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Para ela, mais do que o índio, que, em certa época, tanto impressionou a nossa literatura, contribuiu o Negro, cujas sobrevivências culturais, ainda hoje, se notam na população brasileira. Para o estudo dessa contribuição negra na socie- dade brasileira não bastam, porém, as observações diretas das atuais populações de côr. O confronto com elementos históricos, infelizmente tão escassos, é indis- pensável. Eles é que nos poderão fornecer os dados necessários para o conhecimento de fatos passados e que, melhor do que qualquer pesquisa atual, explicam fenômenos sociais cuja repercussão ainda perdura no O NEGRO NA BAHIA 19 "melting-pot" nacional. Assim o coeficiente de cada urti dos dois grandes grupos africanos importados para o Brasil — o bântu e o sudanês —, o seu comporta- mento social, a sua influência na economia do pais, o regime de vida a que foram submetidos, a repercussão da sua cultura na sociedade nova, os fenômenos de acul- turação e de sincretismo religioso, os choques de cul- tura, e, por fim, a integração e a evolução do negro na sociedade brasileira. É um largo capítulo da história nacional, e que se estende desde o tráfico até a situação atual do negro no Brasil. O material necessário para o escrever ainda se conserva, em grande parte inédito, distribuído pelos arquivos nacionais, sem se falar da preciosa contribui- ção de arquivos estrangeiros. A publicação de traba- lhos regionais é que poderá fornecer ao historiador de amanhã esses elementos. Foi dentro desse objetivo que limitamos à Bahia o presente trabalho. À Bahia onde foi tão intensa a contribuição do elemento negro em todos os departamentos da atividade e a cujas qualida- des de trabalho e de inteligência se deve, em boa parte, o aparecimento, nos trópicos, duma civilização de ele- vado nível de cultura. Isso sem que fosse a Bahia o ponto do território nacional de maior densidade negra. Em Pernambuco, primeiro, e depois no Rio de Janeiro, em Minas Gerais, em S. Paulo e no Maranhão foram mais elevadas as percentagens dá população africana. Lamentamos que em alguns pontos as investiga- ções a que procedemos nos tenham levado a divergir de outros pesquisadores. Sempre que o fizemos, porém, foi pelo desejo de contribuir para os estudos posterio- res, que se venham a realizar, no Brasil, sobre o negro. Sobretudo em relação às direções do tráfico e aos ele- mentos por êle trazidos para a Bahia nos afastamos, de algum modo, de conclusões consagradas. Também de referência à posição ocupada por bântus e sudaneses na fusão do elemento branco com o negro, na Bahia, nos desviamos de antigos pontos de vista. Aqui cs nossos agradecimentos, pelo valioso auxílio que nos prestaram, ao Dr. Alfredo Pimentel, diretor do ArquiVo Público da Bahia, cuja preciosa documentação 20 LTJIZ VTANHA FILHO foi facultada às nossas investigações, e ao modesto e culto franciscano, frei Tomaz Gockmeyer, que nos for- neceu inestimáveis indicações colhidas nas suas pacien- tes peregrinações pelos candomblés da Bahia, cujas intimidades devassou com o penetrante olhar de cien- tista. Bahia Junho-Agôsto» 1938. PRIMEIRA PARTE I M I G R A Ç Ã O CAPÍTULO I O TRÁFICO Com o tráfico, sempre mais cruel do que o regime servil a que seriam submetidos, inicia-se a história dos negros transportados da África para a Bahia. Das faces dramáticas da escravidão, nenhuma excede, em horror, às atrocidades praticadas pelos negreiros. Fre- qüentemente divulgadas pelos escritores, muitas vezes exageradas pela imaginação, pode dizer-se que são do dominio público. Fazendo-se ora em direção à Guiné, ora a Angola, ora à Gosta da Mina, influenciado por causas econômi- cas e politicas, tanto internas como externas, intima- mente ligado ao desenvolvimento do país, o tráfico apresenta vários aspectos de importância para o conhe- cimento exato das populações negras importadas e do seu comportamento social. Alguns, no entanto, pouco têm sido estudados. v Dentre estes está o da geografia africana nas suas relações com o comércio de escravos. A cada passo, 11 o estudo das importações negras para a Bahia, encon- tramos referências à Guiné, à Costa da Mina ou a Angola, exprimindo populações ou territórios. Tais termos, no entanto, sofreram, com o tempo, profundas modificações na sua significação. Ora tiveram uma extensão mais ampla, compreendendo grandes territó- rios, ora ficaram restritos a pequenas regiões. Sem situá-las no tempo, marcando a significação precisa que tiveram em cada época, seria impossível intentar o exa- me da escassa documentação existente. Provém o fato, principalmente, dos restritos conhe- cimentos geográficos da época dos descobrimentos, quando a costa africana, como a brasileira, esteve su- jeita a batismos e crismas, que nem sempre vieram a prevajecer posteriormente. Nem todos os navegantes usavam as mesmas designações, quer em relação a pe,- 24 LUIZ VIANNA FILHO quenos acidentes geográficos, quer em relação a dila- tados territórios. Somente em época posterior, con- frontadas descobertas e toponimias, foi possível che- gar-se a certa uniformização. Mas, num livro de divul- gação, são pontos necessários de fixar, afim de que se não incida no erro tão freqüente de emprestar a expres- sões geográficas quinhentistas e seiscentistas a.sua sig- nificação atual. Disso um exemplo vivo é o que ocorre com a Gui- né. A simples enumeração dos vários conceitos atri- buídos a esta expressão esclarece o assunto. Reclus, por exemplo, assim define o que seja a Guiné: "A expres- são geográfica Guiné — e não Guinee — que os navega- dores portugueses deram ao conjunto da África ociden- tal, da embocadura do Senegal à do Orange, perdeu gra- dualmente o seu valor compreensivo; à medida que os países do litoral foram melhor conhecidos, nomes espe- ciais lhes foram dados e, no uso ordinário, o nome Gui- né não ficou senão para as possessões portuguesas da costa africana entre a bacia da Casamaca e o Cam- poni". (1) Alinham-se aí os dois conceitos extremos. 0 mais lato, do ciclo dos descobrimentos, e o mais restri- to, contemporâneo. O primeiro, compreendendo quase toda a costa leste da África, desde o Senegal, acima de Cabo Verde, até os limites da Colônia do Cabo, na extre midade meridional do Continente, e o último, abrangen- do apenas uma estreita área das atuais possessões portu- guesas dessa região. Dificulta ainda a questão o fato de se ter dado a modificação lentamente, variando de cro- nista a cronista, de geógrafo a geógrafo. Já em 1605 va- riara o conceito primitivo, pois, segundo informava o Pe. Barreira "Esta Província de África a que propriamen- te os nossos chamam Guiné, se começa no rio Ganaga pe- la parte norte e continuando a costa quase 180 léguas se acaba na Serra Leoa". (2) Aproximam-se desses limi- tes os que Bouillet atribui à Guiné: Serra Leoa, ao norte, e o cabo Lopo, ao sul. (3) Mais lata é a definição de (1) Reclus, Tratado de Geografia, v. XIII, pag. 306, ed. de 1887. (2) Relação Anual das cousas que fizeram os Padres da Gompan(hia de Jesus nas suas missões, 1600-1609, v. I. (3) Bouillet, Dictionnaire Universel d'Histoire et Geo- graphie. O NEGRO NA BAHIA 25 Balbi, que, chamando-a de Nigritia Maritima, dava à Guiné "todos os territórios situados entre a Senegâmbia e o Congo". (4) A confusão perdurou por muito tempo. No mea- do do século XVIII j á se não podia precisar o que fos- se a Guiné. Tanto mudara, tanto variara, que não ex- primia nada certo, delimitado na. geografia da época. E o Conde dos Arcos, escrevendo da Bahia, em 1758, para Tome Joaquim da Corte Real, dizia-se embaraçado para cumprir uma ordem referente à Guiné "porque a palavra Guiné no sentido em que a tomão alguns auto- res compreende não só as ilhas de S. Tome, mas tam-