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1 Belém - Editora, 2012 Valorização do passado no presente: estudos arqueológicos e educação para o patrimônio na área de intervenção da LT Vila do Conde- Santa Maria do Pará (PA) Lilian Panachuk 2 Organização Lilian Panachuk Ilustração Greyce Oliveira Colaboração Isabela Castro Gisele Moreira Rondelly Cavulla Janice Farias Ana Lucia Herberts Consultoria Eneida Malerbi Solange Caldarelli Revisão Ortográfica Tatiane Lima Ferreira Patrocínio Empresa Regional de Transmissão de Energia – ERTE Realização Scientia Consultoria Científica Projeto gráfico, diagramação e edição Gisele Bochi Palma Ficha catalográfica elaborada por Wagner de Araújo Silva – CRB 8/ 8960 P187i Panachuk, Lilian Introdução ao patrimônio cultural / Lilian Panachuk; ilustração, Greyce Oliveira; revisão, Tatiane Lima Ferreira. – Belém : Editora, 2012. 150 p.: Ilustrado 1. Patrimônio Cultural. 2. Educação Patrimonial. 3. Patrimônio Arqueológico. 4. Pesquisas Arqueológicas. I. Título. CDD – 363.69 3 Apresentação Palavra da Scientia Consultoria Científica........................................................................6 Palavra do empreendedor...................................................................................................7 Introdução............................................................................................................................8 Capítulo 1: Conhecimento tradicional e científico: reciprocidades.............. 10 O que é patrimônio?...........................................................................................................12 O que é memória?...............................................................................................................18 O que é cultura?..................................................................................................................22 O que é diversidade?..........................................................................................................26 Capítulo 2: Conhecimento legal: as leis e o patrimônio................................30 O patrimônio cultural brasileiro e as leis que o protegem...........................................32 Gestão e cuidado com o patrimônio brasileiro..............................................................34 Patrimônio Cultural: definição e particularidade...........................................................36 Pra que preservar o patrimônio cultural?.......................................................................40 Como, na prática, posso preservar o patrimônio?........................................................44 Patrimônio arqueológico e suas leis específicas.............................................................44 Diagnóstico arqueológico..................................................................................................46 Prospecção arqueológica...................................................................................................47 Resgate e análise arqueológica..........................................................................................48 Educação Patrimonial........................................................................................................50 Capítulo 3: Conhecendo a Arqueologia e seus interesses.............................52 O que é um objeto?............................................................................................................54 Materiais e construções arqueológicas: diversidade......................................................56 Material lítico.......................................................................................................................57 Material rupestre.................................................................................................................61 Material cerâmico................................................................................................................62 Material em louça................................................................................................................64 Outros materiais..................................................................................................................66 Construções e edificações mais antigas...........................................................................68 Construções e edificações mais recentes........................................................................71 O que é sítio arqueológico?...............................................................................................73 Como faz a arqueologia para relacionar os dados?.......................................................76 Sumário 4 Capítulo 4: Resultados da pesquisa arqueológica na área de intervenção da Linha de Transmissão Vila do Conde – Santa Maria do Pará......................78 A estratégia de pesquisa arqueológica.............................................................................80 Como o material é analisado em laboratório?...............................................................86 Os objetos do passado mais antigo.................................................................................89 O estudo do material cerâmico........................................................................................91 A perigosa transformação físico-química da argila à cerâmica..................................98 A arte da decoração cerâmica: além de útil, bela.......................................................101 Além dos fragmentos: potes e suas características.....................................................104 O material lítico: lâminas de machado..........................................................................109 Os objetos do passado mais recente.............................................................................110 A louça: registro de mesa e banho................................................................................112 O vidro e um pouco de sua história.............................................................................120 Capítulo 5: Atividades para a sala de aula...................................................127 Educação Infantil.............................................................................................................128 1 - Atividade: Objetos naturais, objetos culturais.......................................................128 2 - Atividade: Siga o mestre na lenda...........................................................................129 3 - Atividade: Galeria da moda.....................................................................................130 4 - Atividade: Teatro de papel........................................................................................131 5 - Atividade: A vida das formigas................................................................................132 6 - Atividade: A arte da olaria........................................................................................134 Ensino Fundamental I e II............................................................................................134 1 - Atividade: Trajetos do bairro...................................................................................135 2 - Atividade: Memórias do bairro................................................................................136 3 - Atividade: Carimbando a arte rupestre..................................................................137 4 - Atividade: Diversidade na cidade............................................................................138 5 - Atividade: Escrevendo o que se fala......................................................................139 6 - Atividade: O trabalho em arqueologia....................................................................143 Formação crítica e pesquisa: Ensino Médio................................................................145Saiba mais... .....................................................................................................................145 Exposições virtuais e filmes...........................................................................................145 Informações temáticas....................................................................................................145 Dicas pedagógicas............................................................................................................145 Bibliografia consultada...................................................................................................147 5 Apresentação 6 Palavra da Scientia Consultoria Científica As pesquisas arqueológicas que vêm sendo realizadas no Estado do Pará estimu- lam o desenvolvimento de trabalhos educa- tivos, dentro e fora das escolas, para a maior divulgação das pesquisas, bem como o en- volvimento da população na preservação do patrimônio arqueológico e cultural, por meio da expansão do conhecimento do passado e da valorização da cultura local. A este amplo trabalho de estímulo à reflexão sobre a histó- ria mais antiga, o respeito e a valorização dos mais distintos modos de vida, chamamos de educação patrimonial. Podemos afirmar, com base em experiências em outros projetos, que a educação desenvolvida dentro da perspecti- va do patrimônio estimula comportamentos sociais mais tolerantes e influencia na forma- ção de cidadãos mais envolvidos na conquista de uma sociedade mais equilibrada. Neste livro, vocês, professores e pro- fessoras, terão contato com o conhecimento necessário para inserir em sala de aula a dis- cussão sobre educação patrimonial. Nossa preocupação foi a de elaborar um material de apoio didático, dinâmico e com condi- ções e ideias favoráveis ao envolvimento dos estudantes no mundo do aprendizado. Dentre os objetivos dos Parâmetros Curri- culares Nacionais, podemos mencionar a formação ampla dos estudantes, direcionada para o desenvolvimento de capacidades cog- nitivas, das relações interpessoais e sociais. Considerando tais assertivas, elaboramos um material com conteúdo consistente, vi- sando atender à formação dos educadores e educadoras, bem como às propostas práticas para a realização do trabalho em sala de aula. Proporcionar a educadores, educa- doras e estudantes a reflexão sobre a cultura presente e passada, que se refletem claramente nos municípios que compõem o nordeste do estado do Pará, permite que todos sejam es- timulados a conhecer e respeitar a diversidade cultural, que é uma marca da cultura brasileira. Tivemos e ainda temos a oportuni- dade de trabalhar com educação patrimonial em diversos municípios do estado do Pará e isso nos permite ter a percepção do quanto é rica e diversificada a cultura desse estado. Assim, a própria realidade local é um inte- ressante recurso para a aproximação e o en- volvimento do estudante que tem em seu dia a dia um largo campo para reflexão e apren- dizado, sobre o qual pode estudar e com o qual pode interagir. Esperamos que as propostas por nós registradas neste livro contribuam para a sua prática educativa, lembrando que sua atuação, enquanto professor e professora são nosso maior catalisador, podendo levar o trabalho de educação patrimonial ao maior número de pessoas. Deste modo, por meio da educação seremos capazes de contribuir para a busca de uma sociedade mais respei- tosa. Aproveite o livro, embarque em nosso barco, reme conosco e assim alcançaremos mais rápido nosso objetivo! Bom trabalho! É o que lhe deseja a Equipe de Educação Patri- monial da Scientia Consultoria Científica. 7 Palavra do empreendedor A Empresa Regional de Trans- missão de Energia S.A. dedicou aten- ção especial à proteção, à conservação e ao conhecimento do passado brasi- leiro durante a construção da Linha de Transmissão (LT) em 230 kV Vila do Conde – Santa Maria do Pará, loca- lizada no estado do Pará, procurando acompanhar nas áreas que são direta e indiretamente afetadas pela implanta- ção do empreendimento todas as ati- vidades de engenharia envolvidas na implantação desta obra, visando pre- servar os eventuais sítios arqueológi- cos existentes. Na primeira etapa, foram rea- lizados os estudos de diagnóstico e prospecção arqueológica na área do empreendimento, que atravessou ambientes com características dis- tintas, não se restringindo, somen- te, à faixa de servidão, mas também dando especial atenção às áreas das subestações e aos acessos da linha de transmissão. Os trabalhos foram realizados logo após a locação do traçado da li- nha e antes da abertura das estradas de acesso, resultando na localização de nove sítios arqueológicos, situados nos municípios de Barcarena, Moju e Bujaru, no qual, desses, apenas oito foram resgatados. O nono sítio não necessitou de resgate devido à sua localização, pois se encontra no vão entre as torres, onde não corre risco direto de sofrer impacto pelo em- preendimento. Os materiais encontrados fo- ram higienizados e separaram-se os fragmentos de forma refinada; aque- les que remontavam foram objeto de colagem e restauração. A Funda- ção Casa da Cultura de Marabá ficou com a responsabilidade deste acer- vo. O trabalho apresentado a se- guir, visa divulgar para a sociedade, de maneira compreensível, o conhe- cimento gerado através dos estudos arqueológicos realizados na LT em 230 kV Vila do Conde – Santa Maria do Pará. Esperamos ter contribuído de forma significativa para a geração do conhecimento sobre a nossa história, através dos achados arqueológicos, e que apreciem o trabalho. 8 Introdução Este livro é um dos resultados do Projeto “Resgate dos sítios arqueo- lógicos localizados na área de inter- venção da Linha de Transmissão em 230 kV Vila do Conde – Santa Maria do Pará, PA”, realizado como parte do processo de licenciamento ambiental do empreendimento, de responsabili- dade da Empresa Regional de Trans- missão de Energia S.A. (ERTE). O objetivo primeiro deste li- vro é divulgar o conhecimento gerado por meio dos estudos arqueológicos realizados pela Scientia Consulto- ria Científica na área de intervenção daquele empreendimento. Para isto, caminharemos através de conceitos construídos a partir do nosso dia a dia, discutindo questões relevantes so- bre o patrimônio cultural. O interesse é compartilhar, com os habitantes de hoje, o conhecimento sobre as popu- lações regionais do passado eviden- ciado pelas pesquisas arqueológicas locais. O patrimônio cultural arqueo- lógico é um recurso não renovável e pertence à União, conforme a Consti- tuição Brasileira. Assim, é patrimônio de todos nós. É também objetivo deste livro caminhar por vias não sectárias. As- sim, almeja atingir públicos como o educador, o acadêmico e, em espe- cial, aquela ou aquele que inicia suas pesquisas arqueológicas. Mas tam- bém pretende atingir os arqueólogos já experientes na profissão e que se dedicam à educação. Como bem fri- sou Paulo Freire em toda sua obra, o diálogo visando à difusão do conhe- cimento sobre a história e o compor- tamento humano e social, por vias democráticas, é essencial para a for- mação cidadã. Para nos acompanhar nesta cami- nhada teremos uma presença muito ilus- tre, a de uma adolescente chamada Maíra. Maíra é uma personagem mui- to querida, desenvolvida para instigar e provocar o professor, no sentido empregado por Paulo Freire, o de des- pertar a curiosidade dos leitores sobre o patrimônio arqueológico da região de Barcarena, Pará. A construção desta persona- gem permitiu à nossa equipe reunir elementos da nossa experiência com o conhecimento de mundo dos adoles- centes com os quais trabalhamos, os elementosque expressam a reflexão sobre uma noção integrada de patri- mônio que considere objetos, lendas, saberes tradicionais, modos de fazer as coisas e elementos da paisagem. 9 Maíra nasceu no dia 22 de agosto de 1995, no município de Lago da Pedra, bem próximo a São Luís, no Maranhão. Filha de mãe pro- fessora e pai motorista de caminhão pesado. Atualmente tem 17 anos, mas mora desde bem pequena no Pará, pois a profissão do pai obrigou a família a fazer muitas viagens. Tais viagens permitiram que Maíra conhecesse diversos modos de vida, o que acrescentou muito em seu co- nhecimento geral e na sua formação cidadã. Maíra é um nome brasileiro de origem indígena, da língua tupi-guarani, e significa inteligente. Como bem veremos essa adolescente é perspicaz! Maíra “inteligente” 10 Capítulo 1: Conhecimento tradicional e científico: reciprocidades 10 11 Neste capítulo, discutiremos algumas palavras utilizadas em nosso cotidiano: patrimônio, cultura, memória e diversidade. São palavras conhecidas em nos- so dia a dia, que também são uti- lizadas nas pesquisas científicas que objetivam entender o com- portamento humano. Estes es- tudos, realizados por diferentes disciplinas, como antropologia, sociologia, política, arqueologia, história, museologia, linguística, psicologia etc., buscam as seme- lhanças e diferenças nas formas de expressão dos grupos huma- nos de vários lugares e em varia- dos períodos temporais. O conhecimento tradicional e o científico se dedicam cada um patrimônio cultura memória diversidade à sua maneira, a conhecer, en- tender e interpretar os hábitos e costumes dos seres humanos que observam. Para calibrar o diálogo, julgamos ser importante traçar semelhanças e diferenças entre o pensamento tradicional e o pensamento científico para essas noções acima anunciadas. 11 12 O que é patrimônio? O patrimônio pode ser definido, conforme o dicionário, como “herança paterna, bens de família, (...), quaisquer bens materiais ou morais, pertencentes a uma pessoa, institui- ção ou coletividade”1. Em nosso cotidiano, podemos referir que “Sicrano é um homem de muitos patrimô- nios, com casas, carros e embarcações”. Neste caso, estamos lidando com bens ma- teriais e financeiros, muitas vezes uma he- rança que é repassada entre os membros da família. Podemos, ainda, dizer que “o maior patrimônio de Beltrano é preparar pratos típicos”. Neste exemplo, estamos ressaltan- do conhecimentos e saberes de um grupo, expressos pela habilidade individual. Já ao dizermos que “a região da foz do Amazonas tem um precioso patrimônio natural”, apon- tamos para os aspectos ambientais, o espaço e a geografia. Por esses três exemplos de nosso dia a dia, é possível perceber a abrangência e a comple- xidade que esta simples palavra, patrimônio, evoca. O patrimônio contempla diferenças de natureza da constituição de cada bem pa- trimonial, que pode ser classificado como tangível ou material (como as “coisas” todas produzidas ou construídas e modificadas), intangível ou imaterial (como os saberes, crenças e festas, lendas e tudo mais que en- volve conhecimento, emoção e sentimento) e, ainda, ambiental ou natural (referindo-se a todo o bioma). O patrimônio pode ser individual ou fami- liar. Isto nos permite dizer que “este anel, os segredos culinários e este pedaço de chão são todo o patrimônio que eu tenho, é herança de família”. O patrimônio pode ser também coletivo. Ele é local, por exem- plo, quando dizemos que “no município de Juruti, extremo oeste do Pará, ocorre o Festribal, importante patrimônio da lo- calidade”. Em Barcarena, temos o Festival do Abacaxi, e há ainda o Círio em Moju, por exemplo. Associamos o patrimônio a uma região e comentamos que “as danças – como o carimbó – e as lendas – como a da Matinta Pereira – são verdadeiros pa- trimônios da região amazônica”. Outros bens causam uma comoção ainda maior e são considerados importantes para um país ou para o planeta. Então, podemos ler em um jornal imaginário, que “o samba e o futebol são patrimônios do Brasil”; este mesmo jornal, em outra página, trará a se- guinte chamada: “Minas Gerais protege o patrimônio da humanidade, suas grutas e as antigas construções do século XVIII”. Portanto, os patrimônios apresentam dife- rentes escalas de pertencimento territorial. 1 http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=patrim%F4nio 12 Para debater em grupo: - Quais os nossos patrimônios individuais e familiares? - E os patrimônios coletivos, de nossa comunidade e região? - Como nos relacionamos com eles, individual e coletivamente? 13 Acordeon: é um instrumento de origem chi- nesa que, no Brasil, marca principalmente a região nordeste, tendo originado o forró. Também foi difundido no sul com o nome gaita e no centro-oeste. Heliana Barriga e “Menina”. Círio de Nazaré: maior manifestação religiosa do Brasil, realiza-se no Pará há mais de 200 anos. No mês de outubro, a capital, Belém, recebe milhões de fiéis para a procissão. São Luis, patrimônio da humanidade desde 1997: dentre alguns dos bens desse conjunto estão: os casarões azulejados, de influência europeia e adaptados ao clima local; comidas, como o arroz de cuxá com camarão seco; as festas de boi; as praias. Teatro da Paz: é o maior teatro da região Norte e um dos mais luxuosos do Brasil. Foi constru- ído, em estilo neoclássico, entre 1869 e 1874, período associado ao apogeu da exploração da borracha. Foi aberto ao público em 1878. Comida típica: o peixe frito com açaí é tradicional na feira do Ver-o-Peso como al- moço. Dentre outras comidas estão a mani- çoba, o tacacá e o vatapá de camarão seco. Dança típica: no Pará, diversas danças - como Marujada, Lundu, Carimbó, Pássaros, Boto, den- tre outras - expressam a complexidade simbóli- ca, conectando saberes e fazeres que resistem às mudanças do tempo, são valorizadas pela população local que conhece os passos destes bailados. 14 Observando atentamente nosso cotidiano, percebemos como estas duas facetas do patrimônio, sua natureza e sua escala, encontram-se integradas. Para este exercício mental é possível buscar um exemplo qualquer, como o açaí. O açaí (Euterpe oleracea) é um recurso na- tural e um bem patrimonial natural, já que é uma espécie de palmeira pertencente à flora amazônica, notadamente da várzea. Antropólogos e arqueólogos estão de- monstrando, no entanto, como as florestas de açaí, castanha, babaçu, dentre outras, podem ser associadas ao manejo de es- pécies nativas pelas populações humanas do passado, cerca de 3.000 anos atrás. Os estudos realizados pela Embrapa (Empre- sa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) demonstram que essa espécie de palmeira é originária de cruzamentos e manejo de sementes. Algo que parece ser capricho da natureza vem se mostrando, ao longo do tempo, como resultado da relação entre o ser humano e o ambiente, a interação en- tre o saber-fazer humano e as respostas da natureza local. Para manejo e processamento do açaí são ne- cessários saberes e práticas específicas para o preparo do solo e das sementes, as mudas para o plantio, o cuidado com a planta e a coleta do alimento. A partir desses saberes práticos, os grupos humanos construíram os saberes imaginários como as lendas e histó- rias, que fazem parte do conhecimento sobre a fruta. No entanto, em muitos locais, o açaí tem sido cada vez mais consumido, mesmo em regiões onde não há açaizais. E em cada local, a culinária se apropriou de uma forma Açaí distinta deste patrimônio natural amazônico, fazendo dele também um bem cultural. Por exemplo, em Belém, no estado do Pará, o açaí pode ser consumido puro, apenascom o acréscimo de farinha ou acompanhado de um delicioso peixe frito. Já no estado de São Paulo, ele é encontrado em forma de vitami- na, com cereais e mel. Podemos, ainda, citar outros exemplos do conhecimento tradicio- nal popular, como o uso da raiz do açaizeiro como vermífugo, depois de uma preparação específica. O açaí também se transforma em bem cul- tural a partir do aproveitamento artesanal de suas sementes, da utilização de suas folhas e de seu tronco. Diferentes tipos de artes são realizados com a semente do açaí, como colares, pulseiras e outros objetos, tanto por populações indígenas, quanto pelas popula- ções caboclas e ribeirinhas. A diferença na forma de produzir refletirá a particularida- de e identidade de cada sociedade. Em um mesmo grupo indígena, há diferença entre os objetos feitos para a venda e aqueles adornos feitos para o próprio uso. As fo- lhas do açaí também são utilizadas como matéria-prima para a cobertura de casas e seu tronco é bastante utilizado na constru- ção de pontes. Todas essas formas de uso cultural do açaí são muito difundidas no co- nhecimento dos povos ribeirinhos da região da várzea amazônica. 15 Sobre o açaí conhecemos ainda sua lenda, bem cultural imaterial, que narra o seguinte: Uma tribo indígena da Amazônia estava passando um período de grande es- cassez e penúria, levando toda a aldeia para a morte. Diante desta situação tão grave, o cacique (que é o chefe dos índios) resolveu tomar uma medida drástica para minimizar a dor de seu povo. Ele resolveu sacrificar todas as crianças que iam nascendo para que assim houvesse menos gente a ser alimentada. Entretan- to, sua filha Iaçá estava grávida e sentiu toda a dor de ver sua filhinha ser morta, e chorou muito por ela em sua maloca. Iaçá chorou por dias a fio, sem sair de sua casa. Um dia, no meio da noite, Iaçá acordou com o choro de uma criança e saiu de sua rede para ver o que era. Ao alcançar a porta de sua maloca viu sua filha abraçada ao tronco de uma palmeira. Maravilhada com sua visão correu em disparada para abraçar sua filha, que desapareceu. No dia seguinte Iaçá foi encontrada morta, mas com um grande sorriso, abraçada a palmeira, com olhos negros que fitavam um cacho cheio de frutinhas pretas. O cacique pediu que coletassem a fruta, e logo percebeu que poderia utilizá-la para alimentar seu povo. Em homenagem a sua filha nomeou a fruta de açaí, que é o nome de Iaçá ao contrário. Deste dia em diante, nenhuma criança precisou ser sacrificada, e o povo passou a utilizar o açaí como alimentação cotidiana.2 2 http://www.recantodasletras.com.br/ensaios/2782005 PATRIMÔNIO MATERIAL PODE SE TRANSFORMAR EM ARTESANATO. VEJA O MEU COLAR E BRINCOS FEITOS DE SEMENTE DE AÇAÍ! E...É...PATRIMÔNIO NATURAL! COM A LENDA DO AÇAÍ TORNA-SE PATRIMÔNIO IMATERIAL E... O AÇAÍ É TODINHO PATRIMÔNIO! E É TÃO GITITO*! *Gitito = pequeno 16 Vale narrar uma ocasião em que pre-senciei Maíra comentando sobre sua descoberta com alguns colegas, em uma agitação entusiasmada. Nas palavras dela: “Égua! Não sabia que tinham tanto signi- ficado estes objetos! Fiquei pensando! Se o colar de açaí for um presente especial, como este meu colar que foi feito pela mi- nha tia-avó, que já faleceu, o patrimônio fica como que misturado: é patrimônio ma- terial e imaterial ao mesmo tempo! Como a matéria-prima é uma semente, ainda é pa- trimônio natural. Vejam só como é interes- sante este pequeno patrimônio que tenho! O açaí é todinho patrimônio!”. Como tão bem observou a jo- vem, as classificações utiliza- das para caracterizar o pa- trimônio não têm caráter excludente, servem para descrever o bem quanto à sua natureza. Devemos ter atenção para entender o patrimônio de forma inte- grada e integral. O mesmo ocorre quando se observa qualquer tipo de patrimônio, como uma casa antiga, por exemplo. Trata-se de um bem patrimonial material, pois é um bem construído, uma edificação, porém, não se pode deixar de observar que sua implanta- ção em um local implica em alteração do relevo, do ambiente. Além disso, os ma- teriais utilizados na edificação requerem a presença de recursos naturais, o que mostra a relação entre o humano e o ambiente. Um exemplo simples está na produção de tijo- los de adobe ou taipa: em ambos os casos são necessários diversos elementos naturais e elementos produzidos: argila, instrumen- tos para mistura da massa, palha, madeira, e, no caso do adobe, molde para produção em série. A própria organização do espaço construído, a divisão dos cômodos e a al- tura das paredes são aspectos que demons- tram a maneira como a moradia era pensa- da e vivenciada por gerações anteriores à nossa, e revelam sobre o pensamento e a forma de agir de um grupo em certo lugar e tempo. Tudo o que se relaciona à cons- trução de uma casa pressupõe muitos co- nhecimentos do meio, dos materiais e das técnicas – conhecimentos acumulados por várias gerações. Ademais, o patrimônio, tanto de forma in- dividual quanto coletiva, pode mudar e constantemente o faz, porque todo ser humano é dinâmico e está a todo instante fazendo sua história, que também é dinâmica. Em nossa própria história de vida, por exemplo, ele- gemos diferentes bens ma- teriais para nos representar durante os anos. Nossa amiga Maíra, na infân- cia, gostava de brincadeiras de roda, de pular corda; seu irmão gostava de outros brinquedos, como figurinhas e carrinhos. Na adolescência, Maíra prefere os jogos do ce- lular novo, ir ao cinema e à praça, mas ainda brinca de cantigas de roda com seu irmão mais novo. Quem sabe o que vai querer na vida adulta? Talvez, uma casa e um meio de transporte, como carro, barco ou moto; como tantos de nós. Nossos gostos e cos- tumes se modificam ao longo do tempo. Já não vivemos exatamente como viviam nos- sos pais, muito menos como nossos avós, a tecnologia e o modo de vida mudaram a pai- sagem, a mentalidade, o gosto e o comporta- mento. Essa dinâmica faz parte da constru- ção de nossa sociedade. Devemos atentar para a sobreposição destas categorias do patrimônio, a diferença de natureza da constituição do bem e escala de pertencimento. 17 O ambiente também está em constante mudança: diferentes estações do ano; dife- rentes movimentos do rio. Para a ocupação humana áreas são modificadas e paisagens são alteradas, desde pequenas comunidades até cidades e metrópoles. Manejamos plan- tas em nossos jardins e as modificamos, e ao fazê-lo, por vezes alteramos nossos cos- tumes culinários com novos procedimen- tos alimentares. A todo instante, na relação entre os seres humanos e os ambientes, cada um deles vai se modificando de forma dinâmica e recíproca, criando um meio am- biente cultural. Esta é a complexidade do bem patrimonial: ele se refere à relação entre os objetos que podemos tocar; os conhecimentos que ad- quirimos executando tarefas ou escutando uma história; e os bens naturais que mani- pulamos e transformamos ao mesmo tem- po em que, ao assim procedermos, estamos produzindo conhecimentos e novos sabe- res, que também são patrimônio. Tudo isto ao mesmo tempo é patrimônio, está integrado e relacionado. A separa- ção que se faz entre patrimônio natural, cultural imaterial e cultural material é somente para que a explicação seja mais didática, para que o entendimento seja mais fácil, mas podemos ver as muitas facetas dessa integração em cada bem patrimonial. Na imagem: ruínas da construção jesuítica de Jaguarari, Barcarena - Pará. As fotos mostram revestimento externo com argamassa de areia, cal e barro; estrutura com téc- nica mista de pedra, tijolo, cal e barro. Construção da primeira metade do século XVIII. REVESTIMENTO EXTERNO DE PAREDE ARGAMASSA DE AREIA, CALE BARRO. ESTRUTURA DO VÃO EM TIJOLO MACIÇO. VERGA EM TIJOLO. CIMALHA DE ARREMATE DOS BEIRAIS. Fonte: MARQUES, Fernando L. T. Projeto Arqueologia e História de Engenhos Coloniais no Estuário Amazônico. Museu Paraense Emílio Goeldi, 2005. ALVENARIA MISTA EM PEDRA, TIJOLO, CAL E BARRO. 18 O que é memória? Em diferentes dicionários de língua por- tuguesa encontramos diversas formas de definir a palavra memória, que vem do la- tim e significa “faculdade de conservar ou readquirir ideias ou imagens; lembranças e reminiscências; capacidade dos organismos vivos de se aproveitarem da experiência pas- sada, em virtude da qual passam a ter uma história; fundamento do aprendizado em geral, em qualquer de seus aspectos (motor, emocional, verbal, consciente, inconsciente); narrações de caráter pessoal escritas para servirem de subsídio histórico”3. Esta palavra, memória, associa-se à constru- ção de nossa vida cotidiana, pois a memória que temos de pessoas, locais e objetos é o que nos permite formar um enredo que nos localiza e nos posiciona no mundo. Os pa- trimônios que elegemos e com os quais nos relacionamos, sejam objetos, saberes ou o ambiente, são mantidos em nossa vida atra- vés da memória. Nossa memória é formada tanto por ex- periências vivenciadas por nós quanto por histórias contadas e confirmadas por outros viventes, que vão se projetando em nós. Re- unimos fatos, histórias e, por vezes, recru- tamos o outro, “alguém que não nos deixa mentir”, para revigorar nossa memória pes- soal, como se a lembrança precisasse ser confirmada por outro para retirar as dúvidas de ilusão e invenção que a memória carrega. Quando reunimos a família ou os amigos para conversas e lembranças, logo se perce- be como cada um de nós, por sermos in- divíduos memorizadores, guardamos certos 3 http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=mem%F3ria fatos melhor que outros e criamos uma es- pécie de seleção. Cada pessoa, de um gru- po que vivenciou uma experiência, é capaz de detalhar algum ponto que outra, talvez, não tenha sequer observado. Isto porque o que somos capazes de observar e memorizar tem estreita relação com a forma como nos relacionamos com o mundo, com as pessoas e com os fatos envolvidos. Tal diversidade e particularidade nos permite ter, ao mesmo tempo, uma memória individual e uma me- mória de grupo. A memória humana é frágil e finita, por isso, cada sociedade estabelece maneiras diferen- tes de armazenar e preservar esta memória, que também se constitui de forma coletiva (JONES, 2007). Se, por um lado, é o ser hu- mano quem recorda, por outro é necessário que se estabeleçam laços de convivência para preservar esta memória que sempre se dissi- pa. Podemos preservar uma memória atra- vés da tradição oral, recontando a história e, ainda, registrar pela escrita, pela imagem, além de que, atualmente, também podemos arquivá-la na memória de um computador, por exemplo. A memória é dinâmica, pois reflete uma emoção, uma experiência. Mas, ao mesmo tempo, quando evocada, sempre é seletiva, é filtrada pelas relações sociais e pessoais. A memória, portanto, é ativa, refletindo, jus- tamente, nossa experiência com as ideias e os objetos. Neste sentido, tanto a memória quanto o patrimônio se assemelham. Podemos esquecer ou lembrar experiências que vivenciamos, sejam elas boas ou ruins. 19 As lembranças podem ser estimuladas pelos sentidos (como cheiro, gosto, toque), por lo- cais e ainda por objetos e pessoas, de modo que até uma frase pode nos estimular a lem- brar, buscar algo que estava mais adormecido na memória. A memória é múltipla e profun- da, é capaz de conectar milhares de informa- ções ao mesmo tempo e é fundamental no processo individual de percepção da história, na medida em que guarda as informações do passado e as faz interagir com as vivências do presente, para o planejamento do futuro. Esta ligação entre a memória e o tempo é im- portante para nossa reflexão. Com o passar do tempo, vamos colecionando lembranças dife- rentes de nossa vida; lembranças das brincadei- ras de rua, dos passeios na praça, do cheiro da casa da mãe, dentre outras. Tal como seleciona- mos os patrimônios que nos representam. É através da memória que temos noção de tempo e consciência histórica. Com as me- mórias que temos podemos ver de forma re- trospectiva o passado, somos, por exemplo, capazes de observar a passagem do tempo e dizer: “Na minha infância, as brincadei- ras eram mais cooperativas, as construções eram menos numerosas e o ambiente não estava tão alterado”. Quando mergulhamos na memória dos an- tigos somos conduzidos ao passado, aos eventos e aos locais por vezes já desapareci- dos. Quando entramos em uma antiga cons- trução e observamos atentamente, também podemos ser conduzidos à outra época, evo- cada pela memória dos objetos, pela forma de construir, pelo material utilizado. Essas lembranças, essas memórias, conduzem-nos ao passado, auxiliando-nos a entender quem somos em nosso grupo e onde estamos tan- to no espaço quanto no tempo. Com isto, podemos dizer que o patrimônio também tem memória. Mesmo Maíra não conhecen- do o início das festas de boi, ela pode co- nhecer esse patrimônio cultural através da memória de outros, como de sua mãe e de seu pai, que sempre lhe mostram as fotos da juventude deles. E, através das imagens e das narrativas, Maíra pode construir sua própria memória sobre patrimônios que, às vezes, já desapareceram da prática, mas ficam guarda- dos nas lembranças dos viventes. MEMÓRIA MEMÓRIA MEMÓRIA 20 A Memória Proibida (Eduardo G aleano, 20 09) O bispo Ju an Gerard i presidiu o grupo de tra- balho que resgatou a história recente do ter- ror na Gua temala. Milhares d e vozes, te stemunhos recolhidos em todo o pa ís, foram juntando o s pedaços de qua-renta anos de m emória da dor: 150 mil guatemal- tecos mort os, 50 mil desapareci dos, 1 milhão d e exilados e refugiado s, 200 mil ór- fãos, 40 m il viúvas. Nove de ca da dez vítim as eram civ is desarma - dos, na ma ioria indíge nas; e em nove de ca da dez casos, a responsa bilidade er a do exérc ito ou de seus bandos pa ramilitares . A Igreja to rnou públi co o inform e numa qu in- ta-feira de abril de 1 998. Dois dias depoi s, o bispo Ger ardi foi en contrado m orto, com o crânio esfa celado a g olpes de p edra. Por que alguns eventos e alguns patrimônios parecem mais lembrados e vivos do que outros? Por que algumas histórias parecem adormecer tão mais rapidamente? A memória coletiva está mergulhada em interesses de grupos dominantes, que se esforçam politicamente para que alguns pontos sejam mais lembrados do que outros. Outros esforços de ativar a memória, por vezes, são repreendidos de forma violenta, como o evento ocorrido em 1998, na Guatemala. Vale perguntar: 21 A narrativa de Galeano (2009:214) mostra como na política da memó- ria pode ocorrer, eventualmente, violência para garantir o silêncio sobre algum evento ou fato. A memória e o patrimônio compõem, então, o alvo de interesse de grupos humanos, como qualquer outro aspecto da vida social. Devemos estar atentos para agir de forma ativa em relação às me- mórias e seus patrimônios, que não queremos ver silenciados. As ciências sociais como a antropologia, a sociologia e também a história, dentre outras, utilizam as memórias individuais e coletivas para entender o comportamento humano. A experiência humana é variada e contém, necessariamente, as memórias traumáticas e as prazerosas. Todas elas são igualmenteimportantes, pois é através dessas experiências adquiridas no passado que vivenciamos o presente e planejamos o futuro. Cientistas, como Eric Kandel, também se preocupam em buscar a me- mória, traçando suas bases biológicas, alicerçados no comportamento dos neurônios. O cientista mencionado foi Prêmio Nobel de Medicina e, juntamente com uma equipe de profissionais, têm demonstrado que a memória pode ser entendida como um híbrido biológico. A memória está localizada em alguns pontos específicos do cérebro, mas sua ação provoca alterações em toda a estrutura cerebral. Estas alterações cerebrais, chamadas sinapses, são produzidas através de estímulos, como no ensino- -aprendizagem, e acessamos esse conhecimento no instante que precisa- mos, sem ser necessário um esforço consciente. Por exemplo, depois que aprendemos a falar, a andar ou a ler, armazenamos centenas de informa- ções nos nossos neurônios, a partir das quais construímos e interpretamos regras sociais e gramaticais, sem que pensemos sobre isto. Parece que so- mente agimos. Esta mesma experiência ocorre ao aprender uma técnica; se, inicialmente, temos que refletir conscientemente sobre as regras (por exemplo, ao aprender a dirigir um veículo, temos que ligar o carro, soltar o freio de mão, pensar nas marchas e velocidade), posteriormente essas regras são acessadas sem que tenhamos que refletir conscientemente (isto é, passamos simplesmente a dirigir o veículo, aí incluindo todas as ações precisas); o corpo e a mente se organizam, graças à memória, para buscar a informação necessária. Assim, a memória abriga tanto facetas individuais quanto coletivas, esferas culturais e biológicas. 22 O que é cultura? Retornando a qualquer dicionário de língua portuguesa, é possível constatar que a pala- vra cultura pode ser entendida de diferentes maneiras. Para as ciências biológicas, cultura é um meio no qual se desenvolve um micro- -organismo; para as ciências da terra, pode ser uma área de lavoura, como a cultura do café ou da soja; para as ciências sociais, diz o dicionário, cultura é um “sistema de ideias, conhecimentos, técnicas e artefatos, de pa- drão de comportamento e atitudes, que ca- racteriza uma determinada sociedade”4. Em nosso dia a dia, podemos nos lembrar de diferentes situações nas quais a palavra cultura aparece. Escutamos, por vezes, que “Sicrano não tem cultura, desconhece os fatos importantes pelos quais o Brasil e o Pará passaram ao longo de sua história”. Nesta frase, cultura tem o significado de escolaridade, domínio sobre os acontecimentos políticos e sociais, conhecimento e sabedoria, como se cultura fosse me- dida pelo estudo e a grande quantidade de leitura, pelos títulos da universidade ou por cursos. Neste sentido, cultura é confundida com erudição ou mesmo com inteligência, que é a capacidade de reali- zar operações mentais e lógicas, capacidade que todos os seres humanos compartilham. Então, cultura não é inteligência e não pode ser confundida com ela. Erudição, em nosso país, depende de contexto econômico e po- lítico, e pouco se relaciona com qualidades individuais. 4 http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index. php?lingua=portugues-portugues&palavra=cultura Diversas vezes observamos que a palavra cultura aparece para classificar pessoas ou grupos de uma sociedade, chegando a ser utilizada como arma discriminatória contra algum sexo (“os homens são menos cultos que as mulheres”), opção sexual (“a cultura gay é pervertida”), etnias (“os negros não têm cultura”) e localização geográfica (“os habi- tantes da região nordeste brasileira são igno- rantes, enquanto que os habitantes da região sul são cultos”). É, ainda, comum escutar a palavra cultura com significado associado a uma hierarquia em relação à humanidade. Por exemplo, os “indígenas têm uma cultura muito atrasada, primitiva, como a da Idade da Pedra”. Essa forma de utilizar a noção de cul- tura, como sistema de classificação que hie- rarquiza modos de vida, é preconceituosa e incorreta. É preconceituosa, pois desqualifica as formas particulares de viver e pensar no mundo. É incorreta por anular a contri- buição de cada grupo humano para o con- junto da humanidade. AH! INTERESSANTE! VEJAM COMO ESTE POTE À SUA ESQUERDA É TÃO PEQUENO E O OUTRO É BEM MAIOR E DE FORMA DIFERENTE. MAS ISSO NÃO QUER DIZER QUE UM É MELHOR QUE O OUTRO, ACHEI OS DOIS BONITOS, E DEVEM TER FUNÇÕES DIFERENTES. 23 Para que fique mais claro, tomaremos como exemplo para este aspecto da noção de cul- tura, outra palavra de nosso cotidiano. Quando utilizamos a palavra personalida- de5 no nosso dia a dia, assim fazemos para reforçar características desejáveis ou inde- sejáveis em uma pessoa, como na frase: “Nair tem personalidade, enquanto seu ir- mão não tem nenhuma”. No entanto, quando consultamos o signi- ficado desse termo na psicologia, enten- demos que personalidade é um conjunto de características, marcas e formas de ex- pressão individual, que foi desenvolvido através das interações familiares e coleti- vas deste indivíduo em seu meio. Com este significado, fica incongruente pensar em alguém como não tendo personalidade. Na frase anterior, a palavra personali- dade é utilizada como sinônimo para presença, magnetismo. Ocorre é que desenvolvemos um conjunto próprio de maneiras de nos expressar, podemos não ter o mesmo carisma e beleza física que uma atriz da televisão, mas cada um de nós tem uma personalidade particular. 5 A comparação entre cultura e personalidade foi e ainda é alvo de linhas de pesquisa na antropologia e na psicologia, são noções que podem ser relacionadas. 6 Esta frase tem sido muito utilizada nas campanhas de publicidade sobre inclusão de diferenças no Brasil. Cultura ... Personalidade Sejamos extrovertidos ou introverti- dos, falastrões ou calados, impruden- tes ou cautelosos, teremos um conjun- to de traços que nos caracteriza, pois cada um de nós ocupa um lugar social, tem desejos e aspirações. E, em nos- sa vida cotidiana, em nossas próprias famílias, sabemos como “é normal ser diferente6”. Em uma mesma família, cada um manifes- ta, ao longo de sua vida, traços particulares e únicos, e, em geral, vemos isto com mui- ta tranquilidade e normalidade. A cultura apresenta aspectos semelhan- tes à personalidade, pois também é um conjunto de características particulares desenvolvido por uma sociedade ou por parte dela e, por extensão, pelos indiví- duos. Cada grupo humano, mesmo que seus membros apresentem comportamentos individuais às vezes opostos, comparti- lha um conjunto de traços que expressa o modo socialmente apropriado de viver, pensar, relacionar-se e agir, para aquela co- letividade. 24 Para a reflexão e análise das sutilezas da noção de cultura, recorreremos à sociolin- guística e à observação da linguagem. Quando nascemos, convivemos com pes- soas mais velhas, que compartilham uma série de ideias e práticas, entre elas a forma de falar. Nos primeiros anos de vida, somos ensinados e repetimos palavras (“mamãe”, “papai”, “água”), que começam a adquirir significado, pois começamos a entender e a memorizar o que implica para o grupo. Logo depois, sem consciência de nossa descoberta, começamos a articular as regras gramaticais que escutamos e construímos frases (“eu quero ver a mamãe”, “eu me machuquei na brincadeira”). Aos poucos, desde pequenos, vamos observando e do- minando grande conjunto de comporta- mentos práticos e regras mentais, que orga- nizamos em nossa memória, expressamos e compartilhamos como patrimônio, pois são diretrizes comuns ao grupo humano do qual fazemos parte, nossa cultura. Sabemos que cada lugar (cada região e loca- lidade) tem sua forma específica de entona- çãode uma palavra, expressões e gírias pró- prias, um sotaque que particulariza cada lugar. Cultura ... Linguagem Ainda devemos observar que, com o pas- sar das gerações, a forma de dizer algumas palavras, ou mesmo expressões e gírias, mo- difica-se, pois a língua é dinâmica, como o patrimônio e a memória. Essas escolhas so- ciais, que contam sobre uma época e sobre um lugar, formam também aspectos cultu- rais. Formas de falar mostram histórias par- ticulares e revelam aspectos do ambiente, da interação com outros grupos humanos, da forma de se relacionar com objetos. Tanto a língua quanto os costumes são exte- riores e anteriores a nós e, quando nascemos, vamos interiorizando essas práticas, da nossa maneira, dentro de nossa experiência, modi- ficando a realidade, o meio e a nós mesmos ao longo de nossa existência. Desde a infân- cia, aprendemos o modo de vida de nossa localidade, a forma de pensar, a maneira de fazer objetos e construções, a forma de gesti- cular e contar histórias, a maneira de se vestir e de andar. Enfim, desde o nosso nascimento vamos conhecendo nosso patrimônio e nos- sa cultura, o que inclui desde ações cotidianas como a forma de andar e as expressões da linguagem, até as grandes manifestações fol- clóricas que estão em nosso entorno. Existem muitas expressões típicas que representam sentimentos de surpresa, espanto, raiva, dúvida, admiração; dependendo da entonação da palavra. No Pará existe uma palavra para tudo isso, como: ÉGUA! Lá em Minas Gerais a expressão é: UAI! E o meu pai pernambucano falava: OXENTE! 25 O antropólogo Geertz nos conta como uma simples ação pode mos- trar o caráter denso e profundo, mas também singelo da cultura. Em nosso exemplo usaremos as pisca- delas, que são o movimento de fechar a pálpebra somente de um olho en- quanto o outro fica aberto. A piscade- la pode ser entendida como uma ação de paquera: um olho sedutor encara o alvo do amor enquanto o outro se fecha moroso. Mas pode ser um tique nervoso, um ato até involuntário para o indivíduo que contrai imperceptivel- mente a pálpebra; pode, ainda, ser uti- lizado para gracejar de alguém, sempre com auxílio de uma testemunha, alvo da piscadela zombeteira, que saberá de antemão que a futura narrativa é uma farsa. Ou seja, um mesmo evento para um mesmo grupo pode ter significa- dos diferentes, dependendo do contex- to. Para interpretar corretamente cada gesto cultural, por mais simples que pareça, devemos entender profunda- mente seus significados. A cultura já foi comparada a uma rede de pesca, com amarrações demonstran- do a organização de um todo comple- xo. A cultura foi comparada também a uma peça teatral na qual vivenciamos diferentes papéis sociais: mães e pais, filhas e netos, esposas e maridos, per- tencemos a diferentes grupos sociais, somos membros de associações fol- clóricas, profissionais, religiosas e po- líticas. A cultura foi comparada ainda a um jogo de futebol, do qual partici- pamos, também com diferentes papéis, nos emocionamos, e sobre o qual atua- mos, modificando regras. Cultura é, enfim, tudo isto: modos particulares de viver em grupo. A cultura é duradoura sem ser eterna, é, ao mesmo tempo, interior e exterior a nós. Cada cultura expressa uma forma de or- ganização, interpretação e entendimento do mundo, formula perguntas e respos- tas diferentes, apresenta modo de pensar e agir que é sempre particular e concen- tra conhecimentos, saberes, objetos e coisas que expressam a forma de viver de certo grupo em um local e épocas es- pecíficos. Cada grupo humano tem uma cultura, seu patrimônio e sua memória, que são dinâmicos e particulares. Esta forma de entender a cultura permi- te dois raciocínios: primeiro não é pos- sível haver ser humano sem cultura e, segundo, não é possível hierarquizar as culturas, colocando uma como superior e outra como inferior. A noção de cultura é um conceito cons- tantemente discutido e repensado por cientistas sociais diversos (mas, funda- mentalmente, pelos profissionais em antropologia e arqueologia), que têm notado o uso político deste conceito. A noção de cultura tem despertado uma maior consciência entre grupos, que têm percebido a importância da valorização de seu patrimônio, de sua memória, de sua cultura. Como os quilombolas e as populações indígenas, por exemplo, que têm se organizado em associações civis para preservar seus conhecimentos, suas formas de pensar e agir, seus objetos e construções peculiares. É clara para eles a importância de conhecer, valorizar e preservar os conhecimentos herdados dos antigos, ou seja, o próprio patrimô- nio cultural, para que possam se expres- sar através deste saber particular. 26 O que é diversidade? Diversidade é uma palavra que vem do la- tim e significa “qualidade daquele ou daqui- lo que é diverso; diferença, dessemelhança; variedade”7. No nosso cotidiano, assistimos em qualquer jornal televisivo de âmbito nacional, a uma en- xurrada de informações contando sobre a vida em diferentes países e culturas. No aconchego de nosso lar, assistimos também a novelas que, de forma romanceada, mostram o modo de vida na Índia, no Marrocos, na Itália e em Is- rael, e também reconstituem, por exemplo, di- ferentes épocas. Através das novelas televisivas podemos notar a diversidade cultural através das roupas, dos objetos, das construções, das lendas, dos saberes, dos costumes, das festas, dos causos e contos, da culinária, da forma de ocupar a paisagem, dentre outras diferenças de pensamento e de formas de fazer. 7 http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=diversidade Assim, a diversidade é um fato: é normal ser diferente! A diferença está implícita em cada pessoa e em cada coletivo, pois elegemos pa- trimônios particulares, expressamos culturas também específicas, temos memórias distin- tas e identidades específicas. As diferenças nos mostram como o mun- do pode ser visto sob diferentes pontos de vista, de diferentes posições. “As dife- renças se atraem”, dizemos em nosso co- tidiano. Elas nos colocam curiosos sobre o outro e, como em um jogo de espelhos, podemos ver a nós mesmos também; pos- sibilitam trocas de experiências e de pontos de vista. Conhecemos casais que convivem harmonicamente porque suas diferenças de personalidade se complementam, por exemplo, um casal no qual um é agitado e o outro é mais calmo. PAPAI SEMPRE DIZ O VELHO DITADO: “O QUE SERIA DO VERDE SE TODOS GOSTASSEM DO AZUL?” 27 Se observarmos as palmeiras, tão comuns na região da foz do Amazonas, perceberemos imediatamente grande variedade e diversidade dentro de um mesmo grupo. Na fauna e na flora estamos acostumados a perceber esta diversidade, como no exemplo de diferentes palmeiras conhecidas: açaí, miriti e tucumã. Embora existam semelhanças que podem reunir a todos esses exemplares em um mesmo grande conjunto de palmeiras, existem, ao mesmo tempo, outras características que as diferenciam dentro do grupo, como o caule, a folhagem, o fruto e os usos que damos a eles. A diversidade pode ser encontrada não so- mente no comportamento humano e nas expressões fenotípicas, como na cor de nos- sos olhos ou no tom de nossa pele, mas em nosso código genético, como bem sabem os educadores de biologia. No nosso dia a dia também percebemos a diversidade, a diferença de ponto de vista, em muitas situações. Por vezes cobramos dos amigos: “ponha-se no meu lugar e me diga, o que você faria?”, para situações deli- cadas de nossa vida. Isto significa que pode ser enriquecedor observar, de outro ponto de vista, o caminho a percorrer. A diversidade nada mais é do que o resulta- do de escolhas individuais e coletivas, que marcam uma forma de ver ese expressar sobre o mundo, que nos identifica neste mundo. Para exemplificar, apresentamos outro pequeno texto de Eduardo Galeano que expressa, de maneira humorística, a forma particular que temos de observar o nosso entorno, o ponto de vista. Palmeira do Açaí Palmeira de Miriti Palmeira de Tucumã 28 Como mostra o poema, o ponto de vista varia de acordo com a pessoa e o contexto. Cada um de nós observa o outro com suas próprias lentes culturais, dentro de seu contexto espe- cífico. Assim, é possível que tanto o nativo quanto o turista pareçam exóticos um para o outro. O ponto de vista que temos está estri- tamente relacionado com nossas experiências de vida. Não podemos deixar de discutir que as dife- renças, quando dizem respeito aos humanos, podem parecer bastante indigestas e alguns grupos desenvolvem uma visão ou forma de pensamento que crê na supremacia do seu gru- po étnico ou da sua nacionalidade sobre os de- mais. A esta forma específica de ver o mundo chamamos etnocentrismo, palavra que descen- de do grego, e talvez possa ser traduzida lite- ralmente por centralizar em seu próprio povo. A estranheza que a diversidade de procedi- mentos e formas de pensar – que não com- partilhamos – pode causar em nós, não ocorre somente em relação aos “outros”, mas se dá também dentro do seio de nosso grupo. Ou seja, há diversidade nos “outros”, mas tam- bém “entre nós”. Por exemplo, em nossa sociedade, até a década de 1980, a prática de tatuar o corpo era rara e mal vista, chegando a dificultar o ingresso em algumas profissões. Hoje, as tatuagens são mais toleradas, embora possam causar desconforto em algumas pes- soas de nossa própria sociedade. A antropologia – que pesquisa o comporta- mento social dos seres humanos no presente –, em geral, tem se dedicado ao estudo des- ta diversidade do comportamento no mun- do atual. A arqueologia, por sua vez – que é o estudo de grupos humanos a partir de seus objetos, muitas vezes em culturas que já não existem – também investe em entender a di- versidade que observa. Cabe dizer que essas ciências são inimigas do etnocentrismo e a favor do entendimento da diversidade cultural. O estudo da diversidade cultural não objetiva segregar grupos que de- vam ou desejem preservar sua forma de pen- sar, mas sim, focalizar o melhor entendimento das razões da diferença entre os grupos, para que o diálogo e as recompensas sejam possí- veis. O que interessa é tornar visíveis o “ou- tro” e “nós”, entender suas relações no mun- do contemporâneo. Mundo este que está cada vez mais híbrido, como uma colagem, uma junção de diversidades. Ponto de Vista Do ponto de vista da coruja, do morcego, do boêmio e do ladrão, o crepúsculo é a hora do café da manhã. A chuva é uma maldição para o turista e uma boa notícia para o camponês. Do ponto de vista do nativo, pitoresco é o turista. Do ponto de vista dos índios das ilhas do Mar do Caribe, Cristóvão Colombo, com seu chapéu de penas e sua capa de veludo encarnado, era um papagaio de dimensões nunca vistas. Eduardo Galeano, 2009:31. 29 Diversidade brasileira Na região do baixo curso do rio Amazonas, muitos migrantes ju-deus marcam presença desde meados do século XX. No sudes- te paraense, ainda há muitos europeus vindos através de congrega- ções religiosas da Europa. Grandes colônias de migrantes japoneses e indianos foram para a foz do Amazonas e para o nordeste brasilei- ro. Áreas indígenas demarcadas na proximidade de sedes municipais possibilitam contato intenso entre indígenas e não indígenas. Cada um de nós é capaz de multiplicar estes exemplos de relação social entre grupos culturalmente distintos, partindo do próprio cotidiano. E é sabido que estas interações nem sempre são cordiais, como se o “outro” fosse de fato invisível, indiferente ou como se a dificulda- de da comunicação fosse intransponível. Ou como se o outro fosse uma ameaça, ou implicasse na existência de conflitos. Esta realidade múltipla, nunca dantes alcançada, pede uma visão renovada sobre a diversidade. É necessário, aponta o antropólogo Geertz, que possamos compreender o outro no sentido de percep- ção e discernimento e não no sentido de concordância com suas ideias e opiniões. Para tanto, é igualmente importante que a pessoa possa se localizar no mundo e entenda de onde é e como se expressa: é preciso traçar sua própria identidade. Compreender, sem que isto implique em indiferença ao próximo, como no ditado popular “cada cabeça, uma sentença”. Sem também que isto se torne um deslumbre pelo “outro” exótico, a quem quere- mos obstinadamente copiar, como fazemos ao absorver, sem refle- tir, roupas, adornos, gírias e expressões que vemos em uma novela televisiva de locais diferentes. Precisamos, nestes tempos modernos, perceber as particularidades no interior de nós mesmos e também apreciar as características e particularidades de outras formas de viver. Para alcançar esta lar- gueza de ponto de vista é necessário que não nos fechemos em nós mesmos, em uma ação etnocêntrica, mas que trabalhemos para per- ceber que, se há “outros” que nos causam estranheza, igualmente causamos esse sentimento em “outros”. O nosso jeito de fazer algo é somente um jeito possível, dentro de nosso próprio ponto de vis- ta, mas existem outros. Por isso, devemos respeitar as diferenças e aprender a valorizá-las. 30 Capítulo 2: Conhecimento legal: as leis e o patrimônio 30 31 Neste capítulo apresentare- mos um pouco da legislação bra- sileira em relação ao patrimônio, entendendo quem cuida e fisca- liza estes bens que pertencem a todos nós. O principal interesse é despertar a curiosidade cidadã e correspon- sável, para que compartilhemos estes assuntos e como cidadãs e cidadãos brasileiros possamos ajudar os órgãos públicos na po- lítica de proteção do patrimônio. Em outras palavras, entender o papel que cada um pode desem- penhar para cuidar dos bens pa- trimoniais. proteção do patrimônio 31 32 O patrimônio cultural brasileiro e as leis que o protegem Todas as sociedades humanas expressam a forma adequada de se comportar, indivi- dual e coletivamente, através de narrativas, de causos e contos, provérbios e máximas, e, ainda, de outras formas que revelam manei- ras apropriadas de pensar e agir. Refletem, portanto, aspectos morais e éticos. No mundo contemporâneo, dispomos de diferentes ferramentas para “guardar algo na memória”, como dissemos anteriormente. Além da escrita, contamos com fotografias e filmagens que permitem registrar os locais, as pessoas, os eventos. Quando observamos de forma mais profunda, percebemos que mesmo nestes registros, como a escrita ou a filmagem, não é possível guardar tudo o que ocorre, mas somente uma parte do conjunto e sob uma determinada ótica. A escrita reflete um ponto de vista parcial e múltiplo ao mesmo tempo. Parcial porque tanto a memória quanto seu registro são fini- tos e refletem determinado ponto de vista; e múltiplo, porque em uma mesma sociedade, existem várias memórias coletivas e existirão narrativas diferentes, até divergentes, sobre um mesmo fato. Durante a “Revolução Ca- bana”, o Padre Sanches de Brito apontava os participantes como “malvados rebeldes”, a quem a milícia deveria deter. No mesmo período e época, o Cônego Batista Campos apoiava os revoltosos, apontando-os como a população cabocla que deveria ser atendida em suas reivindicações. Uma mesma época, pontos de vistas diferentes. Cada sociedade organiza uma forma de pre- servar suas memórias, que são periodica- mente revisitadas pelas gerações sequentes, que avaliam, criticam, utilizam ou renegam a forma de pensar anterior do próprio grupo. A partir desta avaliação, algumas memórias se mantêm, outras se modificam e outras,ainda, são radicalmente transformadas e, por vezes, causam revoluções no comporta- mento humano. Desde muito tempo a humanidade tem dis- cutido e se preocupado com patrimônio, cultura, memória e diversidade. E, como se- ria de se esperar, esta questão é encarada sob diferentes pontos de vista, como é comum no comportamento humano. Quanto mais o tempo passa, mais questões são inseridas e novos atores sociais participam das discus- sões que incluem o patrimônio, entendido de forma integral e integrada. 32 33 Atualmente, podemos dizer que pessoas do mundo inteiro se in- teressam pelo tema do patrimônio, pela diversidade cultural, pelas diferentes formas de registro e expressão da memória, pelas caracte- rísticas humanas particulares que marcam a identidade dos grupos. Estas preocupações com a valorização e a preservação do patrimô- nio se refletem em um conjunto de normas e questionamentos, em discussões e ações que visam cuidar da rica diversidade de produção humana. Tal questão não é uma preocupação recente e, como consequência, existem atualmente diversas organizações nacionais e internacio- nais envolvidas em prol da preservação da memória da humanida- de, tanto no âmbito local, quanto regional e global. Assim, na sociedade a que pertencemos, existe um conjunto de leis que nos indicam como agir em relação ao patrimônio, que é um bem de todos. Estas leis existem tanto no Brasil quanto nos demais países do mundo, ao mesmo tempo em que existem regras que foram assi- nadas por vários países ao mesmo tempo, e que valem para todos eles. VOU GUARDAR COM CARINHO A FOTO DO PRÉDIO DO IPHAN EM BELÉM, POIS ESTÁ MUITO LINDO! 34 Gestão e cuidado com o patrimônio brasileiro O Brasil estabeleceu estratégias para o con- trole e cuidado do seu patrimônio através, principalmente, da criação do órgão federal conhecido atualmente como Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Esse órgão foi criado em 1937, como resultado do esforço de cidadãos e cidadãs preocupados com a valorização dos traços culturais e ambientais do Brasil. Desde então, essa instituição é responsável por planejar medidas e ações que visem à preservação do patrimônio cultural. No período do Governo de Getúlio Vargas, quando foi criado, esse instituto estava vin- culado ao Ministério da Educação e Saúde e, atualmente, está associado ao Ministério da Cultura. Recentemente, a partir de 2009, o IBRAM, Instituto Brasileiro de Museus, se configurou como autarquia vinculada ao Mi- nistério da Cultura, para gerenciar políticas públicas voltadas aos museus e instituições de memórias. A criação oficial de órgãos federais para re- fletir e agir em prol do patrimônio natural é mais recente na história da legislação no Brasil. Os órgãos de fiscalização e contro- le do patrimônio natural foram formatados em meados de 1980, com a criação do Mi- nistério do Meio Ambiente. Atualmente, órgãos federais como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e o Instituto Chico Mendes para a Conservação da Biodiversi- dade (ICMBio), ambos vinculados ao Minis- tério do Meio Ambiente, atuam em parceria para defender o patrimônio natural. Esta divisão administrativa é necessária, pois cada um dos órgãos federais encontra questões específicas que deve tratar, medi- das particulares que deve observar e modos de fiscalizar para que todo este patrimônio seja protegido. Mas os diferentes órgãos – IPHAN, IBRAM, IBAMA, ICMBio – tra- balham em conjunto, pois como já discu- timos, os ambientes e os seres humanos formam um conjunto que se integram em diferentes ações, memórias e patrimônios. Cada um desses institutos é uma autarquia federal, ou seja, cada um deles tem autono- mia ao mesmo tempo em que tem vínculo com os ministérios do governo. São órgãos executivos, que têm como missão imple- mentar políticas públicas para preservar e conservar o patrimônio, exercendo o con- trole e a fiscalização sobre o uso de recursos renováveis e não renováveis. Esses órgãos são também responsáveis por desenvolver estudos e conceder licenças ambientais para empreendimentos que geram impacto ambi- ental. E, como todos nós, cidadãos brasileiros, essas autarquias obedecem à Constituição Brasileira de 1988, que reforça a existência desses institutos federais na gestão do pa- trimônio cultural e natural. Na Constituição Brasileira de 1988, no título VIII (Da ordem Social), capítulo III (Da Educação, Da Cul- tura e do Desporto), secção II (Da Cultura), artigo 215, pode-se ler sobre os bens cultu- rais que: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.” 35 Assim, pode-se perceber que, mesmo ha- vendo conjuntos de regras específicas para cada tipo de patrimônio e órgãos federais também especiais, existe uma base jurídica que legisla e gerencia a forma geral de agir, em termos morais e éticos, que determina a visão e a missão que cada órgão deve cum- prir para executar políticas públicas. Ainda sobre gestão e fiscalização do patri- mônio, é necessário que os institutos propo- nham normas para evitar que o patrimônio seja danificado. Portanto, quando um empreendimento po- tencialmente danoso ao patrimônio é plane- jado, deve prever estudos sobre a região a fim de evitar ou diminuir o risco de impacto aos recursos renováveis e não renováveis. Por exemplo, no planejamento de constru- ção da Linha de Transmissão Vila do Conde – Santa Maria do Pará foi necessário con- vocar inúmeros pesquisadores para avaliar o impacto deste empreendimento sobre os bens naturais (água, ar, fauna, flora, dentre outros) e bens culturais (construções, festas, modo de vida, dentre outros). O empresariado que atua no Brasil deve res- ponder à legislação vigente, que especifica a forma de agir para que o patrimônio não seja prejudicado. Com estas considerações, podem-se fo- calizar pontos importantes sobre o patri- mônio (de qualquer tipo) no Brasil: • Como cidadãos, temos o direito de acesso ao patrimônio. • Como cidadãos, temos corresponsabi- lidade com o patrimônio. • O patrimônio é integrado ao ambiente, à cultura e à sociedade. MAÍRA SONHA COM PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO!! 36 Patrimônio Cultural: definição e particularidade A preocupação com a história e a memória do Brasil e sua diversidade patrimonial fez nas- cerem, desde 1937, leis que definem o patrimônio, que organizam e protegem essa riqueza. O Decreto-Lei no 25, de 30 de novembro de 1937, dispõe, no Capítulo 1 (Do patrimônio histórico e artístico nacional), a seguinte definição. Artigo 1o – Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto de bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico. Parágrafo 1o – os bens a que se refere o presente artigo só serão considerados parte integrante do patrimônio histórico e artístico nacional, depois de inscritos separada ou agrupadamente num dos quatro Livros do Tombo, (...). Parágrafo 2o – Equiparam-se aos bens a que se refere o presente artigo e são sujeitos a tombamentos os monumentos naturais, bem como os sítios e paisa- gens que importe conservar e proteger, pela feição notável com que tenham sido dotados pela natureza ou agenciados pela indústria humana. Podemos verificar que são considerados como patrimônio, por este decreto-lei, não somente os bens materiais e imateriais, mas também os bens naturais. Esta é à base da estruturação legal do patrimônioque ainda hoje é seguida: • importância igualitária dos bens materiais, imateriais e naturais; • necessidade de organizar os bens em ca- tálogos (Livros de Tombo) que possam ser consultados. Desde a década de 1930 até hoje, uma série de leis, portarias e medidas provisórias fo- ram acrescentadas, retiradas ou modificadas para atualizar a nossa legislação. Ao mesmo tempo, problemas específicos de cada área vêm sendo observados e auxiliam na consti- tuição de um conjunto de regras que sejam mais específicas e traduzam de forma mais autêntica as necessidades presentes. A partir da década de 1980, uma série de leis foi reunida, criando uma política públi- ca voltada para o Meio Ambiente. Desde então, diversos regulamentos definem as formas de uso desse patrimônio. A própria Constituição Federal do Brasil (1988) trata da proteção ao patrimônio natural e cultu- ral do país. No Capítulo II, o Artigo 20 detalha os re- cursos naturais e os bens pertencentes à União, entre eles os sítios arqueológicos e pré-históricos. No Capítulo III, o Artigo 216 define o patrimônio cultural brasileiro, formado por bens de natureza material e imaterial e, em seu inciso V, entre outros, cita especificamente os sítios de valor ar- 37 queológico. E, no Capítulo VI, o Artigo 225 trata do dever de tanto o Poder Pú- blico quanto a coletividade defenderem e preservarem o meio ambiente; o Inciso IV incumbe ao Poder Público exigir, para ins- talação de obra ou atividade potencialmen- te causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade. Posteriormente, como se verá adiante, a Portaria 230/2002 do IPHAN associou a necessidade de pesquisas arqueológicas aos estudos de impacto ambiental. Recentemente, a partir do decreto nº 3.551, de 4 de agosto de 2000, o patrimônio imate- rial vem sendo especificado através de uma legislação que se preocupa em detalhar e apresentar as particularidades dos saberes e expressões culturais como dança, festa, mú- sica, lenda, dentre outros. Diversas leis foram criadas ao longo do tem- po, e são observadas para a gestão do patri- mônio brasileiro, como se pode ver na tabela sequente. Leis são as normas da Constitui- ção Federal, e devem ser aplicadas a todos os membros de nossa sociedade brasileira. Leis federais relativas ao patrimônio cultural Lei no Data Título 3.924 26 de julho de 1961 Dispõe sobre monumentos arqueológicos. 4.717 29 de junho de 1965 Regula a ação popular. 4.845 19 de novembro de 1965 Proíbe a saída, para o exterior, de obras de arte e ofícios produzidos no País, até o fim do período monárquico. 5.471 09 de julho de 1968 Dispõe sobre a exportação de livros antigos, conjuntos bibliográficos brasileiros. 6.292 15 de dezembro de 1975 Dispõe sobre o tombamento de bens no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) 7.347 24 de julho de 1985 Disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (vetado) e dá outras providên- cias. 7.542 26 de setembro de 1986 Dispõe sobre a pesquisa, exploração, remoção, demolição de coisas ou bens afundados, submersos, encalhados e perdidos em água sob a juris- dição nacional, em terreno da marinha e seus acrescidos e em terrenos marginais, em decorrência de sinistro, alijamento ou fortuna do mar, e dá outras providências. 8.159 08 de janeiro de 1991 Dispõe sobre a política nacional de arquivos públicos e privados e dá outras providências. 9.605 12 de fevereiro de 1998 Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente e dá outras providências. 10.166 27 de dezembro de 2000 Altera a Lei no 7.542, de 26 de setembro de 1986, que dispõe sobre a pesquisa, exploração, remoção, demolição de coisas ou bens afundados, submersos, encalhados e perdidos em água sob a jurisdição nacional, em terreno da marinha e seus acrescidos e em terrenos marginais, em decorrência de sinistro, alijamento ou fortuna do mar, e dá outras provi- dências. 10.413 12 de março de 2002 Determina o tombamento dos bens culturais das empresas incluídas no Programa Nacional de Desestatização. A seguir, relação de leis, decretos, decretos-leis e portarias emitidas pelo governo federal no esforço de proteger o patrimônio cultural brasileiro. 38 Ainda existem, em termos jurídicos, os decretos que são instrumentos para regulamentar uma lei, e são utilizados exclusivamente pelo poder executivo (Presidente da República, Go- vernador e Prefeito). Existem normas que regulam as leis que versam sobre o patrimônio, como na tabela abaixo. Existem ainda os decretos-lei, que são atos normativos decretados pelo Poder Executivo em caso de urgência, que, no entanto, é substituído na Constituição Federal de 1988 pela Medida Provisória. Como podemos ver na lista abaixo, a urgência é em estabelecer os mecanismos para a construção do órgão de gestão e fiscalização do patrimônio cultural e artístico. Decretos federais relativos ao patrimônio cultural Decreto no Data Título 65.347 13 de outubro de 1969 Regula a Lei no 5.471, de 09 de junho de 1968, que dispõe sobre a exportação de livros antigos e conjuntos bibliográficos. 95.733 12 de fevereiro de 1988 Dispõe sobre a inclusão, no orçamento dos projetos e obras federais, de recursos destinados a prevenir ou corrigir os prejuízos de natureza ambiental, cultural e social decorrente da execução desses projetos e obras. 1.306 09 de novembro de 1994 Regulamenta o Fundo de Defesa de Direitos Difusos, de que tratam os Arti- gos 13 e 20 da Lei no 7.347, de julho de 1985, seu conselho gestor e dá outras providências. 3.179 21 de setembro de 1999 Dispõe sobre as especificações das sanções aplicáveis às condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. 3.551 04 de agosto de 2000 Institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem pa- trimônio cultural brasileiro, cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, e dá outras providências. 3.912 10 de setembro de 2001 Regulamenta as disposições relativas ao processo administrativo para identifi- cação dos remanescentes das comunidades dos quilombos e para o reconhe- cimento, a delimitação, a demarcação, a titulação e o registro imobiliário das terras por eles ocupadas. 4.073 03 de janeiro de 2002 Regulamenta a Lei no 8.159, de 8 de janeiro de 1991, que dispõe sobre a política nacional de arquivos públicos e privados. Decretos-lei do Governo Federal relativos ao patrimônio cultural Decreto-Lei no Data Título 25 30 de novembro de 1937 Organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. 2.848 07 de dezembro de 1940 Dos crimes contra o patrimônio. 3.866 29 de novembro de 1941 Dispõe sobre o tombamento de bens no Serviço do Patrimô- nio Histórico e Artístico Nacional. 39 A portaria é um instrumento jurídico para estabelecer os procedimentos administrativos cabíveis em assuntos específicos. Neste caso, os chefes de departamentos e diretores é que tratam estas medidas. Existem ainda, na formatação jurídica, as “Resoluções”, que são atos do legislativo versando sobre ações próprias a cada área de atuação. No caso do patrimônio cultural é relevante des- tacar a Resolução Conama no 001, de 23 de janeiro de 1986, do Conselho Nacional do Meio Ambiente, que define o que é dano ambiental e quando se aplica, estabelece os mecanismos para aquisição de licenças ambientais e seus estudos pertinentes em cada caso, por obra de engenharia. Estabelece ainda as normas técnicas mínimas para os estudos a serem obrigato- riamente realizados em cada empreendimento, bem como institui as normas e procedimen- tos de análise técnica.
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