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A versão dos vencidos Entrevista - Nathan Wachtel Agnes Alencar e Rodrigo Elias 2/1/2012 Dizem que um historiador vive no passado. Será? Para Nathan Wachtel, um historiador jamais escapa do presente. E talvez seja justamente esta ancoragem no presente que faz a História ser tão enriquecedora: “A realidade é algo inesgotável. Por sorte, a cada investigação renova-se o passado”, diz o professor de História e Antropologia das sociedades meso e sul-americanas do Collège de France. Wachtel já alimentava a vontade de escrever sobre um tema que não fosse a história de seu país, a França, ainda no doutorado. Eram os anos 1960: Lévi-Strauss lançava Tristes Trópicos, e a escola (ou o espírito, como prefere o entrevistado) dos Annales encorajava os alunos a buscar outras abordagens. Wachtel não pensou duas vezes – ingressou no curso de espanhol e decidiu estudar as sociedades andinas: era preciso “escrever do ponto de vista dos vencidos”. Depois de algumas obras seminais e muitas descobertas, concentrou-se nos judeus da Espanha e de Portugal, e acabou parando no Nordeste brasileiro. De passagem pelo Rio de Janeiro a convite da UFRJ, ele conversou com a equipe da RHBN e falou sobre os temas, os achados e as abordagens que marcam sua festejada trajetória. Wachtel lembrou seu mestre Robert Mandrou, tratou da aproximação com a Antropologia e falou do curioso caso dos uros no Peru, da forte inquisição espanhola e dos judeus no Brasil, sempre buscando aproximá-los do presente. “Gosto muito de uma frase de Marc Bloch: a História consiste em reunir o estudo dos vivos com o dos defuntos”. REVISTA DE HISTÓRIA O senhor é uma grande referência em estudos da História sob a perspectiva dos vencidos. Como chegou a ela? NATHAN WACHTEL Eu estava buscando um tema de pesquisa para o doutorado, na França. E tinha vontade de trabalhar em um tema que seria sobre outra coisa que não a tradicional (para não dizer banal) história da França. Estávamos nos anos 60, num contexto geral da A versão dos vencidos - Revista de História http://www.revistadehistoria.com.br/secao/entrevi... 1 de 6 04-06-2014 09:43 descolonização, que nos obrigava a modificar os pontos de vista. Era preciso trabalhar sobre a África, sobre a Ásia... Eu me decidi pela América Latina e comecei a estudar espanhol. E acabei me concentrando mais nas sociedades andinas. Até porque, na época, as sociedades que habitavam o México eram bem mais estudadas que as do Peru e da Bolívia. Meu desejo era fugir do tema da conquista tal como ele era estudado e buscar o ponto de vista dos indígenas. A ideia era sair das categorias de explicação que eram em geral aplicadas, voltar ao conceito de eurocentrismo e escrever do ponto de vista dos vencidos. RH É possível identificar a visão dos vencidos sem ter como referência a dos vencedores? NW Não. Não se pode fazer a história dos vencidos sem tratar dos vencedores. Estes pontos de vista são complementares, e por vezes, quando aprofundamos o tema, a questão se torna mais complexa. Veja bem: meu primeiro trabalho sobre a visão dos vencidos é mais focado na Conquista e nas décadas seguintes. Eu parei cronologicamente nos anos 1570. A parte central do trabalho [que sairia em livro com o título A visão dos vencidos] trata do Império Inca e dos efeitos da Conquista. Depois, em meu livro seguinte, O Retorno dos Ancestrais, eu dei continuidade à análise das sociedades indígenas. Foi quando encontrei a história dos uros, uma população muito importante no século XVI. Eles representavam 25% da população do altiplano, do Peru e da Bolívia. E os uros, em relação aos seus vizinhos aymaras, são os dominados. São pescadores, caçadores de aves, e não têm terra. Eles vivem na água, nas ilhas, nos lagos, e são desprezados, dominados, explorados pelos vencedores, no caso, os aymaras. Em outras palavras: os uros são os vencidos dos vencidos. Isto me permitiu aprofundar o tema e encontrar outras questões importantes. RH Quais? NW Acho que a mais importante é a seguinte: a definição do outro se faz quase sempre por oposição. A definição de si mesmo se faz por oposição ao outro. É o caso dos uros. Eles alimentavam um sentimento muito forte de diferença em relação aos aymaras. Para eles, o modelo dominante era o aymara, uma sociedade que vivia em terra e se organizava de maneira completamente distinta. Os sistemas de matrimônio, de ritos religiosos... E o curioso é que os uros que ainda existem, os de Chipaya, na Bolívia, ainda conservam sua identidade até hoje. Os uros de Chipaya são 2.000 pessoas, no máximo. É uma pequena aldeia. E isso representa uma pequena porcentagem da população da Bolívia, algo pífio para quem chegou a contar 25% do total de habitantes. RH Que fim tiveram os demais uros? NW O que aconteceu na metade do século XVII é que 95% da população de uros tinha desaparecido. E por que tinham desaparecido? Não havia razões para supor que foram vítimas, mais do que os outros, das epidemias. Não havia indícios de matanças mais severas. A explicação dada realmente pela documentação histórica é que eles se confundiram com os demais da população. Eles se sedentarizaram, adquiriram terras, adotaram o modelo de organização dualista (acima, embaixo; esquerda, direita; masculino, feminino; etc) e o idioma aymara. Ou seja: a maioria dos uros, já no fim do século XVII, havia se aymarizado. Alguns, uma minoria, permaneceram como selvagens. Era como os aymaras e os espanhóis os consideravam. Eu me detive sobre este tema por um bom tempo. É um ensaio de História total. RH E o que significa total? A versão dos vencidos - Revista de História http://www.revistadehistoria.com.br/secao/entrevi... 2 de 6 04-06-2014 09:43 NW Não se trata de estudar uma sociedade ou uma época de maneira exaustiva. É bom que fique claro. Significa estudar as articulações entre os diferentes níveis: demografia, economia, organização social, cultura e religião. É isto. RH Esse esforço para compreender a perspectiva do vencido não esbarra nos limites da documentação? NW Toda documentação tem seu aspecto parcial. O elementar da investigação histórica, o bê-á-bá que aprendemos, é que cada documento histórico necessita de sua crítica histórica. Quem escreveu, suas origens... Mas não é porque essa documentação é produzida pelos vencedores que não podemos estudar os vencidos. Eu posso dar o exemplo fiscal. Os espanhóis eram os dominadores. E eles impunham um tributo à população indígena. Para fazê-lo, no entanto, teria de haver um censo. Então, os espanhóis juntaram às autoridades das aldeias, fizeram questionários, visitas. Estas visitas são um verdadeiro tesouro. Sabemos que os visitadores alteravam alguns dados e que os índios escondiam informações. Ainda assim, as descrições que os visitadores fazem das aldeias, casa por casa, são riquíssimas. Através delas podemos escutar a voz dos vencidos. RH Esta abordagem surgiu de uma aproximação com a Antropologia? NW Com certeza. E acho que nasceu não somente de uma necessidade do processo de pesquisa para estes estudos, como também da minha própria formação. O meu mestre, Robert Mandrou, era historiador, redator da revista Annales. Ou seja: eu me formei dentro deste espírito dos Annales (não gosto de usar a palavra “escola”). Um espírito que nos leva a saltar por cima das fronteiras, fazer as disciplinas se comunicarem e, como no meu caso, combinar História e Antropologia. E esta última me causou muito impacto quando li a obra de Lévi-Strauss. Eu faço parte dos milhares de leitores de Tristes Trópicos [1955]. Depois, ainda segui os seus seminários. No trabalho sobre a visão dos vencidos, usei esta abordagem antropológica para tratar da “dança da conquista”. RH O que é? NW São representações teatrais sobre o tema da Conquista da América. É um tema muito comum em todos os Andes, na Bolívia, no Peru e no Equador, mas também no México. E acontece em festas de rua, em aldeias, também no períododo carnaval. É claro que essa representação da conquista espanhola tem suas deformações, suas interpretações. Por exemplo, Pizarro é castigado. Mas é uma maneira de superar o trauma. RH A Antropologia também permite relacionar diferentes épocas? NW A Antropologia ajuda, é claro. Mas esta é uma preocupação anterior. É histórica também. E aqui me refiro a outro mestre, que eu não conheci, um dos fundadores da revista Annales: Marc Bloch. Eu utilizei bastante o Marc Bloch no tipo de história que pratiquei em O Retorno dos Ancestrais. Este trabalho foi uma experiência comovente. Era emocionante encontrar os antepassados das pessoas que estavam presentes nos documentos históricos coletados por nós. Há uma citação de Bloch que gosto de usar em meus livros e aulas: a História é a ciência dos homens no tempo, que consiste em reunir o estudo dos vivos com o dos defuntos. Esta era a problemática central de O Retorno dos Ancestrais, a articulação entre identidade e memória. A versão dos vencidos - Revista de História http://www.revistadehistoria.com.br/secao/entrevi... 3 de 6 04-06-2014 09:43 RH Você também tentou compreender como os índios perceberam a chegada dos espanhóis, não é? NW Sim. O que acho curioso é que a lenda de que os espanhóis eram encarados como deuses, fosse no México, fosse no Peru, talvez não seja falsa. Mas ela não durou muito tempo. Não puderam crer por muito tempo que eles eram seres sagrados porque a conduta dos espanhóis não era realmente a de seres divinos. Foi uma questão de tempo para que percebessem que aquilo não fazia sentido. Posso dar o exemplo da conquista espanhola no Peru. Um líder indígena recomendou que um de seus oficiais fosse observar os corpos dos espanhóis depois de uma batalha, para verificar se haviam se decomposto ou coisa parecida. Então, fazendo essas experiências, eles procuraram um tipo de observação científica racional. E se davam conta de que sim: os espanhóis eram humanos em todos os sentidos. RH É correto afirmar que a conquista espanhola se deu apenas por força das armas? NW Os espanhóis, como todos os conquistadores, venceram não somente porque suas armas eram superiores, mas, sobretudo, porque conseguiram a aliança com alguns grupos indígenas. Não se pode esquecer que nas tropas de Pizarro e de outros conquistadores havia mais índios que espanhóis. Os europeus eram os cavaleiros e a tropa de arqueiros era formada por índios. Por que índios se aliaram aos espanhóis? Porque o Império Inca era um Estado de conquistadores. RH Como chegou ao tema cristãos-novos? NW Eu queria pensar a articulação entre memória e identidade em outro contexto. Mas eu levei um tempo até chegar aos cristãos-novos no Brasil. Na verdade, em meados dos anos 80, pouco antes de terminar O Retorno dos Ancestrais, eu pesquisei sobre memórias judaicas com uma colega, a Lucette Valensi. E esse trabalho era o que costumamos chamar de “emergência”. Nós tínhamos que salvar a memória de uma geração de pessoas. Era preciso recolher seus conhecimentos antes de tudo aquilo desaparecer. Essas pessoas haviam imigrado para a França, gente do mundo inteiro. Eu fiquei com os imigrantes da Europa Central e Oriental, e minha colega se encarregou dos imigrados do Mediterrâneo, do Magreb, do Oriente Médio. Vale lembrar que naquela época estávamos sob o efeito da onda da memória que Pierre Nora consagrou. RH E por que decidiu seguir por esse caminho? NW Acho que um dos fatores determinantes foi a riqueza da documentação histórica. Em Lima e no México, eu me dei conta de que os arquivos inquisitoriais eram de uma riqueza extraordinária. São os documentos dos dominantes, sabemos muito bem disso, mas a minúcia dos detalhes abria uma série de questões. É incrível como o escrivão que tomava nota do interrogatório do inquisidor anotava não somente as perguntas e as respostas, mas também outros dados do momento. É claro que há estereótipos nos interrogatórios. Algumas perguntas são preparadas. Quase sempre a primeira pergunta é sobre a casta do acusado. A casta dos cristãos-novos ou a dos cristãos-velhos. Contudo, com um pouco de familiaridade com a documentação, vemos rapidamente quando saímos dos estereótipos. E depois, como a minha intenção é sempre juntar o estudo dos defuntos com o estudo dos vivos, como manda Marc Bloch, acabei fechando com os cristãos-novos. RH Poderia falar um pouco deles? A versão dos vencidos - Revista de História http://www.revistadehistoria.com.br/secao/entrevi... 4 de 6 04-06-2014 09:43 NW Os cristãos-novos não existem mais em Portugal e no mundo lusitano desde a lei promulgada pelo marquês de Pombal em 1773, quando se aboliu a distinção entre os cristãos-novos e os velhos. No começo do século XX, Samuel Schwartz descobriu os marranos [denominação injuriosa conferida aos judeus na Espanha e em Portugal] em Belmonte, em Portugal. Isto teve um grande impacto. Porque as inquisições espanhola e portuguesa foram muito duras com o marranismo. A espanhola foi tão severa que praticamente o extirpou. E quando a portuguesa começou, também foi muito forte. Alguns cristãos-novos de Portugal foram se refugiar na Espanha, onde a repressão inquisitorial havia diminuído. Então, comecei a suspeitar que havia a possibilidade de sobrevivência dessa memória marrana na América Latina. RH A maioria deles veio mesmo para o Brasil? NW Sim. É no Brasil que a população de cristãos-novos é mais densa. Mais do que no México ou no Rio da Prata. Em Recife, foi criada e funcionou durante 20 anos a primeira sinagoga da América. E isso teve um grande impacto sobre os cristãos-novos. Até porque o cenário mudou bastante com a expulsão dos holandeses, em 1654. Os judeus que vinham de Amsterdã podiam voltar ou se refugiar nas Antilhas ou na Nova Amsterdã na época, hoje Nova York. Agora, os que já estavam estabelecidos no Brasil acabaram se refugiando nas terras do interior. Hoje sabemos o quanto os cristãos-novos contribuíram para a população do Nordeste. A própria cultura sertaneja tem algumas de suas raízes nos cristãos-novos. Esse foi o resultado do meu trabalho, embora eu tenha seguido os passos de Luís da Câmara Cascudo, que já estava atento aos elementos judaicos presentes na cultura sertaneja. Na maioria das vezes, os sertanejos nem se dão conta disso, mas mantêm uma série de costumes e hábitos. RH Seria então mais uma permanência do que uma recriação moderna? NW Sim. Estou me referindo aos costumes funerários, às regras de alimentação, como a proibição do porco, ao hábito de tirar todo o sangue da galinha na hora do abate... São regras praticadas em muitas famílias, não somente no Nordeste. E, muitas vezes, as pessoas fazem isto sem saber a explicação. Este tipo de permanência é bem menos visível na América espanhola. RH Por quê? NW A repressão inquisitorial começou cedo na América espanhola, sobretudo, no México. Por volta de 1570, os tribunais são criados em Lima e no México. Mas a repressão começa mais forte neste último, já nos anos 80 e 90 do século XVI. Depois, ainda houve uma segunda onda no México e no Peru nos anos 30 do século XVII. Então, eu não digo que o marranismo desapareceu no México ou no Peru, mas as redes de solidariedade – econômica, comercial, religiosa – estavam desmanteladas. Enquanto isso, no Brasil, o número de condenados durante o século XVI e quase todo o XVII se conta às dezenas. O país foi um refúgio bastante seguro em relação a outras partes até o final do século XVII, o que curiosamente coincide com o início da grande exploração do ouro. E, naquele momento, o marranismo já estava estabelecido. A lei de Pombal não foi suficiente para destruir tudo.[retirar] RH Existe uma continuidade entre o antissemitismo da Época Moderna e o de períodos mais recentes? NW Sim. O marranismo é pioneiro para uma certa modernidade. E isto foi o resultado da reação A versão dos vencidos - Revista de História http://www.revistadehistoria.com.br/secao/entrevi...5 de 6 04-06-2014 09:43 Publicar no Facebook 8 da sociedade global à brilhante integração dos cristãos-novos na sociedade espanhola ou na portuguesa. Os cristãos-novos, em sua maioria, puderam escapar das proibições que os impediam de ascender a cargos políticos, às universidades, etc. E a sociedade via com mal-estar essa competência. O que se institui, então, são os estatutos de pureza de sangue. Ou seja: a heresia agora depende de um critério biológico. Os cristãos-novos transmitiriam um sangue impuro. Isso é um antissemitismo biológico, e podemos dizer racial, na medida em que a palavra da época é “casta”. E a palavra “casta”, nos dicionários da época, é mais ou menos equivalente à palavra “raça”. Eu não diria que há uma relação direta entre esse antissemitismo biológico ibérico e o antissemitismo racial dos séculos XIX e XX. RH Mas seria um fenômeno análogo. NW Exatamente, sobretudo no que concerne à reação das sociedades da Espanha e de Portugal nos séculos XV e XVI, e da Alemanha e da Áustria nos séculos XIX e XX. Depois da emancipação dos judeus na Alemanha, durante o século XIX, e num momento em que a conversão ao cristianismo era abundante, criou-se uma cultura que se pode chamar de judia-alemã. Não somente por nomes como Karl Marx, Freud ou Heine. Eu estou falando de judeus que permanecem não [retirar] religiosos e bons alemães. Alemães novos. E contra a competência desses alemães novos, houve uma reação análoga de reprovação. Eu repito: não há uma relação direta, mas é um fenômeno que tem uma analogia. E o marranismo não foi o único elemento de pioneirismo da Época Moderna. A Inquisição nada mais é do que uma espécie de semente para um outro aspecto da modernidade: o totalitarismo. A instituição inquisitorial era uma burocracia numerosa, embora competente. E a investigação policial era fundamentada sobre um processo bem racional. O que dá mais medo não é tanto a chama das fogueiras, mas o método de perseguição. RH É possível tratar de temas do passado sem uma preocupação com o presente? NW Claro que não! Por definição, nós pertencemos a um presente. Toda história tem sua origem em uma interrogação que parte do presente. Isto não significa que o que o historiador apresenta como resultado não tenha uma relação com a verdade, com o que se passou. Com isso, temos que ser muito positivistas. Tratamos de uma realidade que existiu. Não é ficção, de nenhuma maneira. Mas a realidade é algo inesgotável. Então, por sorte, cada presente faz a investigação histórica renovar a perspectiva sobre o passado. A versão dos vencidos - Revista de História http://www.revistadehistoria.com.br/secao/entrevi... 6 de 6 04-06-2014 09:43
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