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1 6.DOS CRIMES CONTRA A LIBERDADE INDIVIDUAL Dos crimes contra a liberdade pessoal O fundamento dos crimes contra a liberdade pessoal repousa no art. 5.°, caput, da Constituição Federal, que assegura a todos o direito à liberdade. Daí se extrai que qualquer espécie de violação à liberdade do ser humano reclama punição, justificando a tipificação das condutas definidas pelos arts. 146 a 149 do Código Penal. Art. 146 – Constrangimento ilegal Art. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda: Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa. Aumento de pena § 1º - As penas aplicam-se cumulativamente e em dobro, quando, para a execução do crime, se reúnem mais de três pessoas, ou há emprego de armas. § 2º - Além das penas cominadas, aplicam-se as correspondentes à violência. § 3º - Não se compreendem na disposição deste artigo: I - a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida; II - a coação exercida para impedir suicídio. Objetividade jurídica É a liberdade do ser humano para agir dentro dos limites legalmente previstos. O fundamento desse delito, no âmbito de uma visão constitucional do Direito Penal, encontra-se no art. 5.°, inciso II, da Constituição Federal: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Nesses termos, somente a lei pode obrigar alguém a adotar determinado comportamento, ou então proibi-lo de agir ao seu livre alvedrio. Objeto material - É a pessoa sobre a qual recai a conduta criminosa. Núcleo do tipo 2 Constranger equivale a coagir alguém a fazer ou deixar de fazer algo. Consiste, em suma, no comportamento de retirar de uma pessoa a sua liberdade de autodeterminação. Há crime, uma vez que somente ao Estado, não de modo arbitrário, mas exclusivamente por meio de lei, confere-se a tarefa de disciplinar a obrigação ou a proibição de condutas por seres humanos. Em síntese, o delito pode ocorrer em duas hipóteses: a)quando a vítima é compelida a fazer alguma coisa (conduta comissiva ou positiva). Exemplos: beber um copo de cerveja, andar sem sapatos em via pública etc.; e b)quando a vítima é compelida a deixar de fazer algo (conduta omissiva ou negativa), que também engloba a situação em que ela é coagida a permitir que o agente faça alguma coisa. Exemplos: não fumar em local permitido, não correr em um parque público etc. Mas não basta o agente obrigar a vítima a fazer ou deixar de fazer qualquer coisa. Precisa impor à vítima um comportamento certo e determinado. Além disso, o constrangimento há de ser ilegal, isto é, a ação ou omissão pretendida pelo sujeito ativo deve estar em desconformidade com a legislação em vigor. E, nesse contexto, a ilegitimidade da pretensão pode ser: a)absoluta: quando o agente não tem direito à ação ou omissão. Exemplo: obrigar a vítima a cantar uma música; e b)relativa: quando o agente tem direito à ação ou omissão, mas a vítima não pode ser compelida a comportar-se da forma por ele visada. Exemplo: obrigar o ofendido a quitar uma dívida resultante de jogo de azar. Consequentemente, não há crime quando o constrangimento objetiva impedir a realização de ação ou omissão proibida pela lei. Quem assim age está acobertado no exercício regular do direito, causa excludente da ilicitude prevista no art. 23, inciso III, do Código Penal. Todavia, estará caracterizado o delito de constrangimento ilegal na hipótese em que o sujeito, valendo-se de violência (própria ou imprópria) ou grave ameaça, busca evitar a realização de um ato meramente imoral pela vítima. Ressalte-se, porém, que, se o comportamento da vítima puder ser exigido por meio de ação judicial, o crime será o de exercício 3 arbitrário das próprias razões (CP, art. 345). Também estará configurado este delito sempre que o agente, embora incidindo em erro, acreditar ser legítima sua pretensão. Para realizar qualquer das condutas previstas no tipo penal, o sujeito pode se valer dos seguintes meios de execução: violência, grave ameaça e qualquer outro meio que reduza a capacidade de resistência da vítima. a) Violência: Violência própria, ou física, é o emprego de força bruta sobre a vítima. A violência pode ser direta ou imediata, quando dirigida contra a vítima, ou indireta ou mediata, quando dirigida a pessoa ou coisa ligada ao ofendido. b) Grave ameaça: Também chamada de violência moral, consiste na promessa de realização de mal grave, futuro e sério contra a vítima ou pessoa que lhe é próxima. Pode ser transmitida ao ofendido oralmente ou por escrito. Note-se que, ao contrário do crime de ameaça (CP, art. 147), não precisa ser injusta. c) Qualquer outro meio que reduza a capacidade de resistência da vítima: o legislador previu a violência imprópria, valendo-se da interpretação analógica. Depois de estabelecer uma fórmula casuística (violência ou grave ameaça), recorreu a uma fórmula genérica. Constitui-se, portanto, meio de execução do crime de constrangimento ilegal qualquer outra conduta, ainda que não prevista em lei, mas análoga à violência própria e à grave ameaça, idônea a tolher a liberdade de autodeterminação da vítima. Exemplos: uso de narcóticos, hipnose, embriaguez etc. Fica nítido, portanto, que o constrangimento ilegal é crime de forma livre. Sujeito ativo - Pode ser qualquer pessoa (crime comum). Entretanto, se o sujeito ativo for funcionário público, e o fato for cometido no exercício de suas funções, responderá por abuso de autoridade, na forma definida pelos arts. 2.° e 3.° da Lei 4.898/1965. Sujeito passivo Qualquer pessoa, desde que dotada de capacidade de autodeterminação. Excluem-se, portanto, as crianças de tenra idade e os doentes mentais, entre outros. A Lei 10.741/2003 – Estatuto do Idoso, em seu art. 107, pune com 4 reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, aquele que coage, de qualquer modo, o idoso a doar, contratar, testar ou outorgar procuração. Por sua vez, a Lei 7.170/1983 – Crimes contra a Segurança Nacional, no art. 28, sujeita à pena de reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, a conduta de atentar contra a liberdade pessoal do Presidente da República, do Senado Federal, da Câmara dos Deputados ou do Supremo Tribunal Federal. De outro lado, o art. 71 da Lei 8.078/1990 – Código de Defesa do Consumidor, prevê a pena de detenção, de 3 (meses) a 1 (um) ano, e multa, para quem utilizar, na cobrança de dívidas, de ameaça, coação, constrangimento físico ou moral, afirmações falsas incorretas ou enganosas ou de qualquer outro procedimento que exponha o consumidor, injustificadamente, a ridículo ou interfira com seu trabalho, descanso ou lazer. Elemento subjetivo É o dolo. Não se admite a modalidade culposa. Para Damásio E. de Jesus, exige-se ainda um especial fim de agir, uma vez que a conduta é realizada com o fim de que a vítima não faça o que a lei permite ou faça o que ela não determina. Para outros autores, contudo, basta o dolo, pois as expressões “a não fazer o que a lei permite” e “a fazer o que ela não manda” constituem elementos objetivos do tipo, e não subjetivos. A finalidade do sujeito ativo é irrelevante, isto é, pouco importa o motivo que o levou a agir em contrariedade ao Direito. Consumação Dá-se no instante em que a vítima faz ou deixa de fazer algo, em decorrência da violência ou grave ameaça utilizada pelo agente.Cuida-se de crime material e instantâneo. Tentativa É possível, tanto quando busca o agente constranger a vítima a não fazer o que a lei permite (exemplo: “A”, em vão, diz a “B” para ele não frequentar uma praça pública, pois caso contrário irá agredi-lo), bem como quando deseja que ela faça 5 o que a lei não manda (exemplo: “A” golpeia “B” com socos para que este último cante uma música, no que não é atendido). Subsidiariedade tácita O constrangimento ilegal é crime subsidiário. Destarte, a lei que o define é afastada pela lei que utiliza o constrangimento ilegal como elemento, qualificadora ou meio de execução de um crime mais grave. É o que se verifica nos crimes de extorsão (CP, art. 158) e estupro (CP, art. 213), entre outros. Lei de Tortura: distinção Quando o sujeito constrange alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental, para provocar ação ou omissão de natureza criminosa, responde pelo crime praticado em concurso material com tortura (Lei 9.455/1997, art. 1.°, inc. I, alínea b). Exemplo: “A”, com emprego de arma de fogo, obriga “B” a subtrair bens da empresa em que trabalha. Recebe os bens e foge em seguida. “A” deve responder por dois crimes: furto e tortura. Se, entretanto, a violência ou grave ameaça dirigir-se à prática de contravenção penal, estará caracterizado o concurso material entre a contravenção cometida e o crime de constrangimento ilegal, pois a Lei 9.455/1997 refere-se unicamente à coação para a prática de crime. Causas de aumento da pena: art. 146, § 1.° O art. 146, § 1.°, do Código Penal arrola duas causas de aumento da pena para o crime de constrangimento ilegal. Incidem, portanto, na derradeira etapa do critério trifásico de dosimetria da pena privativa de liberdade. Dizem respeito à execução do crime: reunião de mais de três pessoas e emprego de arma. A presença de uma ou de ambas as causas de aumento de pena produz os seguintes efeitos simultâneos: as penas previstas no caput (detenção, de 3 meses a 1 ano, ou multa) serão aplicadas cumulativamente (detenção e multa) e em dobro (detenção, de 6 meses a 2 anos, e duplicada a multa). Reunião de mais de três pessoas 6 Pela redação do dispositivo legal, é imprescindível que ao menos quatro pessoas tenham se envolvido nos atos executórios do constrangimento ilegal. Trata-se de crime plurissubjetivo, plurilateral ou de concurso necessário, e, por tal motivo, ingressam nesse número os inimputáveis e os sujeitos não identificados. A pena será aumentada em razão do concurso de agentes para a execução do constrangimento ilegal. Se, todavia, a união de quatro ou mais pessoas para a prática de crimes específicos for estável e permanente, haverá concurso material entre o constrangimento ilegal simples e a associação criminosa (CP, art. 288). Emprego de armas Como a lei não definiu o tipo de arma que leva ao aumento da pena, é possível falar na exasperação tanto quando se tratar de arma própria como no tocante à arma imprópria. Arma própria é todo objeto ou instrumento que foi originariamente concebido com a finalidade de ataque ou defesa, da qual são exemplos o revólver, o punhal e a pistola, etc. Ao contrário, arma imprópria é o objeto ou instrumento que, embora criado com finalidade diversa, pode ser utilizado para ataque ou defesa, tais como a faca de cozinha, o machado e a chave de fenda, entre outros. Nada obstante o dispositivo legal fale em “emprego de armas”, basta uma única arma para legitimar o aumento da pena. A lei faz menção ao gênero, e não ao número. E, para que seja aplicada a causa de aumento de pena, é necessário seja a arma efetivamente empregada pelo agente. Mas seu porte ostensivo, utilizado com o nítido propósito de amedrontar a vítima, também autoriza a incidência da majorante. Em face da reduzida quantidade de pena do constrangimento ilegal, os crimes de posse ilegal de arma de fogo (Lei 10.826/2003, art. 12) ou de porte ilegal de arma de fogo (Lei 10.826/2003, art. 14) não são por ele absorvidos. Estará configurado o concurso material de crimes. Anote-se que o arquivamento de inquérito policial pela prática do crime de porte ilegal de arma de fogo não impede o reconhecimento da causa de aumento de pena prevista no § 1.° do art. 146 do Código Penal. Enquanto o 7 Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/2003) define os crimes voltados à repressão do uso e porte de arma de fogo, a majorante do constrangimento ilegal refere-se a qualquer arma, desde que ela tenha a capacidade de impingir à vítima a grave ameaça contida no caput do art. 146 do Código Penal. Lei 9.099/1995 O constrangimento ilegal, seja na modalidade do caput, seja com a presença das causas de aumento de pena, é infração penal de menor potencial ofensivo, sujeita, portanto, ao procedimento sumaríssimo e à transação penal, desde que presentes os requisitos legalmente exigidos (Lei 9.099/95, art. 76). Concurso material obrigatório: art. 146, § 2.° O legislador entendeu que o emprego de violência torna o crime de constrangimento ilegal mais grave do que quando praticado com grave ameaça, pois é idôneo a proporcionar consequências mais funestas à vítima. Daí a razão de ser obrigatória, nessa hipótese, além das penas cominadas ao constrangimento ilegal, a imposição da pena resultante da violência utilizada na execução do crime. Em outras palavras, o agente que, com violência, constrange ilegalmente a vítima, vindo a feri-la, deve responder por dois crimes em concurso material: constrangimento ilegal (simples ou agravado, conforme o caso), e lesão corporal, leve, grave ou gravíssima. Ação penal - É pública incondicionada, em todas as modalidades do delito. Classificação doutrinária O constrangimento ilegal é crime comum (pode ser praticado por qualquer pessoa); doloso; de forma ou ação livre (admite qualquer meio de execução); material (exige a produção do resultado naturalístico); simples (tutela um único bem jurídico, qual seja a liberdade pessoal ou poder de autodeterminação); instantâneo (consuma-se em um momento determinado, sem continuidade no te mp o ) ; de dano(consuma-se somente com a lesão ao bem jurídico penalmente protegido); unissubjetivo, unilateral ou de concurso eventual (praticado por uma única pessoa, mas compatível com o concurso de agentes, e eventualmente de concurso necessário, na figura agravada prevista no § 1.°); 8 plurissubsistente (conduta pode ser fracionada em diversos atos); e subsidiário. Causas de exclusão do crime: art. 146, § 3.° O art. 146, § 3.°, do Código Penal arrola duas hipóteses nas quais “não se compreendem na disposição deste artigo”, ou seja, situações em que, nada obstante alguém tenha tolhida sua liberdade de autodeterminação, o fato não configura o crime de constrangimento ilegal. Justifica-se a opção legislativa pela proteção de um bem jurídico indisponível: a vida humana. A doutrina dominante classifica tais casos como causas especiais de exclusão da ilicitude, por se constituírem em manifestações inequívocas do estado de necessidade de terceiro. O sujeito é atingido em sua liberdade pessoal justamente para ser protegido do perigo que lhe rodeia. Há, contudo, posições contrárias. Para alguns autores, a redação da lei (“não se compreendem na disposição deste artigo”) instituiucausas excludentes da tipicidade, pois, se os fatos não se encontram compreendidos na norma penal incriminadora, são condutas atípicas. Qualquer que seja a posição adotada, porém, opera-se a exclusão do crime. Em verdade, se o delito é, no mínimo, o fato típico e ilícito, afastando-se a tipicidadeou a ilicitude, o crime deixa de existir. A intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida: inciso I Pouco importa o motivo que leva o paciente em iminente perigo de vida, ou seu representante legal, a discordar da intervenção médica ou cirúrgica. Ainda que de cunho religioso, em que pese ser o Brasil um Estado laico, pode agir o profissional da medicina contra a vontade do paciente ou de quem o represente, a fim de salvar sua vida. O fundamento dessa regra foi muito bem exposto por Floriano de Lemos: O direito moderno considera a vida um bem coletivo. O homem não se pertence só a si, senão à sociedade, de que faz parte integrante. A hipótese se enquadra, então, sem a menor dúvida, em 9 questão de ordem pública. E sendo assim, como de fato é, a vida um bem coletivo, claro está que, em tais circunstâncias excepcionais (perigo de vida ou iminência de morte), o médico pode e deve agir arbitrariamente, porque há uma razão jurídica a invocar: o interesse do agente é legítimo, a utilidade manifesta para a sociedade. A coação exercida para impedir suicídio: inciso II O suicídio não é definido como crime no Brasil. Mas é uma conduta ilícita, não tolerada pelo Direito, pois a vida humana é bem jurídico indisponível, de interesse coletivo e expressamente protegido pelo art. 5.°, caput, da Constituição Federal. Portanto, não há constrangimento ilegal na coação, exercida com violência ou grave ameaça, para impedir a eliminação da própria vida por quem quer que seja. O constrangimento, ao contrário, é legal, pois o suicídio, este sim, é ilegal. O dispositivo em análise permite o emprego de coação para combater um ato ilícito. Em geral, para impedir uma ação ou omissão ilícita, a constrição violenta de um indivíduo sobre outro deixa de ser criminosa. E, ao reconhecer expressamente a licitude da coação para evitar suicídio, o Código Penal o fez apenas para afastar a controvérsia doutrinária sobre se o suicídio é ato contra ius ou simplesmente imoral (ou indiferente ao direito).
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