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inteligência, e, ainda, ao fato importantíssimo de ser unida ("united among themselves") é que Gardner atribuiu a tendência dos negros do Salvador para insurreições. Tendência para insurreições acompanhada da capacidade para realizá- las — pode-se acrescentar ao observador inglês. Eram, evidentemente, os negros da Bahia uma força que não se deixava facilmente humilhar nem docemen- te dominar pelos senhores brancos. Donde poder dizer- se, em comentário aos reparos de Gardner, que coqueU ros, mangueiras e negros do Salvador e dos seus arre- dores adquiriram na paisagem brasileira um ar, uma vitalidade às vezes arrogante de triunfadores e, ao mesmo tempo, uma doçura satisfeita de senhores anti- gos da terra e iguais aos brancos e aos índios, aos cajueiros e às laranjeiras. Muito de arrogância e doçu* ra satisfeita que nem sempre os pretos alcançaram nou- tras áreas luso-americanas. Teriam os três elementos, hoje caracteristicamente brasileiros — negros, mangueiras, coqueiros — encon- trado naquele trecho de terra gorda e fecunda seu habitat ideal; mas não nos esqueçamos, no caso dos negros, que o caráter excepcionalmente urbano da capi- tal da Bahia parece ter atraído para ali elementos que não encontrariam igual aceitação social nem iguais favo- res ou estímulos do meio ou do ambiente humano, em áreas mais dominadas pelo interesse agrário ou pela O NEGRO NA BAHIA 1 1 ânsia ou furor da mineração e por isso mesmo empenha- das em receber da África negros de capacidade quase puramente física ou simplesmente técnica, desprezadas quaisquer outras virtudes de ordem estética ou cultural. Desprezados aqueles atrativos de semelhança com o "tipo caucásico" notados por ~Adolphe d'Assier nos negros e descendentes brasileiros de negros dtí "raça vigorosa a que pertenciam os reis do Sudão" e que o francês, em viagem pelo Brasil, no meado do século XIX, soube que davam "provas inequívocas de aptidão superior", podendo, como operários, negociantes, padres, médicos, advogados, rivalizar com os brancos. Foram os Minas da capital da Bahia que deram a d'Assier a mesma impressão recebida por Gardner: a de conservarem no Brasil toda a seiva e verdcr africa- nos. "Ce sont surtout les gigantesques négresses minas qui excitent Vattention", diz d'Assier referindo-se aos negros das ruas do Salvador no meado do século pas- sado. E dando idéia da dignidade de porte das baianas livres: "On dirait parfois des dêesses antiques taillées dons un bloc de marbre noir. II ríest pas rare de ren- contrer de ces femmes, hautes de six pieds, portant gravement une banane ou une orange sur Ia tête". Dig- nidade talvez mal interpretada pelo francês: U borrem du travail esl tellement enracinée dons ces natares indo- lentes et sensuelles qu'elles se croiraient déshonorées si elles tenaient à Ia main le plus petit object". A ver- dade parece ser neste caso, como sempre, menos sim- ples; e liga-se tanto ú tradição africana de conduzir o indivíduo majestosamente à cabeça qualquer objeto — que toma assim, mesmo quando humilde banana ou simples laranja, um ar de coroa a coroar o rei ou a rainha que cada homem e cada mulher madura parece, aliás, ter a consciência de ser em algumas das socieda- des africana»— como ao desprezo pela idéia de ocupar o negro ou negra livre as mãos quanto possível aristo- cráticas, confundindo-se com os esêravos de mãos sem- 12 LUIZ VIANNA FILHO pre servilmente ocupadas com objetos ou valores de seu senhor: criança, capote, guarda-sol, urinol, escar- radeira, bandeja de doce ou de fruta, peru, porco, pre- sente de Natal, bolsa ou baú de viagem. Se insisto em sugerir para o estudo da história do negro na área urbana do Salvador e nos seus arredores um critério ecológico — no sentido lato de ecologia •— e ao mesmo tempo psicológico, que tome em justa con- sideração, além dos prováveis motivos predominantes na s.eleção de negros para essa área, as condições que não só favoreceram o desenvolvimento, o prestígio e a influência extraordinária dos africanos nesse trecho do Brasil como orientaram a invasão da mesma área e de suas margens por negros aparentemente "caucásicos" e na realidade mais "africanos" que os depois predomi- nantes noutras áreas, é por me parecer que nem aqueles motivos nem essas condições especiais de meio social e espaço físico podem ser desprezados em qualquer esfor- ço mais profundo de reconstituição e interpretação do passado afro-baiano. Nem em esforço nenhum de explicação do caráter ou do ethos urbano-baiano em relação com os das demais áreas brasileiras coloridas pelo sangue e pelas culturas africanas. Dentre os novos estudio€os brasileiros de assuntos baianos, Luiz Vianna Filho é daqueles que se apresentam mais capazes pela inteligência compreensiva e pela penetração crítica de concorrerem para o esclarecimen- to desses aspectos mais íntimos do passado e do caráter de uma área que teve como talvez nenhuma outra, no Brasil, condições e motivos densamente urbanos a lhe estimularem e enriquecerem a formação no sentido da complexidade. De Luiz Vianna Filho, de Godofredo Filho, de José Valadares, de Edson Carneiro, de Osmar Games, de Nestor Duarte, de Afrânio Coutinho, de Alio- mar Baleeiro, de João Mendonça, de Nelson Sampaio, de Clovis Amorim, para não falarmos dos já mestres Artur Ramos, Wanderley de Pinho, Pedro Calmou, Bernardino O NEGBO NA BAHIA 13 de Souza, M. J. Herskouüs, Doniald Pierson, E. Franklin Frazier, muito se pode esperar no sentido desses esfor- ços de reconstituição e de interpretação menos simplista e mais compreensiva de uma Bahia que chamando-se de Todos os Santos parece ostentar nessa sua tradicional denominação um como índice de sua complexidade: complexidade rebelde a quanto for devoção exclusiva por santo particular; a quanto for unilateralismo exage- rado. A própria devoção de Nosso Senhor do Bonfim sabe-se que sob a aparência de uma só reúne muitas: é complexa. Com relação à Bahia de formação negra ou africana, Luiz Vianna Filho agora nos adverte contra o perigo de não a considerarmos só nem principalmente sudanesa mas igualmente bântu. Advertência contra, uma das .muitas simplificações exageradas nos estudos afro-brasüeiros. As evidências puramente históricas em que êle se baseia, colhidas em arquivos oficiais, poderão ser con- firmadas e avigoradas — ou neutralizadas — por evi- dências de caráter antropológico — físico e cultural — que um estudo minucioso dos anúncios de escravos à venda e principalmente dos de escravos fugidos recolha com objetividade e discriminação nas gazetas baianas do século XIX. Cada dia mais me convenço da conve- niência de tal estudo com relação ao passado de uma área da complexidade da baiana-urbana. Área que evidentemente projetou sua influência sobre o Recôn* cavo agrário em vez de ter sido simples reflexo da pai- sagem feudal do mesmo Recôncavo ostensivamente dominado pelos barões das casas-grandes, mas uma vez por outra agitado por insurreições organizadas pelos negros urbanos, sofisticados e conscientes de sua força e, até certo ponto, de sua cultura. Aliás, o poder de irradiação da "consciência de espécie" — "espécie" cultural — desses negros urbanos da Bahia parece ter sido maior do que se imagina. Não se limitou ao Recôncavo nem mesmo à Bahia. Trans* 14 LUIZ YIAXNA FILHO bordou às vezes por outras capitanias. Pela Comarca de Alagoas, por exemplo. Não faz muito tempo que. relendo MSS de correspondência dos capitães-generais de Pernambuco com a Corte, deparei, no volume rela- tivo aos anos de 1815-1817, com a notícia de um movi- mento revolucionário de escravos que deveria ter reben- tado na Comarca de Alagoas nas proximidades do Natal do ano de 1815. Foi porém surpreendido a tempo pelas autoridades. De um dos ofícios sobre o assunto, de