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capitão-general Caetano Pinto de Miranda Montenegro, consta a origem baiana da projetada insurreição. "Alguns escravos fugidos da Bahia espalharam as pri- meiras sementes da sedição". De outro ofício é a infor- mação de que os escravos de Alagoas "com efeito medi- tavam levantar-se contra os brancos e teria havido algüa inquietação se a tempo se não obstasse com oportunas providências". Chegou a haver grande alarme entre os brancos ,e brancarões alagoanos, donos de terra e de negros. Não creio que a malograda insurreição dos negros de Alagoas, estimulados à revolta contra os brancos por escravos fugidos da Bahia, tenha sido exemplo isolado do poder de irradiação da atividade política dos afro- baianos de cidade. A outros pontos do Brasil deve ter- se estendido aquela atividade inteligente de pretos mais civilizados e inquietos que os das demais áreas. Aos quilombos do Espírito Santo, por exemplo. E na insur- reição de gente de côr do Recife em 1823 talvez venha a encontrar-se marca de influência ou inspiração baia- na; e não apenas haitiana ou dominicana. Era de branco familiarizado com os negros urba- nos, civilizados e até sofisticados da Bahia, a voz de membro da Assembléia Constituinte que em sessão de 30 de setembro de 1823 advertiu seus colegas contra o perigo de suporem os africanos "incapazes de civiliza- ção". Nem "incapazes de civilização" nem incapazes de insurreições. "Deixemos, senhores", dizia naquela O NEGRO NA BAHIA 15 sessão Silva Lisboa, "controvérsias sobre cores; são fe- nômenos físicos que variam conforme os graus do equa- dor, influxos do sol e disposições geológicas e outras causas muito profundas que não são objeto desta dis- cussão. ... Boas instituições com a reta educação são as que formam os homens para terem a dignidade de sua espécie, quaisquer que sejam as suas cores...." Que se recordassem todos, acrescentava Silva Lisboa, do muito que contribuíram africanos e crioulos para "o estabele- cimento do Império do Brasil". Para o desenvolvimento da civilização brasileira em sentido étnico e socialmente democrático, a contribui- ção do africano e do descendente de africano fixados na área urbana da Bahia pode ser considerada de espe- cial importância. Não nos esqueçamos de que esse trecho do Brasil foi — e continua a ser — a área, por excelência, do negro e principalmente da negra fina, do negro pachola, do crioulo "muito político no falar" que às vezes passa pelos anúncios de negros fugidos, da negra capaz de servir de exemplo dos extremos de graça, de delicadeza de gestos, de elegância de porte, de doçura de voz, de encanto pessoal que pode atingir a mulher de origem africana, mesmo quando preta ou quase preta, sob os favores de ambiente urbano. Se a democracia brasileira vier a ser uma democracia de aristocratas, que melhor contribuição africana a terá enriquecido que a dos negros urbanos da Bahia, predo- minantemente sudaneses em sua cultura? O estudo desse tipo urbano de negro que foi no desenvolvimento da civilização brasileira uma especia- lização baiana está ainda para ser feito; mas os cami- nhos de pesquisa e de análise, que hão de nos conduzir até lá, repito que vão sendo alargados com vigor de inteligência e; senso crítico por jovens historiadores da marca de Luiz Vianna Filho. A Bahia não tem hoje ensaísta ou historiador que mais incisivamente desminta a lenda da incapacidade baiana para o ensaio crítico ou 16 LUIZ VIANNA FILHO para o estudo histórico libertado da eloqüência e da retórica, que Luiz Vianna Filho. Os que conhecemos seus recursos de talento e de erudição só podemos desejar que a este ensaio histórico-sociológico de intro- dução ao estudo do negro na Bahia sigam-se novas páginas sobre o assunto: um assunto que lhe pertence por direito de nascença completado pelo de conquista. O direito de nascença ê claro que apenas se refere à sua condição de branco nascido na Bahia. Por si só, uma condição perigosa. Mas ideal, quando completada por uma inteligência do equilíbrio, da objetividade e do poder de discriminação que fazem de Luiz Vianna Filho um dos melhores ensaístas que hoje se dedicam no Bra- sil aos estudos de história e de sociologia regional. Santo Antônio de Apipucos. Fevereiro, 1944. GILBERTO FREYRE Nos estudos contemporâneos de sociologia, de his- tória e de geografia, os problemas relativos ao negro estão na ordem do dia. Disso um exemplo palpitante é o número crescente de sociedades, revistas e traba- lhos inteiramente dedicados às questões raciais e cul- turais das populações originárias da África e que, hoje, sobretudo através de populações mescladas de sangue negro, se derramam por largas áreas do mundo, com um vigor e uma intensidade que preocupam os estudio- sos dos movimentos da humanidade. Esse interesse, porém, não se verifica apenas nos círculos cultos, como os das sociedades científicas americanas, francesas e italianas, dedicadas às pesquisas de assuntos relaciona- dos com o negro, mas se estende ao público em geral. Não faz muito que um Jornal francês enviava um representante, André Demaison, para proceder a um inquérito sobre a situação do negro na América. No Brasil, onde — excluída a América do Norte — se encontra a maior população mestiça do mundo, e com larga contribuição do sangue negro, vários têm sido os estudos realizados sobre o assunto. Interrompida a obra de Nina Rodrigues, somente nos últimos anos foi o tema retomado pelos trabalhos de Oliveira Vianna, Roquete Pinto, Artur Ramos, Gilberto Freyre, J. A. Gonsalves de Mello, neto, Edson Carneiro e de alguns outros. No entanto, pelas suas condições peculiares, nenhum campo mais fértil para estudos dessa natureza do que o brasileiro, onde o branco, representado pelo português, que sempre se misturou abertamente com as populações nativas, como observa R. E. Park, cruzou intensamente com. a população negra importada da África. Importado* com um fito exclusivamente econômico, o negro, rapidamente, assistiu à desintegração da sua cultura, enquanto as suas relações com a população dominante, por determinantes de caráter econômico e 18 LUIZ VTANNA EILHO cultural, se transferia para outros campos da vida social, apesar do grupo branco pretender conservá-lo isolado da sua cultura. Nesse fato foi elemento pri- macial a mulher escrava, de cuja união com o homem branco resultou o mulato, o pardo, como se chamou no período colonial, e que foi o nosso "marginal man ' \ para usar da expressão de Park. Elemento interme- diário entre as duas sociedades, já meio esquecida das tradições culturais do grupo inferior e iniciando a assimilação da cultura do grupo superior, ambicionan- do equiparar-se a este, foi o ponto de encontro entre os dois grupos. Em regra, graças aos nossos fracos pre- conceitos de côr, em contrário ao que acontece na Amé rica, onde uma gota de sangue negro torna preto um homem, branco, não foram repudiados pela classe domi- nante, sobretudo com o correr do tempo, o que contri- buiu grandemente para atenuar o nosso conflito racial. E, como resume Capistrano, quando reuniam a audá- cia ao talento e à fortuna alcançaram altas posições, Na Bahia, observação idêntica fizeram Spix e Martius. . Dentro desse critério, quase livre de preconceitos raciais, que foram cada vez mais se apagando, delineou- se a sociedade brasileira, da qual emergiria a nossa raça atual, composta de elementos étnicos diversos, mas perfeitamente marcado sob o ponto de vista socioló- gico, para o qual a expressão raça, segundo os estudos realizados por Miller, Park, Reuter e Brown, entre outros, tem apenas significação quando definida numa cultura. Nesse sentido podemos afirmar que somos uma raça, unificada nas suas tradições, nas suas cren- ças, nos seus ideais, na sua língua e na sua cultura.