica) do poder, constituída por detalhes sutis e invisíveis, presente nos séculos 17 e 18. Tal microfísica serve à produção de individualidades, ou melhor, de indivíduos que possam cumprir funções úteis, ajustando-se a um determinado tipo de sociedade emergente. Por exemplo, antes deste período, os soldados eram aqueles que já possuíam de antemão um corpo adequadamente predisposto para exercer seu ofício (isto é, conforme uma certa exigência física), agora não necessariamente. É que a partir de então o corpo torna-se o local de investimento de várias técnicas e mecanismos que pretendem docilizá-lo; tornando, assim, as pessoas tão mais úteis quanto mais obedientes e vice-versa. Para o autor, o homem objetificado (aquele do humanismo) pode ser inventado graças à descoberta da maleabilidade do corpo. Estas relações de poder seguem o mesmo modelo e são exercidas em diversas instituições: na escola, no hospital, na fábrica, no quartel; embora tenham nascido, anteriormente, nas igrejas (sobretudo em células monásticas). Ainda que haja um esquecimento sobre este projeto social, é possível compreender que ao lado do sonho de uma sociedade perfeita, utópica, saída da pena de filósofos e juristas, estava também, nesta época, o sonho de uma sociedade disciplinar. O que Foucault faz, no livro todo, é descrever este modelo e seus mecanismos, suas engrenagens, seus discursos e práticas, sem necessariamente afirmar que eles foram eficazes e que não havia resistência dos sujeitos (como alguns de seus críticos argumentaram); haja vista que uma sociedade disciplinar não é o mesmo que uma sociedade disciplinada, como aponta Vieira (2008, p. 11).
II. Recursos para o bom adestramento. O capítulo aborda os dispositivos que se encarregariam da eficácia do projeto disciplinar na sociedade moderna. Entre eles está o modelo do acampamento militar, que é aplicado à extensão da sociedade e suas instituições para constituir um grande observatório, garantindo uma vigilância múltipla em que as técnicas de ver objetivam, na verdade, efeitos de poder sobre aqueles que são vistos e em que “os meios de coerção tornem claramente visíveis aqueles sobre quem se aplicam” (1999, p. 143). Para a atuação de tais dispositivos de poder, há toda uma modificação da arquitetura, que passa a ser construída não mais para ser vista, mas para permitir um controle daqueles que nela estão localizados, tornando-os visíveis. “O velho esquema simples do encarceramento e do fechamento – do muro espesso, da porta sólida que impedem de entrar ou de sair – começa a ser substituído pelo cálculo das aberturas, dos cheios e dos vazios, das passagens e das transparências” (p. 144). Neste cálculo de adestramento, a distribuição de tarefas de vigilância e a fiscalização dos funcionários que cuidam da própria instituição são partes importantes de um sistema que se auto-sustenta. Isto é, por mais que a instituição tenha um chefe ou um diretor, é o aparelho mesmo em seu funcionamento que faz circular o poder, incidindo de cima para baixo, mas também de baixo para cima. Além disso, a disciplina cria um sistema de recompensas e penalidades contínuas para individualizar e classificar as condutas. Este separa o mau do bom, hierarquizando os indivíduos. Mas seu intuito é homogeneizar, ou seja, fazer com que todos se pareçam, constituindo uma normalização. O funcionamento jurídico-antropológico moderno nasce destes mecanismos da sanção normalizadora; o poder da norma nada mais é do que produto das disciplinas que funcionam nas instituições deste período. Também integrando o conjunto de mecanismos de adestramento (a maioria ainda atuante, por exemplo, em escolas dos dias atuais), “o exame” reúne o saber e o poder num só dispositivo de maneira bastante clara, pois permite normatizar e constituir saber sobre o objeto. O exame possibilita escrever o indivíduo, torná-lo visível para as ciências clínicas. “Essa nova descritibilidade é ainda mais marcada, porquanto é estrito o enquadramento disciplinar: a criança, o doente, o louco, o condenado se tornarão, cada vez mais facilmente a partir do século 18 e segundo uma via que é a dos mecanismos de disciplina, objeto de descrições individuais e de relatos biográficos. Esta transcrição por escrito das existências reais não é mais um processo de heroificação; funciona como processo de objetivação e de sujeição. A vida cuidadosamente estudada dos doentes mentais ou dos delinqüentes se origina, como a crônica dos reis ou a epopéia dos grandes bandidos populares, de uma certa função política da escrita, mas numa técnica de poder totalmente diversa” (p. 159).
III. O panoptismo. Este capítulo se inicia descrevendo as prescrições para uma cidade, do século 18, quando havia declaração de peste em seu território. Uma quarentena se montava: indivíduos trancados em suas casas, intendentes e “síndicos” vigiando, produção contínua de relatórios escritos e orais. Nesse sistema de exceção, a cada habitante é dada uma função, anota-se “o nome, a idade, o sexo, sem exceção de condição” [...] “tudo o que é observado durante as visitas, mortes, doenças, reclamações, irregularidades, é anotado e transmitido aos intendentes e magistrados” (p. 163). Se o modelo gerado pela lepra foi o Fechamento (como Foucault apresenta em História da Loucura na Idade Clássica), o da peste é a sociedade disciplinar. Um coletiviza e agrupa, outro individualiza e recorta. A figura arquitetural dessa composição é o “panóptico” de Jeremy Bentham. Este consiste em um anel na periferia, dividido em celas que, por sua vez, possuem janelas interna e externa onde a luz entra; e uma torre no centro, para observar as “individualidades” e fazê-las acreditarem que estão sendo observadas todo tempo. Tal mecanismo visa assegurar um funcionamento automático do poder. É interessante ressaltar que este laboratório de experiências com seres humanos torna o local de poder, também, uma instância de saber. Isto se aplica a toda a sociedade. O panóptico tem como objetivo se difundir por todo o corpo social. E há motivos contextuais para tal: multiplicidade dos indivíduos na explosão demográfica, crescimento do aparelho de produção, resposta ao sistema representativo (um “lócus” em meio à despersonalização do poder), formação do saber e majoração do poder em processo circular do séc. 18 (por ex: hospital, escola, oficina deram possibilidade do surgimento da medicina clínica, psiquiatria, psicologia da criança, psicopedagogia, racionalização do trabalho, etc.).  
Quarta parte: a prisão
I. Instituições completas e austeras. Aqui Foucault resume a tese principal de seu livro ao mostrar que antes da prisão ser inaugurada como peça das punições, ela já havia sido gestada na sociedade a partir do momento em que os mecanismos de poder repartiam, fixavam, classificavam, extraíam forças, treinavam corpos, codificavam comportamentos, mantinham sob visibilidade plena, constituíam sobre eles um saber que se acumulava e se centralizava sobre os indivíduos (p. 195). Por isso a prisão surge como algo inevitável,por mais que existissem outros projetos de punição de reformadores, por mais que ela recebesse críticas sobre sua ineficácia e seu perigo – desde seu nascimento. Esta instituição penal surge para ser a coação de uma educação total, para possuir uma disciplina onipresente a fim de transformar o indivíduo pervertido. Suas técnicas de poder passam principalmente pelo “isolamento” (sobretudo nos modelos americanos que eram baseados nos monastérios), logo, a “solidão”, a tentativa de “autorregulação pela reflexão” e o “trabalho” (sendo que este último gerou controvérsias entre os operários da época; contudo, é preciso ressaltar que o mesmo não visava lucro e sim o efeito sobre os corpos e as almas dos presos). Neste sentido, a pena é feita para ser regulada por ela mesma durante o processo de transformação, não havendo uma relação necessariamente direta entre crime e castigo. O processo de ascensão e consolidação do sistema prisional produz uma diferenciação, essencial, entre infrator e delinquente. Ao contrário do primeiro, este último está ligado ao seu crime por um feixe de relações prévias, instintos, histórico, comportamento, classe e etc. Embora o correlativo da justiça penal seja o infrator, o do aparelho penitenciário é o delinquente – unidade biográfica, núcleo de periculosidade, representante de um tipo de anomalia (p. 213); pode-se dizer que ele, o delinquente, é uma invenção do sistema penal. Aquele não existe antes deste.
II. Ilegalidade e delinquência. Ainda na primeira metade do século 19, na França, a cadeia se misturava com a prática do suplício. A cadeia era, na verdade, um carro que seguia por diversas cidades levando o condenado atrelado a instrumentos de tortura. A multidão participava desta “festa do suplicio”, gritando e xingando, podia ser contra o criminoso ou contra o excesso da punição. Ao mesmo tempo em que era repudiado, o criminoso participava também da festa, ganhava ares de notoriedade, uma vez que os jornais contavam seu nome e sua história antes dele chegar à cidade. Essa festa reservava prazeres que nem a liberdade concedia, por exemplo, cânticos coletivos de uma estranha inversão do código moral (exaltação do criminoso, rebaixamento dos poderes constituídos). Devido a tal fato, o carro-cadeia foi substituído pela carroça celular, que imitava um panóptico ambulante. Pouco tempo, este deu lugar à prisão mais ou menos no formato em que a conhecemos hoje. Foucault ressalta que a prisão já apareceu cercada por críticas e desconfianças: ela não diminuía a taxa de criminalidade, mas aumentava; provocava reincidência (inicialmente 38% e aumentando); fabricava delinquentes, sobretudo por não tratá-los como seres humanos e abusar do poder, assim, tornando-os coléricos; havia corrupção, medo e incapacidade dos guardas, especialmente para manterem sua segurança; exploração do trabalho penal, como venda de prisioneiros como escravos; organização do crime, solidariedade e hierarquia entre os criminosos; as condições de identificação e vigilância dos ex-detentos os levavam a praticar novos crimes. Até hoje as críticas são as mesmas: a prisão ao tentar corrigir não pune; a prisão gasta muito para fazer um trabalho ineficaz. E a resposta é a mesma também: deve-se fazer exatamente o que está no roteiro para que a instituição seja eficaz: principio da correção; da classificação; da modulação das penas; do trabalho como obrigação e como direito; da educação penitenciária; do controle técnico da detenção; das instituições anexas. “O sistema carcerário junta numa mesma figura discursos e arquitetos, regulamentos coercitivos e proposições científicas, efeitos sociais reais e utopias invencíveis, programas para corrigir a delinquência e mecanismos que solidificam a delinquência. O pretenso fracasso não faria então parte do funcionamento da prisão?”, questiona o autor (p. 225). Tentando perceber algo que não é explicitamente dito, Foucault afirma que há uma utilidade nos fenômenos que a crítica à prisão denuncia (isto é, na manutenção da delinquência, indução a reincidência, transformação do infrator ocasional em delinquente): é que os castigos não objetivam suprimir as infrações, mas distingui-las, distribuí-las, utilizá-las; trata-se de uma tática geral das sujeições, visando uma dominação, uma administração das infrações e não exatamente um aparelho para tornar dóceis os que praticam os crimes. Tendo em vista o tratamento diferenciado (tolerância ou intolerância) aos delitos praticados por um indivíduo se pertencente a uma classe ou não, ou se possuidor de um determinado tipo de histórico que justificaria sua natureza ou não, para Foucault não há uma separação entre ilegalidades e legalismo, mas entre ilegalidade e delinquência. O maior objetivo da prisão foi ter fabricado a delinquência, fazendo-a legítima, aceita, por isso até hoje a prisão perdura. Concomitantemente, os jornais, os noticiários e a literatura constituíam a estética do crime que ajudava a legitimar a “produção da delinquência”. Mas, por outro lado, existia também um contra-noticiário que jogava com os fatos dos crimes, mostrando a devassidão e a miséria espiritual em que viviam os burgueses, colocando culpa na sociedade pelos desfalecidos e criminosos das classes populares. Um exemplo é o jornal fourierista La Phalange, que Foucault redescreve o diálogo entre um infrator de 13 anos e o juiz. Ali o autor quer mostrar as lutas sendo praticadas na sociedade. De alguma forma, se o juiz fosse o indivíduo das classes populares estaria ele sofrendo os efeitos do poder da classe dominante e o garoto “infrator” ocupando seu lugar.
III. O carcerário. Foucault data a formação completa do sistema carcerário francês em 1840, ano de inauguração de Mettray (instituição para detenção de jovens infratores condenados) ou no dia em que um menino infrator lamentou sua saída da mencionada colônia penal (talvez dando a prova da eficácia do sistema disciplinar que lá funcionava). “’A mínima desobediência é castigada e o melhor meio de evitar delitos graves é punir muito severamente as mais leves faltas; em Mettray reprime-se qualquer palavra inútil’; a principal das punições infligidas é o encarceramento em cela; pois ‘o isolamento é o melhor meio de agir sobre o moral das crianças; é aí principalmente que a voz da religião, mesmo se nunca houvesse falado a seu coração, recebe toda a sua força e emoção’; toda a instituição parapenal, que é feita para não ser prisão, culmina na cela em cujos muros está escrito em letras negras: ‘Deus o vê’” (p. 243). Este é o princípio essencial do panóptico, sentir-se vigiado mesmo quando ninguém está vendo, coagido a fazer o correto e seguir a norma. Em Mettray, os chefes e subchefes não agem como pais, juízes, professores, contramestres, mas são um pouco de cada um. Na expressão do autor, são ortopedistas da individualidade. Interessante notar que para trabalharem no local, os chefes e subchefes precisam dominar uma técnica disciplinar que eles apreendem quando são submetidos a um treinamento que consiste em fazê-los sofrer coisa semelhante aos infratores. Por fim, os chamados efeitos do carcerário são os seguintes: espraiamento de poderes disciplinares no corpo social; recrutamento dos grandes delinqüentes e a produção destes; criação da legitimidade de punir e disciplinar; invenção de uma relação íntima entre natureza e lei, a norma; criação de um saber que objetiva o comportamento humano, através da observação contínua via panóptico (e de sua relação com as ciências humanas); isso explica sua continuidade sólida diante do pretenso fracasso da prisão. Contudo, e apesar de toda esta maquinaria descrita, Foucault encerra o livro com um texto anônimo publicado no jornal La Phalange, de 1836, para mostrar que estes mecanismos apresentados em Vigiar e Punir não são o funcionamento unitário de um aparelho (finalizado e vencedor), mas são estratégias postas em uma batalha que até hoje não cessou.

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