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BURCKHARDT, Jacob. A Cultura do Renascimento na Itália. Editora UNB. PARTE II – O desenvolvimento do indivíduo. Personalidade. No caráter desses Estados, repúblicas ou despotismos, está não a única, mas a principal razão para o desenvolvimento precoce dos italianos. pg. 81 Na Idade Média, os dois lados da consciência humana – aquele voltado para o interior e o outro, para o exterior – jaziam ou semi-adormecidos ou semidespertos, sob um véu comum. Véu tecido de fé, ilusão e preconceitos infantis, através do qual o mundo e a história eram vistos com tonalidades estranhas. O homem só estava consciente de si próprio como membro de uma raça, de um povo, de um partido, de uma família ou corporação – somente através de alguma categoria geral. Foi na Itália que este véu se desfez primeiro; um tratamento objetivo do Estado e de todas as coisas deste mundo se tornou possível. Ao mesmo tempo, o lado subjetivo se afirmava com ênfase correspondente; o homem se tornava um indivíduo, espiritual, e se reconhecia como tal. pg. 81 Mas não era o que acontecia com relação à individualidade, pois a impotência política não impede as diferentes tendências e manifestações de vida particular de vicejar com o maior vigor e variedade. A riqueza e a cultura, cuja exibição e rivalidade não eram proibidas; uma liberdade municipal, considerável; uma Igreja que, diferindo daquela do mundo bizantino, ou do mundo maometano, não se identificava com o Estado – todas essas condições favoreciam sem dúvida o crescimento do pensamento individual, e o necessário tempo de lazer foi proporcionado pela cessação dos conflitos partidários. O homem particular, indiferente à política, ocupado parcialmente com empreendimentos sérios, em parte com os interesses de um dilettante, parece ter-se formado por completo primeiramente nesses despotismos do século XIV. pg. 82-3 Os membros dos partidos derrotados, por outro lado, muitas vezes assumiam uma posição como a de súditos dos Estados despóticos, com a diferença de que a liberdade ou poder já gozados, e em alguns casos, a esperança de recuperá-los, dava maior energia à sua individualidade. Entre esses homens de lazer involuntário encontramos, por exemplo, um Agnolo Pandolfini (morto em 1446), cuja obra sobre economia doméstica é o primeiro programa completo de uma vida particular desenvolvida. Seus cálculos quanto aos deveres do indivíduo contra os perigos e ingratidções da vida pública são, a seu modo, um verdadeiro monumento da era. O banimento também tinha este efeito, acima dos demais: ele exauria o exilado ou então desenvolvia nele o que tinha de grande. “Em todas as nossas cidades mais populosas” - diz Giovano Pontano - “vemos uma multidão de pessoas que deixaram seus lares por livre e espontânea vontade; mas um homem leva suas virtudes aonde quer que ele vá”. E, na verdade, não eram apenas exilados, mas milhares deixavam a pátria voluntariamente, por considerarem suas condições políticas ou economicas intoleráveis. Assim as colônias de emigrantes florentinos, em Ferrara, e os de Lucca, em Veneza. pg. 83 O cosmopolitismo que crescia nos círculos mais bem-dotados já representava, em si, um alto estágio de individualismo. Dante, como já dissemos, encontra uma nova pátria na linguagem e cultura da Itália, mas vai além disso ao dizer: “Meu país é o mundo inteiro”. E quando lhe foi oferecido o retorno a Florença em condições que considerava indignas, escreveu: “Será que não posso olhar para a luz do sol e das estrelas em qualquer lugar; meditar sobre as verdades mais nobres em qualquer lugar, sem aparecer vergonhosa e ingloriamente perante a cidade e o povo? Até mesmo o pão não me faltará.” pg. 84 Quando este impulso para o desenvolvimento individual mais elevado se combinava com uma natureza poderosa e variada, que já se havia assenhoreado de todos os elementos da cultura, surgia o “homem multifacetado” - l'uomo universale – que pertencia só à Itália. Durante a Idade Média havia homens de conhecimento enciclopédico em muitos países, pois esse conhecimento estava confinado por limites estreitos; e até mesmo no século XII já encontramos artistas universais, mas os problemas da arquitetura eram relativamente simples e uniformes; na escultura e na pintura a matéria tinha mais importância que a forma. Mas no Renascimento italiano encontramos artistas que, em todos os ramos, criavam obras novas e perfeitas, e que causavam também a maior impressão como homens. Outros, além das artes que praticavam, eram mestres de um amplo círculo de interesses espirituais. pg. 84-5 O século XV é, acima de tudo, a época desses homens protéicos. Não há biografia que, além da obra principal do protagonista, não fale de outros feitos, todos ultrapassando os limites do diletantismo. O estadista e mercador florentino era muitas vezes letrado em ambas as línguas clássicas; os humanistas mais famosos liam a Ética e a Política de Aristóteles para seus filhos; até as filhas da casa eram altamente instruídas. Nesses círculos a educação particular foi, pela primeira vez, levada a sério. O humanista, por sua vez, era levado aos feitos mais variados, já que seu aprendizado filológico não se limitava, como acontece agora, ao conhecimento teórico da Antiguidade clássica, mas tinha de servir às necessidades práticas da vida diária. pg. 85 GLÓRIA A este desenvolvimento interior do indivíduo corresponde uma nova espécie de distinção externa – a fomra moderna da glória. Nos outros países da Europa, as diferentes classes sociais vivam separadamente, cada uma com seu próprio senso de honra derivado das castas medievais. A fama poética dos travadores e Minnesänger era peculiar à ordem dos cavaleiros. Na Itália, porém, a igualdade social surgiu antes do tempo das tiranias e democracias. Lá encontramos os primeiros traços de uma sociedade geral, tendo uma base comum na literatura italiana e latina. (…) Deve-se acrescentar que os autores romanos, que passaram a ser zelosamente estudados, estão impregnados da concepção da fama, e seu próprio tema – o império universal de Roma – erguia-se na mente italiana como um ideal permanente. pg. 87-8 Aqui, mais uma vez, como em todos os potnos essenciais, a primeira testemunha é Dante. Ele lutou pela fama poética com todas as forças. Como publicista e homem de letras, punha ênfase no fato de que aquilo que fazia era novo, e desejava não só inovar, mas ser reconhecido como o primeiro a trilhar aquele caminho. pg. 88 Um contemporâneo de Dante, Albertinus Musattus ou Mussatus, coroado poeta de Pádua pelo bispo e reitor, gozou de tal fama que chegou perto da deificação. Todos os dias de Natal, prefessores e estudantes das duas faculdades na universidade saíam em procissão solene até sua casa, com trombetas e velas acesas para saudá-lo e levar-lhe presentes. Sua reputaçaõ se manteve até 1318, quando ele caiu em desgraça com o tirano governante, da casa de Carrara. Esse novo incenso, antes queimando apenas em honra de santos e heróis, era oferecido em nuvens a Petrarca, persuadido, nos seus últimos anos, de que tudo não passava de uma tolice incômoda. pg. 88 O culto dos luagres de nascimento de homens famosos deve ser acrescentado ao de seus túmulos, e, no caso de Petrarca, ao do lugar onde morreu. (…) Constituía um ponto de honra para as diferentes cidades a posse dos ossos de celebridades do lugar e estrangeiros; é mais notável ainda o quão seriamente os florentinos, até mesmo no século XIV – muito antes da construção da igreja da Santa Croce -, já lutavam para fazer de sua catedral um panteão. Accorso, Dante, Petrarca, Bocaccio e o jurista Zanobi della Strada teriam túmulos magníficos. Mais tarde, no século XV, Lorenzo, o Magnífico, dirigiu-se em pessoa aos espoletanos pedindo-lhes o corpo do pintor FilippoLippi para a catedral; foi-lhe respondido que a cidade tinha poucos ornamentos, e especialmente relíquias de pessoas famosas, motivo pelo qual imploravam que fossem poupados; na verdade Lorenzo tece de contentar-se com a construção de um cenotáfio. pg. 89-90 Os paduanos mesmo no século XVI acreditavam firmemente possuir não só os ossos genuínos do fundador da cidade, Antenos, mas também os do historiador Lívio. “Sulmona” - diz Bocaccio - “lamenta que Ovídio esteja enterrado muito longe, no exílio; e Parma alegra-se porque Cássio dorme dentro de suas muralhas”. Em 1257 os mantuanos cunharam uma mdealha com o busto de Virgílio, e ergueram-lhe uma estátua. pg. 90 Na Idade Média as cidades se orgulhavam de seus santos e dos ossos e relíquias das igrejas. Com eles o panegirista de Pádua, Michele Savonarola, começa sua lista, em 1450; dali passa “aos homens famosos que não foram santos, mas que, por seu grande intelecto e força (Virtus), merecem ser acrescentados aos santos” - exatamente como na Antiguidade Clássica os homens famosos se aproximavam do herói. pg. 91 Ao lado desses templos locais da fama, criados em conjunto pelo mito, a lenda, a admiração popular e a tradição literária, os poetas eruditos construíram um grande panteão de celebridades mundialmente famosas. Colecionavam homens e mulheres famosos, muitas vezes em imitação direta de Cornélio Nepos, o pseudo-Suetônio, Valério Máximo, Plutarco (Mulierum virtutes), Jerônimo (De viris illustribus), e outros: ou então escreviam sobre imaginárias procissões triunfais e reuniões olímpicas, conforme fez Pertrarca no seu Trionfo della fama, e Bocaccio no Amorosa viosine, com centenas de nomes, dentre os quais pelo menos três quartos pertenciam à Antiguidade, e o restante à Idade média. Com o passar do tempo esse elemento novo e comparativamente moderno foi tratado com maior ênfase; os historiadores começaram a inserir descrições psicológicas e surgiram coletâneas de biografias de cotemporâneosilustres, como aqueles de Filippo Villani, Vespasiano Fiorentino, Bartolommeo Fazio e Paolo Giovio. pg. 91-2 Como dissemos, na Itália o poeta erudito tinha perfeita consciência de ser fonte da fama e da imortalidade; ou, se o desejasse, do esquecimento. (…) Em dois sonetos magníficos, Sannazaro ameaça Alfonso de Nápoles com o esquecimento eterno pela fuga covarde diante de Carlos VIII. Angelos Poliziano exorta seriamente o Rei João de Portugal (1491) a pensar na imortalidade, com vistas à novas descobertas na África, enviando-lhe material material para Florença, para ser ali amoldado a uma forma apropriada (operosius excolenda). Caso contrário, ele teria por destino “jazer ocluto na enorme pilha da fragilidade humana”, como já acontecera a outros cujos feitos foram ignorados pelos estudiosos. O rei (ou seu chanceler humanista) concordou, e prometeu-lhe que as crônicas portuguesas sobre assuntos africanos seriam traduzidas para o italiano e enviadas a Florença a fim de serem vertidas para o latim. Não se sabe se a promessa foi cumprida. Tais pretensões não são infundadas, como poderia parecer à primeira vista; pois a forma como até mesmo os mais importantes acontecimento são contados aos vivos e à posteridade é tudo menos uma questão indiferente. Com seu modo de exposição e o estilo latino, os humanistas italianos tinham há muito completo controle do mundo leitor europeu, e até o século passado os poetas latinos eram mais amplamente conhecidos e estudados do que quaisquer outros. pg. 92-3 O RIDÍCULO E O HUMOR. O corretivo desse apetite moderno pela fama, como de toda individualidade altamente desenvolvida, é o ridículo, especialmente quando expresso como humor, essa manifestação vitoriosa. Lemos que na Idade Média exércitos, príncipes e nobres hostis se provocavam uns aos outros com insultos simbólicos, e a parte derrotada era simbolicamente ultrajada. Aqui e ali, sob a influência da literatura clássica, o humor começou a ser usado também como uma arma nas disputas teológicas, e a poesia de Provença produziu toda uma série de composições satíricas. pg. 93-4 Na verdade, a Itália tornara-se uma escola de escândalos, de forma tal que o mundo não exibiria nem mesmo na França dos tempos de Voltaire. Nele e em seus camaradas havia, é certo, espírito de oposição; mas onde, no século XVIII, seria encontrada aquela multidão de vítimas apropriadas, uma assembleia incontável de seres humanos altamente desenvolvidos com suas características próprias; celebridades de toda espécie; estadistas, eclesiásticos, inventores e descobridores, homens de letras, poetas e artistas, todos os que davam vazão da forma mais livre e completa à sua individualidade? Essa multidão já existia nos séculos XV e XVI, e a seu lado a cultura geral da época educara uma geração de humoristas impotentes, de críticos zombeteiros antos, cuja inveja solicitava uma hecatombe de vítimas; e a tudo isto se somava a inveja dos homens famosos entre si. pg. 98 Florença, o grande mercado da fama, estava neste particular na dianteira das outras cidade, como já dissemos. “Olhos aguçados e línguas malvadas” - é a descrição de seus habitantes. Um desprezo amável por tudo e todos era o tom prevalecente na sociedade. Maquiável, no notável prólogo da sua Mandrágora, se refere correta ou erradamente e ameaça seus detratores com o aviso de que também sabe dizer frases ferinas. pg. 98
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